1. A crítica
Em 1985, o crítico e poeta José Paulo Paes declarou: “Do surrealismo
literário no Brasil quase se poderia dizer o mesmo que da batalha de Itararé: não
houve”. [1] Isso, no ensaio “O surrealismo
na literatura brasileira” da coletânea Gregos e Baianos (Brasiliense), onde
comentava escritores que podiam ser associados a esse movimento: o narrador Adelino
Magalhães (1887-1963), catalogado como impressionista; Prudente de Morais Neto (1895-1961),
jornalista que dirigiu a revista modernista Estética com o historiador Sergio
Buarque de Holanda; e o poeta Sosígenes Costa (1901-1968), contribuindo para seu
resgate. A propósito de surrealismo em Prudente de Morais Neto e Sergio Buarque
de Holanda, cabe indagar se não foi criado um mito, endossado não só por Paes mas,
entre outros, por Valentim Facioli e Sergio Lima. A leitura da revista Estética
mostra seus dois editores interessados em primeira instância em James Joyce e T.
S. Eliot, com Prudente de Morais Neto chegando a declarar que a escrita automática
seria moda passageira.
Paes voltaria ao assunto em 1998 ao
resenhar a coletânea de entrevistas Escritura Conquistada de Floriano Martins,
utilizando a expressão “tardosurrealismo”. Sua morte, logo a seguir, impossibilitou
uma discussão que só poderia ser produtiva. Em “O surrealismo na literatura brasileira”,
também mostrou a convergência de julgamentos por figuras de primeiro plano da crítica
brasileira como Antonio Candido e Silviano Santiago.
O artigo “Surrealismo no Brasil” de
Antonio Candido (em Brigada Ligeira e outros escritos, Editora Unesp), invocado
por Paes, trata de O Agressor, romance de Rosário Fusco (1910-1977) publicado
em 1943. Espanta estar na sequência, nesse livro, do que escreveu sobre Clarice
Lispector. É como se fossem dois críticos adotando paradigmas opostos. Clarice é,
para Candido, uma ruptura com “um certo conformismo estilístico” que afetaria a
narrativa realista. Fez, portanto, revisão crítica da corrente então dominante.
Já O Agressor de Fusco ensejou reparos a uma “tendência irracionalista”
reduzida à “crise desse espírito, desintegrado pelo individualismo burguês e, em
seguida, pela crise do capitalismo”. Interessaria como “ilustração desta crise”.
Isso poderia ser assinado por um defensor do realismo socialista. É como se o Gyorgy
Lukàcs de O assalto à razão (ou A destruição da razão em uma edição
recente) tivesse momentaneamente baixado em nosso pensador da literatura.
A propósito de correntes dominantes
na crítica brasileira, suas divergências e sua convergência na rejeição do surrealismo,
a crítica formalista é bem representada por Haroldo de Campos em Teoria da Poesia
Concreta – Textos críticos e manifestos (Livraria Duas Cidades, 1975): “Evidentemente,
a poesia concreta repudia o irracionalismo surrealista, o automatismo psíquico,
o caos poético individualista e indisciplinado […] O poema concreto não se nutre
nos limbos amorfos do inconsciente, nem lhe é lícita essa patinação descontrolada
por pistas oníricas de palavras ligadas ao subjetivismo arbitrário e inconsequente”.
Subsequentemente, a adoção da semiótica,
semiologia e outros formalismos pela crítica viria acompanhada de novas recusas
do surrealismo. Por exemplo, em A falência da crítica de Leyla Perrone-Moisés
(Perspectiva, 1974), sobre Lautréamont. Acompanhavam seus mestres; mas na França
o surrealismo teve um impacto enorme, levando autores a estabelecer limites para
não serem confundidos – como na época em que Philippe Sollers e seus companheiros
da Tel Quel, então maoístas de revolução cultural, rejeitavam o surrealismo como
burguês.
Precedem tais críticas ao surrealismo
sua recusa pelo modernismo brasileiro. Especialmente, por seu principal pensador,
Mário de Andrade. Valem como manifestos o “Prefácio Interessantíssimo” e “A Escrava
que não era Isaura”, de 1922. Alertava contra os “perigos formidáveis da substituição
da ordem intelectual pela ordem subconsciente”. Proclamava, enfático: “Mas, oh bem-pensantes!
É coisa evidente: NÃO SOMOS LOUCOS…” Chamava de “erro perigosíssimo o modo
como avulta na poesia modernista a associação de imagens”. Rejeitava, liminarmente,
o que, na época, ia sendo adotado como fundamento por Breton, Aragon, Éluard ou
Max Ernst. O tom de prédica ao apontar “erros” e “perigos” mostra, em pleno calor
da Semana de 22, o programa de um modernismo bem-comportado. Ademais, Mário, Oswald
e seus companheiros da Semana de 22 desconheceram antecessores, como os poetas mais
inventivos que constituem a marginalia do simbolismo; e Sousândrade, que no século
anterior realizara tanta coisa que o modernismo iria propor. Seriam bem resgatados,
Sousândrade e marginalia do simbolismo, especialmente Pedro Kilkerry, por nossos
formalistas.
Mais tarde, Mario faria melhor – especialmente
em Macunaíma, de 1928. Mas o empreendimento de 22 fixou-se no confronto entre
formas abertas e o parnasianismo dominante, de modo diverso do surrealismo, que
deu importância ao que Breton denominou “correia de transmissão” com o simbolismo.
E, também, diverso do que sucedeu em literaturas hispano-americanas, em que vanguardistas
vieram à tona em relação direta de continuidade com o simbolismo. E nas quais o
surrealismo esteve intensamente presente, através de movimentos, publicações e poetas
extraordinários.
Os dois poetas brasileiros do século
20 de maior influência, até hoje, são Carlos Drummond de Andrade e João Cabral de
Melo Neto. Drummond rejeitava o surrealismo, embora tivesse escrito, em momentos
de distração, belos poemas de associações livres. Cabral defendeu um cartesianismo
poético: “A emoção não cria”, dizia. Sua poética voltada para a mensagem foi adotada
por gerações subsequentes.
Revisões desse tipo de julgamento
demorariam a vir. Uma delas, a coletânea Surrealismo e novo mundo, organizada
por Robert Ponge (Editora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 1999). Nela,
Valentim Facioli , que organizou Breton-Troski: por uma arte revolucionária independente
(Paz e Terra, 1985), observa, no ensaio “Modernismo, vanguardas e surrealismo no
Brasil”, a “perversão, apagamento da memória, soterramento, verdadeiro exílio das
culturas dos dominados e das obras libertárias” a propósito de marginalização de
manifestações surrealistas. Associa-a ao nacionalismo anti-cosmopolita a serviço
da “modernização conservadora e seletiva, constituídas por um moderno atrasado ou
um atraso modernizado” no Estado Novo conduzido por Getúlio Vargas. Correntes antagônicas
como integralistas e comunistas seriam componentes dessa configuração nacionalista-retrógrada.
Sérgio Lima, autor de A Aventura
Surrealista (tomo 1 pelas editoras Vozes/ Unesp/ Unicamp, 1995; tomo 2 pela
Edusp, 2010), em “Surrealismo no Brasil: mestiçagem e seqüestros”, revê cronologias
para demonstrar que houve, sim, atividade surrealista importante associada ao modernismo
brasileiro, mas convertida em história subterrânea: não só no caso de Jorge de Lima
e Mutilo Mendes, dois grandes nomes de nossa poesia, mas em outros, como os autores
que se reuniram ao redor da revista Verde de Cataguazes, Rosário Fusco, Guilhermino
Cesar e o cineasta Humberto Mauro.
Isso não significa que o exame do
surrealismo no Brasil seja um deserto bibliográfico. Há títulos como A estética
surrealista de Álvaro Cardoso Gomes (Ática, 1994) e O desconcerto do mundo:
do renascimento ao surrealismo, de Carlos Felipe Moisés (Escrituras, 2001),
com ensaios sobre Mário Cesariny e Roberto Piva, além da contribuição específica
de Floriano Martins, que será examinada à frente. Em 2001, a propósito de uma exposição
de arte surrealista promovida pelo Banco do Brasil, a revista Cult publicou um dossiê
com artigos de Contador Borges, Eliane Robert Moraes – autora de ensaios sobre o
tema e do livro O corpo impossível (Iluminuras, 2003), centrado em Bataille
mas com pertinentes comentários sobre surrealismo – e contribuição minha. Bons ensaios
acompanham a edição brasileira de O camponês de Paris de Aragon (Imago 1996),
pela tradutora Flavia Nascimento e por Jeanne-Marie Gagnebin. De Michel Löwy, A
estrela da manhã: surrealismo e marxismo (Civilização Brasileira, 2002).
Em uma publicação mais recente, a
enorme coletânea (de mil páginas) O surrealismo, de 2008 (Perspectiva), incumbi-me
do exame da poesia e poética surrealista, acaso objetivo e escrita automática (o
conjunto daria um livro autônomo). Nessa coletânea, artigos de Sergio Lima e Luis
Nazário examinando surrealismo no Brasil – o de Nazário, confrontando afirmações
minhas e de Sergio Lima. Um ensaio de Jorge Schwartz, “Surrealismo no Brasil? Décadas
de 1920 e 1930”, retomando suas contribuições sobre vanguardas latino americanas.
Um diálogo de Floriano Martins comigo, perscrutando a rejeição do surrealismo pela
crítica brasileira. Pelo que essa coletânea tem de excessivo e desigual, acabou
circulando pouco. Ficaram obliteradas contribuições como a de Maria Lúcia Dal Farra,
importante poeta, sobre surrealismo e esoterismo, e de Jorge Coli, tratando da contenda
dos intelectuais ligados à Tel Quel com surrealistas.
Histórias da literatura brasileira
tocam, de algum modo, no surrealismo. No entanto, só aparece em tópicos na recente
e enorme História da literatura brasileira de Carlos Nejar (Leya, 2011);
um deles, “O surrealismo: Claudio Willer”; outro, examinando como surrealistas a
Roberto Piva, Carlos Augusto de Lima, Floriano Martins, Péricles Prade e Sebastião
Nunes.
A partir de 2000, o meio digital passa
a ter presença decisiva. As melhores fontes sobre surrealismo talvez estejam lá.
A revista Agulha de Floriano Martins vem tratando do tema sob os mais diversos ângulos.
Derivado de Agulha, organizado por Floriano e Maria Estela Guedes, o dossiê “Surrealismo,
poesia e liberdade” na TriploV de Portugal. Surrealismo também é examinado em artigos
e dossiês em outras publicações digitais, como Zunaí de Claudio Daniel e em ocasionais
matérias em suplementos e revistas literárias, por sua vez disponíveis no meio digital.
2. Poetas e prosadores
Há dois modos de olhar o surrealismo. Um deles examina obras,
poéticas inclusive. O outro desloca o foco para o autor e para uma atitude surrealista.
Tais olhares não são excludentes, porém complementares. Mas, conforme a atenção
a um ou outro, obra ou autor, produção ou atitude, muda a história do surrealismo
no Brasil.
Tomando a poesia no sentido estrito,
como gênero literário, os dois grandes modernistas associados ao surrealismo no
Brasil continuam a ser Jorge de Lima (1893-1953) e Murilo Mendes (1901-1975). Quanto
a este, seus antecedentes estão não só no surrealismo, mas em um exasperado catolicismo.
Contudo, o rótulo de “poeta católico” reduz o alcance de uma lírica plural, na qual,
se encontra o que houve de inovador em seu tempo. Há uma linha evolutiva da “poesia
em Cristo” até o ganho em síntese e vigor de As Metamorfoses, de 1941: “Estamos
vestidos de alfabeto,/ Não sabemos nosso nome.// Cavalos brancos vermelhos/ Mastigam
o mundo:/ Olhai a sombra da terra,/ Uma enorme guilhotina.// Galopa fantasma/ Vida
contra a vida”. Poeta de imagens visualmente sugestivas, que poderiam passar por
descrições de quadros de Magritte, Delvaux, Dali e Ismael Nery, resumiu, em 1935,
uma questão à qual Breton dedicaria páginas de O amor louco em 1938: “Muro,
nuvem do pintor”.
Mesmo admitindo, como sustenta Sérgio
Lima, a precedência surrealista em Jorge de Lima, não se vê, em suas próprias declarações,
qualquer manifestação de interesse por Breton e demais surrealistas. Apontou, como
importantes em sua formação, autores que foram execrados pelo surrealismo, como
Paul Claudel; ou aos quais o surrealismo permaneceu indiferente, como Marcel Proust.
Foi, porém, não só um leitor de Baudelaire, Rimbaud e Lautréamont, como alguém que
efetivamente entendeu o alcance de suas contribuições e as incorporou: especialmente,
a ideia de que, para refazer as navegações, tema das grandes epopeias, é preciso
embarcar no barco bêbado (ou barco ébrio, ou embriagado, para alguns) de Rimbaud:
aquele cuja equipagem foi exterminada e que navega em liberdade. [2] E o Teve o período parnasiano, nativista-regionalista,
católico, onírico-surreal, até a grande síntese, Invenção de Orfeu. O onírico-surreal
está em Anunciação e encontro de Mira-Celi, série de poemas em prosa. No
Livro de Sonetos, ponto máximo do gênero em nossa literatura do século 20,
uma reflexão sobre a poesia, afim a idéias surrealistas: “Não procureis qualquer
nexo naquilo/ que os poetas pronunciam acordados,/ pois eles vivem no âmbito intranquilo/
em que se agitam seres ignorados”. São palavras que anunciam a poesia hermética
e cósmica de Invenção de Orfeu, onde reitera a ideia do poeta sonâmbulo ao
descer a um mundo arquetípico: “Minha cabeça estava em pedra, adormecida,/ quando
me sobreveio a cena pressentida.// Em sonâmbulo arriei os pés e as mãos culpados/
dos passos e dos gestos em vão desperdiçados”. Seu processo criativo permite aproximações
à escrita automática e ao sono hipnótico. Abraçando o catolicismo, ao mesmo tempo
cultuou uma religiosidade primordial, xamânica. Daí a temática do mineral, do subsolo
em Invenção de Orfeu: é descida ao inconsciente e à experiência religiosa
arcaica. E, principalmente, imagens poderosas combinadas a alusões, como nesta passagem
de “As alucinações”, de Invenção de Orfeu:
Entre livro e cavalo o homem instalou
Duas escadas e uma bússola;
Depois verificou que sendo duplas
As suas asas dúbias, duplo o voo.
Pousou na escuridão, e repousou,
Pois era o dia sete de seus súcubos.
Foi quando se exclamou: Faça-se
a luz.
E a luz dentro das trevas se formou.
Maldoror! Mal-e-horror! Ó terra
nata,
Tão empresa, tão ébria, tão perjura
E sempre e ao mesmo tempo tão amarga!
Que lume bruxuleia sobre as vagas?
Candelabro ou veleiro ou raio obscuro
Que ora sobe na proa ora se apaga?
Olhando o vivido, e não só o escrito,
é possível encontrar sincronia com surrealismo na manifestação mais significativa
associada ao Modernismo, a Antropofagia. O que Oswald de Andrade, Tarsila do Amaral
e Raul Bopp desenvolviam incluiu a acolhida a Benjamin Péret em sua vinda ao Brasil
em 1929. Preocupações do grupo antropófago convergiam com a busca do outro por Péret,
levando-o à compilação de mitos de índios, ao contato com os rituais sincréticos,
umbanda e candomblé, e a examinar episódios da nossa história, do que resultou um
livro sobre o “almirante negro” João Cândido, líder da Revolta da Chibata. [3]
Uma vanguarda intelectual e política
articulou-se, através de Péret, com o surrealismo. Incluiu nomes ligados à formação
de uma esquerda trotskista: a escritora Patrícia Galvão, a Pagu (1910-1962), Flávio
de Carvalho (1899-1973) e o crítico Mário Pedrosa (1900-1981), concunhado de Péret
(casado com a irmã de Elsie). Pagu e Flávio foram hóspedes de Péret e Elsie em Paris,
em 1934-35, acompanhando os debates que moveram Breton a escrever Position Politique
du Surréalisme. [5]
Se o presente artigo abarcasse artes
visuais, teria que examinar não só Flávio de Carvalho, criador múltiplo, mas, especialmente,
Ismael Nery e Maria Martins. E contemporâneos como Maninha Cavalcante, Leila Ferraz
e outros, além da contribuição especificamente visual de Floriano Martins e Sergio
Lima. Mas, dando atenção à coerência e integridade, o nome mais significativo do
surrealismo no Brasil é Flávio de Carvalho. Sua pintura poderia ser associada ao
expressionismo; mas suas intervenções famosas, em uma procissão acarretando um quase
linchamento em 1931, e com roupagens tropicais nos anos 50, são surrealismo autêntico,
na exteriorização e nas intenções. E também sua atuação como arquiteto, esquivando-se
ao mercado e à orientação funcionalista dominante, para concentrar-se em uns poucos
projetos. Acima de tudo, a peça Bailado do deus morto, proibida ao estrear
em 1933, resultando no fechamento do teatro, assim como, logo a seguir, teria uma
exposição fechada. Coragem, recusa da ordem estabelecida, isso sim, é surrealismo,
além da assimilação das ideias de Freud e a valorização da arte dos “alienados”.
[6] A propósito da censura a Flávio
de Carvalho, e do banimento de Péret, cabe observar que a circulação restrita do
surrealismo deve muito à repressão policial, e não só à adesão de intelectuais à
razão consciente, à realidade nacional, ao que fosse.
Sobra pouco, até os anos de 1960,
para ser indicado como surrealista na poesia brasileira. Quanto a Sosígenes Costa,
a qualificação procede, não só pela poesia exuberante e excêntrica mostrada em Iararana
(Cultrix, 1979), mas, novamente, pela conduta, ao colocar-se à margem da vida literária
instituída; daí seu resgate tardio. Caberia, no capítulo da expressão surrealista
no Brasil, a referência a Paulo Mendes Campos, esperando-se o reconhecimento de
sua poesia em prosa, de imagens e associações livres. No âmbito da geração de 45,
há autores em segundo plano, como Fernando Ferreira de Loanda e André Carneiro,
a demandarem reexame. E, principalmente, o crescimento de interesse por Manoel de
Barros (1916), surrealista declarado, com sua obra completa editada recentemente
(Leya, 2010). Expressos por um vocabulário e uma sintaxe pessoais e inventivas,
nele reaparecem o pensamento analógico e a sacralização do natural. Poeta da natureza,
do microcosmo, das pequenas coisas, assim como os herméticos neo-platônicos, ele
enxerga o universo em cada coisa; o alto no baixo, o maior no menor.
Afora isso, onde se vai encontrar
poesia surrealista no Brasil é na prosa, em uma estirpe à margem do realismo dominante.
Entre outros, em Aníbal Machado (1894-1964), crítico e narrador refinado em “Viagem
aos seios de Duília” e “O iniciado do vento”, que, expressamente, se declarou surrealista.
E Rosário Fusco, reeditado com O Agressor (Ao Livro Técnico, 2000) e o inédito
a.s.a. - associação dos solitários anônimos (Ateliê, 2003). Mas essas edições
repercutiram pouco, e o débito com relação ao anarquista de Cataguazes se mantém.
Além de maior difusão, merece biografia, o registro de sua vida movimentada.
Do elenco de prosadores, a inclusão
mais importante é a de Campos de Carvalho, por sua afinidade declarada, a narrativa
descontínua e onírica, a crítica a valores e categorias do conhecimento, a qualidade
das imagens poéticas em sua prosa, e, principalmente, a ética pessoal. Um transgressor
em A lua vem da Ásia, sobre a loucura; e Vaca de nariz sutil e
Chuva imóvel, onde há de tudo: incesto, pedofilia, assassinato, suicídio. Mereceria
figurar na Antologia do Humor Negro de Breton, com sua lírica defloração
sobre túmulos e tantas outras passagens memoráveis nos enredos lacunares, que parecem
não levar a lugar algum, e que, em O púcaro búlgaro, seu último livro, compõem
a viagem a lugar algum. Promove o encontro de Rimbaud, Lautréamont e Machado de
Assis. Celebra a autonomia da palavra, separada de seus sentidos habituais para
ganhar novos significados, em uma conversão do abstrato em concreto, e, reciprocamente,
abstração do concreto, subvertendo-os. Escrevia espontaneamente, proibindo-se de
refazer textos – o oposto de outro autor da mesma família, Murilo Rubião, que nunca
parou de reescrever-se. É um escândalo a obra de Campos de Carvalho haver desaparecido
de vista, sem reedição, por três décadas, após ele resolver sair de cena e até a
publicação de sua Obra Reunida (José Olímpio Editora, 1996).
3. Contemporâneos
Na década de 60 reaparece a identificação de poetas brasileiros
com o surrealismo. O que houve nesse período da nossa literatura obriga a rebater
a ideia de um surrealismo tardio, o “tardosurrealismo”. Vistas a partir do século
21, coordenadas temporais tornam-se relativas. Mário Cesariny e seus companheiros
promoveram agitações em Portugal uns dez ou quinze anos antes de nós nos movermos
nessa direção – e até depois: as reuniões no Café Gelo foram até 1963, quando já
promovíamos anarquia por aqui. Ao lermos Le Surrealisme Même e La Brèche (onde seríamos
resenhados, Sérgio Lima, Roberto Piva e eu, em 1965), [7] ao comprarmos os volumes da Oeuvre Complète de Artaud à medida
que saíam pela Gallimard, éramos atualizados, com relação ao ambiente cultural brasileiro,
e não atrasados. Até hoje, promover a leitura de La Liberté ou l’amour! de
Robert Desnos ou Sens-plastique de Malcolm de Chazal é trazer à tona o que
o Brasil desconhece; o novo, independentemente da publicação originária.
Já foi observado o caráter negativo
do conjunto de 20 ou 30 poetas que figuram como Geração 60 em São Paulo: nem acadêmicos,
nem concretistas, nem de orientação nacional-populista. Nada de estranho que o mais
radical deles, Roberto Piva (1937-2010), mostrasse a poesia mais impregnada de surrealismo,
desde sua estreia em livro com Paranóia (Instituto Moreira Salles, 2000 e
2009; primeira edição, Massao Ohno, 1963). Tal radicalidade já havia sido expressa
em 1962, nos manifestos distribuídos em folhas de mimeógrafo (publicados nas Obras
Reunidas da Globo Livros, três volumes de 2005 a 2008): “Nós nos manifestamos
contra a aurora pelo crepúsculo, contra a lambreta pela motocicleta, contra o licor
pela maconha, contra o tênis pelo Box” e também “contra a mente pelo corpo” e “contra
a lógica pela Magia”. São o marco inicial no Brasil de uma relação com surrealismo,
não apenas no plano da realização artística, mas da discussão da relação entre poesia
e sociedade.
Sérgio Lima (1939) pode ser vinculado
ao surrealismo como movimento organizado. Ao lançar seu primeiro livro, Amore
(Massao Ohno, 1963), vinha de Paris e uma participação no movimento francês. Seus
esforços para promover atividade surrealista no Brasil, ao longo de décadas, resultaram
em reuniões e manifestações entre 1963 e 65, com a participação minha e de Piva,
entre outros; a seguir, com Leila Ferraz, Raul Fiker e Paulo Paranaguá, em uma Exposição
Internacional do Surrealismo em 1967 e na publicação coletiva A Phala (que
trouxe Cesariny e o argentino Aldo Pellegrini). Intervenções e atividades entre
1990 e 1996 incluíram um manifesto, com artistas plásticos e os poetas Juan Sanz
Hernandez e Floriano Martins. Contribuíram para reduzir o alcance das iniciativas
de Lima e da sua contribuição como poeta (especialmente, Alta licenciosidade
de 1985) e artista plástico o tratamento não só autorreferente, mas permeado por
afirmações incorretas, como ao declarar que a dissolução do grupo de 1963 ocorreu
“em função de divergências que passam a ter um certo vulto (sobretudo por parte
de Piva e Willer, mais preocupados com a beat generation e o pop art)” [8] – isso, sem minimamente levar em conta
o que Piva e eu teríamos a dizer (bastante) sobre o que ocorreu. Apresentar-se como
instância legitimadora é formar um clero ou burocracia surrealista; e tomar como
sua representação grupos e movimentos que, nesta altura (e não só no Brasil), podem
guardar a mesma relação com o surrealismo histórico (que, ao constituir-se, reuniu
os melhores poetas franceses daquela geração e alguns dos principais artistas visuais
do século XX) que os clubes positivistas com o positivismo do século 19 ou lojas
maçônicas atuais com aquelas do tempo de Elias Ashmole.
Vinculadas a esse ciclo, publicações
de Leila Ferraz e Raul Fiker (O Equivocrata, Massao Ohno Editor, 1976, reeditado
pela Córrego em 2017), a riqueza imagética de Juan Sanz Hernandes (Biografia
a três, Feira de Poesia, 1979; Horas queridas, Massao Ohno, 1985) e de
Péricles Prade, autor de uma obra extensa na qual explora todos os matizes e possibilidades
da simbologia esotérica, ora tratando-a como discípulo, ora ironicamente – e apresentando-se,
categoricamente, como um seguidor de Marcel Duchamp.
A publicação de Ser Infinitas Palavras
- poemas escolhidos e versos inéditos (Azougue Editorial, 2001) de Afonso Henriques
Neto (1944), do ensaio e coletânea Cidade vertigem (Azougue, 2005) e Uma cerveja no dilúvio
(Sete Letras, 2011) mostram-no à margem da poesia marginal e demais tendências nas
quais é distribuída a poesia brasileira. Sua visualidade, evidente em títulos como
“Abismo com violinos”, “Piano mudo”, “A água não envelhece”, “Tímpanos da neblina”
permite observar que, se Francisco Alvim teria sido o Manuel Bandeira da geração
“marginal”, então essa tem em Afonso Henriques Neto seu Murilo Mendes. Mas um Murilo
sem catolicismo, sem nada além da reafirmação do poder transformador da poesia.
Avesso à política literária, é reconhecido, porém pouco citado.
A entrada em cena de Floriano Martins
(1957), desde a publicação da coletânea Escritura conquistada – Diálogos com
poetas latino-americanos (Letra e Música, 1998) e reuniões de seus próprios
poemas – Alma em chamas (Letra e Música, 1998), Estudos de pele (Lamparina,
2004) e os recentes Abismanto (Sol Negro, 2012) em parceria com Viviane de
Santana Paulo e o bilíngue Fuego en las cartas / Fogo nas cartas (publicado
na Andaluzia) – além de ensaios e antologias de surrealismo na América (O Começo
da busca, Escrituras, 2001, Un nuevo continente – Antologia del Surrealismo
en la Poesía de Nuestra América, Monte Ávila, 2008), e, ultimamente, de tudo
o que tem saído por seu próprio selo editorial, ARC, inclusive a reunião de poemas
A vida inesperada, de 2015, além das obras resultantes da produtiva parceria
com o artista plástico Valdir Rocha – tudo isso possibilita considerações adicionais.
Agitar esses temas não é apenas inclinação pessoal, evidente nos poemas de Floriano.
É questão, principalmente, de honestidade intelectual, que se traduz na orientação
dada à Agulha Revista de Cultura. Reparar omissões, cobrir lacunas, leva
a examinar surrealismo.
O elenco de poetas que pode ser associado
ao surrealismo no Brasil ultrapassa os citados aqui. Deve-se deslocar o foco de
um surrealismo militante, episódico, para uma configuração de obras pautadas pela
recusa de amarras formalistas. Isso significa valorizar, entre os que já pertencem
à “geração 90”, a prosa poética de Weydson Barros Leal (A música da luz,
edições Bagaço, 1997); aquela de Contador Borges (Angelolatria, Iluminuras,
1998, O reino da pele, Lamparina, 2003), tradutor e estudioso de Nerval,
Sade e Bataille; a tradição hermética retomada de modo refinado por Jorge Lúcio
de Campos (À maneira negra (Sete Letras, 1997). E a lírica de Sérgio Cohn,
desde Os lábios dos afogados, (Nankin, 1999) até O sonhador insone
(Azougue, 2006), associada à orientação da revista por ele dirigida, Azougue, e
à subsequente editora. Declaradamente influenciado por Piva, a quem divulgou em
várias ocasiões, a ele também cabe o termo beat-surreal.
A circulação de obras poéticas no
Brasil, beneficiada pela divulgação adicional no meio digital e edições mais viáveis
em livro, permite observar que, quase 90 anos após o manifesto de Breton, o surrealismo
compõe um hibridismo, junto com beats, outras correntes e autores; em especial,
com a leitura de Piva. Isso vale para autores que comentei recentemente, [10] como José Geraldo Neres e sua prosa
onírica; Chiu Yi Chih; o trio Érica Zíngano, Renata Huber e Roberta Ferraz; Augusto
de Guimarães Cavalcanti, com o vertiginoso Fui à Bulgária procurar por Campos
de Carvalho (Sete Letras, 2012), além de sua recente tese sobre surrealismo
em Campos de Carvalho, Flavio de Carvalho e Jorge de Lima. E, entre outros, Fabrício
Clemente, com Congresso espiritual dos Ranúnculos (edições Ricochete, 2013)
e dos recentes Jeanine Will com Caminhão de mudança (Córrego, 2018) ou Diogo
Cardoso com Sem lugar a voz. Não se constituem em grupo ou coletivo – mas
interagem, inclusive através de poemas coletivos, estimulados por Paulo Sposati
Ortiz, autor de A diferença do fogo.
O ano de 2012 teve as bem-sucedidas
encenações de São Paulo Surrealista 1 e 2 pelo Teatro do Incêndio de Marcelo Marcus
Fonseca: a primeira, imaginando Breton em São Paulo e focalizando seu reencontro
com Artaud; a segunda, homenageando Piva. Completando, o livro de poemas do encenador,
Da terra o paraíso (Kazuá, 2013).
Tais publicações e acontecimentos
justificariam otimismo quanto à circulação, não apenas do surrealismo histórico,
mas do que lhe dá sentido: a rebelião, a adesão à poesia como modo de transformar
o mundo?
4.
Um pouco mais sobre Surrealismo no Brasil
Complementa o
livro A estrela da manhã – Surrealismo e marxismo, de Michael Löwy (Editora
Civilização Brasileira, 2000) um texto de Sergio Lima, Notas acerca do movimento
surrealista no Brasil (da década de 1920 até aos dias de hoje), disponível na
Internet em TriploV, www.triplov.com/surreal/sergio_lima.html.
Sergio Lima é qualificado para falar sobre surrealismo em geral, e no Brasil
em especial. Pode confundir sua biografia e currículo com o tema, como o faz neste
depoimento, pela participação em atividades surrealistas e por um extenso conhecimento
do assunto. É, no mínimo, uma referência bibliográfica importante, em acréscimo
ao que criou em poesia e artes visuais.
Mas seu relato é distorcido. Em sua ótica, surrealismo no Brasil tem duas
fases distintas: antes e depois dele, Sergio Lima.
Na primeira fase, até por volta de 1960, a abordagem é inclusiva, ao tratar
do que chama de surrealismo difuso. Comete exageros. Juntar, como faz, na
mesma frase e na mesma sequência Elsie Houston-Péret e Pagu, e Fernando Mendes de
Almeida, A. J. Ferreira Prestes, Ascânio Lopes, Rosário Fusco, Livio Xavier, Osório
César, Jamil Almansur Haddad e Raguna Cabral, não passa de enumeração caótica. É
reescrever história de modo assemelhado ao “método confuso” criado por Mendes Fradique.
Espera-se que as relações com surrealismo dessas e outras personalidades também
elencadas (Wagner Castro, Eros Volusia, Albino Braz, Febrônio Índio do Brasil, Raul
Bopp, Tarsila do Amaral) sejam esclarecidas nos anunciados volumes seguintes de
seu A Aventura Surrealista, ou na publicação de sua tese de doutoramento.
A propósito, que estranho: por que cargas d’água não consta, no relato autobiográfico
de Sergio, tão detalhado, a tese que defendeu na USP em 1998, Surrealismo: polêmica
de sua recepção no Brasil modernista, orientada por Valentim Facioli, por sua
vez autor de obra sobre a conexão Breton-Troski, e que foi aprovada com louvor?
Não consta, também, sua participação nas duas substanciosas coletâneas organizadas
por Robert Ponge, professor na UFRGS, Organon 22, de 1994, dedicada a Aspectos
do surrealismo, e Surrealismo e novo mundo, de 2001, publicadas pela
Editora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Parece que, para Sergio Lima,
apresentar-se como surrealista militante o obriga a omitir seus estágios no surrealismo
universitário.
Já na segunda fase, pós-SL, só recebe ingresso para o mundo surreal quem
participou de atividades com ele, Sergio Lima. Evidentemente, todos têm o direito
de valorizar seu trabalho e dar destaque à sua atuação. Ninguém negaria sua condição
de porta-voz e avatar surrealista; menos ainda, deixaria de reconhecer tudo o que
ocorreu por sua iniciativa. Mas não havia necessidade de alterar datas e falsear
outras informações.
E chega ao seguinte: Sucedendo a este núcleo inicial, e em função de divergências
que passam a ter um certo vulto (sobretudo por parte de Piva e Willer, mais preocupados
com a beat generation e o pop art), assumo de vez a liderança e, com as novas aderências
de Fiker e Leila Ferraz, mais Zuca Saldanha e Paulo Antônio Paranaguá, vindos do
Rio de Janeiro, organizo o primeiro grupo surrealista S.Paulo/Rio, cuja vida breve
- 1965 a 1969 - não deixou de ser pródiga de realizações.
Não. Decididamente, não. Essas datas estão erradas. Paranóia, escrito
no final de 1961 e começo de 1962, foi lançado em abril ou maio de 1963, e não em
62. Sergio Lima nos foi apresentado por Roberto Piva depois disso, não me
lembro se em maio ou junho de 1963 – fazia frio e garoava naquela noite que se estendeu
pela madrugada afora, em que pela primeira vez nos reunimos. Enfim, Paranóia
de Roberto Piva não tem qualquer relação com atividades surrealistas por iniciativa
de Sergio Lima. Tudo o que há de surrealismo na poesia de Piva (bastante) é por
conta dele mesmo, sem dever nada a Sergio Lima ou a quem for, exceto à sua própria
condição de leitor voraz e à sua inquietação e talento.
E a publicação de Piazzas de Piva e do meu Anotações para um Apocalipse
foi em outubro de 64. Nós dois, Piva e eu, nos afastarmos de surrealismo porque
teríamos passado a nos interessar por beat, é ficção, fantasia pura. Tanto
comprávamos La Brèche na Livraria Francesa (entre muitas outras coisas) quanto
recebíamos as edições beat da City Lights, vindas de San Francisco; e isso
bem antes de Sergio Lima entrar em cena. Quando nos procurou, sabia disso. A descoberta
epifânica de Allen Ginsberg é evidente já na Ode a Fernando Pessoa de Piva,
do final de 1961 ou começo de 1962. Há intertexto de Ginsberg em Piva em Paranóia,
obra especialmente importante, que aos poucos vai sendo reconhecida como marco de
renovação da poesia brasileira. Piazzas, justamente, poderia ser tido como
obra mais "surrealista" de Piva, se interessasse catalogar desse jeito.
Enfim, quanto a Roberto Piva e a mim, vínculos com surrealismo são aqueles apontados
na bibliografia crítica já existente, e, principalmente no que temos a dizer e já
dissemos a respeito.
Há mais para corrigir na cronologia de Sergio. O grupo, com reuniões regulares
em um bar, durou alguns meses. Logo depois do necrológio distribuído na abertura
da Bienal de São Paulo, em 1963, dispersou-se. Mas continuamos a nos encontrar,
inclusive para falar de surrealismo. Em 1965, houve reuniões regulares no ateliê
de Wesley Duke Lee. A propósito, ser detido pela polícia e ir parar em delegacia,
isso não poderia ser atividade surrealista? Em 1965, viajamos - Piva, Sergio, Argos
Machado e eu - até Nova Friburgo, no estado do Rio de Janeiro, a convite de um grupo
de Cataguazes de tendência anarquista, encabeçado por Paulo Bastos Martins, que
nos havia sido apresentado por Sergio, para participar de manifestações, que incluíam
projeções de L’Age d’Or, encenações de Ionesco, desconstruindo-o, exposição
de quadros, venda de livros. Houve emissões radiofônicas que alarmaram a cidade,
fazendo que a programação desaguasse na delegacia local. Durante algumas horas,
permanecemos diante de um delegado perplexo, tentando resolver o que fazer com a
trupe. Felizmente, nos liberou. É daqueles episódios que me fazem rir sozinho quando
me lembro dele. Que pena então não haver vídeo. Que erro, não levar sempre a máquina
fotográfica e gravador.
Em La Brèche – Action Surréaliste nº 8, de fevereiro de 1965,
saiu, graças aos bons ofícios de Sergio, uma nota sobre Le surréalisme a São
Paulo, declarando que, com Paranóia de Roberto Piva, Amore de
Sergio Lima e meu Anotações para um Apocalipse, pela primeira vez o Brasil
dispunha de obras cujos autores se reclamam abertamente do surrealismo. O
trecho dedicado a Anotações para um Apocalipse enriquece meu currículo de
modo hilariante: O autor dispõe de uma formação científica muito livre e as experiências
que lhe deixaram uma vida violenta e o hábito dos tóxicos. Francamente, não
merecia tanto. A referência a essas publicações em La Brèche, obviamente
omitida por Sergio em seu relato, basta para desmontar toda a sua cronologia.
Em um 6 ou 8 de fevereiro de 1966, Sergio Lima me convidou para almoçar –
em companhia de Leila Ferraz e Paulo Paranaguá – em um restaurante chinês no bairro
da Liberdade, para expor como seria a Mostra Surrealista Internacional que acabou
tendo lugar em 1967. Não quis participar, por achar que Sergio centralizava demais.
Já estava tudo resolvido, pronto na cabeça dele, sem admitir qualquer discussão
ou sugestão. Pelo mesmo motivo, outros convidados não se interessaram. O grupo então
formado – Sergio, Leila, Fiker e Paranaguá – logo se dissolveu. Existiu em função
do colossal esforço de preparação daquela mostra e da edição de A Phala.
Encerrada a mostra, cada qual foi para seu lado.
Importa questionar, no modo Sergio Lima de escrever história, como ele passa
ao largo de tantas obras e autores recentes, das últimas décadas, que dialogam com
surrealismo. De 1980 para cá, houve crescimento gradativo da circulação, recepção
e relação com surrealismo no Brasil. Mas Sergio, confinado ao paroquialismo, pouco
tem a ver com isso. Em nome de uma ortodoxia, acaba por fazer o mesmo que critica
na recepção brasileira ao surrealismo, ignorando manifestações.
Na obra de Breton, é freqüente o uso da expressão diálogo. Seus elogios
a contemporâneos e autores mais novos – por exemplo, a Malcolm de Chazal, Aimé Césaire
ou Frida Kahlo –, foram pela qualidade do que faziam, e não pela disposição de participarem
de atividades, grupos ou movimentos surrealistas. Seu foco se dirigia, de modo muito
honesto, em primeira instância para o valor. Frida Kahlo não queria saber
de surrealismo, e o que interessou a Breton foi ela ser uma extraordinária artista.
Essa dimensão do valor desaparece nos elencos de surrealistas preparados por Sergio.
Interessa-lhe apenas, em uma versão particular da política literária, se concordaram
em compor grupos com ele. O que há nas obras nunca é analisado ou discutido.
A meu ver, Juan Sanz Hernandes merece qualificação como surreal, não por
ter freqüentado reuniões no ateliê de Lia Paes de Barros por volta de 1990, mas
pela imagética torrencial em Biografia a Três e Horas Queridas. Raul
Fiker tem que figurar em catalogações do que houve desde 1960, pela densidade de
O Equivocrata, obra que ainda não teve a leitura que mereceria, e não por
haver colaborado na montagem da mostra de 1967. E, se alguém quiser saber sobre
relação com surrealismo, na versão militante ou não, que pergunte a eles.
Quanto a mim, e à minha relação com grupos e movimentos surrealistas, no começo de 1968, convidado por Paulo Paranaguá, fui a uma das reuniões na Promenade de Venus, em Les Halles. Em seguida, fomos ao apartamento de Vincent Bounoure. Divergências sobre geração beat, que ele não admitia de modo algum, resultaram em uma discussão exaltada, de algumas horas. Grupo surrealista francês fez bem em encerrar-se. Mostrava-se paroquial e epigonal. Se fosse para tomar posição nas ramificações e versões do surrealismo, teria sido mais próxima àquela de Alain Jouffroy e Jean-Jacques Lebel, que nunca viram surrealismo e beat como excludentes. Como tradutor de Allen Ginsberg, de Lautréamont, de Artaud, autor de um sem-número de textos sobre Breton e surrealismo, e de poemas, inclusive em escrita automática, não concebo antagonismo entre esses campos, respeitadas, é claro, suas diferenças, a integridade e especificidade de cada um. O antagonismo é com relação à ordem estabelecida, ao mundo em que vivemos. Isso, na perspectiva do prosseguimento da rebelião romântica, e da manutenção de seu ímpeto revolucionário.
NOTAS
1. Confronto entre
insurgentes e tropas governistas durante a revolução de 1930, na localidade de Itararé,
fronteira de São Paulo e Paraná, que não ocorreu - governistas desistiram do combate
e abriram caminho para os liderados por Getulio Vargas.
2. Conforme bem
sustentado na copiosa produção ensaística de Luciano Marcos Dias Cavalcanti, especialmente
no livro Metamorfoses de Orfeu: a 'utopia'
poética na lírica final de Jorge de Lima. São Paulo/Belo Horizonte: Todas as Musas/FAPEMIG, 2015. E na boa dissertação
de mestrado de Bianca Ribeiro, O simbolismo na poesia de Jorge de Lima, UNESP –
Araraquara, 2012.
3. Em 1910, João
Cândido Felisberto liderou uma revolta de marinheiros, diretamente inspirada naquela
do Encouraçado Potemkin dois anos antes, contra maus tratos, especialmente a aplicação
de açoites como punição.
4. Um dossiê sobre
Péret no Brasil na coletânea Amor sublime (Brasiliense, 1985), organizada
por Jean Puyade, tradução de Sergio Lima e Pierre Clement. Um relato detalhado dessa
estada por Jean Puyade em “Benjamin Péret: um surrealista no Brasil (1929-1931)”,
disponível em www.oolhodahistoria.ufba.br/artigos/benjamin-peret-surrealista-brasil-jean-puyade.pdf
5. Conforme Pagu
- Vida e Obra, de Augusto de Campos, Brasiliense, 1982.
6. Conforme apontado
por Sérgio Lima, “Os anos modernistas de Flávio de Carvalho”, revista Xilo,
n. 1, Fortaleza, Ceará, setembro de 1999.
7. Le surréalisme a São Paulo,
nº 8 de La Brèche - Action Surréaliste, novembro de 1965.
8. Em www.triplov.com/surreal/sergio_lima.html
. Dei um tratamento mais detalhado a esse tipo de interpretação em www.triplov.com/willer/2006/surrealismo-marxismo.htm
9. Registrado em
http://odorsodarainha.wordpress.com/2012/02/28/memoria-grupo-decollage-a-convocacao-dos-cumplices/
CLAUDIO WILLER (Brasil, 1940-2022). Poeta, ensaísta, tradutor. Como poeta, distingue-se pela ligação com o surrealismo e a geração beat. Como crítico e ensaísta, escreveu em vários periódicos brasileiros. Seus trabalhos estão incluídos em antologias e coletâneas, no Brasil e em outros países, além de uma bibliografia crítica, formada por ensaios em revistas literárias, resenhas e reportagens na imprensa. Ocupou cargos públicos em administração cultural e presidiu, por vários mandatos, a União Brasileira de Escritores. Coeditou, com Floriano Martins, a Agulha Revista de Cultura, de 1999 a 2009. Ministrou inúmeros cursos e palestras e coordenou oficinas literárias em universidades, casas de cultura e outras instituições.
JULIA OTXOA (Espanha, 1953). Poeta, narradora y artista gráfica Entre sus últimas exposiciones : “Llocs de Pas” Espectáculo colectivo audiovisual-MACBA-Barcelona 2006, “Absinthe Review” Nueva York 2007; “New Sleepingfis Review”, Nueva York 2007; “Certamen Internacional de Fotografía Surrealista”, Eibar 2007; “Fragmentos de Entusiasmo” - Catálogo de la exposición Antología de la Poesía Visual española 1964-2006”-“Poesía Visual Española” (Antología) Editorial Calambur,Madrid,2007; “La Fira Mágica”, Exposición colectiva de Poesía Visual Ayuntamiento de Santa Susana Barcelona, 2007; “Homenaje a Manuel Altolaguirre”, Exposición Poesía Visual – Instituto Cervantes en Fez (Marruecos, 2007 ); “Miguel Hernández – Muestra de Poesía Visual” (Universidad Miguel Hernández-Elche, 2008); “Exposición libros de artista”, Museo de San Telmo San Sebastián, 2023; “Tres senderos que convergen”, Centro cultural Oquendo, San Sebastián. Julia Otxoa es la artista invitada de esta edición de Agulha Revista de Cultura.
Agulha Revista de Cultura
Número 254 | agosto de 2024
Artista convidada: Julia Otxoa (España, 1953)
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