terça-feira, 24 de janeiro de 2023

THOMAS ALBORNOZ NEVES | André Breton, o surrealismo em dois poemas

 


André Robert Breton (Tinchebray, 1896-Paris, 1966) escreveu cinco livros fundamentais:

 

Manifestes du Surréalisme (1924-1930)

Les Champs Magnétiques (1919)

Nadja (1928)

Les Vases Communicants (1932)

L’Amour Fou (1937)

Arcane 17 (1944)

 

Entretanto, sua inteira poética pode estar contida em L’union libre (1931), poema anafórico que resume a linguagem que representa. Se lermos os versos de Benjamin Péret ou os de Robert Desnos, dois surrealistas ortodoxos, encontraremos apenas a diluição da potência que este poema único propaga sobre o código expressivo do movimento.

 

L’UNION LIBRE

 

Ma femme à la chevelure de feu de bois

Aux pensées d’éclairs de chaleur

A la taille de sablier

Ma femme à la taille de loutre entre les dents du tigre

Ma femme à la bouche de cocarde et de bouquet d’étoiles de dernière grandeur

Aux dents d’empreintes de souris blanche sur la terre blanche

A la langue d’ambre et de verre frottés

Ma femme à la langue d’hostie poignardée

A la langue de poupée qui ouvre et ferme les yeux

A la langue de pierre incroyable

Ma femme aux cils de bâtons d’écriture d’enfant

Aux sourcils de bord de nid d’hirondelle

Ma femme aux tempes d’ardoise de toit de serre

Et de buée aux vitres

Ma femme aux épaules de champagne

Et de fontaine à têtes de dauphins sous la glace

Ma femme aux poignets d’allumettes

Ma femme aux doigts de hasard et d’as de cœur

Aux doigts de foin coupé

Ma femme aux aisselles de martre et de fênes

De nuit de la Saint-Jean

De troène et de nid de scalares

Aux bras d’écume de mer et d’écluse

Et de mélange du blé et du moulin

Ma femme aux jambes de fusée

Aux mouvements d’horlogerie et de désespoir

Ma femme aux mollets de moelle de sureau

Ma femme aux pieds d’initiales

Aux pieds de trousseaux de clés aux pieds de calfats qui boivent

Ma femme au cou d’orge imperlé

Ma femme à la gorge de Val d’or

De rendez-vous dans le lit même du torrent

Aux seins de nuit

Ma femme aux seins de taupinière marine

Ma femme aux seins de creuset du rubis

Aux seins de spectre de la rose sous la rosée

Ma femme au ventre de dépliement d’éventail des jours

Au ventre de griffe géante

Ma femme au dos d’oiseau qui fuit vertical

Au dos de vif-argent

Au dos de lumière

A la nuque de pierre roulée et de craie mouillée

Et de chute d’un verre dans lequel on vient de boire

Ma femme aux hanches de nacelle

Aux hanches de lustre et de pennes de flèche

Et de tiges de plumes de paon blanc

De balance insensible

Ma femme aux fesses de grès et d’amiante

Ma femme aux fesses de dos de cygne

Ma femme aux fesses de printemps

Au sexe de glaïeul

Ma femme au sexe de placer et d’ornithorynque

Ma femme au sexe d’algue et de bonbons anciens

Ma femme au sexe de miroir

Ma femme aux yeux pleins de larmes

Aux yeux de panoplie violette et d’aiguille aimantée

Ma femme aux yeux de savane

Ma femme aux yeux d’eau pour boire en prison

Ma femme aux yeux de bois toujours sous la hache

Aux yeux de niveau d’eau de niveau d’air de terre et de feu

 

A UNIÃO LIVRE

 

Minha mulher com os cabelos de fogo de lenha

Com pensamentos de relâmpagos de calor

Com cintura de ampulheta

Minha mulher com cintura de lontra entre os dentes de tigre

Minha mulher com a boca de cocar e fragrância de estrelas de primeira magnitude

Com dentes de rastros de rato branco na terra branca

Com a língua de âmbar e de vidro cinzelado

Minha mulher com língua de hóstia apunhalada

Com língua de boneca que abre e fecha os olhos

Com língua de pedra incrível

Minha mulher com cílios de lápis de caligrafia infantil

Com sobrancelhas de borda de ninho de andorinha

Minha mulher com têmporas de ardósia de telhado de estufa

E de vapor nos vidros

Minha mulher com ombros de champanhe

E de fonte com cabeças de delfins sob o gelo

Minha mulher com pulsos de fósforos

Minha mulher com dedos de acaso e de ás do coração

Com dedos de feno cortado

Minha mulher com axilas de marta e nozes de faia

De noite de São João

De ligustro e de ninho de escalares

Com braços de espuma de mar e de esclusa

E de mistura de trigo e de moinho

Minha mulher com pernas foguete

Com movimentos de relojoaria e desespero

Minha mulher com panturrilhas de polpa de sabugo

Minha mulher com pés de iniciais

Com pés de molho de chaves e de calafates que bebem

Minha mulher com pescoço de cevada perolada

Minha mulher com garganta de Vale de Ouro

De encontro marcado no próprio leito da torrente

Com seios de noite

Minha mulher com seios de toca marinha

Minha mulher com seios de crisol de rubis

Com seios de espectro de rosa orvalhada

Minha mulher com ventre de abrir o leque dos dias

Com ventre de garra gigante

Minha mulher com dorso de pássaro que foge vertical

Com dorso de mercúrio

Com dorso de luz

Com nuca de pedra rodada e de giz molhado e da queda de um copo em que se bebeu

Minha mulher com quadris de canoa

Com quadris de lustro e de penas de flecha

E de caule de plumas de pavão branco

De balanço insensível

Minha mulher com ancas de arenito e de amianto

Minha mulher com ancas de costas de cisne

Com ancas de primavera

Com sexo de gladíolo

Minha mulher com sexo de jazida e de ornitorrinco

Minha mulher com sexo de alga e de bombons antigos

Minha mulher com sexo de espelho

Minha mulher com olhos cheios de lágrimas

Com olhos de panóplia violeta e de agulha imantada

Minha mulher com olhos de savana

Minha mulher com olhos d’água para beber na prisão

Minha mulher com olhos de madeira sempre sob o machado

Com olhos de nível d’água de nível de ar de terra e de fogo

 


Breton imprimiu setenta e cinco exemplares do poema em papel japonês nacrê, sem indicação do autor, do editor ou da gráfica. A plaquette, impossível de ser rastreada, circulou em junho de 1931. Ignorar o motivo que o levou a optar pelo anonimato provocou especulações sobre a musa do poema. Entre as citadas estão Simone Kahn, de quem o poeta divorciou-se em 1929, a fotógrafa Suzanne Muzard que o abandonou pelo escritor Emmanuel Berl, a poeta Marcelle Ferry e a pintora Valentine Hugo. Mas, convenhamos, a questão é retórica. É provável que os versos nasçam do gênero, pertençam a todas ou a nenhuma. Seria demais esperar que um romântico (pois, o que é o movimento surrealista senão uma outra variante do romantismo?) como Breton parodiasse Flaubert e declarasse Ma femme” c’est moi.

Filho de um policial com uma dona de casa que deseja para o menino a profissão de engenheiro, recebe a educação de um lar católico e pequeno burguês normando. Foi aluno destacado e recebeu uma bolsa de estudos para o Chaptal, colégio considerado moderno (excluiu do programa o grego e o latim), em Paris. Baudelaire, Huysmans e Hegel como quem encontra na “consciência de si” uma saída existencial para o positivismo da sua formação familiar.

Em 1914, envia alguns poemas escritos ao estilo de Mallarmé para a revista simbolista Phalange onde entra em contato com Paul Valéry. Inscrito na Faculdade de Medicina, é convocado e serve em ambulâncias como enfermeiro militar da artilharia. A leitura de Rimbaud, Bergson e Barrés o conforta do mal-estar provocado pelo nacionalismo da guerra. Em Nantes, conhece o soldado convalescente Jacques Vaché que lhe apresenta a literatura contestatária de Jarry. Grosso modo, pode-se dizer que Vaché e Valéry são os personagens mais influentes naquela etapa da sua formação. Em 1916, passa um período no Centro de Neuropsiquiatria de Saint Dizer em contato com pacientes mentais. Breton se recusa a considerá-los apenas doentes e identifica na loucura também um potencial criativo. É enviado de volta ao front por alguns meses como maqueiro.

Desmobilizado em 1918, colabora na revista Nord-Sud dirigida em Paris por Pierre Reverdy e reencontra Aragon, seu colega na faculdade. Soupault o apresenta a Apollinaire, que morreria de gripe espanhola antes do final do ano. Tudo lhe interessa. Do ocultismo à psiquiatria, da arte primitiva ao anarquismo, do hipnotismo à busca de uma utopia total, capaz de mudar o mundo através da poesia. Como ensaísta Breton será dogmático, como prosista será poeta e como poeta escreverá com um rebuscado maneirismo.

Com a chegada de Tristan Tzara a Paris, André Breton, Philippe Soupault e Louis Aragon fundam em fevereiro de 1919 a revista Littérature e aderem ao Dadaísmo com um entusiasmo que arrefece rapidamente.

Breton abandona a universidade para trabalhar na Nouvelle Revue Française de Gaston Gallimard onde publica com Soupault, Les Champs Magnétiques, primeira intervenção em que a escritura dita “automática” foi utilizada. O texto a quatro mãos, cujo título não evita a referência futurista, explora também a transcrição de sonhos.

O ano de 1921 traz Paul Valéry como padrinho do seu casamento com a filha de banqueiros alsacianos e militante marxista, Simone Kahn. De modo que dez anos depois, quando escreve L’union libre, André Breton é um personagem central da cena literária francesa. Que esteja falido, em meio a um divórcio, envolvido com várias amantes e polêmicas no grupo surrealista não abala sua produção. havia perdido a colaboração de Artaud e Desnos em 1927, quando filiou-se com Aragon e Éluard ao Partido Comunista Francês. E a Vitrac, Prévert, Queneau, Leiris, Soupault, entre outros, nos meses seguintes por motivos tão diversos quanto fúteis. Sua aversão pela narrativa moderna o levou a rejeitar sumariamente artistas do talhe de Cocteau, Drieu de La Rochelle e Radiguet.

Em 1929, refunda o movimento através da publicação do Second Manifest du Surréalisme onde mapeia

 

todas as mudanças que o movimento experimentou durante seus primeiros cinco anos e em particular a passagem […] do automatismo psíquico para a militância política.

 


Mais que
um redirecionamento ideológico, o Segundo Manifesto contém um acerto de contas com os dissidentes. Em reação, seus detratores publicam o libelo coletivo Un Cadavre, título que parodia o panfleto escrito pelos surrealistas contra Anatole France, em 1924. É apelidado de Le Pape, criticado por seu messianismo e acusado de pretender-se l’ange exterminateur de l’anarquie. O fato é que Breton não disparou seu revólver contra a multidão, como orienta o adágio surrealista. Entre a imaginação, o discurso e a prática uma considerável distância se manteve intransposta. Seu movimento artístico, por maior que tenha sido o esforço, não teve suficiente pragmatismo para penetrar na esfera política.

Por princípio, a “liberdade” surrealista é incompatível com a camisa-de-força do realismo socialista. Já em 1927, ao negar-se a colocar a revista La Révolution Surréaliste sob o controle do Comitê Central, Breton é acusado por militantes comunistas de ter se filiado ao pcf apenas para controlar l’Humanité.

O rompimento definitivo, ocorre em 32 através de um episódio que involucra seu amigo de juventude, Louis Aragon. Para denunciar a censura feita pelo partido ao poema de Aragon, Front Rouge, Breton escreve o tratado Misère de la poésie onde define -não sem ressalvar que considera o poema uma peça pobre de propaganda- a posição surrealista sobre a relação entre poesia e sociedade. Aragon, fiel aos próprios censores, repudia a defesa.

A esse Breton, isolado entre as forças de esquerda em seu país, resta reunir-se com Trotsky no México em 1938 e redigir a quatro mãos o Manifesto por uma Arte Revolucionária Independente, contrária ao capitalismo e ao stalinismo e a favor de uma ordem socialista mundial. Que Trotsky e Breton tenham chegado a um denominador comum sem convencer ao outro não impede a criação de uma sólida exibição de malabarismo retórico que reflete o o talento de ambos. Em uma mesma página do manifesto é possível ouvir a voz de Trotsky:

 

[…] ao defender a liberdade de criação, não pretendemos absolutamente justificar a indiferença política e longe está de nosso pensamento querer ressuscitar uma arte dita “pura”.

 

A voz de ambos:

 

Não, nós temos um conceito muito elevado da função da arte para negar sua influência sobre o destino da sociedade. Consideramos que a tarefa suprema da arte em nossa época é participar consciente e ativamente da preparação da revolução.

 

E a de André Breton:

 

No entanto, o artista só poderá servir à luta emancipadora quando estiver compenetrado subjetivamente de seu conteúdo social e individual, quando faz passar por seus nervos o sentido e o drama dessa luta e quando procura livremente dar uma encarnação artística a seu mundo interior.

 

Está claro que a tentativa de tratar a arte e a ideologia como instrumentos revolucionários é coerente com a aspiração primeira de Breton, isto é, unir o “transformar o mundo” de Marx com o “mudar a vida” de Rimbaud. Ou de Freud, uma vez que este tanto quanto Marx sustenta que a normalidade é uma convenção e a realidade um consenso velado.

Quase uma década antes do encontro no México, Walter Benjamin, em seu ensaio Surrealismo: o último instantâneo da inteligência europeia [1929], escrevia em sintonia com a declaração de Trotsky e Breton

 

somar à revolução as forças da embriaguez : nisto consiste a tarefa do surrealismo. […] No momento, os surrealistas são os únicos que conseguiram compreender as palavras de ordem que o Manifesto Comunista nos transmite hoje.

 

Cabe esclarecer até que ponto as forças da embriaguez são compatíveis com as do proletariado? Ou ainda, em que consiste tal “embriaguez” capaz de produzir “iluminações profanas”, outro conceito de difícil definição introduzido no mesmo ensaio. O que nos reconduz ao nosso objeto de interesse aqui: a poesia.


Tournessol, foi incluído na reunião Clair de Terre, de 1923, mas excluído da antologia seguinte, Le Revolver à Cheveux Blancs, de 1932, sinal da pouca conta que o autor tinha pelo poema. Um golpe do destino, porém, faz com que reveja sua posição.

Breton conhece Jaqueline Lamba no café Le Chien qui Fume uma noite de maio de 1934. O casal passa a madrugada caminhando por Montparnasse e Les Halles. Percorrem a rue Git-le-Cœur, atravessam o Sena na Pont-au-Change e rondam a Tour San Jacques.

As circunstâncias são tão semelhantes àquelas descritas pelo poema dez anos antes que Breton não demora em associar sua nova amiga com a voyageuse e passa a considerar Tournessol mais que uma premonição, um exemplo de “acaso objetivo”, conceito essencial presente em Nadja, Les Vases Communicantes e L’Amour Fou, livro que escreve a seguir para Jacqueline.

 

TOURNESOL

 

à Pierre Reverdy

 

La voyageuse qui traversa Les Halles à la tombée de l’été

Marchait sur la pointe des pieds

Le désespoir roulait au ciel ses grands arums si beaux

Et dans le sac à main il y avait mon rêve ce flacon de sels

Que seule a respiré la marraine de Dieu

Les torpeurs se déployaient comme la buée

Au Chien qui fume

Où venaient d’entrer le pour et le contre

La jeune femme ne pouvait être vue d’eux que mal et de biais

Avais-je affaire à l’ambassadrice du salpêtre

Ou de la courbe blanche sur fond noir que nous appelons pensée

Le bal des innocents battait son plein

Les lampions prenaient feu lentement dans les marronniers

La dame sans ombre s’agenouilla sur le Pont-au-Change

Rue Gît-le-Cœur les timbres n’étaient plus les mêmes

Les promesses des nuits étaient enfin tenues

Les pigeons voyageurs les baisers de secours

Se joignaient aux seins de la belle inconnue

Dardés sous le crêpe des significations parfaites

Une ferme prospérait en plein Paris

Et ses fenêtres donnaient sur la voie lactée

Mais personne ne l’habitait encore à cause des survenants

Des survenants qu’on sait plus dévoués que les revenants

Les uns comme cette femme ont l’air de nager

Et dans l’amour il entre un peu de leur substance

Elle les intériorise

Je ne suis le jouet d’aucune puissance sensorielle

Et pourtant le grillon qui chantait dans les cheveux de cendre

Un soir près de la statue d’Étienne Marcel

M’a jeté un coup d’œil d’intelligence

André Breton a-t-il dit passe

 

GIRASSOL

 

a Pierre Reverdy

 

A viajante que atravessa Les Halles no fim do verão

Caminhava na ponta dos pés

O desespero fazia girar no céu seus enormes lírios tão belos

E na bolsa estava meu sonho esse frasco de sais

Que só foi aspirado pela madrinha de Deus

O torpor avançava como névoa

No Chien qui fume

Onde o pró e o contra acabaram de entrar

A jovem mal podia ser vista por eles

Eu me encontrava diante da embaixadora do salitre

Ou da curva branca sobre o fundo negro que chamamos pensar?

O baile dos inocentes chegava ao apogeu

Lentamente faróis se incendiavam entre as castanheiras

Na Pont-au-Change se ajoelhou a dama sem sombra

Rua Gît-le-Cœur os selos não eram os mesmos

As promessas noturnas enfim se cumpriam

Os pombos-correios os beijos de socorro

Se uniam aos seios da bela desconhecida

Dardos sob a gaze dos significados perfeitos

Uma granja prosperava em pleno Paris

Suas janelas davam a Via-Láctea

Mas ali mais ninguém vivia por causa dos sobreviventes

Os sobreviventes que como sabemos são mais devotos que os fantasmas

Alguns como esta mulher tem o ar de nadar

E no amor entra um pouco da sua substância

Ela os interioriza

Eu não sou joguete de nenhuma potência sensorial

E ainda o grilo que canta nos cabelos de cinza um anoitecer perto da estátua de Étienne Marcel

Me lançou um olhar de inteligência

André Breton ele disse passa

 

A viajante, atravessa Les Halles metamorfoseando-se em um carrossel de figuras femininas. Da embaixadora do salitre ou da curva branca à dama sem sombra e à bela estranha, Breton faz com que a realidade mude de acordo com o olhar de cada novo personagem ao tempo em que projeta interpretações diversas do inconsciente do narrador. Seu propósito soa hoje datado. O automatismo psíquico como método de escrita é um contrassenso. Como muito, diversifica o uso dos símiles e das associações nas imagens surrealistas. De resto, a exploração do inconsciente pela linguagem em busca de significados relevantes é um esforço superficial, para dizer o mínimo.

Quem, como um anacrônico Octavio Paz, chegou a julgar a escritura automática o equivalente moderno da meditação budista, superestima aquela e desconhece esta. O erro é de origem, isto é, considerar que o sentido primordial do ser seja redutível à expressão quando, uma vez expressado, se torna linguagem. Outra tradução.

A digressão de Octavio Paz, escrita para o necrológio de Breton, é esclarecedora.

 

As ideias de Breton sobre a linguagem eram de ordem mágica. Não apenas nunca diferenciou magia de poesia, senão que pensou sempre que esta última era uma força capaz de mudar a realidade. […] As palavras e seus elementos constituintes, são campos de energia, como os átomos e suas partículas. A atração entre sílabas e palavras não é distinta, para Breton, a dos astros e os corpos.

 

Um assopro, um tapa e Paz reconhece o óbvio:

 

a poesia ser considerada pensamento não dirigido é um falso problema notado por Novalis: abandonar-se ao murmúrio do inconsciente exige um ato voluntário, a passividade traz uma inatividade que se apoia na atividade.

 

Legatário do Marquês de Sade, embora fosse reacionário no campo da sexualidade (homofóbico declarado, na realidade), Sigmund Freud e Meister Eckhart, André Breton tentou aceder a territórios psíquicos inomináveis e propor um homem anterior ao civilizado a partir do amor absoluto simbolizado pelo casal original, inocente por princípio e livre da culpa religiosa.

Vista hoje, a aspiração surrealista de unir a realidade e o sonho através da inspiração ou de igualar a função do poeta com a do revolucionário recai no terreno da fantasia. A afirmação de que a arte deve restaurar os poderes da imaginação, entorpecidos pelo materialismo burguês, através de uma ampliação da consciência pode ter repercutido então, graças a potência poética de Rimbaud secundado, se se prefere, pela subversão trazida por Novalis, Lautréaumont e Jarry. E não deixa de ser um rebote amargo que as inovações estéticas surrealistas tenham alimentado com tanto êxito a propaganda comercial ao tempo em que foram diluídas pelo vazio da arte conceitual, herdeira de Duchamp.

O próprio termo militar d’avant-garde como renovação cíclica dos valores geracionais desgastou-se. Ou, em outras palavras, tornou-se ultrapassado supor que o novo traz alguma resposta diversa do antigo. Menos ainda em relação ao clássico. A “rebelião” surrealista é, evidentemente, de cunho lírico. Dela permanece o acervo artístico, seu tesouro de metáforas, imagens inusitadas e absurdos criados, em certo grau, a partir da afirmação de Reverdy de que quanto mais distantes entre si forem os elementos mencionados, mais forte será o efeito poético.

Apesar do esvaziamento gradual do movimento, Breton seguiu ativo. Cogitou, inclusive, ocultar o surrealismo e usar a clandestinidade para recobrar valência. A manobra, anacrônica mesmo para os anos 60, não chegou a ser tentada. De toda forma, se Breton sobrevive é em razão da intensidade e da natureza do seu fracasso.

 

 


THOMAZ ALBORNOZ NEVES (Brasil, 1963). É advogado, cineasta, tradutor, ensaísta e poeta. Ao longo de quase quarenta anos, tornou-se um dos mais ativos tradutores de poesia contemporânea para o português. Viveu na Itália, França e Espanha durante seus anos de formação. Fixou-se então no Rio de Janeiro, no norte do Uruguai e finalmente em Livramento. Publicou vários livros, entre eles Renée (1987), Poemas (1990), Golfe (2012), À espera de um igual (2020), Oriente (2021) e 24 verbetes (2022).

 


LENNIN VÁSQUEZ (Peru, 1978). Artista convidado desta edição de Agulha Revista de Cultura. Estudou na Escola Superior Autônoma de Belas Artes do Peru entre 1996 e 2002, onde obteve medalha de ouro em desenho. Suas exposições pessoais incluem Metaphysical Landscapes (2023), Collected Work (2019) Spain, I Have All Nights in My Veins (2018); Delírios Crepusculares (2017); Quadrante dos Sonhos – jardins e labirintos (2015); Vento SURreal (2010); Aos Olhos do Apu (2009); Ritual Beings (2007), entre outras. Desde 1997 expôs coletivamente em dezenas de oportunidades no Peru, Bolívia, Chile, Argentina, Colômbia e Espanha. Em 2010 realizou mural no encontro internacional Art x Parte em Berazategui, Buenos Aires, Argentina. Seu trabalho está no Museu Belas Artes, Santiago do Chile; Aliança Francesa Lima, Peru; Município de Suba, Bogotá, Colômbia; e Coleção Faber Castell, Lima, Peru. Coleção Mapfre Lima Peru. Lennin possui um traço refinado repleto de referências mitopoéticas, que expressam não apenas sua afinidade com o Surrealismo, como também um universo acentuado por suas origens indígenas.




Agulha Revista de Cultura

Número 222 | janeiro de 2023

Artista convidado: Lennin Vásquez (Peru, 1978)

editor | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com

editora | ELYS REGINA ZILS | elysre@gmail.com

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