terça-feira, 24 de janeiro de 2023

THOMAZ ALBORNOZ NEVES | Cuatro poemas de Henri Michaux

 


Henri Michaux escreveu a pedido de um editor o seguinte texto autobiográfico.

 

1899

Namur. Nascimento em uma família burguesa. Pai de Ardenne, mãe da Valônia. Um dos avôs, que não conheceu, alemão. Um irmão, três anos maior. Distante ascendência espanhola.

1900-06

Bruxelas. Inapetência. Indiferença. Resistência.

Desdenha a vida, os jogos, a diversão. Comer o repugna. Sua medula não produz sangue. Seu sangue não se enche de oxigênio.

Anemia. Sonhos sem imagens, sem palavras, imóvel. Sonha com uma permanência, com uma duração sem mudança. Sua maneira de existir à margem, sua natureza de grevista, provocam medo ou exasperação.

É enviado ao campo.

1906-10

Putte-Grasheide. Aldeia no campo. Cinco anos internado em um colégio, pobre, duro, frio. Estudos de holandês. Seus colegas são filhos e filhas de camponeses.

Segredo. Encerro.

Desprezo de si mesmo e de tudo o que conhece até esse momento. Segue sentindo repulsa dos alimentos.

1911-14

Retorno a Bruxelas. Salvo! Prefere uma realidade à outra. Início das preferências. Atenção, cedo ou tarde pertencerá ao mundo. Tem 12 anos. Batalhas de formigas no jardim. Descobre o dicionário, palavras que ainda não pertencem a frases, que ainda ninguém diz, palavras em quantidade, das que ele poderia servir-se do seu modo. Estudos com os jesuítas. Com a ajuda de seu pai, se interessa por latim, maravilhosa língua, que o separa dos demais, o transporta: seu primeiro afastamento.

1914-18

Bruxelas. Cinco anos de ocupação alemã. Leituras de Tolstoi e Dostoievski, de vidas dos santos. Mosaico intelectual.

1919-20

Abandona o curso de medicina. Marinheiro embarcado em uma escuna de cinco mastros. São catorze alojados na proa. Surpreendente camaradagem, inesperada, revigorante. No Rio de Janeiro, a tripulação se nega a reembarcar em protesto contra a má alimentação. Por solidariedade abandona com eles a bela escuna, escapando também por sorte do naufrágio que ocorrerá vinte dias depois ao sul de Nova Iorque.

1921

Desembarque. Retorno à cidade. Tédio. Desespero. Ofício e empregos diversos. Pináculo da curva do “fracassado”.

1922

Leitura de Maldoror. Sobressalto que desencadeia a necessidade de escrever, esquecida por muito tempo. Não gostaria de ter que escrever. Isso o impede de sonhar. O força a sair. Prefere permanecer absorto. Abandona a Bélgica definitivamente.

1924

Escreve, mas sempre dividido. Não encontra um pseudônimo. Segue assinando com seu nome vulgar, que detesta. Talvez o conserve por fidelidade ao descontentamento e a insatisfação. Então, nunca produzirá com orgulho, senão arrastando sempre essa cruz que colocará no final de cada obra, preservando-o assim inclusive de uma sensação limitada de triunfo e de realização.

1925

Klee e logo Erns, de Chirico… Extrema surpresa. Nunca havia pensado em pintar como se não houvesse já realidade suficiente, querer ainda repeti-la, voltar a ela, pensava. Empregos diversos.

1927

Quito. Viagem de um ano ao Equador, com Alfredo Gangotena, poeta habitado pelo gênio e a desgraça. Morre jovem e, com ele, os seus poemas, inéditos na sua maioria, queimados no incêndio de um avião, desaparecem para sempre.

1929

Morte do seu pai. Dez dias depois, morte da sua mãe. Viagens a Turquia, Itália, África do Norte, viaja contra. Para expulsar dele tudo aquilo que nele e apesar de si se incrustou à cultura grega ou romana, ou aos costumes belgas. Viagens de expatriação. Tem muito o que aprender, a rejeição começa a ceder diante do desejo de assimilação.


1930-31

Os hindus, primeiro povo que parece responder ao essencial. Indonésia, China, países sobre os quais meditará muitos anos.

1932-37

Lisboa-Paris. Montevidéu-Buenos Aires. Desenha com assiduidade. Primeira exposição (Galeria Pierre Loeb).

1938-39

Editor da revista Hermès.

1939-40

Brasil. Retorno a Paris em janeiro, êxodo em julho.

1945

Debilitada pelas restrições alimentares, sua mulher contrai tuberculose.

1947

Viagens de convalescença e esquecimento no Egito.

1948

Morte da sua mulher em consequência de queimaduras atrozes.

1951-53

Escreve cada vez menos, pinta cada vez mais.

1955-56

Nacionaliza-se francês. Primeiras experiências com mescalina.

1957

Exposições nos EUA, Roma e Londres.

Osteoporose. Descobrimento do homem esquerdo. Apesar de tantos esforços e em todos os sentidos, durante toda a sua vida, para modificar-se, seus ossos, sem se preocupar por ele, seguem cegamente sua evolução familiar, racial, nórdica…

 

Morreu em Paris, em 1984. Foi um poeta distante de seus contemporâneos. Um artista cultuado que evitava ir de passeio acompanhado por sua figura pública. Há certa dignidade aí, infrequente entre seus pares. O epistolário registra sua recusa em ser entrevistado, fotografado, participar de colóquios, aceitar prêmios literários, elaborar edições críticas ou integrar a prestigiosa coleção da Pléiade. Uma de suas raras e finais aparições públicas ocorre em 1983, no Collège de France, onde seu amigo Jorge Luis Borges o retrata com as suas habituais pernósticas pinceladas:

 

[…] é um homem sereno e sorridente, muito lúcido, de boa e não efusiva conversação e facilmente irônico. Não professava nenhuma das superstições daquele período. Desconfiava de Paris, dos conventos literários, do culto, então obrigatório, a Pablo Picasso. Ao longo da vida exerceu duas artes: a pintura e as letras. Em seus últimos livros as combinou. A noção chinesa e japonesa de que os ideogramas de um poema se compõem não só para os ouvidos mas também para olhar, induziu-lhe a curiosas experiências. Como Aldous Huxley, explorou os alucinógenos e penetrou em suas regiões de pesadelo que inspiraram seu pincel e sua pluma.

 

e à vista de pássaro sobre a paisagem que é Michaux, Yves Bonnefoy,

 

Falar de Michaux deveria antes propor uma questão maior: o da expressão do Ocidente. Somente ele entre os poetas europeus, nega radicalmente, através de imagens perturbadoras, o grande arco que pretende atirar sobre o vazio das aparências nosso idealismo de mil faces. Somente ele, com a sua exploração das margens da consciência, tentou exorcizar essa noção de matéria que é a carga da nossa aspiração. Falar nele com autenticidade deveria pôr em juízo um antigo instrumento: o conceito.

 

e a perspectiva desde o interior de Maurice Blanchot

 


O universo de Michaux é o da espontaneidade imprevisível e o da inércia infinita. Espontaneidade e passividade são as duas características do mundo mágico. A consciência perdeu-se entre as coisas. Ela mesma tornou-se uma coisa. Já não tem limites, nem formas. Ainda tende a uma finalidade determinada, mas a realiza através de meios absolutos. Em muitos dos seus livros há um esforço extraordinário – um dos mais significativos da sua época – para expressar o homem mediante a ausência do homem, para descrever a realidade humana criando um mundo onde o homem já não pode reconhecer-se, imaginando um ponto de vista do homem absolutamente alheio ao homem.

 

O que Henri Michaux explora é o universo criado pela percepção e a natureza da consciência. Em cada um dos seus escritos existe a negação do autor, seu “eu” nunca é estável. Escreve desde a dissolução, desde uma densa ausência que seguimos sentindo quando dela já nada resta. Nenhum outro poeta aqui incluído chega tão perto de capturar o “instante que foge” pondo em cheque constantemente a capacidade de expressão da própria linguagem.

 

L’OISEAU QUI S’EFFACE

 

Celui-là, c’est dans le jour qu’il apparaît, dans le jour le plus blanc.

Oiseau.

Il bat de l’aile, il s’envole. Il bat de l’aile, il s’efface.

Il bat de l’aile, il réapparaît.

Il se pose. Et puis il n’est plus. D’un battement il s’est effacé dans l’espace blanc.

Tel est mon oiseau familier, l’oiseau qui vient peupler le ciel de ma petite cour.

Peupler? On voit comment…

Mais je demeure sur place, le contemplant,

fasciné par son apparition, fasciné par sa disparition.

 

O PÁSSARO QUE SOME

 

Está no dia em que aparece, no dia mais branco

Pássaro

Bate asas, revoa. Bate asas, some

Bate asas, ressurge

Pousa. E não está mais. Com um bater de asas vira espaço em branco

Assim é o meu pássaro familiar, o pássaro que povoa o céu do meu pequeno pátio

Povoar? Podemos ver como

Mas fico ali, no mesmo lugar, contemplando

fascinado pela sua aparição, fascinado pela sua desaparição

 

Onde os surrealistas falam sobre os estados alterados de uma super-realidade ao alcance do homem, Michaux explora. Sua obra, que traz a presença frequente do abismo e do inominável, deixa no leitor a impressão de ser meramente colateral à experiência do poeta. Assim, a poesia em Michaux não tem um propósito poético. Ela é a consequência do testemunho de um poeta que antes escreve por exorcismo e para si mesmo do que para ser lido.

 

PAYSAGES

 

Paysages paisibles ou désolés.

Paysages de la route de la vie plutôt que de la surface de la Terre.

Paysages du temps qui coule lentement, presque immobile et parfois comme en arrière.

Paysages des lambeaux, des nerfs lacérés, des saudades.

 

Paysages pour couvrir les plaies, l’acier, l’éclat, le mal, l’époque, la corde au cou, la mobilisation.

Paysages pour abolir les cris.

Paysages comme on se tire un drap sur la tête.

 

PAISAGENS

 

Paisagens em paz ou desoladas

Paisagens da estrada da vida mais que da superfície da terra

Paisagens do tempo que flui lentamente, quase imóvel e que às vezes flui para trás

Paisagens de farrapos, de nervos lacerados, de saudades

Paisagens de encobrir as chagas, o aço, o clarão, o mal, a época, a corda na garganta, a mobilização

Paisagens para abolir os gritos

Paisagens como um cobertor tapa a cabeça

 

Michaux traz da Ásia a tentativa de expressar o indizível, de captar o permanente na contemplação, na beleza detida, vazia de intenção, no conhecimento que ilumina sem significado. Seria Zen, caso sua dicção não fosse europeia, digressiva, descritiva e prosaica.

 

LIGNES

 

Sur des lignes tracées sans but

sur le papier; sur des pages de lignes

Ennoblie par une trace d’encre, une ligne fine, une ligne, où plus rien ne pue

 

Pas pour expliquer, pas pour exposer, pas en terrasses, pas monumentalement

 

Plutôt comme par le Monde il y a des anfractuosités, des sinuosités, comme il y a des chiens errants

 

Une ligne, une ligne, plus ou moins une ligne…

En fragments, en commencements, prise de court, une ligne, une ligne… une légion de lignes

 

Alevins de l’eau nouvelle d’un sentiment qui point, parle, rit, ravit ou qui déjà par moments poignarde

 

Débris sans escorte, le réel déminé,

Souris du souvenir indéfiniment se profilant à l’horizon de la page,

Ou bien tracés légers d’avenir incertain.

 

-D’aucune langue, l’écriture, -

Sans appartenance, sans filiation

Lignes, seulement lignes.

 

LINHAS

 

Sobre linhas traçadas sem motivo

no papel, nas páginas pautadas

Enobrecido por um traço de tinta, uma linha tênue, uma linha onde nada empesta

 

Não para explicar, não para expor, nem em terraços nem monumentalmente

 

Assim como no Mundo existem fendas, sinuosidades como existem cães vadios

 

Uma linha, uma linha, mais ou menos uma linha…

Em fragmentos, em começos, pega de surpresa, uma linha, uma linha uma legião de linhas

 

Alevinos de água nova de um sentimento que surge, fala, ri, rapta ou que então apunhala

 

Resquícios sem escolta, o real livre de minas

Rato da memória perfilando-se indefinidamente no horizonte da página

ou bem traçados leves do incerto amanhã

 

-De língua alguma, a escritura-

sem associação, sem ascendência

Linhas, somente linhas

 


Porém, mesmo os poetas mais originais escrevem poemas convencionais. E muitas vezes são os versos mais despretensiosos que permitem uma aproximação à outra dimensão da intimidade. O mostram distraído. Assim, o mais perto que estaremos de encontrar um Michaux ao natural está em poemas como o escrito para uma jovem de Budapeste.

 

LA JEUNE FILLE DE BUDAPEST

 

Dans la brume tiède d’une haleine de jeune fille, j’ai pris place.

Je me suis retiré, je n’ai pas quitté ma place.

Ses bras ne pèsent rien.

On les rencontre comme l’eau.

Ce qui est fané disparaît devant elle.

Il ne reste que ses yeux.

Longues belles herbes, longues belles fleurs croissaient dans notre champ.

Obstacle si léger sur ma poitrine, comme tu t’appuies maintenant.

Tu t’appuies tellement, maintenant que tu n’es plus.

 

A JOVEM DE BUDAPESTE

 

Na bruma fresca de um suspiro de mulher achei o meu lugar

Ali me refugiei e não mais pensei em partir

Seus braços nada pesam

Se está neles como na água

O que perdeu o viço some diante dela

Só existe o seu olhar

Alto pasto belo, belas flores altas, tudo cresce em nosso campo

Levíssimo obstáculo, como te apoias agora

Em meu peito, agora que já não és

 

Não menciono a mescalina, as explorações da consciência e a não-visão poetizada por seus desenhos. Henri Michaux sondou a experiência do ser vivo muito além da cultura. Tentou ir além do humano. E a arte foi um dos seus meios, nunca um fim em si.

 

 

 


THOMAZ ALBORNOZ NEVES (Brasil, 1963). É advogado, cineasta, tradutor, ensaísta e poeta. Ao longo de quase quarenta anos, tornou-se um dos mais ativos tradutores de poesia contemporânea para o português. Viveu na Itália, França e Espanha durante seus anos de formação. Fixou-se então no Rio de Janeiro, no norte do Uruguai e finalmente em Livramento. Publicou vários livros, entre eles Renée (1987), Poemas (1990), Golfe (2012), À espera de um igual (2020), Oriente (2021) e 24 verbetes (2022).

 


LENNIN VÁSQUEZ (Peru, 1978). Artista convidado desta edição de Agulha Revista de Cultura. Estudou na Escola Superior Autônoma de Belas Artes do Peru entre 1996 e 2002, onde obteve medalha de ouro em desenho. Suas exposições pessoais incluem Metaphysical Landscapes (2023), Collected Work (2019) Spain, I Have All Nights in My Veins (2018); Delírios Crepusculares (2017); Quadrante dos Sonhos – jardins e labirintos (2015); Vento SURreal (2010); Aos Olhos do Apu (2009); Ritual Beings (2007), entre outras. Desde 1997 expôs coletivamente em dezenas de oportunidades no Peru, Bolívia, Chile, Argentina, Colômbia e Espanha. Em 2010 realizou mural no encontro internacional Art x Parte em Berazategui, Buenos Aires, Argentina. Seu trabalho está no Museu Belas Artes, Santiago do Chile; Aliança Francesa Lima, Peru; Município de Suba, Bogotá, Colômbia; e Coleção Faber Castell, Lima, Peru. Coleção Mapfre Lima Peru. Lennin possui um traço refinado repleto de referências mitopoéticas, que expressam não apenas sua afinidade com o Surrealismo, como também um universo acentuado por suas origens indígenas.




Agulha Revista de Cultura

Número 222 | janeiro de 2023

Artista convidado: Lennin Vásquez (Peru, 1978)

editor | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com

editora | ELYS REGINA ZILS | elysre@gmail.com

ARC Edições © 2023

 


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