quinta-feira, 15 de agosto de 2024

FLORIANO MARTINS | A dama surrealista em seu bordel elétrico

 


Eu gosto de chuva.

É como se os anjos ejaculassem sobre nós.

HARLEY QUINN

 

Andar caminho errado

pela simples alegria de ser.

BELCHIOR

 

As noites com seus requebros nem sempre dizem a que horas abrirão as portas para o acaso. Velhos clientes ignoram a rapidez quase estática com que o tempo muda de roupa e são capazes de perder a própria vida na crença de que seus lugares estão marcados no salão dos pequenos vícios. Há aqueles que defendem a presença indisfarçável da inspiração para a criação, por exemplo, de um poema. Um desses raros, outro dia confessou: Eu não creio em inspiração, mas sim na loucura irrefreável dos seis sentidos. Era capaz de escrever um romance inteiro ou uma saga em versos, deslocando os tempos dos verbos e se recusando a aceitar as leis da física. Tínhamos que abrir com cuidado o seu caderno de manuscritos, sob o risco de palavras saltarem fora das páginas. Ao final, ele costumava mudar de lugar dois ou três substantivos previamente pensados, que cuidava de repetir aleatoriamente ao longo da escrita. Era preciso dar alguma atenção a esses personagens que surgiam à revelia da realidade. A vida de cada um de nós tem uma carta marcada que acredita em destino. Observando bem o que tem se passado com a história, essas vacilações incontidas são a causa de todo o destempero humano. Sem a presença do destino as religiões não durariam dois segundos. Por sorte as noites não são à prova de imprevistos. Este último reduto da alegria de viver. O diapasão de orgasmos geniais vividos por seres que estão além de si mesmos. As palavras que desventramos de um livro qualquer escolhido ao acaso podem conter – em alguns casos esta é uma verdade dilacerante – uma espécie de último suspiro que nos faz recobrar o compassivo devaneio que por vezes deixamos fora de si, como uma pele que restou no preparo de uma tela que nos desafiasse a pintar em seu íntimo as horas desfeitas de nossos silêncios inconclusos.

 

Ouvi dizer que as lágrimas caem no momento certo, guiadas por um pressentimento que não falha nunca. Elas distinguem as dores, reservam a cada uma delas uma dose suficiente para contornar a circunstância. Imagine se as vanguardas tivessem se ocupado de dar vida aos objetos, se as máquinas do Futurismo fossem personagens humaníssimos, ou se o inconsciente do Surrealismo fosse uma dama sagaz que em seu bordel cuidasse das relações sexuais entre todas as coisas… Alguém poderia indagar: como é possível encontrar a própria sina em meio ao turbilhão de dispositivos fora de controle, mercadorias extraviadas, matérias dissipadas? Atiçamos o olhar no alcance de seu enlace com o infinito e o que vemos é uma feira imensa de desígnios danificados. No mais amplo predomínio da agonia, despótica ausência de significado. Creio que todos já nos acostumamos com a vida em seu estupor inconsciente. O bordel ainda é um lugar sagrado para aqueles que não reconhecem o que perderam em sua travessia diária de pequenos favores. Talvez Nuria Schimmel tenha razão: a arte não traduz mais uma reação ao tempo e sim o próprio curso de miseráveis atavismos que foram sendo tatuados em nossa alma. Fechar tudo – gritam as portas desencontradas, em meio à avalanche de repetições que produz um bordão flácido. Fechar a palavra, não deixar o destino açoitar o abismo. Quem sabe se trocarmos o valor de algumas palavras entre si, a intempérie de seus símbolos, e assim fôssemos surpreendidos por um ritmo que, mesmo discrepante, gelasse por dentro e fizesse rachar o núcleo de suas perversões. Deuses com suas varinhas rascunham fábulas indescritíveis na beira da praia, depois apagam tudo com sua urina de sal. Os deuses são os monstros da infância. São sádicos e fazem as crianças acreditarem em um mundo onde o bem possa vencer o mal.

 


Eu ouço a música das cabras e quero dançar com elas. O pai não pode ver, pois o pai é o reduto secreto de toda imolação, a gruta que se abre na rocha marítima para o vislumbre de um sol agônico. As sombras tatuadas em meu corpo que me faziam sentir protegida da cópula dos deuses. Mas eu queria ser devorada por eles, tudo em minhas entranhas acentuava a sílaba da palavra com que eles me penetravam. Toda criança quer ser deus. Eu ia dizer que sim, mesmo com a mãe ali por perto com a palmada na ponta da língua. Parte do enredo era inevitável, porém não me metia mais medo do que o receio de perder aquela oportunidade. Por mais que despenque no caos e se dissolva em uma alegoria sem fim, a oportunidade é algo que não deve ser evitada. Sem ela, crescer pode ser inútil. As escadas bajulam as alturas melhor que o abismo. Elas querem impor um mundo sem saltos, onde tudo é ascensão irrecusável, a frauda deliquescente de um céu que se esconde ao ser tocado. O abismo considera o impacto uma das fontes da pertinácia. Os ventos brincam com seus fantasmas em casulos úmidos pendentes de tetos arranjados na última hora do ocaso. Os espasmos inconsoláveis das noites costumam atravessar o sertão das próprias penitências. É preciso deixar um prato de carniças do lado de fora das grutas, ao pé das escadas, somente assim o sol retornará ao jogo de sílabas de suas mil palavras comestíveis. A solidão do soldado soletra a solvência de seus insólitos solapares… Ah isto não tem fim… Então abandonemos as noites. Vamos vadiar com os anjos. Nuria Schimmel também dizia que a arte havia perdido seu apito ilusório, a chave dos fundos falsos que plantou em seus truques. E se houvesse em um idioma perdido no tempo uma palavra que ao mesmo tempo significasse destino e noite? As escadas são grandes monumentos engavetados pela ilusão. Os cômodos lascivos das hospedarias fincadas em lugares alternados. Por vezes o meu corpo se perde procurando sua morada mais cálida. Ninguém sabe ao certo qual noite se esconde atrás do armário. Qual cão adormece na taça dos lustres do velho casarão. Qual fantasma virá brincar esta noite com o abismo insone. Ao menos um de nós se divertiria a noite inteira a mudar as palavras de lugar em um romance. Muitas delas poderiam ter um duplo sentido. Outras, no entanto, não suportariam ser confundidas, como lei e justiça, ou dia e noite.

 


As sobras encharcam as páginas dos dicionários, desconhecidas até mesmo de boa parte dos escritores. Talvez Nuria tenha percebido que, ao serem entrevistados, dificilmente escritores falam de seu amor pelos dicionários. E os tanques de reprodução onde criamos os peixes delicados da linguagem? Serão apenas ornamentais? Sem a presença das noites as quimeras nada teriam a revelar. Até que ponto a língua que falamos contrasta com a nossa visão de mundo? Lembrei agora aquela descoberta de que os esquimós têm 50 palavras para dizer neve. Talvez tenham mais, se começarem a improvisar, na neve, com o mágico desdobramento das sensações. Quantas vezes desconhecemos que nosso universo linguístico expressa muito mais do que compreendemos? O que falamos, o que convertemos em palavras, é uma fração bem pequena daquilo que sentimos. Talvez em português possamos escrever de infinitas maneiras a palavra sertão. Jamais o saberemos, no entanto, pois temos uma visão reduzida da imensidão dessa região que de tanto ser desossada mudou a árvore de sua presença na terra: pele, intestinos, modo de andar, o jeito de deitar-se ao relento do horizonte aguardando a água que lhe foi desviada. Também a palavra sertão teve o seu destino desviado. Escutaríamos a noite inteira um livro de canções do abismo. As palavras formando novos guetos e afluentes, contando e apagando os percursos por estranhas estradas. Como os véus chorando em desacordo com a nudez dos mares, as saliências da terra apagando seus rastros como o amante que fugisse pela janela após amar a si mesmo no corpo da mulher a quem prometera um carrilhão de mistérios. Agora nos sentimos assim, como se a vida nos tivesse abandonado. São essas migalhas que vamos encontrando pelo chão que nos levam ainda a crer no amor. A esperança, no entanto, é uma velha gorda que se alimenta de nossas crenças. Onde estão mesmo os caminhos certos? Não há como sabê-lo. O erro é ainda a melhor chuva de anjos. Os pardais se alimentam de uma dialética renegada, dessa farsa de miragens que vamos fiando como se buscássemos o entendimento de deuses. As cédulas bailam sobre os cadáveres expostos dos tolos. Eles lambem a própria miséria e sequer estranham que a morte tenha lhes convencido a compor uma cena tão devastadora.

 

As palavras se perdem, indispostas, em uma vertigem transfigurada. Talvez por ali encontremos algum caminho certo, uma delas arrisca o comentário fugaz. O horizonte a contemplava do alto de uma página impressa ao contrário. O cabide dos tormentos vaga pela casa vazia à procura de uma outra palavra para a agonia que lhe aflige. Há uma cumeeira de sonhos que poucos se atrevem a acordar. Em certas noites os pesadelos se disfarçam e diante de um gesto inadvertido a vigília se sente eletrificada e dificilmente retornará a seu ninho. As vestes se dissipam. Não há mais corpos. Apenas vultos em desalinho habitam os casebres em chamas dessas noites. Era preciso contar os carneiros dessas horas angustiadas. Quando vimos a primeira mostra de um loop infinito em um museu de sombras constatamos que a partir daquele momento os horizontes perderam a sua função mágica. Não há dúvida, os egos vão sendo estraçalhados pelos spots. A natureza humana se perde em meio ao furor de sua constante perda de identidade. A vivência não conta. Somos todos despidos da guarda sagrada de um leviatã inominável. O serviço social bate à porta desde cedo exibindo seu campo de influência, as cartas com letra invisível que atestam o comando intransferível de uma insuspeita verdade absoluta. Não damos jamais pela conta do quanto a nossa alma foi esmagada por essa verdade. Não sentimos nada. A vida nos atola em sua matriz de falsificações, de modo que até mesmo a ausência, a morte, o rompimento de um amor, nada… com que tamanha eficiência o mundo se torna inacreditável. As dores inexplicáveis, o parto, a morte acidental, o rapto, o núncio que prega os verbos atônitos, as luzes, as luzes, as palavras se escondem nas luzes, podem ser aflitas ou reveladoras, contidas ou alarmantes, mas sempre nas luzes. Eu tive um sol que requebrava a cada instante, o meu olhar ia acompanhando o que parecia um caudal de vertigens. Não a vertigem solar, mas a minha, a minha inquietude de compreender o significado daquele movimento incansável.

 


Não podemos imaginar um mundo descortinado pela alquimia de quaisquer metais inventariados. Nada parece funcionar desse modo. Uma noite a casa acorda esvaziada de sensações. Um silêncio desmedido. Os móveis, os restos de um mundo em desuso, os insetos atraídos pelo exílio. O que é uma casa assim, que dá voltas em si mesma até não haver mais um sinal de sua existência? Quando essa ação de despejo do acaso se intromete em nossas vidas, as noites revelam aquele salto ou assalto de formas ou espectros que imaginávamos parte de certa liturgia. Uma fábula que garantisse, ao modo em que as fábulas costumam garantir, que as pedras usadas na construção de algo um dia podem se converter em cúmplices de sua autodestruição. Tenho então que indagar a Nuria Schimmel de que nos vale ir anotando a fluência de percepções acerca desses vultos que saltam das naturezas mortas que são a própria essência humana. Ela ri. O que pode haver no mundo que já de muito não tenhamos percebido? Qual a surpresa? Estamos acabando com a essência humana, ao ponto de não caber mais em uma caixinha onde a poderíamos guardar para que um dia, milênios depois, nunca se sabe, viesse a ser descoberta por outra espécie. Não se trata apenas de escritores. Nuria erra em sua perspectiva. As sombras foram surgindo aos poucos, os abismos enganam, não são retráteis, um dia convidei um grande artista a vir comigo repartir a bênção do acaso. Uma tela miúda sobre a mesa ampara o universo. Era como se fôssemos ao mar pintar aquela intrepidez límbica que nos faz crer que somos deuses. Somos a sombra hesitante de uma velha cafetina que cuidou dos mínimos detalhes de construção de seu bordel dedicado a um sistema elétrico que seria o reflexo absoluto do Surrealismo. Uma casa onde o mobiliário ganha vida e tanto dialoga com seus moradores quanto inventa interlocutores que possam iluminar a memória.

 

Um dia alguém psicografará uma trama que será a realidade aceitável de seu tempo. Em nosso presente instante os anjos ejaculam sobre nós pela simples alegria de ser. Não sei até quando resistiremos a esse abuso de improcedência. Não sei o meu nome. Quando nos falamos através desse canal intangível a nossa voz se converte em uma multidão de formas. Não sei se é tão fácil chegar a tão inimaginável epigrama. O fato é que quando estamos aqui, não importa quantos somos, nada no mundo parece estar em lugar melhor do que em nosso casarão imaginário. A chuva lá fora, os deuses, o baralho das impropriedades, as ocasiões imprevistas em que acabamos por desaparecer sob a tempestade. Não há nenhum mundo aqui. Tudo expira no exato instante em que o imaginamos. O desafio que aprendeu nosso nome é o mesmo que serve para qualquer um de vocês. Onde diabos vocês se meteram quando o que mais precisavam era provar que haviam descoberto um modo de ser? Parece fácil. Talvez seja. Talvez seja o mais valioso desafio da existência. Agora é com vocês.




FLORIANO MARTINS (Fortaleza, 1957). Poeta, editor, dramaturgo, ensaísta, artista plástico e tradutor. Criou em 1999 a Agulha Revista de Cultura. Coordenou (2005-2010) a coleção “Ponte Velha” de autores portugueses da Escrituras Editora (São Paulo). Curador do projeto “Atlas Lírico da América Hispânica”, da revista Acrobata. Esteve presente em festivais de poesia realizados em países como Bolívia, Chile, Colômbia, Costa Rica, República Dominicana, El Salvador, Equador, Espanha, México, Nicarágua, Panamá, Portugal e Venezuela. Curador da Bienal Internacional do Livro do Ceará (Brasil, 2008), e membro do júri do Prêmio Casa das Américas (Cuba, 2009), foi professor convidado da Universidade de Cincinnati (Ohio, Estados Unidos, 2010). Tradutor de livros de César Moro, Federico García Lorca, Guillermo Cabrera Infante, Vicente Huidobro, Hans Arp, Juan Calzadilla, Enrique Molina, Jorge Luis Borges, Aldo Pellegrini e Pablo Antonio Cuadra. Criador e integrante da “Rede de Aproximações Líricas”. Entre seus livros mais recentes se destacam Un poco más de surrealismo no hará ningún daño a la realidad (ensaio, México, 2015), O iluminismo é uma baleia (teatro, Brasil, em parceria com Zuca Sardan, 2016), Antes que a árvore se feche (poesia completa, Brasil, 2020), Naufrágios do tempo (novela, com Berta Lucía Estrada, 2020), Las mujeres desaparecidas (poesia, Chile, 2022) e Sombras no jardim (prosa poética, Brasil, 2023).

 

 


JULIA OTXOA (Espanha, 1953). Poeta, narradora y artista gráfica Entre sus últimas exposiciones : “Llocs de Pas” Espectáculo colectivo audiovisual-MACBA-Barcelona 2006, “Absinthe Review” Nueva York 2007; “New Sleepingfis Review”, Nueva York 2007; “Certamen Internacional de Fotografía Surrealista”, Eibar 2007; “Fragmentos de Entusiasmo”-Catálogo de la exposición Antología de la Poesía Visual española 1964-2006”-“Poesía Visual Española” (Antología) Editorial Calambur,Madrid,2007; “La Fira Mágica”, Exposición colectiva de Poesía Visual Ayuntamiento de Santa Susana Barcelona, 2007; “Homenaje a Manuel Altolaguirre”, Exposición Poesía Visual – Instituto Cervantes en Fez (Marruecos, 2007 ); “Miguel Hernández – Muestra de Poesía Visual” (Universidad Miguel Hernández-Elche, 2008); “Exposición libros de artista”, Museo de San Telmo San Sebastián, 2023; “Tres senderos que convergen”, Centro cultural Oquendo, San Sebastián. Julia Otxoa es la artista invitada de esta edición de Agulha Revista de Cultura.


 


Agulha Revista de Cultura

Número 254 | agosto de 2024

Artista convidada: Julia Otxoa (España, 1953)

Editores:

Floriano Martins | floriano.agulha@gmail.com

Elys Regina Zils | elysre@gmail.com

ARC Edições © 2024


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