É como se os anjos
ejaculassem sobre nós.
HARLEY QUINN
Andar caminho errado
pela simples alegria
de ser.
BELCHIOR
As noites
com seus requebros nem sempre dizem a que horas abrirão as portas para o acaso.
Velhos clientes ignoram a rapidez quase estática com que o tempo muda de roupa e
são capazes de perder a própria vida na crença de que seus lugares estão marcados
no salão dos pequenos vícios. Há aqueles que defendem a presença indisfarçável da
inspiração para a criação, por exemplo, de um poema. Um desses raros, outro dia
confessou: Eu não creio em inspiração, mas
sim na loucura irrefreável dos seis sentidos. Era capaz de escrever um romance
inteiro ou uma saga em versos, deslocando os tempos dos verbos e se recusando a
aceitar as leis da física. Tínhamos que abrir com cuidado o seu caderno de manuscritos,
sob o risco de palavras saltarem fora das páginas. Ao final, ele costumava mudar
de lugar dois ou três substantivos previamente pensados, que cuidava de repetir
aleatoriamente ao longo da escrita. Era preciso dar alguma atenção a esses personagens
que surgiam à revelia da realidade. A vida de cada um de nós tem uma carta marcada
que acredita em destino. Observando bem o que tem se passado com a história, essas
vacilações incontidas são a causa de todo o destempero humano. Sem a presença do
destino as religiões não durariam dois segundos. Por sorte as noites não são à prova
de imprevistos. Este último reduto da alegria de viver. O diapasão de orgasmos geniais
vividos por seres que estão além de si mesmos. As palavras que desventramos de um
livro qualquer escolhido ao acaso podem conter – em alguns casos esta é uma verdade
dilacerante – uma espécie de último suspiro que nos faz recobrar o compassivo devaneio
que por vezes deixamos fora de si, como uma pele que restou no preparo de uma tela
que nos desafiasse a pintar em seu íntimo as horas desfeitas de nossos silêncios
inconclusos.
Ouvi dizer
que as lágrimas caem no momento certo, guiadas por um pressentimento que não falha
nunca. Elas distinguem as dores, reservam a cada uma delas uma dose suficiente para
contornar a circunstância. Imagine se as vanguardas tivessem se ocupado de dar vida
aos objetos, se as máquinas do Futurismo fossem personagens humaníssimos, ou se
o inconsciente do Surrealismo fosse uma dama sagaz que em seu bordel cuidasse das
relações sexuais entre todas as coisas… Alguém poderia indagar: como é possível
encontrar a própria sina em meio ao turbilhão de dispositivos fora de controle,
mercadorias extraviadas, matérias dissipadas? Atiçamos o olhar no alcance de seu
enlace com o infinito e o que vemos é uma feira imensa de desígnios danificados.
No mais amplo predomínio da agonia, despótica ausência de significado. Creio que
todos já nos acostumamos com a vida em seu estupor inconsciente. O bordel ainda
é um lugar sagrado para aqueles que não reconhecem o que perderam em sua travessia
diária de pequenos favores. Talvez Nuria Schimmel tenha razão: a arte não traduz
mais uma reação ao tempo e sim o próprio curso de miseráveis atavismos que foram
sendo tatuados em nossa alma. Fechar tudo
– gritam as portas desencontradas, em meio à avalanche de repetições que produz
um bordão flácido. Fechar a palavra, não deixar o destino açoitar o abismo. Quem
sabe se trocarmos o valor de algumas palavras entre si, a intempérie de seus símbolos,
e assim fôssemos surpreendidos por um ritmo que, mesmo discrepante, gelasse por
dentro e fizesse rachar o núcleo de suas perversões. Deuses com suas varinhas rascunham
fábulas indescritíveis na beira da praia, depois apagam tudo com sua urina de sal.
Os deuses são os monstros da infância. São sádicos e fazem as crianças acreditarem
em um mundo onde o bem possa vencer o mal.
As palavras
se perdem, indispostas, em uma vertigem transfigurada. Talvez por ali encontremos algum caminho certo, uma delas arrisca o
comentário fugaz. O horizonte a contemplava do alto de uma página impressa ao contrário.
O cabide dos tormentos vaga pela casa vazia à procura de uma outra palavra para
a agonia que lhe aflige. Há uma cumeeira de sonhos que poucos se atrevem a acordar.
Em certas noites os pesadelos se disfarçam e diante de um gesto inadvertido a vigília
se sente eletrificada e dificilmente retornará a seu ninho. As vestes se dissipam.
Não há mais corpos. Apenas vultos em desalinho habitam os casebres em chamas dessas
noites. Era preciso contar os carneiros dessas horas angustiadas. Quando vimos a
primeira mostra de um loop infinito em um museu de sombras constatamos que a partir
daquele momento os horizontes perderam a sua função mágica. Não há dúvida, os egos
vão sendo estraçalhados pelos spots. A natureza humana se perde em meio ao furor
de sua constante perda de identidade. A vivência não conta. Somos todos despidos
da guarda sagrada de um leviatã inominável. O serviço social bate à porta desde
cedo exibindo seu campo de influência, as cartas com letra invisível que atestam
o comando intransferível de uma insuspeita verdade absoluta. Não damos jamais pela
conta do quanto a nossa alma foi esmagada por essa verdade. Não sentimos nada. A
vida nos atola em sua matriz de falsificações, de modo que até mesmo a ausência,
a morte, o rompimento de um amor, nada… com que tamanha eficiência o mundo se torna
inacreditável. As dores inexplicáveis, o parto, a morte acidental, o rapto, o núncio
que prega os verbos atônitos, as luzes, as luzes, as palavras se escondem nas luzes,
podem ser aflitas ou reveladoras, contidas ou alarmantes, mas sempre nas luzes.
Eu tive um sol que requebrava a cada instante, o meu olhar ia acompanhando o que
parecia um caudal de vertigens. Não a vertigem solar, mas a minha, a minha inquietude
de compreender o significado daquele movimento incansável.
Um dia
alguém psicografará uma trama que será a realidade aceitável de seu tempo. Em nosso
presente instante os anjos ejaculam sobre nós pela simples alegria de ser. Não sei
até quando resistiremos a esse abuso de improcedência. Não sei o meu nome. Quando
nos falamos através desse canal intangível a nossa voz se converte em uma multidão
de formas. Não sei se é tão fácil chegar a tão inimaginável epigrama. O fato é que
quando estamos aqui, não importa quantos somos, nada no mundo parece estar em lugar
melhor do que em nosso casarão imaginário. A chuva lá fora, os deuses, o baralho
das impropriedades, as ocasiões imprevistas em que acabamos por desaparecer sob
a tempestade. Não há nenhum mundo aqui. Tudo expira no exato instante em que o imaginamos.
O desafio que aprendeu nosso nome é o mesmo que serve para qualquer um de vocês.
Onde diabos vocês se meteram quando o que mais precisavam era provar que haviam
descoberto um modo de ser? Parece fácil. Talvez seja. Talvez seja o mais valioso
desafio da existência. Agora é com vocês.
FLORIANO MARTINS (Fortaleza, 1957). Poeta, editor, dramaturgo, ensaísta, artista plástico e tradutor. Criou em 1999 a Agulha Revista de Cultura. Coordenou (2005-2010) a coleção “Ponte Velha” de autores portugueses da Escrituras Editora (São Paulo). Curador do projeto “Atlas Lírico da América Hispânica”, da revista Acrobata. Esteve presente em festivais de poesia realizados em países como Bolívia, Chile, Colômbia, Costa Rica, República Dominicana, El Salvador, Equador, Espanha, México, Nicarágua, Panamá, Portugal e Venezuela. Curador da Bienal Internacional do Livro do Ceará (Brasil, 2008), e membro do júri do Prêmio Casa das Américas (Cuba, 2009), foi professor convidado da Universidade de Cincinnati (Ohio, Estados Unidos, 2010). Tradutor de livros de César Moro, Federico García Lorca, Guillermo Cabrera Infante, Vicente Huidobro, Hans Arp, Juan Calzadilla, Enrique Molina, Jorge Luis Borges, Aldo Pellegrini e Pablo Antonio Cuadra. Criador e integrante da “Rede de Aproximações Líricas”. Entre seus livros mais recentes se destacam Un poco más de surrealismo no hará ningún daño a la realidad (ensaio, México, 2015), O iluminismo é uma baleia (teatro, Brasil, em parceria com Zuca Sardan, 2016), Antes que a árvore se feche (poesia completa, Brasil, 2020), Naufrágios do tempo (novela, com Berta Lucía Estrada, 2020), Las mujeres desaparecidas (poesia, Chile, 2022) e Sombras no jardim (prosa poética, Brasil, 2023).
JULIA OTXOA (Espanha, 1953). Poeta, narradora y artista gráfica Entre sus últimas exposiciones : “Llocs de Pas” Espectáculo colectivo audiovisual-MACBA-Barcelona 2006, “Absinthe Review” Nueva York 2007; “New Sleepingfis Review”, Nueva York 2007; “Certamen Internacional de Fotografía Surrealista”, Eibar 2007; “Fragmentos de Entusiasmo”-Catálogo de la exposición Antología de la Poesía Visual española 1964-2006”-“Poesía Visual Española” (Antología) Editorial Calambur,Madrid,2007; “La Fira Mágica”, Exposición colectiva de Poesía Visual Ayuntamiento de Santa Susana Barcelona, 2007; “Homenaje a Manuel Altolaguirre”, Exposición Poesía Visual – Instituto Cervantes en Fez (Marruecos, 2007 ); “Miguel Hernández – Muestra de Poesía Visual” (Universidad Miguel Hernández-Elche, 2008); “Exposición libros de artista”, Museo de San Telmo San Sebastián, 2023; “Tres senderos que convergen”, Centro cultural Oquendo, San Sebastián. Julia Otxoa es la artista invitada de esta edición de Agulha Revista de Cultura.
Agulha Revista de Cultura
Número 254 | agosto de 2024
Artista convidada: Julia Otxoa (España, 1953)
Editores:
Floriano Martins | floriano.agulha@gmail.com
Elys Regina Zils | elysre@gmail.com
ARC Edições © 2024
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FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
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