1899
Namur. Nascimento em uma família burguesa.
Pai de Ardenne, mãe da Valônia. Um dos avôs, que não conheceu, alemão. Um irmão,
três anos maior. Distante ascendência espanhola.
1900-06
Bruxelas. Inapetência. Indiferença.
Resistência.
Desdenha a vida, os jogos, a diversão.
Comer o repugna. Sua medula não produz sangue. Seu sangue não se enche de oxigênio.
Anemia. Sonhos sem imagens, sem palavras,
imóvel. Sonha com uma permanência, com uma duração sem mudança. Sua maneira de existir
à margem, sua natureza de grevista, provocam medo ou exasperação.
É enviado ao campo.
1906-10
Putte-Grasheide. Aldeia no campo.
Cinco anos internado em um colégio, pobre, duro, frio. Estudos de holandês. Seus
colegas são filhos e filhas de camponeses.
Segredo. Encerro.
Desprezo de si mesmo e de tudo o que
conhece até esse momento. Segue sentindo repulsa dos alimentos.
1911-14
Retorno a Bruxelas. Salvo! Prefere
uma realidade à outra. Início das preferências. Atenção, cedo ou tarde pertencerá
ao mundo. Tem 12 anos. Batalhas de formigas no jardim. Descobre o dicionário, palavras
que ainda não pertencem a frases, que ainda ninguém diz, palavras em quantidade,
das que ele poderia servir-se do seu modo. Estudos com os jesuítas. Com a ajuda
de seu pai, se interessa por latim, maravilhosa língua, que o separa dos demais,
o transporta: seu primeiro afastamento.
1914-18
Bruxelas. Cinco anos de ocupação alemã.
Leituras de Tolstoi e Dostoievski, de vidas dos santos. Mosaico intelectual.
1919-20
Abandona o curso de medicina. Marinheiro
embarcado em uma escuna de cinco mastros. São catorze alojados na proa. Surpreendente
camaradagem, inesperada, revigorante. No Rio de Janeiro, a tripulação se nega a
reembarcar em protesto contra a má alimentação. Por solidariedade abandona com eles
a bela escuna, escapando também por sorte do naufrágio que ocorrerá vinte dias depois
ao sul de Nova Iorque.
1921
Desembarque. Retorno à cidade. Tédio.
Desespero. Ofício e empregos diversos. Pináculo da curva do “fracassado”.
1922
Leitura de Maldoror. Sobressalto que
desencadeia a necessidade de escrever, esquecida por muito tempo. Não gostaria de
ter que escrever. Isso o impede de sonhar. O força a sair. Prefere permanecer absorto.
Abandona a Bélgica definitivamente.
1924
Escreve, mas sempre dividido. Não
encontra um pseudônimo. Segue assinando com seu nome vulgar, que detesta. Talvez
o conserve por fidelidade ao descontentamento e a insatisfação. Então, nunca produzirá
com orgulho, senão arrastando sempre essa cruz que colocará no final de cada obra,
preservando-o assim inclusive de uma sensação limitada de triunfo e de realização.
1925
Klee e logo Erns, de Chirico… Extrema
surpresa. Nunca havia pensado em pintar como se não houvesse já realidade suficiente,
querer ainda repeti-la, voltar a ela, pensava. Empregos diversos.
1927
Quito. Viagem de um ano ao Equador,
com Alfredo Gangotena, poeta habitado pelo gênio e a desgraça. Morre jovem e, com
ele, os seus poemas, inéditos na sua maioria, queimados no incêndio de um avião,
desaparecem para sempre.
1929
Morte do seu pai. Dez dias depois,
morte da sua mãe. Viagens a Turquia, Itália, África do Norte, viaja contra. Para
expulsar dele tudo aquilo que nele e apesar de si se incrustou à cultura grega ou
romana, ou aos costumes belgas. Viagens de expatriação. Tem muito o que aprender,
a rejeição começa a ceder diante do desejo de assimilação.
Os hindus, primeiro povo que parece
responder ao essencial. Indonésia, China, países sobre os quais meditará muitos
anos.
1932-37
Lisboa-Paris. Montevidéu-Buenos Aires.
Desenha com assiduidade. Primeira exposição (Galeria Pierre Loeb).
1938-39
Editor da revista Hermès.
1939-40
Brasil. Retorno a Paris em janeiro,
êxodo em julho.
1945
Debilitada pelas restrições alimentares,
sua mulher contrai tuberculose.
1947
Viagens de convalescença e esquecimento
no Egito.
1948
Morte da sua mulher em consequência
de queimaduras atrozes.
1951-53
Escreve cada vez menos, pinta cada
vez mais.
1955-56
Nacionaliza-se francês. Primeiras
experiências com mescalina.
1957
Exposições nos EUA, Roma e Londres.
Osteoporose. Descobrimento do homem
esquerdo. Apesar de tantos esforços e em todos os sentidos, durante toda a sua vida,
para modificar-se, seus ossos, sem se preocupar por ele, seguem cegamente sua evolução
familiar, racial, nórdica…
Morreu
em Paris, em 1984. Foi um poeta distante de seus contemporâneos. Um artista cultuado
que evitava ir de passeio acompanhado por sua figura pública. Há certa dignidade
aí, infrequente entre seus pares. O epistolário registra sua recusa em ser entrevistado,
fotografado, participar de colóquios, aceitar prêmios literários, elaborar edições
críticas ou integrar a prestigiosa coleção da Pléiade. Uma de suas raras e finais
aparições públicas ocorre em 1983, no Collège de France, onde seu amigo Jorge Luis
Borges o retrata com as suas habituais pernósticas pinceladas:
[…] é um homem sereno e sorridente,
muito lúcido, de boa e não efusiva conversação e facilmente irônico. Não professava
nenhuma das superstições daquele período. Desconfiava de Paris, dos conventos literários,
do culto, então obrigatório, a Pablo Picasso. Ao longo da vida exerceu duas artes:
a pintura e as letras. Em seus últimos livros as combinou. A noção chinesa e japonesa
de que os ideogramas de um poema se compõem não só para os ouvidos mas também para
olhar, induziu-lhe a curiosas experiências. Como Aldous Huxley, explorou os alucinógenos
e penetrou em suas regiões de pesadelo que inspiraram seu pincel e sua pluma.
e à vista de pássaro sobre a paisagem que
é Michaux, Yves Bonnefoy,
Falar de Michaux deveria antes propor
uma questão maior: o da expressão do Ocidente. Somente ele entre os poetas europeus,
nega radicalmente, através de imagens perturbadoras, o grande arco que pretende
atirar sobre o vazio das aparências nosso idealismo de mil faces. Somente ele, com
a sua exploração das margens da consciência, tentou exorcizar essa noção de matéria
que é a carga da nossa aspiração. Falar nele com autenticidade deveria pôr em juízo
um antigo instrumento: o conceito.
e a perspectiva desde o interior de Maurice
Blanchot
O
que Henri Michaux explora é o universo criado pela percepção e a natureza da consciência.
Em cada um dos seus escritos existe a negação do autor, seu “eu” nunca é estável.
Escreve desde a dissolução, desde uma densa ausência que seguimos sentindo quando
dela já nada resta. Nenhum outro poeta aqui incluído chega tão perto de capturar
o “instante que foge” pondo em cheque constantemente a capacidade de expressão da
própria linguagem.
L’OISEAU QUI S’EFFACE
Celui-là, c’est dans le jour qu’il apparaît, dans le jour le plus blanc.
Oiseau.
Il bat de l’aile, il s’envole. Il bat de l’aile, il s’efface.
Il bat de l’aile, il réapparaît.
Il se pose. Et puis il n’est plus. D’un battement il s’est effacé dans l’espace
blanc.
Tel est mon oiseau familier, l’oiseau qui vient peupler le ciel de ma petite
cour.
Peupler? On voit comment…
Mais je demeure sur place, le contemplant,
fasciné par son apparition, fasciné par sa disparition.
O PÁSSARO QUE SOME
Está no dia em que aparece, no dia mais branco
Pássaro
Bate asas, revoa. Bate asas, some
Bate asas, ressurge
Pousa. E não está mais. Com um bater de asas vira
espaço em branco
Assim é o meu pássaro familiar, o pássaro que povoa
o céu do meu pequeno pátio
Povoar? Podemos ver como
Mas fico ali, no mesmo lugar, contemplando
fascinado pela sua aparição, fascinado pela sua
desaparição
Onde os surrealistas falam sobre os estados alterados de uma super-realidade
ao alcance do homem, Michaux explora. Sua obra, que traz a presença frequente do
abismo e do inominável, deixa no leitor a impressão de ser meramente colateral à
experiência do poeta. Assim, a poesia em Michaux não tem um propósito poético. Ela
é a consequência do testemunho de um poeta que antes escreve por exorcismo e para
si mesmo do que para ser lido.
PAYSAGES
Paysages paisibles
ou désolés.
Paysages de la route
de la vie plutôt que de la surface de la Terre.
Paysages du temps
qui coule lentement, presque immobile et parfois comme en arrière.
Paysages des lambeaux,
des nerfs lacérés, des saudades.
Paysages pour couvrir
les plaies, l’acier, l’éclat, le mal, l’époque, la corde au cou, la mobilisation.
Paysages pour abolir
les cris.
Paysages comme on
se tire un drap sur la tête.
PAISAGENS
Paisagens em
paz ou desoladas
Paisagens da estrada da vida mais que da superfície
da terra
Paisagens do tempo que flui lentamente, quase
imóvel e que às vezes flui para trás
Paisagens de farrapos, de nervos lacerados,
de saudades
Paisagens de encobrir as chagas, o aço, o clarão,
o mal, a época, a corda na garganta, a mobilização
Paisagens para abolir os gritos
Paisagens como um cobertor tapa a cabeça
Michaux traz da Ásia a tentativa de expressar o indizível,
de captar o permanente na contemplação, na beleza detida, vazia de intenção, no
conhecimento que ilumina sem significado. Seria Zen, caso sua dicção não fosse europeia,
digressiva, descritiva e prosaica.
LIGNES
Sur des lignes tracées sans but
sur le papier; sur des pages de lignes
Ennoblie par une
trace d’encre, une ligne fine, une ligne, où plus rien ne pue
Pas pour expliquer,
pas pour exposer, pas en terrasses, pas monumentalement
Plutôt comme par
le Monde il y a des anfractuosités, des sinuosités, comme il y a des chiens errants
Une ligne, une ligne,
plus ou moins une ligne…
En fragments, en
commencements, prise de court, une ligne, une ligne… une légion de lignes
Alevins de l’eau
nouvelle d’un sentiment qui point, parle, rit, ravit ou qui déjà par moments poignarde
Débris sans escorte,
le réel déminé,
Souris du souvenir
indéfiniment se profilant à l’horizon de la page,
Ou bien tracés légers
d’avenir incertain.
-D’aucune langue,
l’écriture, -
Sans appartenance,
sans filiation
Lignes, seulement lignes.
LINHAS
Sobre linhas traçadas
sem motivo
no papel, nas páginas
pautadas
Enobrecido
por um traço de tinta, uma linha tênue, uma linha onde nada empesta
Não
para explicar, não para expor, nem em terraços nem monumentalmente
Assim
como no Mundo existem fendas, sinuosidades como existem cães vadios
Uma
linha, uma linha, mais ou menos uma linha…
Em
fragmentos, em começos, pega de surpresa, uma linha, uma linha uma legião de linhas
Alevinos
de água nova de um sentimento que surge, fala, ri, rapta ou que então apunhala
Resquícios
sem escolta, o real livre de minas
Rato
da memória perfilando-se indefinidamente no horizonte da página
ou
bem traçados leves do incerto amanhã
-De língua alguma, a escritura-
sem associação, sem ascendência
Linhas, somente linhas
Porém, mesmo os poetas mais originais escrevem poemas convencionais.
E muitas vezes são os versos mais despretensiosos que permitem uma aproximação à
outra dimensão da intimidade. O mostram distraído. Assim, o mais perto que estaremos
de encontrar um Michaux ao natural está em poemas como o escrito para uma jovem
de Budapeste.
LA JEUNE FILLE DE
BUDAPEST
Dans la brume tiède
d’une haleine de jeune fille, j’ai pris place.
Je me suis retiré,
je n’ai pas quitté ma place.
Ses bras ne pèsent
rien.
On les rencontre
comme l’eau.
Ce qui est fané
disparaît devant elle.
Il ne reste que
ses yeux.
Longues belles herbes,
longues belles fleurs croissaient dans notre champ.
Obstacle si léger
sur ma poitrine, comme tu t’appuies maintenant.
Tu t’appuies tellement,
maintenant que tu n’es plus.
A JOVEM DE BUDAPESTE
Na
bruma fresca de um suspiro de mulher achei o meu lugar
Ali
me refugiei e não mais pensei em partir
Seus
braços nada pesam
Se
está neles como na água
O
que perdeu o viço some diante dela
Só
existe o seu olhar
Alto
pasto belo, belas flores altas, tudo cresce em nosso campo
Levíssimo
obstáculo, como te apoias agora
Em
meu peito, agora que já não és
Não menciono a mescalina, as explorações da consciência e a não-visão
poetizada por seus desenhos. Henri Michaux sondou a experiência do ser vivo muito
além da cultura. Tentou ir além do humano. E a arte foi um dos seus meios, nunca
um fim em si.
THOMAZ ALBORNOZ NEVES (Brasil, 1963). É advogado, cineasta, tradutor, ensaísta e poeta. Ao longo de quase quarenta anos, tornou-se um dos mais ativos tradutores de poesia contemporânea para o português. Viveu na Itália, França e Espanha durante seus anos de formação. Fixou-se então no Rio de Janeiro, no norte do Uruguai e finalmente em Livramento. Publicou vários livros, entre eles Renée (1987), Poemas (1990), Golfe (2012), À espera de um igual (2020), Oriente (2021) e 24 verbetes (2022).
LENNIN VÁSQUEZ (Peru, 1978). Artista convidado desta edição de Agulha Revista de Cultura. Estudou na Escola Superior Autônoma de Belas Artes do Peru entre 1996 e 2002, onde obteve medalha de ouro em desenho. Suas exposições pessoais incluem Metaphysical Landscapes (2023), Collected Work (2019) Spain, I Have All Nights in My Veins (2018); Delírios Crepusculares (2017); Quadrante dos Sonhos – jardins e labirintos (2015); Vento SURreal (2010); Aos Olhos do Apu (2009); Ritual Beings (2007), entre outras. Desde 1997 expôs coletivamente em dezenas de oportunidades no Peru, Bolívia, Chile, Argentina, Colômbia e Espanha. Em 2010 realizou mural no encontro internacional Art x Parte em Berazategui, Buenos Aires, Argentina. Seu trabalho está no Museu Belas Artes, Santiago do Chile; Aliança Francesa Lima, Peru; Município de Suba, Bogotá, Colômbia; e Coleção Faber Castell, Lima, Peru. Coleção Mapfre Lima Peru. Lennin possui um traço refinado repleto de referências mitopoéticas, que expressam não apenas sua afinidade com o Surrealismo, como também um universo acentuado por suas origens indígenas.
Agulha Revista de Cultura
Número 222 | janeiro de 2023
Artista convidado: Lennin Vásquez (Peru, 1978)
editor | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editora | ELYS REGINA ZILS | elysre@gmail.com
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