terça-feira, 24 de janeiro de 2023

THOMAZ ALBORNOZ NEVES | Harry Martinson e a noite de criação

 


O pai de Harry Edmund Martinson (Blekinge, 1904-Estocolmo, 1978), um capitão de longo curso que faliu comerciante, morreu de tuberculose ao sair da prisão quando Harry tinha seis anos. A mãe emigrou para os EUA levando consigo apenas o recém-nascido dos sete filhos do casal. Os demais são entregues à assistência social. Harry passa por várias famílias de camponeses remunerados pelo Estado para acolhê-lo. Quando recorda os primeiros anos, descreve como o menino que ele foi submetia a realidade a uma imaginação melancólica que lhe levou a escrever versos como: Eu congelei no coração da minha infância.

 

[...]

Uma ponte de pedra em uma terra de madeira

Um menino ali. Ele vê a correnteza do rio

Na distância, um cavalo com o sol no dorso

bebe lentamente

Sua crina cai na água passando

como cabelo de índio

 

Aos doze anos, foge de um asilo para idosos e aos dezesseis embarca para trabalhar de foguista em um navio. Navega ao redor do mundo até que a tuberculose o força a desembarcar no dia em que completa 23 anos. Andarilha pela Índia e América do Sul. Na Suécia foi preso por vadiagem no parque Lundagård, em Malmö. É essa experiência do mundo, dos marginais e miseráveis que levará aos seus livros. A sua obra gira em torno da injustiça coletiva e da solidão existencial.

 

KVÄLL I INLANDET

 

Tyst gåtan speglas. Den spinner afton

i stillnad säv.

Här finns en skirhet som ingen marker

i gräsets väv.

 

Tyst boskap stirrar med gröna ögon

Den vandrar kvällslugn till vattnet ned.

Och insjön håller till alla munnar

sin jättesked

 

NOITE DENTRO DA TERRA

 

Silencioso, o enigma se reflete.

A noite gira em calmaria

Ninguém nota a transparência

no tecido da pradaria

 

Silencioso, o gado fita com olhos verdes

Desce pela noite rumo à água fresca

E o lago leva a cada boca

sua colher gigantesca

 

O verso respira lentamente, em um ritmo quase suspenso. Quando Martinson menciona a dinastia Tang, sinaliza a serenidade impregnada de taoísmo através da qual critica a aceleração do mundo provocada pelo progresso e a robotização do comportamento moderno.

 

LANDSKAPET VET ALLT

 

Landskapet vet allt

genom sitt växlande vara

och genom sin vana vid allt

som ett landskap möter.

Det har vanor och vårar.

Mossorna läser långsam in sig

i stenarnas ärrtecken,

år efter år.

 

A PAISAGEM SABE TUDO

 

a paisagem sabe tudo

através da sua matéria mutável

E da passagem dos dias sabe tudo

que uma paisagem contém

Há hábito e há primavera

O musgo se aprofunda lentamente

na cicatriz das pedras

ano após ano

 

A pedra reaparece muitas vezes como símbolo de duração em contraposição ao presente passageiro e a transitoriedade da memória. Enquanto as lembranças se apagam, a pedra resiste. O mesmo ocorre como mar.

 

HAVSORAKEL

 

Medan vi ännu gungar

sjunger vattensängen om vår verklighet som skall dö

Pä en given nivå under vågorna

komma symbolerna att springa över i sina dödliga egenskaper

de komma att söka räddning hos oss när vi söker räddning hos dem

Vi sjunker länge eller hastigt, beroende på hur strömmen är.

Men under det vi sjunker kan mycket som vi inte känner pressas fram

Det oerhörda trycket förändrar allt

 

ORÁCULO DO MAR

 

Enquanto ainda boiamos

a água entoa o canto da nossa realidade que se vai

A certa profundidade sob as ondas

os símbolos se reduzem aos seus significados mortais

Buscam em nós a salvação por nós neles buscada

De acordo com a correnteza, afundamos rápido ou lentamente

Mas enquanto afundamos muito do que desconhecemos pode emergir

A imensa pressão muda tudo

 


Durante o outono de 1927, quando ainda era um marinheiro tuberculoso e desempregado manteve contato com os círculos anarquistas de Gotemburgo e com os chamados Coloristas de Valand liderados pelo discípulo de Matisse, o pintor Tor Bjurström. Martinson morava em um quarto mobiliado, sem aquecimento, frequentava os bares do porto e usava com frequência o museu de arte de Gotemburgo como um lugar para manter-se aquecido. Pintava também. Mas somente nos anos 60 seu trabalho seria conhecido, quando um acervo com centenas de grandes obras de arte a óleo, giz, pastel, tinta e lápis, veio à público.

Em 1929, conhece na redação do jornal anarquista Brand a escritora Moa Martinson, uma escritora viúva, mãe de três filhos. Ele tem 25 anos e ela 39. Moa exercerá um papel determinante na sua formação. Nesse mesmo ano, participa com Artur Lundkvist, Gustav Sandgren, Erik Asklund e Josef Kjellgren da antologia Fem Unga (Cinco Jovens), que inaugura o modernismo sueco. Também publica, com escassa repercussão, Spokskepp (Navio Fantasma), sua primeira reunião de poemas.

Em 1931, Nomad (Nômade), seu segundo livro possui a vitalidade e o humanismo popular, antiliterário, que o revela aos 27 anos. Nestes poemas, idealiza uma sensibilidade forjada por ambientes mutáveis e a vida na terra baseada no princípio da instabilidade através da qual o nômade alcançaria um estado de espírito universal, o homem sem nacionalidade, só homem.

Sua seguinte reunião de poesia, Natur (Natureza) confirma o potencial inovador de Nomad. Martinson é então rotulado de “vitalista-primitivista”. Em 34, participa do Congresso de Escritores em Moscou e retorna à Suécia considerando um atentado à liberdade criativa a estética proposta por Gorki. As discrepâncias em relação a urss acabam por provocar a separação do casal no início da guerra.

Harry Martinson produz também romances e diários autobiográficos que lhe trazem crescente notoriedade. Em 1940, descreve em Verklighet till Döts (Realidade até a Morte) a batalha de inverno na Finlândia onde serviu no Corpo Voluntário Sueco contra os nazistas.

Em 1945 publica os poemas de Passad (Ventos Alísios), uma viagem espiritual de inspiração taoísta dedicada à solidariedade e ao humanismo. Neles, o vento é o elemento de união entre os opostos, o termo do equilíbrio entre a realidade que rodeia o andarilho e o seu universo interior. A tensão entre os opostos abarca – como é característico em Martinson – a cultura clássica e o presente, o mar antigo e o mar real, a unidade entre o mítico halcyon e o albatroz. Martinson foi o primeiro autor autodidata e proletário a ingressar na Academia Sueca.

A direta simplicidade do seu verso é quase prosaica. Há uma atmosfera de Conrad no seu oceano e de Kipling nas suas encapsuladas elegias, minimais antes do minimalismo.

 

EFTER

 

Efter slaget vid Helgoland

och efter slaget vid Utshima

upplöste havet människolikens drivtimmer.

Benhandlade dem med sina hemliga syor.

Lät albatroser äta deras ögon.

Och förde dem med upplösande salter

sakta tillbaka till havet –

till ett kambriskt skapande urvatten,

till ett nytt försöt.

 

DEPOIS

 

Depois da batalha de Helgoland

e depois da batalha de Utshima

o mar manteve os cadáveres flutuando

Deixou albatrozes devorarem seus olhos

enquanto com sais dissolventes

lentamente os devolvia ao alto-mar –

às regeneradoras águas cambrianas

a um novo início

 


Harry Martinson é um poeta cósmico enquanto observa a natureza. Sua poesia capta um instante carregado do que é remoto, de um presente antigo, impregnado de tempo. A aproximação da realidade vem de um lugar primevo e, se mantêm o olhar puro sobre as coisas, é porque seu pensamento insiste em reconduzi-lo de volta à inocência.

 

KYRKOGÅRDEN

 

Lövlundarna kringstänga kyrkogården

De utsäger med sommarens mjuka röst det som inte kan återkallas.

I gräset söker en vind efter något förlorat.

Men tiden har gått ut

genom grindarna av järn.

 

CEMITÉRIO

 

Frondosas copas rodeiam o cemitério

e com a voz suave do verão dizem o que se perdeu

Um sopro de vento busca na relva algo perdido

Mas o tempo já passou

através da grade dos portões de ferro

 

Assim, se descreve um encontro, esse conterá a leveza do momento e algo do começo das eras. Sua subjetividade remete sempre ao coletivo, um pouco à maneira do seu contemporâneo Rítsos. Já os melhores poemas têm um ar de improviso, como se nascessem diretamente do que está sendo experimentado. Daí que tragam algo de inacabado, a meio caminho entre o verso branco e o medido. É o caso de Noite de Criação.

 

SKAPELSENATT

 

Vid stenbron möttes vi,

björkarna höllo vakt,

ån blank som ålen slank mot havet

Vi slingrade oss samman för att göra Gud,

suset gick i höstäd

och rägen sköt ut en bölja.

 

NOITE DE CRIAÇÃO

 

Na ponte de pedra nos encontramos

as bétulas estavam de guarda

como uma enguia o rio deslizava ao mar

Nos unimos para criar Deus

O sussurro animou as espigas de outono

e o trigal foi uma onda

 

Ou, a rara capacidade de inserir um frescor atemporal no passado mais distante.

 

ZIGENARSKRATT

 

Tälted, seglet, den vita himlen

och ditt brösts bleka druva;

med sådana syner blev jag erövrane,

for med kärrornas bentorra hjul

skramlande ur dammskyn

hän mot ljusa Thebe

hän mot mörka Trondhjem;

där spådde vi i porslinksoppen

och händerna

fräckt och frånvarande

medan våra själar samma kväll reste bland antipoderna.

 

RISO CIGANO

 

A tenda, a vela, o branco céu

e a pálida uva do teu seio

com estas visões fui conquistado

conduzi os carros com rodas secas como ossos

através do ruído e da poeira

rumo à radiante Tebas

rumo à escura Trondjem

onde lemos a sorte nas taças de porcelana

onde lemos a mão

insolentes e ausentes

enquanto de noite nossas almas viajavam entre os antípodas

 


Vagnen
(O Automóvel), de 1960, critica a modernidade e a sociedade de consumo. A indiferença com que este livro foi recebido o leva a não mais publicar seus textos. A partir de então recolhe-se em um ressentido e autocentrado silêncio.

 

Como escritor não tenho programa, já é difícil ser homem em tempos como estes. Mas se há algo que eu amo é o mar, o oceano, em cada uma das suas expressões. A astronomia é um dos meus maiores interesses. E com o mar e as estrelas tento de reunir em mim uma espécie de navegação espiritual, quase uma lei superior que me livre do niilismo e das simulações.

 

Em sua poesia Martinson coleciona os ventos dos sete oceanos, uma infinidade de miniaturas naturais, as flores da urtiga, da faia, do carvalho, do olmo, do freixo e do bordo. Sua contemplação está impregnada de uma visão lírica secundária, mas sempre determinante do resultado poético. No final da vida, contudo, abre mão do lirismo por versos decisivos. Como se ao despir o lirismo do poema, conseguisse encontrar através da verdade uma dicção ainda mais universal que a sua. Seguem dois poemas exemplares do estilo tardio.

 

RELATO DA EQUILIBRISTA

 

Antes de tudo, a arte de não

cansar

mudar com graça o pé

sobre o abismo

ter um andar airoso

Amigos e inimigos nivelados

e repartidos

como pesos invisíveis

nas bordas da viseira

E a dor no meio do coração

A mesma linha central para desejar

e pensar

Sorrir sobre o abismo

 

A MELHOR SOLUÇÃO

 

A resignação se encarrega de resolver quase tudo

pouco a pouco um suave hábito de dor se forma

Ocorre sem lamentos ou clamores

 

Há um esforço para cima

e um costume para baixo

 

Não são as revoluções, mas as resignações

que permitem ao homem viver

se é que, de fato, viveu

Ninguém, entretanto, sobreviveu

 

É possível ocupar-se das aposentadorias

mas das resignações ninguém se ocupa

Relaxam pouco a pouco e sem cessar todas as convenções

das obrigações e das opiniões

E o poente, sorri.

 

Harry Martinson pertenceu a uma geração única na história cultural sueca, a que viveu a recessão do início do século XX e estreou já madura nos anos 30, escreveu autobiografias em versos e em prosa antes da Segunda Guerra e atingiu o apogeu artístico no pós-guerra. Uma geração marcada pela superação das limitações impostas por uma sociedade claustrofóbica e repressiva, determinada pelas guerras. Nenhum dos seus pares, contudo, suportou o abandono e a violência de formação com a sua resiliência.

O poeta cometeu suicídio no Hospital da Universidade Karolinska em Estocolmo, cortando dramaticamente seu estômago com uma tesoura. O gesto, descrito como um sepukku, foi considerado uma reação demencial.

 

 


THOMAZ ALBORNOZ NEVES (Brasil, 1963). É advogado, cineasta, tradutor, ensaísta e poeta. Ao longo de quase quarenta anos, tornou-se um dos mais ativos tradutores de poesia contemporânea para o português. Viveu na Itália, França e Espanha durante seus anos de formação. Fixou-se então no Rio de Janeiro, no norte do Uruguai e finalmente em Livramento. Publicou vários livros, entre eles Renée (1987), Poemas (1990), Golfe (2012), À espera de um igual (2020), Oriente (2021) e 24 verbetes (2022).

 


LENNIN VÁSQUEZ (Peru, 1978). Artista convidado desta edição de Agulha Revista de Cultura. Estudou na Escola Superior Autônoma de Belas Artes do Peru entre 1996 e 2002, onde obteve medalha de ouro em desenho. Suas exposições pessoais incluem Metaphysical Landscapes (2023), Collected Work (2019) Spain, I Have All Nights in My Veins (2018); Delírios Crepusculares (2017); Quadrante dos Sonhos – jardins e labirintos (2015); Vento SURreal (2010); Aos Olhos do Apu (2009); Ritual Beings (2007), entre outras. Desde 1997 expôs coletivamente em dezenas de oportunidades no Peru, Bolívia, Chile, Argentina, Colômbia e Espanha. Em 2010 realizou mural no encontro internacional Art x Parte em Berazategui, Buenos Aires, Argentina. Seu trabalho está no Museu Belas Artes, Santiago do Chile; Aliança Francesa Lima, Peru; Município de Suba, Bogotá, Colômbia; e Coleção Faber Castell, Lima, Peru. Coleção Mapfre Lima Peru. Lennin possui um traço refinado repleto de referências mitopoéticas, que expressam não apenas sua afinidade com o Surrealismo, como também um universo acentuado por suas origens indígenas.




Agulha Revista de Cultura

Número 222 | janeiro de 2023

Artista convidado: Lennin Vásquez (Peru, 1978)

editor | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com

editora | ELYS REGINA ZILS | elysre@gmail.com

ARC Edições © 2023

 


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