domingo, 15 de setembro de 2024

FLORIANO MARTINS | Elys Regina Zils e seus fragmentos de silêncio

 


Por onde descem as nuvens e os mitos: por um fio de silêncio. Como sabemos o silêncio é a antessala das revelações, o prelúdio de todos os sentidos. Graças ao silêncio recolhemos os sinais de infinitas formas de vida. Toda a poesia, assim como toda a música, começa no silêncio. Elys Regina Zils intui que a história não contada que ela busca tocar com seus versos finca sua morada no nirvana da imaginação. A percepção é a fonte primária da criação. Ela ama a própria solidão e a vertigem do silêncio. Essa vertigem que a poeta premedita em fragmentos. Aqui está a chave dada por ela, logo na capa, onde lemos Fragmentos de silêncio – o belo título de seu livro de estreia –, e também no significativo desenho que vemos, onde o corpo feminino desafia com a suavidade audaciosa de sua cabeça convertida em três aves. A metamorfose do silêncio que torna a linha do horizonte um ninho de promessas. O silêncio tem o aspecto de um parto. De suas águas profundas saltam todas as vozes dispostas a transmigrar de um destino a outro.

Fragmentos de silêncio é um livro-árvore. Desde seu primeiro verso – amar o inútil – até o fôlego final de uma criação que deseja se perder em um rio. Um livro que tece a brevidade da vida com os fios de cada uma de suas imagens. Não à toa, é uma tessitura que enaltece o dois, como um símbolo de reflexão. O antagonismo, ou imagem dupla, ou metáfora, reforça todo o movimento poético do livro, e sua autora o destaca em dois momentos decisivos: ao evocar a presença do amor em seus dois corpos, duas almas, e ao sugerir notável senha de sua compreensão ao referir a busca do dois perfeito ou alucinação compartilhada. Pois é justamente nessa imagem que ela faz o que anuncia no início da página seguinte: rasga as roupas do destino. E duas são também as motivações estruturais do livro, seja pelo moto contínuo de suas metáforas, o movimento simultâneo de suas representações, seja pela presença da imagem plástica – Elys Regina Zils é também artista plástica e seu livro está repleto de páginas-folhas de sua árvore tão singular. Quando em um verso ela pede ao leitor, qualquer um que esteja passando por seus poemas, que lhe confie seu sonho, percebemos que sua intenção é a simetria essencial, que a criação, ao expandir-se o faz na direção de uma nova consequência, a síntese, que não pode ser alcançada de outra forma. Sem, no entanto, esquecer: somente o múltiplo é permanente.

Em nenhum momento do livro essa saborosa analogia se revela como nesta página-floresta:

 

sou a dama sem sombra

a feiticeira que domina a arte

de criar matéria

no espaço nebuloso

as assimetrias da manhã

aspiram à alquimia

mas as sensações essenciais não se tocam

incompatibilidade de ideais?

 


Vamos então ao rio onde a poeta deseja se perder. Aquele mesmo a cuja contemplação um velho filósofo dedicou sua vida. As águas desse rio se alimentam desse plural inconciliável da existência humana, dessa saltitante dualidade que garante não será jamais domesticada. Por isto em nossa viagem pelo interior desses fragmentos de silêncio encontramos essa dupla voracidade com que as imagens – verbal, plástica – aparecem como arquétipos de um mundo que requer ser adivinhado. Assim como o desenho-metáfora exposto na capa, internamente o livro está repleto de um mesmo arrebatamento, na forma de colagens que se entrelaçam aos versos e a eles permitem o mesmo afeto, uma simbiose que faz com que o silêncio de Elys Regina Zils seja uma árvore de muitos sons – a árvore levemente sugerida na contracapa do livro e que dali contempla o modo com que cada um de nós sai de sua leitura. As colagens da poeta, se recorrem ao princípio desse modelo de criação, que basicamente recortava e ladeava figuras de significados dessemelhantes, buscando uma simples analogia entre elas, em seu caso o desafio possui uma tessitura mais desafiante, fazendo com que esses fragmentos de imagem-silêncio se entredevorem em nome de uma substância outra, de um devir que somente se realiza na força da alquimia.

Este livro-árvore, Fragmentos de silêncio, de Elys Regina Zils, com seu sentimento de mundo, emite os sons mais reveladores, com suas frases possíveis do que seríamos, sendo sempre outro à nossa porta, em nosso íntimo, na lonjura mais buscada de todos os abismos, e o faz com essa disciplina existencial de quem afirma:

 

enquanto durar a poesia

no prato da loucura

o desejo se lambuza 

Agosto de 2024

 



ELYS REGINA ZILS (Brasil, 1986). Poeta, artista visual, tradutora. Doutoranda e Mestre em Estudos da Tradução pela PGET/Universidade Federal de Santa Catarina. Possui graduação em Letras-Língua Espanhola e Literaturas e Letras-Português também pela Universidade Federal de Santa Catarina/Florianópolis, Brasil. Se dedica à Literatura Latinoamericana, pesquisando principalmente Vanguardas Literárias e Artísticas com ênfase em Literatura Surrealista Latinoamericana. Editora da Agulha Revista de Cultura (2023), revista criada por Floriano Martins. Tradutora, ao lado dele, de sua trilogia dedicada ao surrealismo, Bússola do Acaso. Tem sido responsável ainda, parcialmente, pela curadoria e tradução de poetas hispano-americanos para o Atlas Lírico da América Hispânica, da revista Acrobata. A Sol Negro Edições, casa de livros artesanais, publicou Os elementos terrestres, de Eunice Odio, edição bilíngue organizada e traduzida por ela. Atualmente tem em preparação a tradução de livros de Marosa di Giorgio e Olga Orozco, para a mesma Sol Negro Edições. Recentemente criou a Editora Mamma Quilla, cujo catálogo estreia com O dia dos cinco orgasmos (Leila Ferraz), Susana Wald – Visões vertiginosas da criação (ensaio e entrevista, ERZ) e Fragmentos de silêncio (poesia e colagem, ERZ), todos em 2024.

 


FLORIANO MARTINS (Fortaleza, 1957). Poeta, editor, dramaturgo, ensaísta, artista plástico e tradutor. Criou em 1999 a Agulha Revista de Cultura. Coordenou (2005-2010) a coleção “Ponte Velha” de autores portugueses da Escrituras Editora (São Paulo). Curador do projeto “Atlas Lírico da América Hispânica”, da revista Acrobata. Esteve presente em festivais de poesia realizados em países como Bolívia, Chile, Colômbia, Costa Rica, República Dominicana, El Salvador, Equador, Espanha, México, Nicarágua, Panamá, Portugal e Venezuela. Curador da Bienal Internacional do Livro do Ceará (Brasil, 2008), e membro do júri do Prêmio Casa das Américas (Cuba, 2009), foi professor convidado da Universidade de Cincinnati (Ohio, Estados Unidos, 2010). Tradutor de livros de César Moro, Federico García Lorca, Guillermo Cabrera Infante, Vicente Huidobro, Hans Arp, Juan Calzadilla, Enrique Molina, Jorge Luis Borges, Aldo Pellegrini e Pablo Antonio Cuadra. Criador e integrante da Rede de Aproximações Líricas. Entre seus livros mais recentes se destacam Un poco más de surrealismo no hará ningún daño a la realidad (ensaio, México, 2015), O iluminismo é uma baleia (teatro, Brasil, em parceria com Zuca Sardan, 2016), Antes que a árvore se feche (poesia completa, Brasil, 2020), Naufrágios do tempo (novela, com Berta Lucía Estrada, 2020), Las mujeres desaparecidas (poesia, Chile, 2022) e Sombras no jardim (prosa poética, Brasil, 2023).

 


ANTONIA EIRIZ (Cuba, 1929-1995). Se graduó de la Escuela de Bellas Artes de San Alejandro en 1957. Participó en la II Bienal Interamericana de México en 1960 y en la VI Bienal de Sao Paulo en 1961, donde su obra recibió una mención honorífica. De 1962 a 1969 impartió clases en la Escuela de Instructores de Arte y en la Escuela Nacional de Arte, ambas en La Habana. En 1963 ganó el Primer Premio en la Exposición de La Habana, organizada por la Casa de las Américas. Al año siguiente, la Galería Habana presentó su importante exposición “Pintura/Ensamblajes”. En 1966 expuso su obra junto a Raúl Martínez en la Casa del Lago de la Universidad Nacional Autónoma de México, y un año después en el 23 Salón de Mayo en París, Francia. Eiriz tenía una forma muy particular de captar su entorno, optando por retratar las situaciones más dramáticas y grotescas de la condición humana, lo que provocó que su obra fuera incomprendida por el gobierno revolucionario, lo que la llevó a jubilarse anticipadamente. A finales de los años sesenta abandonó la pintura y se dedicó a la promoción de formas de arte popular, transformando su casa en un taller donde enseñaba técnicas como el papel maché y los trabajos textiles a la comunidad local. En 1989 recibió la Orden Félix Varela del Consejo de Estado de Cuba, la más alta distinción del país en el ámbito cultural. En 1991 se realizó una exposición de su obra titulada “Reencuentro” en la Galería Galiano de La Habana y en 1994 recibió una beca de la Fundación John Simon Guggenheim. Después de su muerte en 1995, el Museo de Arte de Fort Lauderdale organizó una retrospectiva de su obra: “Antonia Eiriz: Tributo a una leyenda”. Ahora ella es nuestra artista invitada, en esta edición de Agulha Revista de Cultura.



Agulha Revista de Cultura

Número 255 | setembro de 2024

Artista convidada: Antonia Eiriz (Cuba, 1929-1995)

Editores:

Floriano Martins | floriano.agulha@gmail.com

Elys Regina Zils | elysre@gmail.com

ARC Edições © 2024


∞ contatos

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