terça-feira, 24 de janeiro de 2023

THOMAZ ALBORNOZ NEVES | Antonio Porchia, aforismo e poesia

 


Antonio Vescio Porchia (Conflenti, 1885-Buenos Aires, 1968). Foi o primeiro dos sete filhos de Francisco Porchia e Rosa Veschio. Seu pai, um padre que abandonou o sacerdócio para virar comerciante de madeira e casar, morreu quando Antonio tinha quinze anos. O rapaz foi forçado a interromper seus estudos para sustentar a família. Em 1906, os Porchia emigraram para a Argentina a bordo do navio a vapor Bulgaria. Estabeleceram-se no bairro de imigrantes italianos de Barracas, em Buenos Aires. Durante seus primeiros anos, Antonio trabalha como carpinteiro, cesteiro e piloto no porto. No tempo livre, escreve.

Em 1918, a família se muda para o bairro de San Telmo e, nesse mesmo ano, Antonio Porchia adquire com o irmão Nicola, uma gráfica na rua Bolívar. Na década de 1920, se filia na Federación Regional de los Trabajadores de Argentina e mantêm contato com movimentos anarco-comunistas. Colabora em uma publicação de esquerda chamada La Fragua, onde publica seus primeiros aforismos. Ao redor de 36, deixa a gráfica e se retira em um casarão no bairro de Saavedra, onde cultiva rosas e presta, eventualmente, serviços como pedreiro. O lugar passa a ser ponto de encontro de pintores e escultores como Menghi, Riganelli, Lacamera, Petoruti e Castagnino. Em 43, aos 58 anos, publica em benefício da Sociedad para la Protección de las Bibliotecas Populares a primeira edição do seu único livro, reeditado e acrescido várias vezes, intitulado Voces.

Apesar dos seus mais de mil aforismos, permanece com essa aura de escritor oculto, vivendo à margem da vida intelectual e literária argentina. Considerado um sábio com uma biblioteca mínima, um anarquista zen, um místico laico, Antonio Porchia não tinha outra ambição além de se expressar. Assim como o autor resiste a ser definido, seus escritos repelem os gêneros. Já desde o título, a voz refere-se à fala, mais ao dito para ser ouvido do que ao escrito para ser lido. A coloquialidade e a dicção cotidiana parecem surgir de um pensamento instantâneo. Porchia conserva a entonação natural mesmo quanto o tema é meditado e a forma burilada.

A afinidade distante com o haikai não descarta certa inflexão oracular, às vezes sentenciosa e quase sempre poética. Pois o aforismo tanto pode ser uma frase em que a verdade não tem espaço para o argumento, quanto um verso em que a poesia está restrita à sua essência. É um pouco de ambos, sem ser nenhum deles.

Mais que inspiração metafísica, as vozes de Porchia buscam o intocável sentido original da existência. A crítica traz Heidegger, evidentemente, mas também Wittgenstein, autores cuja coevidade relativiza qualquer influência mais direta. Já Heráclito, Górgias ou Plotino, estão entre suas referências, ou talvez fosse mais correto dizer, compatibilidades clássicas. O certo é que Porchia usa a ambiguidade, o artifício, a polissemia e o contrassenso para explorar não o mundo, mas a linguagem e seu limitado alcance.

É um personagem solitário e monástico, com uma atração pela liberdade que deveria tê-lo levado a preferir na juventude os anarquistas aos comunistas. Foi reverenciado por Roberto Juarroz, outro grande poeta argentino, que o tratava como a um mestre. E, de fato, as afinidades são tantas que Juarroz pode ser considerado um herdeiro do pensamento aforismático e do estilo de Porchia. Em relação ao pouco prestígio de sua obra durante seu tempo de vida, o único comentário cabível, é que a Argentina distraiu-se. Juan Malpartida contextualiza a publicação de Voces Reunidas na Espanha:

 


É louvável que tenha sido publicado na Espanha e que os autores da edição sejam mexicanos. Graças ao disco que acompanha o livro, no qual o autor recita alguns de seus escritos, o leitor poderá conhecer a voz do poeta, – sem dúvida ouvida por muitos de seus contemporâneos nos programas de rádio de Buenos Aires dos quais participou – e que não havia sido recuperado até agora. A voz do autor das Vozes tem forte sotaque italiano e não é muito portenha. Uma voz controlada e monótona, muito atenta às nuances semânticas dos seus poemas, todos oscilando entre um e três versos.

 

E pouco antes de retornar à França, em 1949, Roger Caillois levou Voces à revista Sur. Mas o livro é descartado pelo editor José Bianco. Ignorado em Buenos Aires, foi reconhecido em Paris antes que os portenhos acusassem sua existência. A miopia dos editores deveria estar tipificada no código penal.

No início dos anos 1950, Porchia se muda para uma casa modesta em Olivos e, eventualmente, presta serviços de jardinagem. Visitando uma família de amigos, os García Orozco, cai de uma escada ao podar uma árvore, bate a cabeça e entra em coma. O coágulo é removido através de uma delicada cirurgia e Porchia se recupera. Até que em 1968, a convite dos mesmos García Orozco, viaja alguns dias à Mar del Plata onde -a coincidência é macabra- sofre uma recaída, tem outro acidente vascular cerebral e morre dias depois em Buenos Aires. 

VOCES 

Pártase de cualquier punto. Todos son iguales. Todos llevan a un punto de partida.


El árbol está solo, la nube está sola. Todo está solo cuando yo estoy solo. Cuando busco mi existencia, no la busco en mí.


Percibimos el vacío, llenándolo.


Voy perdiendo el deseo de lo que busco, buscando lo que deseo. Quien se queda mucho consigo mismo, se envilece.


Quien ha visto vaciarse todo, casi sabe de qué se llena todo. Herir al corazón es crearlo.


Las dificultades también pasan, como todo pasa, sin dificultad. El ir derecho acorta las distancias, y también la vida.


Se puede no deber nada devolviendo la luz al sol. Nada termina sin romperse, porque todo es sin fin.


Mueren cien años en un instante, lo mismo que un instante en un instante. Porque saben el nombre de lo que busco ¡creen que saben lo que busco!


Lo que dicen las palabras no dura. Duran las palabras. Porque las palabras son siempre las mismas y lo que dicen no es nunca lo mismo.


Antes de recorrer mi camino yo era mi camino.


En último instante, toda mi vida durará un instante. Algunos, adelantándose a todos, van ganando el desierto. A veces, de noche, enciendo una luz, para no ver.


No, no entro. Porque si entro no hay nadie.


Qué te he dado, lo sé. Qué has recibido, no lo sé. Quien dice la verdad, casi no dice nada.


En un alma llena cabe todo y en un alma vacía no cabe nada.


El humano juzga todo en el minuto presente sin entender que juzga solo un minuto: el minuto presente.


Quería conquistar. Pero no conquistaba. Porque quería conquistar sin derrotar. Dirán que andas por un camino equivocado, si andas por tu camino.


Lo pagado con nuestra vida nunca es caro.


El hombre habla de todo y habla de todo como si el conocimiento de todo estuviese todo en él.



Las certidumbres sólo se alcanzan con los pies. Un corazón grande se llena con muy poco.


El hombre, cuando es solamente lo que parece ser el hombre, casi no es nada. 


Éramos yo y el mar. Y el mar estaba solo y solo yo. Uno de los dos faltaba. Mi padre, al irse, le regaló medio siglo a mi infancia.


Cien hombres, juntos, son la centésima parte de un hombre. Mi pobreza no es total : falto yo.


Lo profundo, visto en profundidad, es superficie.


Creo que nos habitamos unos a otros, pero no habitados. Porque no podríamos habitarnos unos a otros, habitados.


La razón se pierde razonando.


¿Habría este buscar eterno si lo hallado existiese?


Sólo algunos llegan a nada, porque el trayecto es largo.


En mi silencio sólo falta mi voz.


Donde hay una pequeña lámpara encendida, no enciendo la mía. Cerca de mí no hay más que lejanías.


Creen que moverse es vivir. Y se mueven, no para vivir. Se mueven para creer que viven.


Se apiadan de las víctimas, las víctimas.


Cuando se apagaron sus ojos, yo también vi una sombra. Te asusta el vacío, ¡y abres más los ojos!


Mi gran día vino y se fue, no sé cómo. Porque no pasó por el alba al venir ni por el crepúsculo al irse.


Todo es un poco de obscuridad, hasta la misma luz.


Algunas cosas, para mostrarme su inexistencia, se hicieron mías. El hombre vive midiendo, y no es medida de nada. Ni de sí mismo. La vida comienza a morir por donde más es vida.


Las alturas guían, pero en las alturas.


Cuando no sea más nada, ¿no seré más nada? ¡Cómo quisiera no ser más nada cuando no sea más nada!


El recuerdo es un poco de eternidad.


Y sin ese repetirse eternamente de todo, de sí mismo a sí mismo, a cada instante, todo duraría un instante. Hasta la misma eternidad duraría un instante.


Hallarás la distancia que te separa de ellos, uniéndote a ellos. Donde se lamentan todos, no se oyen lamentos.


Nadie es luz de sí mismo: ni el sol. 

 

VOZES 


Parta de qualquer ponto. Todos são iguais. Todos eles levam a um ponto de partida.


A árvore está só, a nuvem está só. Tudo é solitário quando estou só. Quando procuro minha existência, não a procuro em mim mesmo. Percebemos o vazio, ocupando-o.


Estou perdendo o desejo pelo que procuro, procurando o que desejo. Quem fica muito consigo mesmo, se avilta.


Quem viu tudo esvaziar-se, quase sabe de que se enche tudo. Ferir o coração é criá-lo.


As dificuldades também passam, como tudo passa, sem dificuldade. O caminho reto encurta as distâncias, e também a vida.


É possível não dever nada devolvendo a luz ao sol. Nada termina sem quebrar, porque tudo é infinito.


Cem anos morrem em um instante, o mesmo que um instante em um instante. Porque sabem o nome do que procuro, pensam que sabem o que procuro!


O que as palavras dizem não dura. As palavras duram. Porque as palavras são sempre as mesmas e o que dizem nunca é o mesmo.


Antes de seguir meu caminho, eu era meu caminho.


No último instante, toda a minha vida durará um instante. Alguns, adiantando-se a todos, vão ganhando o deserto.


Às vezes, de noite, acendo uma luz para não ver.


Não, eu não entro. Porque se eu entrar não há ninguém.


O que te dei, eu sei. O que recebeste, eu não sei. Quem diz a verdade, não diz quase nada.


Em uma alma cheia cabe tudo, em uma alma vazia não cabe nada.


O humano julga tudo no minuto presente sem entender que julga só um minuto: o minuto presente.


Queria conquistar. Mas não conquistava. Porque queria conquistar sem derrotar.


Dirão que vais pelo caminho errado, se vais pelo teu caminho. O que pagamos com nossa vida nunca é caro.


O homem fala de tudo e fala de tudo como se o conhecimento de tudo estivesse todo nele.



As certezas só são alcançadas com os pés.


Um grande coração se enche com muito pouco.


O homem, quando é apenas o que parece ser o homem, é quase nada. Éramos eu e o mar. E o mar estava só e só eu estava. Um dos dois faltava. Ao partir, meu pai deu meio século à minha infância.


Cem homens juntos são um centésimo de um homem. Minha pobreza não é total: falto eu.


O profundo, visto da profundidade, é superfície.


Creio que habitamos uns aos outros, mas não habitados. Porque não poderíamos habitar-nos uns aos outros, habitados.


A razão se perde pelo raciocínio.


Haveria essa busca eterna se o achado existisse?


Somente alguns chegam a nada, porque o trajeto é longo.


No meu silêncio, só falta minha voz.


Onde há uma pequena lâmpada acesa, não acendo a minha. Perto de mim não há mais que distâncias.


Acreditam que mover-se é viver. E se movem, não para viver. Se movem para crer que vivem.


Se compadecem das vítimas, as vítimas.


Quando seus olhos se apagaram, eu também vi uma sombra. Te assusta o vazio, e abres mais os olhos!


Meu grande dia veio e se foi, não sei como. Porque não passou pela aurora ao vir nem pelo poente ao partir.


Tudo é um pouco de escuridão, até a própria luz.


Algumas coisas, para me mostrar sua inexistência, se fizeram minhas. O homem vive medindo e não é medida de nada. Nem de si mesmo.


A vida começa a morrer por onde mais é vida.


As alturas guiam, mas nas alturas.


Quando eu não for mais nada, não serei mais nada? Como gostaria de não ser mais nada quando eu não for mais nada.


A lembrança é um pouco de eternidade.


E sem esta repetição eterna de tudo, de si mesmo para si mesmo, a cada momento, tudo duraria um instante. Até a eternidade duraria um instante.


Encontrarás a distância que te separa deles, unindo-te a eles. Onde todos lamentam, nenhum lamento é ouvido.


Ninguém é luz de si mesmo: nem o sol.

 

 


THOMAZ ALBORNOZ NEVES (Brasil, 1963). É advogado, cineasta, tradutor, ensaísta e poeta. Ao longo de quase quarenta anos, tornou-se um dos mais ativos tradutores de poesia contemporânea para o português. Viveu na Itália, França e Espanha durante seus anos de formação. Fixou-se então no Rio de Janeiro, no norte do Uruguai e finalmente em Livramento. Publicou vários livros, entre eles Renée (1987), Poemas (1990), Golfe (2012), À espera de um igual (2020), Oriente (2021) e 24 verbetes (2022).

 


LENNIN VÁSQUEZ (Peru, 1978). Artista convidado desta edição de Agulha Revista de Cultura. Estudou na Escola Superior Autônoma de Belas Artes do Peru entre 1996 e 2002, onde obteve medalha de ouro em desenho. Suas exposições pessoais incluem Metaphysical Landscapes (2023), Collected Work (2019) Spain, I Have All Nights in My Veins (2018); Delírios Crepusculares (2017); Quadrante dos Sonhos – jardins e labirintos (2015); Vento SURreal (2010); Aos Olhos do Apu (2009); Ritual Beings (2007), entre outras. Desde 1997 expôs coletivamente em dezenas de oportunidades no Peru, Bolívia, Chile, Argentina, Colômbia e Espanha. Em 2010 realizou mural no encontro internacional Art x Parte em Berazategui, Buenos Aires, Argentina. Seu trabalho está no Museu Belas Artes, Santiago do Chile; Aliança Francesa Lima, Peru; Município de Suba, Bogotá, Colômbia; e Coleção Faber Castell, Lima, Peru. Coleção Mapfre Lima Peru. Lennin possui um traço refinado repleto de referências mitopoéticas, que expressam não apenas sua afinidade com o Surrealismo, como também um universo acentuado por suas origens indígenas.




Agulha Revista de Cultura

Número 222 | janeiro de 2023

Artista convidado: Lennin Vásquez (Peru, 1978)

editor | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com

editora | ELYS REGINA ZILS | elysre@gmail.com

ARC Edições © 2023

 


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