O pai de Harry Edmund Martinson (Blekinge,
1904-Estocolmo, 1978), um capitão de longo curso que faliu comerciante, morreu de
tuberculose ao sair da prisão quando Harry tinha seis anos. A mãe emigrou para os
EUA levando consigo apenas o recém-nascido dos sete filhos do casal. Os demais são
entregues à assistência social. Harry passa por várias famílias de camponeses remunerados
pelo Estado para acolhê-lo. Quando recorda os primeiros anos, descreve como o menino
que ele foi submetia a realidade a uma imaginação melancólica que lhe levou a escrever
versos como: Eu congelei no coração da minha
infância.
[...]
Uma ponte de
pedra em uma terra de madeira
Um menino ali.
Ele vê a correnteza do rio
Na distância,
um cavalo com o sol no dorso
bebe lentamente
Sua crina cai
na água passando
como cabelo
de índio
Aos doze anos, foge de um asilo para idosos
e aos dezesseis embarca para trabalhar de foguista em um navio. Navega ao redor
do mundo até que a tuberculose o força a desembarcar no dia em que completa 23 anos.
Andarilha pela Índia e América do Sul. Na Suécia foi preso por vadiagem no parque
Lundagård, em Malmö. É essa experiência do mundo, dos marginais e miseráveis que
levará aos seus livros. A sua obra gira em torno da injustiça coletiva e da solidão
existencial.
KVÄLL I INLANDET
Tyst gåtan speglas. Den spinner afton
i stillnad säv.
Här finns en skirhet som ingen marker
i gräsets väv.
Tyst boskap stirrar med gröna ögon
Den vandrar kvällslugn till vattnet ned.
Och insjön håller till alla munnar
sin jättesked
NOITE DENTRO DA TERRA
Silencioso, o enigma se reflete.
A noite gira em calmaria
Ninguém nota
a transparência
no tecido da
pradaria
Silencioso,
o gado fita com olhos verdes
Desce pela
noite rumo à água fresca
E o lago leva
a cada boca
sua colher
gigantesca
O verso respira lentamente, em um ritmo quase
suspenso. Quando Martinson menciona a dinastia Tang, sinaliza a serenidade impregnada
de taoísmo através da qual critica a aceleração do mundo provocada pelo progresso
e a robotização do comportamento moderno.
LANDSKAPET VET ALLT
Landskapet vet allt
genom sitt växlande vara
och genom sin vana vid allt
som ett landskap möter.
Det har vanor och vårar.
Mossorna läser långsam in sig
i stenarnas ärrtecken,
år efter år.
A PAISAGEM SABE TUDO
a paisagem
sabe tudo
através da
sua matéria mutável
E da passagem
dos dias sabe tudo
que uma paisagem
contém
Há hábito e
há primavera
O musgo se
aprofunda lentamente
na cicatriz
das pedras
ano após ano
A pedra reaparece muitas vezes como símbolo
de duração em contraposição ao presente passageiro e a transitoriedade da memória.
Enquanto as lembranças se apagam, a pedra resiste. O mesmo ocorre como mar.
HAVSORAKEL
Medan vi ännu gungar
sjunger vattensängen om vår verklighet
som skall dö
Pä en given nivå
under vågorna
komma symbolerna
att springa över i sina dödliga egenskaper
de komma att söka
räddning hos oss när vi söker räddning hos dem
Vi sjunker länge
eller hastigt, beroende på hur strömmen är.
Men under det vi
sjunker kan mycket som vi inte känner pressas fram
Det oerhörda trycket förändrar allt
ORÁCULO DO MAR
Enquanto ainda
boiamos
a água entoa
o canto da nossa realidade que se vai
A certa profundidade
sob as ondas
os símbolos
se reduzem aos seus significados mortais
Buscam em nós
a salvação por nós neles buscada
De acordo com
a correnteza, afundamos rápido ou lentamente
Mas enquanto
afundamos muito do que desconhecemos pode emergir
A imensa pressão
muda tudo
Durante o outono de 1927, quando ainda era
um marinheiro tuberculoso e desempregado manteve contato com os círculos anarquistas
de Gotemburgo e com os chamados Coloristas de Valand liderados pelo discípulo de
Matisse, o pintor Tor Bjurström. Martinson morava em um quarto mobiliado, sem aquecimento,
frequentava os bares do porto e usava com frequência o museu de arte de Gotemburgo
como um lugar para manter-se aquecido. Pintava também. Mas somente nos anos 60 seu
trabalho seria conhecido, quando um acervo com centenas de grandes obras de arte
a óleo, giz, pastel, tinta e lápis, veio à público.
Em 1929, conhece na redação do jornal anarquista
Brand a escritora Moa Martinson, uma escritora
viúva, mãe de três filhos. Ele tem 25 anos e ela 39. Moa exercerá um papel determinante
na sua formação. Nesse mesmo ano, participa com Artur Lundkvist, Gustav Sandgren,
Erik Asklund e Josef Kjellgren da antologia Fem
Unga (Cinco Jovens), que inaugura o modernismo sueco. Também publica, com escassa
repercussão, Spokskepp (Navio Fantasma),
sua primeira reunião de poemas.
Em 1931, Nomad (Nômade), seu segundo livro possui a vitalidade e o humanismo
popular, antiliterário, que o revela aos 27 anos. Nestes poemas, idealiza uma sensibilidade
forjada por ambientes mutáveis e a vida na terra baseada no princípio da instabilidade
através da qual o nômade alcançaria um estado de espírito universal, o homem sem
nacionalidade, só homem.
Sua seguinte reunião de poesia, Natur (Natureza) confirma o potencial inovador
de Nomad. Martinson é então rotulado de
“vitalista-primitivista”. Em 34, participa do Congresso de Escritores em Moscou
e retorna à Suécia considerando um atentado à liberdade criativa a estética proposta
por Gorki. As discrepâncias em relação a urss acabam por provocar a separação do
casal no início da guerra.
Harry Martinson produz também romances
e diários autobiográficos que lhe trazem crescente notoriedade. Em 1940, descreve
em Verklighet till Döts (Realidade até
a Morte) a batalha de inverno na Finlândia onde serviu no Corpo Voluntário Sueco
contra os nazistas.
Em 1945 publica os poemas de Passad (Ventos Alísios), uma viagem espiritual
de inspiração taoísta dedicada à solidariedade e ao humanismo. Neles, o vento é
o elemento de união entre os opostos, o termo do equilíbrio entre a realidade que
rodeia o andarilho e o seu universo interior. A tensão entre os opostos abarca –
como é característico em Martinson – a cultura clássica e o presente, o mar antigo
e o mar real, a unidade entre o mítico halcyon
e o albatroz. Martinson foi o primeiro autor autodidata e proletário a ingressar
na Academia Sueca.
A direta simplicidade do seu verso é quase
prosaica. Há uma atmosfera de Conrad no seu oceano e de Kipling nas suas encapsuladas
elegias, minimais antes do minimalismo.
EFTER
Efter slaget vid Helgoland
och efter slaget vid Utshima
upplöste havet människolikens drivtimmer.
Benhandlade dem med sina hemliga syor.
Lät albatroser äta deras ögon.
Och förde dem med upplösande salter
sakta tillbaka till havet –
till ett kambriskt skapande urvatten,
till ett nytt försöt.
DEPOIS
Depois da batalha
de Helgoland
e depois da
batalha de Utshima
o mar manteve
os cadáveres flutuando
Deixou albatrozes
devorarem seus olhos
enquanto com
sais dissolventes
lentamente
os devolvia ao alto-mar –
às regeneradoras
águas cambrianas
a um novo início
Harry Martinson é um poeta cósmico enquanto
observa a natureza. Sua poesia capta um instante carregado do que é remoto, de um
presente antigo, impregnado de tempo. A aproximação da realidade vem de um lugar
primevo e, se mantêm o olhar puro sobre as coisas, é porque seu pensamento insiste
em reconduzi-lo de volta à inocência.
KYRKOGÅRDEN
Lövlundarna kringstänga kyrkogården
De utsäger med sommarens mjuka röst det
som inte kan återkallas.
I gräset söker en vind efter något förlorat.
Men tiden har gått ut
genom grindarna av järn.
CEMITÉRIO
Frondosas copas
rodeiam o cemitério
e com a voz
suave do verão dizem o que se perdeu
Um sopro de
vento busca na relva algo perdido
Mas o tempo
já passou
através da
grade dos portões de ferro
Assim, se descreve um encontro, esse conterá
a leveza do momento e algo do começo das eras. Sua subjetividade remete sempre ao
coletivo, um pouco à maneira do seu contemporâneo Rítsos. Já os melhores poemas
têm um ar de improviso, como se nascessem diretamente do que está sendo experimentado.
Daí que tragam algo de inacabado, a meio caminho entre o verso branco e o medido.
É o caso de Noite de Criação.
SKAPELSENATT
Vid stenbron möttes vi,
björkarna höllo vakt,
ån blank som ålen slank mot havet
Vi slingrade oss
samman för att göra Gud,
suset gick i höstäd
och rägen sköt ut
en bölja.
NOITE DE CRIAÇÃO
Na ponte de pedra nos encontramos
as bétulas estavam de guarda
como uma enguia o rio deslizava ao mar
Nos unimos para criar Deus
O sussurro animou as espigas de outono
e o trigal foi uma onda
Ou, a rara capacidade
de inserir um frescor atemporal no passado mais distante.
ZIGENARSKRATT
Tälted, seglet, den vita himlen
och ditt brösts bleka druva;
med sådana syner blev jag erövrane,
for med kärrornas bentorra hjul
skramlande ur dammskyn
hän mot ljusa Thebe
hän mot mörka Trondhjem;
där spådde vi i
porslinksoppen
och händerna
fräckt och frånvarande
medan våra själar
samma kväll reste bland antipoderna.
RISO CIGANO
A tenda, a
vela, o branco céu
e a pálida
uva do teu seio
com estas visões
fui conquistado
conduzi os
carros com rodas secas como ossos
através do
ruído e da poeira
rumo à radiante
Tebas
rumo à escura
Trondjem
onde lemos
a sorte nas taças de porcelana
onde lemos
a mão
insolentes
e ausentes
enquanto de
noite nossas almas viajavam entre os antípodas
Vagnen
(O Automóvel), de 1960, critica
a modernidade e a sociedade de consumo. A indiferença com que este livro foi recebido
o leva a não mais publicar seus textos. A partir de então recolhe-se em um ressentido
e autocentrado silêncio.
Como escritor não tenho programa, já é difícil ser homem em tempos como
estes. Mas se há algo que eu amo é o mar, o oceano, em cada uma das suas expressões.
A astronomia é um dos meus maiores interesses. E com o mar e as estrelas tento de
reunir em mim uma espécie de navegação espiritual, quase uma lei superior que me
livre do niilismo e das simulações.
Em sua poesia Martinson coleciona os ventos
dos sete oceanos, uma infinidade de miniaturas naturais, as flores da urtiga, da
faia, do carvalho, do olmo, do freixo e do bordo. Sua contemplação está impregnada
de uma visão lírica secundária, mas sempre determinante do resultado poético. No
final da vida, contudo, abre mão do lirismo por versos decisivos. Como se ao despir
o lirismo do poema, conseguisse encontrar através da verdade uma dicção ainda mais
universal que a sua. Seguem dois poemas exemplares do estilo tardio.
RELATO DA EQUILIBRISTA
Antes de tudo,
a arte de não
cansar
mudar com graça
o pé
sobre o abismo
ter um andar
airoso
Amigos e inimigos
nivelados
e repartidos
como pesos
invisíveis
nas bordas
da viseira
E a dor no
meio do coração
A mesma linha
central para desejar
e pensar
Sorrir sobre
o abismo
A MELHOR SOLUÇÃO
A resignação
se encarrega de resolver quase tudo
pouco a pouco
um suave hábito de dor se forma
Ocorre sem
lamentos ou clamores
Há um esforço
para cima
e um costume
para baixo
Não são as
revoluções, mas as resignações
que permitem
ao homem viver
se é que, de
fato, viveu
Ninguém, entretanto,
sobreviveu
É possível
ocupar-se das aposentadorias
mas das resignações
ninguém se ocupa
Relaxam pouco
a pouco e sem cessar todas as convenções
das obrigações
e das opiniões
E o poente,
sorri.
Harry Martinson pertenceu a uma geração única
na história cultural sueca, a que viveu a recessão do início do século XX e estreou
já madura nos anos 30, escreveu autobiografias em versos e em prosa antes da Segunda
Guerra e atingiu o apogeu artístico no pós-guerra. Uma geração marcada pela superação
das limitações impostas por uma sociedade claustrofóbica e repressiva, determinada
pelas guerras. Nenhum dos seus pares, contudo, suportou o abandono e a violência
de formação com a sua resiliência.
O poeta cometeu suicídio no Hospital
da Universidade Karolinska em Estocolmo, cortando dramaticamente seu estômago com
uma tesoura. O gesto, descrito como um sepukku,
foi considerado uma reação demencial.
THOMAZ ALBORNOZ NEVES (Brasil, 1963). É advogado, cineasta, tradutor, ensaísta e poeta. Ao longo de quase quarenta anos, tornou-se um dos mais ativos tradutores de poesia contemporânea para o português. Viveu na Itália, França e Espanha durante seus anos de formação. Fixou-se então no Rio de Janeiro, no norte do Uruguai e finalmente em Livramento. Publicou vários livros, entre eles Renée (1987), Poemas (1990), Golfe (2012), À espera de um igual (2020), Oriente (2021) e 24 verbetes (2022).
LENNIN VÁSQUEZ (Peru, 1978). Artista convidado desta edição de Agulha Revista de Cultura. Estudou na Escola Superior Autônoma de Belas Artes do Peru entre 1996 e 2002, onde obteve medalha de ouro em desenho. Suas exposições pessoais incluem Metaphysical Landscapes (2023), Collected Work (2019) Spain, I Have All Nights in My Veins (2018); Delírios Crepusculares (2017); Quadrante dos Sonhos – jardins e labirintos (2015); Vento SURreal (2010); Aos Olhos do Apu (2009); Ritual Beings (2007), entre outras. Desde 1997 expôs coletivamente em dezenas de oportunidades no Peru, Bolívia, Chile, Argentina, Colômbia e Espanha. Em 2010 realizou mural no encontro internacional Art x Parte em Berazategui, Buenos Aires, Argentina. Seu trabalho está no Museu Belas Artes, Santiago do Chile; Aliança Francesa Lima, Peru; Município de Suba, Bogotá, Colômbia; e Coleção Faber Castell, Lima, Peru. Coleção Mapfre Lima Peru. Lennin possui um traço refinado repleto de referências mitopoéticas, que expressam não apenas sua afinidade com o Surrealismo, como também um universo acentuado por suas origens indígenas.
Agulha Revista de Cultura
Número 222 | janeiro de 2023
Artista convidado: Lennin Vásquez (Peru, 1978)
editor | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editora | ELYS REGINA ZILS | elysre@gmail.com
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