quinta-feira, 15 de agosto de 2024

ANTÓNIO CÂNDIDO FRANCO | Sergio Lima (1939-2024), o olho selvagem

 


Nascido em 1939, em Pirassununga (Brasil), Sergio Cláudio de Franceschi Lima, que assinou Sergio Lima, chegou mui­to novo à cidade de São Paulo, que fez para sempre sua. Foi na Cinemateca desta capital que encontrou logo no início da segunda metade da década de 50 – tinha 15 ou 16 anos – as imagens de Buñuel, que lhe abriram as portas do surrealismo.

A descoberta deste movimento foi para ele um violento sismo interior nunca mais esquecido. Os seus primeiros textos, desenhos, colagens e fotografias datam dessa época e estão todos tocados pela pancada desse poderoso terramoto.

Quando hoje lemos os textos desse período, contagiados pelos poderes expressivos do automatismo, sentimos a irradiação duma luz litúrgica e negra que se agarrou à pele das palavras e que ainda hoje cega na mesma maré alta de encantação.

Apaixonado pelo surrealismo e disposto a entregar-lhe a vi­da, Sergio Lima decidiu partir para Paris ao encontro de André Breton, a quem escrevera pela primeira vez em 1957, anunciando-lhe a adesão incondicional ao seu movimento. Deixou o Brasil em 1961, atravessou as águas do Atlântico, desembarcou no Havre, seguindo de comboio para Paris.

Foi nessa viagem que aportou pela primeira vez a Lisboa, exclamando com surpresa – “mas… é uma cidade de casinhas...” Habituado aos arranha-céus das quilométricas avenidas paulistanas, estranhou as vielas e os prédios liliputianos que encontrou em Lisboa, que lhe pareceu uma aldeia remota saída da sua província natal.

Em Paris estabeleceu contacto com o autor de Nadja, integrou-se nos encontros regulares que ele promovia no café La Promenade de Vénus, deu a conhecer o seu trabalho e colaborou nas publicações coletivas da jovem geração que reunia com André Breton.

Ao olhar os jogos que ele então promoveu no grupo e que tiveram abrigo na revista La Brèche – action surréaliste (n.º 3), temos a impressão de que um animal novo e bravio desembarcara em Montmartre para dar a ver com um olho selvagem as florestas virgens do desconhecido.

Um ano depois regressou ao Brasil decidido a continuar a atividade de Paris. Contactou a editora Massao Ohno e aí conheceu, em Outubro de 1962, um jovem poeta, Roberto Piva, que estava então a publicar um livro de poemas, Paranóia, que segundo Sergio foi o primeiro no Brasil a dar expressão poética ao delírio do inferno.

Será com Piva, Raul Fiker e Cláudio Willer, todos com cerca de 20 anos, que numa primeira fase, de 1962 a 1965, se esboçou uma ação coletiva surrealista em São Paulo, no seio da qual Lima se estreou como poeta, Amore (1963). Este livro parece atualizar os poderes encantatórios da ladainha mágica tradicional e dele se poderá dizer que nunca como nas selvas dessa palavra apaixonada o casamento de Freud e Lautréamont resultou tão bem e foi tão sossegado.

Assim como assim, só em 1967 e já com novos protagonistas, como Leila Ferraz e Paulo Paranaguá, o grupo de São Paulo acabou por ver a luz naquele que foi o primeiro agrupamento surrealista no Brasil. Com apoio de Flávio de Carvalho, foi ele que promoveu a XIII Exposição Internacional do Surrealismo, também dita I Mostra Surrealista de São Paulo, com a colaboração direta do grupo de Paris.

Começou aqui o longo e ditoso memorial lusitano de Sergio. Na fase preparatória, o argentino Aldo Pellegrini lembrou-se de lhe dizer que em Lisboa estavam Mário Cesariny e os seus amigos que se dedicavam, em segredo e trabalhos forçados, à pesquisa surrealista há duas décadas bem contadas.

Tanto bastou para Lima se interessar pela cidade das casinhas, pedindo para lá colaboração. De quarentena há vinte anos, asfixiados pelo ar mefítico da ditadura, condenados à falta de reconhecimento fora de portas, os surrealistas portugueses tiveram na exposição de São Paulo a pedra preciosa da sua loucura.

Cesariny não poupou esforços em Lisboa para divulgar o evento, que foi a sua primeira grande euforia internacional, e fez todo um número do antigo Jornal de Letras e Artes (n.º 258, Dez., 1967; dir. Azevedo Martins) dedicado à mostra, à sua temática, aos seus colaboradores e ao número de estreia da revista Phala que lhe serviu de catálogo.

Desde aí e até à sua morte nunca o autor de Pena capital deixou de dedicar um lume especial a Sergio Lima, recebendo-o em casa, trocando com ele correspondência, interessando-se pelos seus trabalhos, dedicando-lhe um capítulo da antologia Textos de afirmação e combate do movimento surrealista mundial (1977) e tratando até de lhe editar um livro, Aluvião Rei (1992), em Lisboa, na editora de Vitor Silva Tavares.


A cicatriz escrita dessa amizade tatua-se hoje no livro de Mário Cesariny, Sinal Respiratório – cartas para Sergio Lima (2019), e ainda no opúsculo a três mãos Por menos, só talvez no Biafra (2020), que recolhe as cartas que cruzaram Cesariny, Vitor Silva Tavares e Lima no momento da publicação do livro deste.

Passam agora cem anos sobre o momento em que André Breton entregou na tipografia as laudas corridas do Primeiro manifesto do surrealismo – um livro que continua capaz de apagar todas as labaredas dos vários infernos.

Aderindo ao movimento em 1957, era fatal que a morte de Sergio Lima aparecesse inda ela tocada pela muito bela e enigmática estrela da aventura surrealista. Lima acabou de falecer em São Paulo a 25 de Julho de 2024. Está agora com Cesariny nesse astro real de água e oiro que é só dos poetas.


***


Acrescentamos ao presente texto dois momentos que elucidam a presença cultural de Sergio Lima no cenário internacional do Surrealismo. Primeiramente as suas respostas a uma enquete sobre a escritura automática, publicada na revista A ideia # 87/89, em 2019. Em seguida reproduzimos três cartas de Lima dirigidas a André Breton. Este material nos foi gentilmente concedido por António Cándido Franco. (FM).



SERGIO LIMA | Responde a inquérito sobre a escrita automática


Falar do pensar por imagens, processo que corresponde diretamente ao pensar analógico e por associações do mundo mágico, reenvia direto ao recurso da escrita automática que teve seus ápices contemporâneos e mais radicais no seio mesmo do movimento do Surrealismo. Falar da escrita das images parlantes, da escritura automática conforme porta e roda do desejo-desejante, é falar do surrealismo em suas obras vivas e não só como um movimento de ideias.


Desde a minha meninice, desde meus jogos e meus amores iniciais, posso dizer que me inquietava uma diferença notável, que se fazia visível para mim entre as coisas como eu via e o como os outros diziam ver, viam/viviam estas mesmas coisas. As imagens, a imagem que eu via não coincidia com aquelas vistas, descritas em situações similares pelos demais. Se não, eram incursões e aventuras da solo, individual, na vida interior de mim mesmo.

A visão das coisas, das cores dos corpos das pessoas foi se formando e se tornando um repertório essencial dos meus sentidos, do meu emocional. A vida interior é onde tudo começa, é onde se tece o destino, onde a trama das imagens começa a dar forma e dar a ver a realidade possível do maravilhoso.

Eu via de outro modo, eu via excessivamente. E vivia apaixonado pelo corpo das coisas. A minha memória emocional era a mais ecoante possível dos meus anseios e aventuras. Era como se estivesse descobrindo o mundo e o êxtase de cada imagem era uma imagem nova. Para mim foi igual aprender a ler, eu ia apreendendo o ver, aprendendo a ver mais do que o já visto, o já dado das coisas.

Como precisa o texto-manifesto Do Surrealismo em suas obras vivas, não se insistiu o bastante, nem no sentido e nem no alcance da operação à roda da escritura automática, afinal a operação que “tendia a restituir a linguagem à sua verdadeira vida.” (1) São as imagens que fazem a escrita e não ao contrário.

No caso desta escritura, o automatismo não é o das grafias, da escrita, mas sim o do psiquismo, do nosso pensar interior por imagens. É o automatismo psíquico puro que rege no Movimento as práticas de escritura-automática, as quais, sublinhe-se: – valem por vir direto dos domínios onde o desejo é rei; e assim revelar e “esclarecer os símbolos até então tenebrosos.” (2)

Continuando, André Breton lembra que, na escritura automática, “o essencial para o Surrealismo, foi convencer-se de que havia tocado com as mãos a prima materia (no sentido alquímico) da linguagem: a partir dalí, sabía-se onde busca-la e, escusa dizer, não oferecia interesse em reproduzi-la à saciedade.” O que vem corroborar o pensamento esotérico e a filosofia oculta, segundo o qual “a enunciação está na origem de tudo, é necessário que o nome germine, sem o que a palavra será falsa.” (3)

As três grandes vertentes da revolução, da vitesse do movimento dos surrealistas e seu pensamento, afinal da sua posição de vida, apresentam-se assim intituladas e nomeadas a partir da descrição dos sonhos, da escritura automática e do rasgo da collage. As três se fundem e têm como cadinho primeiro a combustão das imagens.

Na escritura automática, o automatismo do fluxo é a radical da imagem nas obras vivas do Surrealismo.

 

NOTAS

(1; 2: 3). Citações do último texto com caráter de manifesto publicado por Breton: Do Surrealismo em suas obras vivas, conforme minha tradução livre e primeira para o português no n.º 1 da Revista do Movimento Surrealista A Phala, 1967. [S.L.]




SERGIO LIMA | Cartas a André Breton


São Paulo, 1/4/1957

Senhor,

Tendo adotado as leis surrealistas e desejando segui-las, seria um grande prazer para mim manter uma correspondência com o senhor.

Essa correspondência teria como objetivo meu grande desejo de manter um contato direto com o surrealismo e também poder conhecê-lo em profundidade, saber de suas decisões recentes bem como poder debater algumas opiniões a respeito.

Considerando o automatismo, pude notar o admirável ponto já alcançado pelas obras automáticas, no mínimo, pelo que pude obter aqui, porque as dificuldades para consultas ou mesmo obter as obras surrealistas, em meu país, são enormes. O automatismo, principalmente o escrito, interessa-me sobremaneira; tenho muita vontade de conhecer as últimas conquistas teóricas e algumas referências relativas às pesquisas experimentais no campo do automatismo, se possível. Gostaria, ainda, de obter algumas orientações para seu desenvolvimento. Acredita ser possível me enviar alguns textos em português?

Poderia o senhor responder-me a todas essas questões? Eu espero, dessa forma, com todo prazer, uma resposta de sua parte.

Desculpe-me alguns erros cometidos em virtude de não conhecer ainda tão bem a escrita do idioma francês.

Queira aceitar, Senhor, meus agradecimentos antecipados e meus cumprimentos.

Sergio Lima

 

P.S. peço-lhe que me envie seu endereço para uma futura correspondência, se assim permitir.

 



***

 

Paris, 20 de outubro de 1961

Senhor Breton,

Escrevo-lhe para solicitar um encontro, visto que as atividades do grupo surrealista tomaram um lugar fundamental em minha formação e a sua posição, sendo a mesma que a minha, tenho certeza, que é da maior importância para mim estar em contato direto e participativo consigo.

Após uma série de circunstâncias favoráveis, e como estou em Paris, acredito ser este o momento de colocar-me à mais completa disposição daqueles que caminham na mesma direção que eu.

Eu espero ter a honra de ser apresentado ao senhor e conhecer meus amigos.

Queira receber, caro senhor, as minhas mais respeitosas homenagens.

Sergio Claudio de Franceschi Lima

 



***

 

São Paulo, 29/VIII/62

Caro André,

Acabo de encontrar o catálogo relativo à exposição das figuras da “deusa pássaro” sobre o qual eu já havia chamado a sua atenção mais de uma vez, durante nossas conversas no La Promenade de Vênus. Aproveito a ocasião para enviar, anexa, uma cópia para você.

Assim, você terá uma ideia precisa [*] dessas estatuetas. Além disso, é necessário ressaltar que, além do texto do catálogo, eu ainda não consegui encontrar qualquer outra documentação ou dados que permitam aprofundar a questão.

Em breve, espero entrar em contato com as pessoas que têm exemplares em São Paulo, a fim de obter, se possível, pelo menos um dossiê fotográfico preliminar sobre esse assunto e com certeza, tentar encontrar as coordenadas para um estudo preliminar.

Eu desejo enviar a você, em breve, as reproduções de alguns desses trabalhos ainda inéditos, Entre eles talvez possamos utilizar alguns em LA BRÈCHE.

Eu gostaria muito de receber notícias de nossos amigos e também receber o último número da Revista. Ficaria muito feliz em conhecer os ecos dos próximos projetos do Movimento Surrealista.

“Mil sonrisas” para Elisa e minhas homenagens a você.

Até mais,

Sergio Lima

 

[*] Notei que minha apreciação e gosto às referidas figuras podem ter interferido um pouco nas informações que passei a você.



***

 

NOTA FINAL

As cartas foram traduzidas por Leila Ferraz, a nosso pedido.

 


ANTÓNIO CÂNDIDO FRANCO (Portugal, 1956) | Ensaísta e editor. Nasceu e cresceu em Lisboa, num dos mais vetustos bairros da cidade, a Graça. Aos sete anos foi aluno de Alice Gomes. Há quase quatro décadas que está ligado ao ensino público, onde se esforça por desaprender muito do que lhe ensinaram. Coordena, edita e dirige desde 2012 a revista de “cultura libertária” A Ideia, que se publica desde 1974 e onde Mário Cesariny colaborou em vida. Tudo o que procura é poder inscrever no seu registo o que um inspirado escritor francês mandou gravar na sua lápide: Je cherche l’or du temps.




JULIA OTXOA (Espanha, 1953). Poeta, narradora y artista gráfica Entre sus últimas exposiciones : “Llocs de Pas” Espectáculo colectivo audiovisual-MACBA-Barcelona 2006, “Absinthe Review” Nueva York 2007; “New Sleepingfis Review”, Nueva York 2007; “Certamen Internacional de Fotografía Surrealista”, Eibar 2007; “Fragmentos de Entusiasmo”-Catálogo de la exposición Antología de la Poesía Visual española 1964-2006”-“Poesía Visual Española” (Antología) Editorial Calambur,Madrid,2007; “La Fira Mágica”, Exposición colectiva de Poesía Visual Ayuntamiento de Santa Susana Barcelona, 2007; “Homenaje a Manuel Altolaguirre”, Exposición Poesía Visual – Instituto Cervantes en Fez (Marruecos, 2007 ); “Miguel Hernández – Muestra de Poesía Visual” (Universidad Miguel Hernández-Elche, 2008); “Exposición libros de artista”, Museo de San Telmo San Sebastián, 2023; “Tres senderos que convergen”, Centro cultural Oquendo, San Sebastián. Julia Otxoa es la artista invitada de esta edición de Agulha Revista de Cultura.
 

 


Agulha Revista de Cultura

Número 254 | agosto de 2024

Artista convidada: Julia Otxoa (España, 1953)

Editores:

Floriano Martins | floriano.agulha@gmail.com

Elys Regina Zils | elysre@gmail.com

ARC Edições © 2024


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