Georges Schéhadé (Alexandria, 1905-Paris,
1989) nasceu em um aristocrático jardim suspenso com vistas ao Porto de Alexandria
pouco antes que reveses financeiros levassem a família de volta a Beirute.
Ainda muito jovem, em 1923, serve
ao departamento de educação pública do Alto Comissariado do Líbano onde é notado
pelo colunista literário da NRF, Gabriel
Bounoure, então inspetor gálico do ensino secundário na Síria e no Líbano. É Bounoure quem indica Schéhadé ce jeune poète plein de talents a Jean Paulhan,
que mais tarde o publica na Revue.
Já então vivia ausente, em silêncio,
como se estivesse sempre em outro tempo ou lugar. Cultiva a discrição. Prefere considerar-se
um poeta de “duas margens”, porém, por seu idioma de pluma, é lido antes como um
autor francês que soube associar com particular originalidade e elegância a atmosfera
atemporal arábica com a poesia moderna.
Il y a des jardins
qui n’ont plus de pays
Et qui sont seuls
avec l’eau
Des colombes les
traversent bleues et sans nid
Mais la lune est
un cristal de bonheur
Et l’enfant se souvient
d’un grand désordre clair
Existem jardins que não têm mais
país
E estão sós com a
água
Atravessados por pombas azuis e sem ninho
Mas a lua é um cristal de felicidade
E o menino recorda um imenso caos claro
***
Les premiers brebis
bêlent au marécage
Nous avons sommeillé
sous un arbre
La lune montait
comme un animal d’orage
Les feuilles du
vent brûlaient
Et pour mieux être
nous-mêmes avons rêvé
Qu’à chaque tournant de route un
homme dormait
Le front irrité de miracles
L’épaule sans ombres
du ciel
Et comme nous une bêche près du dormeur
Et ses cris dans
la campagne
As primeiras ovelhas
balem no pantanal
Nós dormíamos embaixo de uma árvore
A lua nascia como uma fera do temporal
A folhagem do vento abrasava
E para ser melhor quem
somos sonhávamos
Que a cada curva
do caminho alguém dormia
A fronte irritada por milagres
As costas sem sombra do céu
E como nós uma pá junto
a quem dormia
E este grito no descampado
***
Les arbres qui ne voyagent que par leur bruit
Quand le
silence est beau de mille oiseaux ensemble
Sont les compagnons vermeils de la vie
Ô poussière savoureuse
des hommes
Les saisons passent
mais peuvent les revoir
Suivre le soleil
à la limite des distances
Puis − comme les
anges qui touchent la pierre
Abandonnés aux terres
du soir
Et ceux-là qui rêvent
sous leurs feuillages
Quand l’oiseau est
mûr et laisse ses rayons
Comprendront à cause
des grands nuages
Plusieurs fois la
mort et plusieurs fois la mer
As árvores que só viajam com seu murmúrio
Quando o silêncio tem a beleza de mil pássaros juntos
São os companheiros vermelhos da vida
Ó pó saboroso dos homens
As estações passam mas é possível revê-las
Seguir o sol até o limite das distâncias
E depois – como os anjos que tocam a pedra
Abandonados nas terras do poente
E aqueles que sonham
em suas folhagens
Quando amadurece o pássaro em seus raios
Compreenderão pelas grandes nuvens
Muitas vezes a morte muitas vezes o mar
***
De l’automne jauni qui tremble dans le bois dételé
Il demeure une
étrange mélancolie
Comme ces chaînes
qui ne sont ni pour le corps ni pour l’âme
Ô saison les
puits n’ont pas encore
déserté votre grâce
Ce soir nous avançons dans vos feuilles
qui passent Près d’une cascade de
triste folie
Et voici dans un
nuage de grande transparence
L’étoile comme une
étincelle de faim
Do outono amarelo que tremula no bosque dispersado
Perdura uma estranha melancolia
Como essas correntes que não são para o corpo nem para a alma
Estação, os poços não perderam ainda tua graça
Esta noite avançamos entre folhas que passam
Perto de uma cascata de triste loucura
E eis que na nuvem de
vasta transparência
A estrela como um clarão
de fome
***
Sur une montagne
Où les troupeaux
parlent avec le froid
Comme Dieu le fit
Où le soleil est
à son origine
Il y a des granges
pleines de douceur
Pour l’homme qui
marche dans sa paix
Je rêve à ce pays
où l’angoisse
Est un peu d’air
Où les sommeils
tombent dans le puits
Je rêve et je suis
ici
Contre un mur de
violettes et cette femme
Dont le genou écarté
est une peine
Sobre a montanha
Onde os rebanhos falam com o frio
Como Deus fez
Onde o sol está na sua origem
Há celeiros cheios de doçura
Para o homem que anda em sua paz
Eu sonho com esse lugar onde
a angústia
É um pouco de ar
Onde os sonhos caem nos poços
Eu sonho e estou aqui
Entre esta mulher e um muro de violetas
O seu joelho aberto que comove
***
O mon amour il n’est
rien que nous aimons
Qui ne fuie comme
l’ombre
Comme ces terres lointaines où l’on perd son
nom
Il n’est rien qui nous retienne
Comme cette pente
de cyprès où sommeillent
Des enfants de fer
bleus et morts
Meu amor não há nada do que amamos
Que não fuja como a sombra
Como essas terras distantes onde os nomes se perdem
Não há nada que nos retenha
Como esta encosta de ciprestes onde dormitam
Meninos de ferro azuis e mortos
***
Si je dois rencontrer
les Aïeux
A l’extrémité d’une terre d’élégie
Là où se perd la parole
des puits
Et le vieil élevage des lunes
La nuit fera une
seule gerbe de nos ombres
Je rejoindrai l’aiguille et les songes
Et la main de leurs
habits
– Allongés dans
leurs têtes légères
Sous un arbre imaginé
par la vie
Si je dois rencontrer
les Aïeux
A l’extrémité d’une
terre d’élégie
Menant un enfant
de grand sommeil
Au bord des fleuves
sans terres
Se devo encontrar os Antepassados
No fim de uma terra de elegia
Lá onde se perde a palavra
dos poços
E a antiga ascensão das luas
A noite fará um só facho com nossas sombras
Reunirei a agulha e os sonhos
E a mão com os seus mantos
Estendidos das suas leves cabeças
Sob a árvore imaginada pela vida
Se devo encontrar os
Antepassados
No fim de uma terra
de elegia
Levando o menino do sono
imenso
Pela margem de rios sem terras
Bounoure o levou a Paulhan e a Saint-John
Perse. Em 1930, é publicado pelos simbolistas da revista Commerce, dirigida por Valéry. Em 33, durante sua primeira viagem à
Europa conhece Max Jacob e Jules Supervielle. Logo, é Éluard quem o apresenta a
Breton que o recebe nos seguintes termos:
Se alguém me perguntasse qual é o segredo de Georges Schéhadé, eu responderia, na velha linguagem da falcoaria,
que ninguém sabe atrair a presa tão
implacavelmente como ele.
A partir de 1938, sua poesia é editada em
plaquettes por Guy Lévis Mano. Após a
Segunda Guerra Mundial, Schéhadé divide-se entre Beirut, onde é o braço direito
de Bounoure na recém-criada École Supérieure des Lettres, e Paris, onde convive com os surrealistas. Octavio Paz, seu primeiro tradutor ao espanhol, assim descreve o
convívio com o grupo:
No Café de la Place Blanche e em outros lugares. Os pilares
desses encontros foram André e Benjamin. Muitos jovens compareciam e, de vez em
quando, alguns veteranos de campanhas passadas: Max Ernst, Miró, Hérold e, mais
raramente, Julien Gracq.
Com ele e com outros
dois escritores recém-chegados aos
encontros, André Pieyre
de Mandiargues e Schéhadé, me senti mais à vontade.
Gracq não é apenas um grande escritor, mas também um homem discreto
e cortês, que sabe conversar e ficar calado quando necessário. Meus melhores amigos
eram Mandiargues, brilhante e assustador
como um conto de Arnim,
e Schéhadé, sempre
com um ramo de adágios recém-cortados de uma árvore no Paraíso.
Mas nada ou muito pouco de Schéhadé pode ser considerado surrealista, no rigor do termo. Sua associação com Éluard e Char, foi estabelecida antes pela capacidade de criar um universo poético próprio, de transparência e lenda, que por
afinidade conceitual. Schéhadé escreve tomado pela delicadeza da infância e por
um olhar cândido, mas maduro. O tom é
discreto, a dicção proverbial e o tempo bíblico.
Na sua poesia não há tensão formal alguma.
Ao contrário, o verso livre se naturaliza na estrofe e, se a desmancha, é por obedecer
ao ritmo do que diz.
Mon merveilleux
amour comme la pierre insensée
Cette pâleur que
vous jugez légère
Tellement vous vous
égarez de moi pour revenir
À l’heure où le
soleil et nous d’eux faisons une rose
Personne n’a dû
la retrouver
Ni le braconnier
ni la svelte amazone qui habite les nuages
Ni ce chant qui
anime les habitations perdues
Et vous étiez cette
femme et vos yeux mouillaient
D’aurore la plaine
dont j’étais la lune.
Meu amor maravilhoso como a pedra insensata
Esta palidez que julgas leve
De tal modo que te afastas de mim para retornar
Na hora em que nós dois e o sol formamos uma rosa
Ninguém jamais te encontrou
Nem o caçador, nem a esbelta amazona que habita as nuvens
Nem este canto que anima os quartos perdidos
E tu eras essa mulher
e teus olhos molhavam
De aurora a planície onde eu era a lua
Poesia
oral. Como no teatro, cria um cenário.
Sem discurso, sem récitas, com ambiência apenas. Poesia
do sonho, não no sentido daliniano, ou das praças
duras de De Chirico, nem das formas líquidas de Miró, mas de
uma remota e esmaecida atmosfera suspensa.
Si tu es belle comme
les Mages de mon pays
Ô mon amour tu n’iras
pas pleurer
Les soldats tués
et leur ombre qui fuit la mort
– Pour nous la mort
est une fleur de la pensée
Il faut rêver aux oiseaux qui voyagent
Entre le jour
et la nuit comme une trace
Lorsque le soleil
s’éloigne dans les arbres
Et fait de leurs
feuillages une autre prairie
Ô mon amour
Nous avons les yeux
bleus des prisonniers
Mais notre corps
est adoré par les songes
Allongés nous sommes
deux ciels dans l’eau
Et la parole est
notre seule absence
Se tu és bela como os
Mágicos do meu país
Meu amor não chores
pelos soldados mortos
E suas sombras que fogem da morte
– Para nós a morte é uma flor do pensamento
Sonhemos com os pássaros que
migram
Entre o dia e a noite
como um rastro
Quando o sol se afasta
entre as árvores
E das suas folhagens
faz outra planície
Meu amor
Temos os olhos azuis dos prisioneiros
Mas os sonhos adoram nossos corpos
Deitados somos dois céus na água
E a palavra é a nossa única ausência
Os poços, as pombas, as rosas, as ovelhas são afro-mediterrâneas, mas poderiam ser de qualquer lugar e em qualquer época. O silêncio, tão presente no ar dos
seus poemas, é um lugar de repouso para
as suas palavras. Diz o poeta:
Le silence est la villégiature
des mots.
Um silêncio grave,
ao mesmo tempo
existencial e universal, devedor da musicalidade do verso e da limpidez rítmica
com que faz uso da língua.
Nous reviendrons
corps de cendres ou rosiers
Avec l’œil cet animal
charmant
O colombe
Près des puits de
bronze où de lointains
Soleils sont couchés
Puis nous reprendrons
notre courbe et nos pas
Sous les fontaines
sans eau de la lune
O colombe
Là où les grandes
solitudes mangent la pierre
Les nuits et les
jours perdent leurs ombres par milliers
Le temps est innocent
des choses
O colombe
Tout passe comme
si j’étais l’oiseau immobile
Voltaremos corpos de cinza ou rosais
Com o olho esse animal encantador
Pássaro
Perto dos poços de bronze onde sóis
Distantes estão deitados
Então retomaremos nossa curva e nossos passos
Pelas fontes sem água de lua
Pássaro
Lá onde a imensa solidão devora a pedra
Noites e dias perdem sombras aos milhares
O tempo é inocente das coisas
Pássaro
Tudo passa como se eu fosse o voo imóvel
O poeta é também autor de uma obra cênica
que divide com Samuel Beckett, Eugène Ionesco
e Artur Adamov as concepções do teatro francês no pós-guerra. Em 1951, Georges Vitaly produziu com escasso sucesso sua primeira peça, Monsieur Bob’le, no Théâtre de la Huchette.
No ano seguinte, Gallimard reuniu as quatro plaquettes
impressas por GLM
sob
o título Les Poésies. Schéhadé escreveria três
outras obras teatrais que entraram
no repertório da Comédie-Française,
sendo Histoire de Vasco, a mais exitosa.
Em 1978, a guerra no Líbano o traz
definitivamente a Paris. Nesse meio-exílio volta a escrever poesia. Em 85, a Gallimard
publica Le Nageur d’un Seul Amour (O
Nadador de um Só Amor) sua última
reunião. Não obstante, o longo percurso entre sua estreia em 1938 e os últimos
poemas cinquenta anos depois, seu estilo não muda. Como se vê nestes primeiros versos:
Les arbres qui ne voyagent que par leur
bruit
Quand le silence
est beau de mille oiseaux ensemble
Sont les compagnons vermeils de la vie
Ô poussière savoureuse
des hommes
Les saisons passent
mais peuvent les revoir
Suivre le soleil
à la limite des distances
Puis − comme les
anges qui touchent la pierre
Abandonnés aux terres
du soir
Et ceux-là qui rêvent
sous leurs feuillages
Quand l’oiseau est
mûr et laisse ses rayons
Comprendront à cause
des grands nuages
Plusieurs fois la
mort et plusieurs fois la mer
As árvores que só viajam com seu murmúrio
Quando o silêncio tem a beleza de mil pássaros juntos
São os companheiros vermelhos da vida
Ó pó sabor de homens
As estações passam mas é possível revê-las
Seguir o sol até o limite das distâncias
E depois – como os anjos que tocam a pedra
Abandonados nas terras do poente
E aqueles que sonham
em suas folhagens
Quando amadurece o pássaro em seus raios
Compreenderão pelas grandes nuvens
Muitas vezes a morte muitas vezes o mar
e nos últimos:
Sur une montagne
où se déshabille le vent
Quand les troubadours
de la lune
Un soir d’été
Auront joué nos
cœurs aux dés
Dans ce pays d’infortune
Toi plus belle que
jamais
Tu passeras dans la brume
Na montanha onde se despe o vento
Quando os trovadores da lua
Uma noite de verão
Terão jogado nossos corações nos dados
Neste país de infortúnio
Tu, mais bela que jamais
Passarás pela bruma
Poesia de cenas sem fatos da vida, onde tudo é cenário.
Para contextualizar a ausência do autor em uma obra
tão refinada, consultar Georges Schéhadé, poète des deux rives,
livro pontuado pelo epistolário do poeta, rica iconografia e atenção nos detalhes pessoais
escrito por Danièle Baglione
e Albert Dichy.
THOMAZ ALBORNOZ NEVES (Brasil, 1963). É advogado, cineasta, tradutor, ensaísta e poeta. Ao longo de quase quarenta anos, tornou-se um dos mais ativos tradutores de poesia contemporânea para o português. Viveu na Itália, França e Espanha durante seus anos de formação. Fixou-se então no Rio de Janeiro, no norte do Uruguai e finalmente em Livramento. Publicou vários livros, entre eles Renée (1987), Poemas (1990), Golfe (2012), À espera de um igual (2020), Oriente (2021) e 24 verbetes (2022).
LENNIN VÁSQUEZ (Peru, 1978). Artista convidado desta edição de Agulha Revista de Cultura. Estudou na Escola Superior Autônoma de Belas Artes do Peru entre 1996 e 2002, onde obteve medalha de ouro em desenho. Suas exposições pessoais incluem Metaphysical Landscapes (2023), Collected Work (2019) Spain, I Have All Nights in My Veins (2018); Delírios Crepusculares (2017); Quadrante dos Sonhos – jardins e labirintos (2015); Vento SURreal (2010); Aos Olhos do Apu (2009); Ritual Beings (2007), entre outras. Desde 1997 expôs coletivamente em dezenas de oportunidades no Peru, Bolívia, Chile, Argentina, Colômbia e Espanha. Em 2010 realizou mural no encontro internacional Art x Parte em Berazategui, Buenos Aires, Argentina. Seu trabalho está no Museu Belas Artes, Santiago do Chile; Aliança Francesa Lima, Peru; Município de Suba, Bogotá, Colômbia; e Coleção Faber Castell, Lima, Peru. Coleção Mapfre Lima Peru. Lennin possui um traço refinado repleto de referências mitopoéticas, que expressam não apenas sua afinidade com o Surrealismo, como também um universo acentuado por suas origens indígenas.
Agulha Revista de Cultura
Número 222 | janeiro de 2023
Artista convidado: Lennin Vásquez (Peru, 1978)
editor | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editora | ELYS REGINA ZILS | elysre@gmail.com
ARC Edições © 2023
∞ contatos
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