Manifestes du Surréalisme
(1924-1930)
Les Champs Magnétiques
(1919)
Nadja (1928)
Les Vases Communicants
(1932)
L’Amour Fou (1937)
Arcane 17 (1944)
Entretanto, sua inteira poética
pode estar contida
em L’union libre (1931), poema anafórico que resume a linguagem
que representa. Se lermos os versos de Benjamin Péret ou os de Robert Desnos, dois
surrealistas ortodoxos, encontraremos apenas
a diluição da potência que este poema único propaga sobre o código expressivo
do movimento.
L’UNION LIBRE
Ma femme à la chevelure de feu de bois
Aux pensées d’éclairs de chaleur
A la taille de sablier
Ma femme à la taille de loutre entre les dents du tigre
Ma femme à la bouche
de cocarde et de bouquet
d’étoiles de dernière
grandeur
Aux dents d’empreintes de souris blanche sur la terre blanche
A la langue d’ambre et de verre frottés
Ma femme à la langue d’hostie poignardée
A la langue de poupée qui ouvre et ferme les yeux
A la langue de pierre incroyable
Ma femme aux cils de bâtons d’écriture d’enfant
Aux sourcils de bord de nid d’hirondelle
Ma femme aux tempes d’ardoise de toit de serre
Et de buée aux vitres
Ma femme aux épaules de champagne
Et de fontaine à têtes de dauphins sous la glace
Ma femme aux poignets d’allumettes
Ma femme aux doigts de hasard et d’as de cœur
Aux doigts de foin coupé
Ma femme aux aisselles de martre et de fênes
De nuit de la Saint-Jean
De troène et de nid de scalares
Aux bras d’écume de mer
et d’écluse
Et de mélange du blé et du moulin
Ma femme aux jambes de
fusée
Aux mouvements d’horlogerie et de désespoir
Ma femme aux mollets de moelle de sureau
Ma femme aux pieds d’initiales
Aux pieds de trousseaux
de clés aux pieds de calfats
qui boivent
Ma femme au cou d’orge imperlé
Ma femme à la gorge de Val d’or
De rendez-vous dans le lit même du torrent
Aux seins de nuit
Ma femme aux seins de taupinière
marine
Ma femme aux seins de creuset
du rubis
Aux seins de spectre
de la rose sous la rosée
Ma femme au ventre de dépliement d’éventail des jours
Au ventre de griffe géante
Ma femme au dos d’oiseau qui fuit vertical
Au dos de vif-argent
Au dos de lumière
A la nuque de pierre roulée et de craie mouillée
Et de chute d’un verre dans lequel on vient de boire
Ma femme aux hanches de nacelle
Aux hanches de lustre et de pennes de flèche
Et de tiges de plumes de paon blanc
De balance insensible
Ma femme aux fesses de grès et d’amiante
Ma femme aux fesses de dos de cygne
Ma femme aux fesses de printemps
Au sexe de glaïeul
Ma femme au sexe de placer et d’ornithorynque
Ma femme au sexe d’algue et de bonbons anciens
Ma femme au sexe de miroir
Ma femme aux yeux pleins de larmes
Aux yeux de panoplie violette et d’aiguille aimantée
Ma femme aux yeux de savane
Ma femme aux yeux d’eau pour boire en prison
Ma femme aux yeux de bois
toujours sous la hache
Aux yeux de niveau d’eau de niveau d’air de terre et de feu
A UNIÃO LIVRE
Minha mulher com os cabelos de fogo de lenha
Com pensamentos de relâmpagos de calor
Com cintura de ampulheta
Minha mulher com cintura de lontra entre
os dentes de tigre
Minha mulher com a boca de
cocar e fragrância de estrelas de
primeira magnitude
Com dentes de rastros de rato branco na terra branca
Com a língua de âmbar e de vidro cinzelado
Minha mulher com língua de hóstia apunhalada
Com língua de boneca que abre e fecha
os olhos
Com língua de pedra incrível
Minha mulher com cílios de lápis de caligrafia
infantil
Com sobrancelhas de borda de ninho de andorinha
Minha mulher com têmporas de ardósia de
telhado de estufa
E de vapor nos vidros
Minha mulher com ombros de champanhe
E de fonte com cabeças de delfins sob o gelo
Minha mulher com pulsos de fósforos
Minha mulher com dedos de acaso e de ás do coração
Com dedos de feno cortado
Minha mulher com axilas de marta e
nozes de faia
De noite de
São
João
De ligustro e de ninho de escalares
Com braços de espuma de
mar e de esclusa
E de mistura de trigo e de moinho
Minha mulher com pernas foguete
Com movimentos de relojoaria e desespero
Minha mulher com panturrilhas de polpa de sabugo
Minha mulher com pés de iniciais
Com pés de molho de
chaves e de calafates que bebem
Minha mulher com pescoço de cevada perolada
Minha mulher com garganta de Vale de Ouro
De encontro marcado no próprio leito da torrente
Com seios de noite
Minha mulher com seios de toca marinha
Minha mulher com seios de crisol de rubis
Com seios de espectro de rosa orvalhada
Minha mulher com ventre de abrir o leque dos dias
Com ventre de garra gigante
Minha mulher com dorso de pássaro que foge vertical
Com dorso de mercúrio
Com dorso de luz
Com nuca de pedra rodada
e de giz molhado e da queda de um copo em que se bebeu
Minha mulher com quadris de canoa
Com quadris de lustro e
de penas de flecha
E de caule de plumas de pavão branco
De balanço insensível
Minha mulher com ancas de arenito e de amianto
Minha mulher com ancas de costas de cisne
Com ancas de primavera
Com sexo de gladíolo
Minha mulher com sexo de jazida e de ornitorrinco
Minha mulher com sexo de alga e de bombons antigos
Minha mulher com sexo de espelho
Minha mulher com olhos cheios de lágrimas
Com olhos de panóplia violeta e de agulha imantada
Minha mulher com olhos de savana
Minha mulher com olhos d’água para beber na prisão
Minha mulher com olhos de madeira sempre
sob o machado
Com olhos de nível d’água de nível de ar de terra e de fogo
Filho de um policial
com uma dona de casa que deseja para o menino a profissão de engenheiro,
recebe a educação de um lar
católico e pequeno burguês
normando. Foi aluno
destacado e recebeu uma bolsa de estudos para o
Chaptal, colégio considerado
moderno (excluiu do programa
o grego e o latim), em
Paris. Lê Baudelaire, Huysmans e
Hegel como quem encontra na “consciência de si” uma saída
existencial para o positivismo da sua formação familiar.
Em 1914, envia alguns poemas escritos ao estilo
de Mallarmé para a revista simbolista Phalange
onde entra em contato com Paul Valéry. Inscrito
na Faculdade de Medicina, é convocado e serve em ambulâncias como enfermeiro militar
da artilharia. A leitura de Rimbaud, Bergson e Barrés o conforta do mal-estar provocado
pelo nacionalismo da guerra.
Em Nantes, conhece o soldado convalescente
Jacques Vaché que lhe apresenta a literatura contestatária de Jarry. Grosso modo, pode-se dizer que Vaché e Valéry são os personagens mais influentes naquela etapa da sua
formação. Em 1916, passa um período
no Centro de Neuropsiquiatria de Saint Dizer em contato com pacientes
mentais. Breton se recusa a considerá-los
apenas doentes e identifica na
loucura também um potencial criativo.
É enviado de volta ao front por alguns
meses como maqueiro.
Desmobilizado
em 1918, colabora na revista Nord-Sud dirigida
em Paris por Pierre Reverdy e reencontra Aragon, seu colega na faculdade. Soupault
o apresenta a Apollinaire, que morreria de gripe espanhola antes do final do ano.
Tudo lhe interessa. Do ocultismo à psiquiatria, da arte primitiva ao anarquismo,
do hipnotismo à busca de uma utopia total, capaz de mudar o mundo através da poesia.
Como ensaísta Breton será dogmático, como prosista será poeta e como poeta escreverá
com um rebuscado maneirismo.
Com a
chegada de Tristan Tzara a Paris, André Breton, Philippe Soupault e Louis Aragon
fundam em fevereiro de 1919 a revista Littérature
e aderem ao Dadaísmo com um entusiasmo que arrefece rapidamente.
Breton abandona a universidade
para trabalhar na Nouvelle Revue Française
de Gaston Gallimard onde publica com Soupault, Les Champs Magnétiques, primeira intervenção em que a escritura dita
“automática” foi utilizada. O texto a quatro mãos, cujo título não evita a referência
futurista, explora também a transcrição de sonhos.
O ano de 1921 traz Paul Valéry como padrinho
do seu casamento com a filha de banqueiros alsacianos e militante marxista,
Simone Kahn. De modo que dez anos depois,
quando escreve L’union libre, André Breton
é um personagem central da cena literária francesa. Que esteja falido, em meio a
um divórcio, envolvido com várias amantes
e polêmicas no grupo surrealista não abala sua produção.
Já havia perdido a
colaboração de Artaud e Desnos em 1927, quando filiou-se com Aragon e Éluard ao Partido Comunista Francês. E a Vitrac, Prévert,
Queneau, Leiris, Soupault, entre outros, nos meses seguintes por motivos tão diversos quanto fúteis. Sua aversão pela
narrativa moderna o levou a rejeitar sumariamente artistas do talhe de Cocteau,
Drieu de La Rochelle e Radiguet.
Em 1929,
refunda o movimento através da publicação do Second Manifest du Surréalisme onde mapeia
todas as mudanças que o movimento experimentou
durante seus primeiros cinco
anos e em particular a passagem […] do automatismo
psíquico para a militância política.
Mais que
um redirecionamento ideológico, o Segundo Manifesto contém um acerto de contas com
os dissidentes. Em reação, seus
detratores publicam o libelo coletivo Un Cadavre, título que parodia o
panfleto escrito pelos surrealistas contra Anatole France, em 1924. É
apelidado de Le Pape, criticado por seu messianismo e acusado de
pretender-se l’ange exterminateur de l’anarquie. O fato é
que Breton
não disparou seu revólver contra a multidão, como orienta o adágio
surrealista. Entre a imaginação, o
discurso e a prática uma considerável distância se manteve
intransposta. Seu movimento artístico,
por maior que tenha sido
o esforço, não teve suficiente
pragmatismo para penetrar
na esfera política.
Por princípio, a “liberdade”
surrealista é incompatível com a camisa-de-força do realismo socialista. Já em 1927,
ao negar-se a colocar a revista La Révolution
Surréaliste sob o controle do Comitê Central, Breton é acusado por militantes
comunistas de ter se filiado ao pcf apenas para controlar l’Humanité.
O rompimento definitivo, ocorre em 32 através de um episódio que involucra seu amigo de juventude, Louis Aragon.
Para denunciar a censura
feita pelo partido ao poema de Aragon,
Front Rouge, Breton escreve o tratado Misère de la poésie onde define -não sem ressalvar que considera
o poema uma peça pobre de propaganda- a posição surrealista sobre a relação entre
poesia e sociedade. Aragon, fiel aos próprios censores, repudia a defesa.
A esse Breton,
isolado entre as forças
de esquerda em seu país, resta reunir-se
com Trotsky no México em 1938 e redigir a quatro mãos o Manifesto por uma Arte Revolucionária Independente, contrária ao capitalismo
e ao stalinismo e a favor de uma ordem socialista mundial. Que Trotsky e Breton
tenham chegado a um denominador comum sem convencer ao outro não impede a criação
de uma sólida exibição de malabarismo retórico que reflete o o talento de ambos.
Em uma
mesma página do manifesto é possível ouvir a voz de Trotsky:
[…] ao defender a liberdade de criação, não pretendemos
absolutamente justificar a indiferença política
e longe está de
nosso pensamento querer ressuscitar uma arte dita “pura”.
A
voz de ambos:
Não, nós temos um conceito muito elevado da
função da arte para negar sua influência sobre o destino da sociedade. Consideramos
que a tarefa suprema da arte em nossa época é participar consciente e ativamente
da preparação da revolução.
E
a de André Breton:
No entanto, o artista só poderá servir à luta
emancipadora quando estiver compenetrado subjetivamente de seu conteúdo social e
individual, quando faz passar por seus nervos o sentido e o drama dessa luta e quando
procura livremente dar uma encarnação artística a seu mundo interior.
Está claro que a tentativa de
tratar a arte e a ideologia como instrumentos revolucionários é coerente com a aspiração
primeira de Breton, isto é, unir o “transformar o mundo” de Marx com o “mudar a
vida” de Rimbaud. Ou de Freud, uma vez que este tanto quanto Marx sustenta que a
normalidade é uma convenção e a realidade um consenso velado.
Quase
uma década antes do encontro no México, Walter Benjamin, em seu ensaio Surrealismo: o último instantâneo da inteligência
europeia [1929], escrevia em sintonia com a declaração de Trotsky e Breton
somar à revolução as forças da embriaguez :
nisto consiste a tarefa do surrealismo. […]
No momento, os surrealistas são os únicos
que conseguiram compreender as palavras de ordem que o Manifesto Comunista nos transmite hoje.
Cabe esclarecer até que ponto
as forças da embriaguez são compatíveis com as do proletariado? Ou ainda, em que
consiste tal “embriaguez” capaz de produzir “iluminações profanas”, outro conceito
de difícil definição introduzido no mesmo ensaio. O que nos reconduz ao nosso objeto
de interesse aqui: a poesia.
Breton conhece
Jaqueline Lamba no café Le Chien qui Fume uma noite
de maio de 1934. O casal passa a madrugada caminhando por Montparnasse e Les Halles. Percorrem a rue
Git-le-Cœur, atravessam o Sena na Pont-au-Change e rondam a Tour San Jacques.
As circunstâncias
são tão semelhantes àquelas descritas pelo poema dez anos antes que Breton não demora
em associar sua nova amiga com a voyageuse
e passa a considerar Tournessol mais
que uma premonição, um exemplo de “acaso objetivo”, conceito essencial presente
em Nadja, Les Vases Communicantes e L’Amour
Fou, livro que escreve a seguir para Jacqueline.
TOURNESOL
à Pierre Reverdy
La voyageuse qui traversa Les Halles à la tombée de l’été
Marchait sur la pointe des pieds
Le désespoir roulait au ciel ses grands arums si beaux
Et dans le sac à main il y avait mon rêve ce flacon de sels
Que seule a respiré la marraine de Dieu
Les torpeurs se déployaient comme la buée
Au Chien qui fume
Où venaient d’entrer le pour et le contre
La jeune femme ne pouvait être vue d’eux que mal et de biais
Avais-je affaire à l’ambassadrice du salpêtre
Ou de la courbe blanche sur fond noir que nous appelons pensée
Le bal des innocents battait son plein
Les lampions prenaient feu lentement dans les marronniers
La dame sans ombre s’agenouilla sur le Pont-au-Change
Rue Gît-le-Cœur les timbres n’étaient plus les mêmes
Les promesses des nuits étaient enfin tenues
Les pigeons voyageurs les baisers de secours
Se joignaient aux seins de la belle inconnue
Dardés sous le crêpe des significations parfaites
Une ferme prospérait en plein Paris
Et ses fenêtres donnaient sur la voie lactée
Mais personne ne l’habitait encore à cause des survenants
Des survenants qu’on sait plus dévoués que les revenants
Les uns comme cette femme ont l’air de nager
Et dans l’amour il entre un peu de leur substance
Elle les intériorise
Je ne suis le jouet d’aucune puissance sensorielle
Et pourtant le grillon qui chantait dans les cheveux de cendre
Un soir près de la statue d’Étienne Marcel
M’a jeté un coup d’œil d’intelligence
André Breton a-t-il dit passe
GIRASSOL
a Pierre Reverdy
A viajante que atravessa Les Halles no fim do verão
Caminhava na ponta dos pés
O desespero
fazia girar no céu seus enormes lírios tão belos
E na bolsa estava meu sonho esse frasco de sais
Que só foi aspirado
pela madrinha de Deus
O torpor avançava
como
névoa
No Chien qui fume
Onde o pró e
o contra acabaram de entrar
A jovem mal podia ser
vista por eles
Eu me encontrava diante da embaixadora do salitre
Ou da curva branca sobre
o fundo negro que chamamos
pensar?
O baile dos inocentes
chegava ao apogeu
Lentamente faróis se incendiavam
entre as castanheiras
Na Pont-au-Change
se ajoelhou a dama sem sombra
Rua Gît-le-Cœur os selos não eram os mesmos
As promessas noturnas enfim se cumpriam
Os pombos-correios os beijos de socorro
Se uniam aos seios da bela desconhecida
Dardos sob a gaze dos significados perfeitos
Uma granja prosperava em pleno Paris
Suas janelas davam a Via-Láctea
Mas ali mais ninguém vivia por causa dos sobreviventes
Os sobreviventes que como sabemos são mais devotos
que os fantasmas
Alguns como esta mulher tem o ar de nadar
E no amor entra um pouco da sua substância
Ela os interioriza
Eu não sou joguete de nenhuma potência sensorial
E ainda o
grilo que canta nos cabelos de cinza um anoitecer
perto da estátua de Étienne Marcel
Me lançou um
olhar de inteligência
André Breton ele disse passa
A viajante, atravessa Les Halles metamorfoseando-se em
um carrossel de figuras femininas. Da embaixadora do salitre ou da curva branca à dama sem sombra
e à bela estranha, Breton faz com
que a realidade mude de acordo com o olhar de cada novo personagem
ao tempo em que projeta interpretações diversas do inconsciente do narrador. Seu propósito
soa hoje datado. O automatismo psíquico como método de escrita é um contrassenso. Como muito, diversifica
o uso dos símiles e das
associações nas imagens surrealistas. De resto, a
exploração do inconsciente pela linguagem em busca de significados relevantes é um esforço superficial, para dizer o mínimo.
Quem,
como um anacrônico Octavio Paz, chegou a julgar a escritura automática o equivalente moderno da meditação budista,
superestima aquela e desconhece esta. O erro é de origem, isto é, considerar que
o sentido primordial do ser seja redutível à expressão quando, uma vez expressado,
se torna linguagem. Outra tradução.
A digressão
de Octavio Paz, escrita para o necrológio de Breton, é esclarecedora.
As ideias
de Breton sobre a linguagem eram de ordem mágica. Não apenas nunca diferenciou magia de poesia, senão
que pensou sempre que esta última era uma força capaz de mudar a realidade.
[…] As palavras e seus elementos
constituintes, são campos de energia, como
os átomos e suas partículas. A atração entre sílabas e palavras
não é distinta, para Breton, a dos
astros e os corpos.
Um
assopro, um tapa e Paz reconhece o óbvio:
a poesia ser
considerada pensamento não dirigido é um
falso problema já notado por Novalis:
abandonar-se ao murmúrio
do inconsciente exige um ato voluntário, a passividade traz uma inatividade
que se apoia na atividade.
Legatário
do Marquês de Sade,
embora fosse reacionário no campo da sexualidade (homofóbico
declarado, na realidade), Sigmund
Freud e Meister Eckhart, André Breton tentou aceder a territórios psíquicos inomináveis e propor um homem anterior ao
civilizado a partir do amor
absoluto simbolizado pelo casal original, inocente
por princípio e livre da culpa religiosa.
Vista hoje, a aspiração surrealista de unir a
realidade e o sonho através da inspiração ou
de igualar a função do poeta com a do revolucionário
recai no terreno da fantasia. A afirmação de que a arte deve restaurar
os poderes da imaginação, entorpecidos pelo materialismo burguês, através de uma ampliação da consciência pode ter repercutido então, graças a potência poética de Rimbaud secundado, se se
prefere, pela subversão trazida por
Novalis, Lautréaumont e Jarry.
E não deixa de ser um rebote amargo que as inovações estéticas surrealistas tenham
alimentado com tanto êxito a propaganda comercial ao tempo em que foram diluídas
pelo vazio da arte conceitual, herdeira de Duchamp.
O próprio termo
militar d’avant-garde como renovação
cíclica dos valores geracionais desgastou-se. Ou, em outras palavras,
tornou-se ultrapassado supor que o novo traz alguma
resposta diversa do
antigo. Menos ainda em relação ao
clássico. A “rebelião” surrealista é, evidentemente,
de cunho lírico. Dela permanece o acervo artístico, seu tesouro de metáforas, imagens inusitadas
e absurdos criados, em certo grau, a partir
da afirmação de Reverdy de que quanto mais
distantes entre si forem
os elementos mencionados, mais forte será o efeito poético.
Apesar do esvaziamento gradual
do movimento, Breton seguiu ativo. Cogitou, inclusive, ocultar o surrealismo e usar
a clandestinidade para recobrar valência. A manobra, anacrônica mesmo para os anos
60, não chegou a ser tentada. De toda forma, se Breton sobrevive é em razão da intensidade
e da natureza do seu fracasso.
THOMAZ ALBORNOZ NEVES (Brasil, 1963). É advogado, cineasta, tradutor, ensaísta e poeta. Ao longo de quase quarenta anos, tornou-se um dos mais ativos tradutores de poesia contemporânea para o português. Viveu na Itália, França e Espanha durante seus anos de formação. Fixou-se então no Rio de Janeiro, no norte do Uruguai e finalmente em Livramento. Publicou vários livros, entre eles Renée (1987), Poemas (1990), Golfe (2012), À espera de um igual (2020), Oriente (2021) e 24 verbetes (2022).
LENNIN VÁSQUEZ (Peru, 1978). Artista convidado desta edição de Agulha Revista de Cultura. Estudou na Escola Superior Autônoma de Belas Artes do Peru entre 1996 e 2002, onde obteve medalha de ouro em desenho. Suas exposições pessoais incluem Metaphysical Landscapes (2023), Collected Work (2019) Spain, I Have All Nights in My Veins (2018); Delírios Crepusculares (2017); Quadrante dos Sonhos – jardins e labirintos (2015); Vento SURreal (2010); Aos Olhos do Apu (2009); Ritual Beings (2007), entre outras. Desde 1997 expôs coletivamente em dezenas de oportunidades no Peru, Bolívia, Chile, Argentina, Colômbia e Espanha. Em 2010 realizou mural no encontro internacional Art x Parte em Berazategui, Buenos Aires, Argentina. Seu trabalho está no Museu Belas Artes, Santiago do Chile; Aliança Francesa Lima, Peru; Município de Suba, Bogotá, Colômbia; e Coleção Faber Castell, Lima, Peru. Coleção Mapfre Lima Peru. Lennin possui um traço refinado repleto de referências mitopoéticas, que expressam não apenas sua afinidade com o Surrealismo, como também um universo acentuado por suas origens indígenas.
Agulha Revista de Cultura
Número 222 | janeiro de 2023
Artista convidado: Lennin Vásquez (Peru, 1978)
editor | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editora | ELYS REGINA ZILS | elysre@gmail.com
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