A descoberta deste movimento foi para ele um violento
sismo interior nunca mais esquecido. Os seus primeiros textos, desenhos, colagens
e fotografias datam dessa época e estão todos tocados pela pancada desse poderoso
terramoto.
Quando hoje lemos os textos desse período, contagiados
pelos poderes expressivos do automatismo, sentimos a irradiação duma luz litúrgica
e negra que se agarrou à pele das palavras e que ainda hoje cega na mesma maré alta
de encantação.
Apaixonado pelo surrealismo e disposto a entregar-lhe
a vida, Sergio Lima decidiu partir para Paris ao encontro de André Breton, a quem
escrevera pela primeira vez em 1957, anunciando-lhe a adesão incondicional ao seu
movimento. Deixou o Brasil em 1961, atravessou as águas do Atlântico, desembarcou
no Havre, seguindo de comboio para Paris.
Foi nessa viagem que aportou pela primeira vez a Lisboa,
exclamando com surpresa – “mas… é uma cidade de casinhas...” Habituado aos arranha-céus
das quilométricas avenidas paulistanas, estranhou as vielas e os prédios liliputianos
que encontrou em Lisboa, que lhe pareceu uma aldeia remota saída da sua província
natal.
Em Paris estabeleceu contacto com o autor de Nadja, integrou-se nos encontros regulares
que ele promovia no café La Promenade de Vénus, deu a conhecer o seu trabalho e
colaborou nas publicações coletivas da jovem geração que reunia com André Breton.
Ao olhar os jogos que ele então promoveu no grupo e
que tiveram abrigo na revista La Brèche –
action surréaliste (n.º 3), temos a impressão de que um animal novo e bravio
desembarcara em Montmartre para dar a ver com um olho selvagem as florestas virgens
do desconhecido.
Um ano depois regressou ao Brasil decidido a continuar
a atividade de Paris. Contactou a editora Massao Ohno e aí conheceu, em Outubro
de 1962, um jovem poeta, Roberto Piva, que estava então a publicar um livro de poemas,
Paranóia, que segundo Sergio foi o primeiro
no Brasil a dar expressão poética ao delírio do inferno.
Será com Piva, Raul Fiker e Cláudio Willer, todos com
cerca de 20 anos, que numa primeira fase, de 1962 a 1965, se esboçou uma ação coletiva
surrealista em São Paulo, no seio da qual Lima se estreou como poeta, Amore (1963). Este livro parece atualizar
os poderes encantatórios da ladainha mágica tradicional e dele se poderá dizer que
nunca como nas selvas dessa palavra apaixonada o casamento de Freud e Lautréamont
resultou tão bem e foi tão sossegado.
Assim como assim, só em 1967 e já com novos protagonistas,
como Leila Ferraz e Paulo Paranaguá, o grupo de São Paulo acabou por ver a luz naquele
que foi o primeiro agrupamento surrealista no Brasil. Com apoio de Flávio de Carvalho,
foi ele que promoveu a XIII Exposição Internacional do Surrealismo, também dita
I Mostra Surrealista de São Paulo, com a colaboração direta do grupo de Paris.
Começou aqui o longo e ditoso memorial lusitano de Sergio.
Na fase preparatória, o argentino Aldo Pellegrini lembrou-se de lhe dizer que em
Lisboa estavam Mário Cesariny e os seus amigos que se dedicavam, em segredo e trabalhos
forçados, à pesquisa surrealista há duas décadas bem contadas.
Tanto bastou para Lima se interessar pela cidade das casinhas, pedindo para lá colaboração.
De quarentena há vinte anos, asfixiados pelo ar mefítico da ditadura, condenados
à falta de reconhecimento fora de portas, os surrealistas portugueses tiveram na
exposição de São Paulo a pedra preciosa da sua loucura.
Cesariny não poupou esforços em Lisboa para divulgar
o evento, que foi a sua primeira grande euforia internacional, e fez todo um número
do antigo Jornal de Letras e Artes (n.º
258, Dez., 1967; dir. Azevedo Martins) dedicado à mostra, à sua temática, aos seus
colaboradores e ao número de estreia da revista Phala que lhe serviu de catálogo.
Desde aí e até à sua morte nunca o autor de Pena capital deixou de dedicar um lume especial a Sergio Lima, recebendo-o em casa, trocando com ele correspondência, interessando-se pelos seus trabalhos, dedicando-lhe um capítulo da antologia Textos de afirmação e combate do movimento surrealista mundial (1977) e tratando até de lhe editar um livro, Aluvião Rei (1992), em Lisboa, na editora de Vitor Silva Tavares.
Passam agora cem anos sobre o momento em que André Breton
entregou na tipografia as laudas corridas do Primeiro manifesto do surrealismo – um livro que continua capaz de apagar
todas as labaredas dos vários infernos.
Aderindo ao movimento em 1957, era fatal que a morte
de Sergio Lima aparecesse inda ela tocada pela muito bela e enigmática estrela da
aventura surrealista. Lima acabou de falecer em São Paulo a 25 de Julho de 2024.
Está agora com Cesariny nesse astro real de água e oiro que é só dos poetas.
***
Acrescentamos ao
presente texto dois momentos que elucidam a presença cultural de Sergio Lima no
cenário internacional do Surrealismo. Primeiramente as suas respostas a uma enquete
sobre a escritura automática, publicada na revista A ideia # 87/89, em 2019. Em seguida
reproduzimos três cartas de Lima dirigidas a André Breton. Este material nos foi
gentilmente concedido por António Cándido Franco. (FM).
SERGIO LIMA | Responde
a inquérito sobre a escrita automática
Falar do pensar por imagens, processo que corresponde diretamente ao pensar
analógico e por associações do mundo mágico, reenvia direto ao recurso da escrita
automática que teve seus ápices contemporâneos e mais radicais no seio mesmo do
movimento do Surrealismo. Falar da escrita das images parlantes, da escritura automática conforme porta e roda do desejo-desejante,
é falar do surrealismo em suas obras vivas e não só como um movimento de ideias.
A visão das coisas, das cores dos corpos das pessoas
foi se formando e se tornando um repertório essencial dos meus sentidos, do meu
emocional. A vida interior é onde tudo começa, é onde se tece o destino, onde a
trama das imagens começa a dar forma e dar a ver a realidade possível do maravilhoso.
Eu via de outro modo, eu via excessivamente. E vivia
apaixonado pelo corpo das coisas. A minha memória emocional era a mais ecoante possível
dos meus anseios e aventuras. Era como se estivesse descobrindo o mundo e o êxtase
de cada imagem era uma imagem nova. Para mim foi igual aprender a ler, eu ia apreendendo
o ver, aprendendo a ver mais do que o já visto, o já dado das coisas.
Como precisa o texto-manifesto Do Surrealismo em suas obras vivas, não se insistiu o bastante, nem
no sentido e nem no alcance da operação à roda da escritura automática, afinal a
operação que “tendia a restituir a linguagem à sua verdadeira vida.” (1) São as
imagens que fazem a escrita e não ao contrário.
No caso desta escritura, o automatismo não é o das grafias,
da escrita, mas sim o do psiquismo, do nosso pensar interior por imagens. É o automatismo psíquico puro que rege no Movimento
as práticas de escritura-automática, as quais, sublinhe-se: – valem por vir direto
dos domínios onde o desejo é rei; e assim revelar e “esclarecer os símbolos até
então tenebrosos.” (2)
Continuando, André Breton lembra que, na escritura automática,
“o essencial para o Surrealismo, foi convencer-se de que havia tocado com as mãos
a prima materia (no sentido alquímico)
da linguagem: a partir dalí, sabía-se onde
busca-la e, escusa dizer, não oferecia interesse em reproduzi-la à saciedade.” O
que vem corroborar o pensamento esotérico e a filosofia oculta, segundo o qual “a
enunciação está na origem de tudo, é necessário que o nome germine, sem o que a palavra será falsa.” (3)
As três grandes vertentes da revolução, da vitesse do movimento dos surrealistas e seu
pensamento, afinal da sua posição de vida, apresentam-se assim intituladas e nomeadas
a partir da descrição dos sonhos, da escritura automática e do rasgo da collage.
As três se fundem e têm como cadinho primeiro a combustão das imagens.
Na escritura automática, o automatismo do fluxo é a
radical da imagem nas obras vivas do Surrealismo.
NOTAS
(1; 2: 3). Citações do último texto com
caráter de manifesto publicado por Breton: Do
Surrealismo em suas obras vivas, conforme minha tradução livre e primeira para
o português no n.º 1 da Revista do Movimento Surrealista A Phala, 1967. [S.L.]
SERGIO LIMA | Cartas
a André Breton
São Paulo, 1/4/1957
Senhor,
Tendo adotado as leis
surrealistas e desejando segui-las, seria um grande prazer para mim manter uma correspondência
com o senhor.
Essa correspondência
teria como objetivo meu grande desejo de manter um contato direto com o surrealismo
e também poder conhecê-lo em profundidade, saber de suas decisões recentes bem como
poder debater algumas opiniões a respeito.
Considerando o automatismo,
pude notar o admirável ponto já alcançado pelas obras automáticas, no mínimo, pelo
que pude obter aqui, porque as dificuldades para consultas ou mesmo obter as obras
surrealistas, em meu país, são enormes. O automatismo, principalmente o escrito,
interessa-me sobremaneira; tenho muita vontade de conhecer as últimas conquistas
teóricas e algumas referências relativas às pesquisas experimentais no campo do
automatismo, se possível. Gostaria, ainda, de obter algumas orientações para seu
desenvolvimento. Acredita ser possível me enviar alguns textos em português?
Poderia o senhor responder-me
a todas essas questões? Eu espero, dessa forma, com todo prazer, uma resposta de
sua parte.
Desculpe-me alguns erros
cometidos em virtude de não conhecer ainda tão bem a escrita do idioma francês.
Queira aceitar, Senhor,
meus agradecimentos antecipados e meus cumprimentos.
Sergio Lima
P.S. peço-lhe que me
envie seu endereço para uma futura correspondência, se assim permitir.
***
Paris, 20 de outubro de 1961
Senhor Breton,
Escrevo-lhe para solicitar um encontro,
visto que as atividades do grupo surrealista tomaram um lugar fundamental em minha
formação e a sua posição, sendo a mesma que a minha, tenho certeza, que é da maior
importância para mim estar em contato direto e participativo consigo.
Após uma série de circunstâncias
favoráveis, e como estou em Paris, acredito ser este o momento de colocar-me à mais
completa disposição daqueles que caminham na mesma direção que eu.
Eu espero ter a honra
de ser apresentado ao senhor e conhecer meus amigos.
Queira receber, caro
senhor, as minhas mais respeitosas homenagens.
Sergio Claudio de Franceschi Lima
***
São Paulo, 29/VIII/62
Caro André,
Acabo de encontrar o catálogo relativo
à exposição das figuras da “deusa pássaro” sobre o qual eu já havia chamado a sua
atenção mais de uma vez, durante nossas conversas no La Promenade de Vênus. Aproveito
a ocasião para enviar, anexa, uma cópia para você.
Assim, você terá uma ideia precisa [*]
dessas estatuetas. Além disso, é necessário ressaltar que, além do texto do catálogo,
eu ainda não consegui encontrar qualquer outra documentação ou dados que permitam
aprofundar a questão.
Em breve, espero entrar em contato com
as pessoas que têm exemplares em São Paulo, a fim de obter, se possível, pelo menos
um dossiê fotográfico preliminar sobre esse assunto e com certeza, tentar encontrar
as coordenadas para um estudo preliminar.
Eu desejo enviar a você, em breve, as
reproduções de alguns desses trabalhos ainda inéditos, Entre eles talvez possamos
utilizar alguns em LA BRÈCHE.
Eu gostaria muito de receber notícias
de nossos amigos e também receber o último número da Revista. Ficaria muito feliz
em conhecer os ecos dos próximos projetos do Movimento Surrealista.
“Mil sonrisas” para Elisa e minhas homenagens
a você.
Até mais,
Sergio Lima
[*]
Notei que minha apreciação e gosto às referidas figuras podem ter interferido um
pouco nas informações que passei a você.
***
NOTA
FINAL
As cartas foram traduzidas por Leila
Ferraz, a nosso pedido.
ANTÓNIO CÂNDIDO FRANCO (Portugal, 1956) | Ensaísta e editor. Nasceu e cresceu em Lisboa, num dos mais vetustos bairros da cidade, a Graça. Aos sete anos foi aluno de Alice Gomes. Há quase quatro décadas que está ligado ao ensino público, onde se esforça por desaprender muito do que lhe ensinaram. Coordena, edita e dirige desde 2012 a revista de “cultura libertária” A Ideia, que se publica desde 1974 e onde Mário Cesariny colaborou em vida. Tudo o que procura é poder inscrever no seu registo o que um inspirado escritor francês mandou gravar na sua lápide: Je cherche l’or du temps.
JULIA OTXOA (Espanha, 1953). Poeta, narradora y artista gráfica Entre sus últimas exposiciones : “Llocs de Pas” Espectáculo colectivo audiovisual-MACBA-Barcelona 2006, “Absinthe Review” Nueva York 2007; “New Sleepingfis Review”, Nueva York 2007; “Certamen Internacional de Fotografía Surrealista”, Eibar 2007; “Fragmentos de Entusiasmo”-Catálogo de la exposición Antología de la Poesía Visual española 1964-2006”-“Poesía Visual Española” (Antología) Editorial Calambur,Madrid,2007; “La Fira Mágica”, Exposición colectiva de Poesía Visual Ayuntamiento de Santa Susana Barcelona, 2007; “Homenaje a Manuel Altolaguirre”, Exposición Poesía Visual – Instituto Cervantes en Fez (Marruecos, 2007 ); “Miguel Hernández – Muestra de Poesía Visual” (Universidad Miguel Hernández-Elche, 2008); “Exposición libros de artista”, Museo de San Telmo San Sebastián, 2023; “Tres senderos que convergen”, Centro cultural Oquendo, San Sebastián. Julia Otxoa es la artista invitada de esta edición de Agulha Revista de Cultura.
Agulha Revista de Cultura
Número 254 | agosto de 2024
Artista convidada: Julia Otxoa (España, 1953)
Editores:
Floriano Martins | floriano.agulha@gmail.com
Elys Regina Zils | elysre@gmail.com
ARC Edições © 2024
∞ contatos
https://www.instagram.com/agulharevistadecultura/
http://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/
FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
ELYS REGINA ZILS | elysre@gmail.com
Nenhum comentário:
Postar um comentário