1. ANDROGYNE
CELSO
ARAUJO | Androgenia passada a fogo
Publicação original: Poesia parque blog, 08/09/2014.
Um ser humano de qualquer lugar
deste mundo, delicado, seguro, insinuante, recebe o público, em pé no centro de uma cena vazia,
com um fundo cenográfico branco… Pode ser um bilheteiro de cinema, um vigilante
de trem, um soldadinho de chumbo, um pierrô noturno
e anônimo, uma garota à espera do outro. Mas a pequena criatura levada
vagarosamente por uma onda de ironia se desfaz no escuro, e é da escuridão que surge em desdobramentos
a figura da performer Alda Maria Abreu, integrante do núcleo Taanteatro, instalado
em São Paulo, sob direção da mestra Maura Baiocchi, na obra intitulada
Androgyne – Sagração do Fogo, no Teatro Garagem da 913 Sul.
A sintética instalação cenográfica é de Wolfgang
Pannek, fera de múltiplas funções,
como sua companheira Maura Baiocchi, uma das grandes criadoras de teatro/dança/performance
das artes contemporâneas e que, em caso excepcional, atua até como bilheteira do próprio espetáculo que dirige.
Imagina: Maura Baiocchi na bilheteria, ela que já levou espectadores de várias partes
do mundo à loucura. A música é de Gustavo Lemos, replicando,
multiplicando, acentuando bravamente o que logo se verá-viverá.
Um
sopro e a boneca de vento vai traçando o seu teatro de operações, com as armas próprias do corpo. Corpo esquizo? Não, corpo são em mente sagrada, máxima
pesquisa de dias e noites de método,
pesquisa, associações libertas. E o que vai se desenhando diante dos olhos nossos
é uma
grande dor, uma cirurgia de musculaturas e tensões que se debatem, contorcem, refazem,
descem e sobem (catábase e anábase),
despertando-nos da letargia para uma presentificação em que o expressionismo parece
ser a linha do trilho. Mas a estrada é mais
fértil
e farta: são poucos os minutos e largo o tempo em que Alda atravessa evocações do
corpo andrógino,
em sopros que evocam os sonhos de cada um. Não há alopração, hein! Tudo é resultado
de uma partitura de signos quentes. Não há
finalizações, como nas artes bem acabadas, há interrupções bruscas, cortes delicados, línguas
dobradas. O corpo revela forças inauditas, ao expor tensões físicas, sintáticas, semânticas, intermodais
e pragmáticas, como está claramente
descrito no livro Mandala de Energia Corporal, de Maura e Wolfgang, em sua preciosa
série de publicações
do Taanteatro.
Cultura,
história,
ideologias, versões de filosofia e poética,
se dissolvem no espaço e no tempo. Quanto à androgenia, o caminho mais direto é ler e ouvir-se em Sigmund Freud.
Perdemos a noção, pois aqui a mandala se espatifa em átomos, para o olho imaginante,
para a colheita de frutificações dos órgãos
humanos. A questão em cena, declaradamente, é a
de uma identidade sexual que também
imaginamos existir. Alda vai longe…os horizontes são tão largos que podemos pensar
no Egito antigo, no arcaico Japão de Hijikata (mestre do butô), nos ancestrais ritos
afro-brasileiros, nos inclassificáveis classificados da espetacularidade contemporânea.
A performer, que é atriz
e dançarina, vai às profundezas de sua musculatura e isso dói, nela talvez, em nós mais ainda. Planos, cortes,
contorções, choques extremos nos membros, uma nudez que só se vê nos inconscientes movimentos
da energia mutante. É uma arte de espelhos que se quebram, de cabeça, tronco e membros
arregalados, num redemoinho que faz os leitores de Nietzsche, Artaud, Deleuze e
outros pensadores de nossa alienação virem à tona, quase de maneira límpida e curativa.
Alda
Maria Abreu, pequena figura que se amplia nas sombras e nas dobras e expõe seu ventre
– suas coxas, sua vulva e sua língua, seus olhos de medusa e seus cabelos de uma
antiguidade atualíssima – celebra sua passagem – travessia pelos nossos medos e
perplexidades. Morde-se, morre-se, ressucita-se. Ressucita-me, ainda que mais não
seja.
Uma
dica: Taanteatro é uma
das escolas mais radicais, refinadas e exigentes do teatro contemporâneo, leia mais
no www.taanteatro.com. Outra: Alda é filha
de santo de Maura, ambas filhas de santo de Hijikata, Kazuo, Frida, Chaplin, ou
melhor, das florestas, dos yanomamis, dos tibetanos, dos nigerianos, dos bárbaros,
de Isadora etc. Outra: depois do vôo sobre todas as indiferenças da vida, vejo logo
depois, na realidade, uma pequena multidão que segue carros de som e palavras de
ordem, na suja rodoviária do Plano Piloto, esbanjando-se nas buscas do que chamam
de Parada do Orgulho LGBT. Tão próximos
e tão distantes. No ônibus, a criançada que vinha da festa parecia falar do mesmo
assunto, atônita, aleatória.
E mais
uma dica: fico imaginando uma obra-operação como essa vista por uma multidão de
sujeitos, o que não provocaria! Fibras se alargariam, nervos seriam expostos, as
primitividades dariam em carnaval.
Por
fim, para respirar fundo e tomar meu banho no quintal, ficam as palavras quase premonitórias da própria Alda Maria citada numa
das preciosas publicações do núcleo Taanteatro:
Desço abaixo do mundo.
Triplico de tamanho. A pele solta do músculo, o músculo solta do osso e o osso da
alma. Ouço a música
de meus ossos chacoalhando. Grito esse som. A carícia do vento leva embora pequenos
pedaços de pele e tira o véu
que ritualiza meu encontro com o ar. Pele, músculo e osso ganham distância entre
si e, a despeito das leis gravitacionais, levito por todos os lados, vejo meu corpo
material expandir-se no ar. Só alma, só espírito, sou estado de matéria em suspensão.
O teatro,
feliz ou infeliz(mente), ainda é para
os que vão até à ágora aberta, às grutas ou catacumbas perfumadas, em que há saídas
para o mais promissor dos pranas.
CÉLIA MUSILLI | Performance
ecopoética
em cartaz em São Paulo, expande as potencialidades do corpo
Publicação
original: Carta Campinas,
23/09/2013.
Em busca do corpo total
Androgyne,
a sagração do fogo, solo multimídia
de Alda Maria Abreu, em cartaz no Mundo Pensante, em São Paulo, ressignifica o corpo
no tempo e no espaço, pondo em evidência cada músculo, cada nervo, cada fibra, erguendo
diante dos nossos olhos o esplendor do humano.
Uma
viagem através da
potencialidade corporal e sua capacidade plástica,
maleável, desdobrável, tensa, expansiva, convulsiva, retrátil. Uma
engenharia delicada que se revela em cada movimento ligado à bagagem cultural e
emocional do corpo, tanto vezes mitigado pelo sofrimento de exercer-se pela metade.
O trabalho,
dirigido por Maura Baiocchi, é multimídia,
coloca a intérprete
contracenando com a sua imagem em três telões,
recurso visual que permite que ela vá para dentro de si, abrindo-se a uma viagem
cujo destino é natureza
e memória.
Adentrando a natureza do corpo, encontram-se os reinos da matéria: mineral, vegetal, orgânico
que levam à transcendência
espiritual que transforma a performance num rito de passagem, um reencontro com
o primitivo sagrado.
Tudo
para resgatar o corpo, numa obra que também
faz críticas às camadas de repressão cultural nas quais, há milênios, se enterra
o humano. Tirá-lo desta opressão equivale a um renascimento. O meticuloso trabalho
de pesquisa corporal remete à Artaud , incompreendido na sua tarefa inaugural de
redimensionar a linguagem cênica, rompendo os limites da dramaturgia tradicional,
tendo em vista a expressão total do corpo, sem limites, primitivo e eterno.
A temática
abre-se para a androginia primordial, o macho e a fêmea que nos habitam na união
dos gêneros. O tema desdobra-se em referências à Joana'Arc,
queimada na fogueira da intolerância cujos ecos chegam aos nossos dias violentando
e censurando o corpo e, por extensão, o pensamento. Católicos, evangélicos e até o Facebook
– espécie
de seita contemporânea – também são
alvos de questionamento sobre a censura. Coloca-se em xeque o conceito da proibição
e do pecado, esta camada grosseira na qual se sufoca o corpo numa armadura ideológica milenar que ainda resiste,
embora se coloque em evidência o nu midiático, a carne humana como mercadoria.
A liberalidade
de mentira, a falta de consciência sobre as potencialidades e o significado essencial
do corpo são temas que se costuram com maestria na performance que traz a marca
do trabalho investigativo do Taanteatro, plasmado nas ideias do professor e crítico alemão Hans-Thies Lehmann, que
criou o conceito do teatro pós-dramático,
extrapolando a dramaturgia convencional e a mimesis na interpretação.
Androgyne apresenta soluções cênicas eficientes, como a bailarina envolta em rolos de papel que viram combustível da fogueira da intolerância que arde através dos séculos. No papel trançam-se ainda a celulose, a floresta, a destruição da natureza da qual o homem é elemento. Uma cadeia orgânica que clama por respeito. A performance ecopoética põe em xeque valores e ideologias, utilizando uma estética criativa como a imagem de um ovo, símbolo mítico que se quebra e escorre remetendo ao início e ao fim do homem primordial.
2. DAN
CASSIA NAVAS | DAN – Devir ancestral
Publicação original: 4ª Mostra
do Fomento à Dança, 17/09/2010.
Saguão de entrada da Sala Paissandu/Galeria Olido: há rastros de alguma floresta/mata
espalhados pelo ambiente, folhas e fiapos de paina. Imagens são projetas na parede.
Fazem parte de uma espécie
de libreto visual do solo de Maura Baiocchi,
uma das grandes intérpretes
criadoras do Brasil. De maneira poética,
estas imagens apontam para o que poderemos ver, agindo sobre nossa percepção, aguçando
sentidos, tirando-nos de nosso estado de ter-chegado-ao-teatro. Depois, na sala de espetáculos
saberemos que se referem a fragmentos da pesquisa realizada pela artista, mas por hora é muito cedo para isto.
Passos
ouvidos na escada de metal e seu som se junta ao de uma algaravia, espécie de gramelot,
enunciada ao
vivo pela intérprete
transmutada em personagem-figura mítica
de rosto maquiado em preto, corpo vestido de roupa alva como neve. Do todo se destacam olhos,
voz e pequenos movimentos de se socar o solo com o corpo. Espécies de saudações xamânicas delicada e aleatoriamente
são distribuídas
por entre as pessoas e na atitude de espera, transmutada em atitude de procissão
a seguir Baiocchi para o ventre do teatro.
No palco, a ambiência cênica está montada para receber o solo
que se desenrolará a partir dessa experiência inicial, em espetáculo que inaugura
o ciclo de ecoperformances da companhia e
como um todo a montagem vai apresentar cuidado criterioso na escolha de elementos
de cena e, sobretudo, figurinos.
Antes que Maura volte à cena,
temos a exibição de mais imagens, que novamente podem ser encarados como elementos
pára-coreográficos
em relação a performance de sua dança-teatro do Taanteatro, mas que fazem parte do que
a companhia chama de realização multimídia,
a unir dança,
foto-animação, vídeoenvironmentperformance, poesia música e instalação cênica.
Todos
esses elementos juntos, em que pese a qualidade de cada um deles, evidentemente
frutos de pesquisa, trabalho e produção de grande envergadura artística, tornam, no entanto o espetáculo
de dança para o qual todos acorreram um híbrido no qual muitas vezes nós perdemos, sobretudo pela extensão
do tempo decorrido para tudo se descortinar.
Toda
a parte videográfica
que traz à tona
a questão do cerrado e de suas florestas
de cabeça para baixo – os aquíferos do planalto central, responsáveis
pelo manancial de água
de uma região bem mais vasta do que se poderia imaginar.
Baiocchi
está nos vídeos
em performance de dança contínua
a explicitar, junto a pedras, fontes, veios d’água e animais uma investigação corporal
de fato realizada em proximidade, ou quase contiguidade com seu objeto de pesquisa,
denotando a intensidade de seu trabalho.
Os
aquíferos apontam para uma aura de mistério
frente a recursos represados no seio da terra árida e as metáforas estéticas deles resultantes estão
nas cenas da dança de Maura, quando
ela, voltando à cena,
nos apresenta à maneira de sua dança, o que vinha sendo anunciado em multimídia.
Esta
se apresenta ao mesmo tempo como minimalisticamente pós-moderna e derramadamente
(pré)histórica, em figuras que se sucedem, até mesmo como história em quadrinhos como feto,
mãe, êre, criança, deusa, índia, estátua. Todavia, fica o desejo de ver mais dança
nesse híbrido apresentado, no qual, algumas vezes se resvala para uma espécie de aula espetáculo ou comunicação
mais completa de pesquisa múltipla, que não
poderia esgotar em seus conteúdos em tão curto intervalo de tempo. Tudo isso coloca
em cena de maneira generosa, mas
as metáforas se acumulam e perdemos um pouco da possibilidade de estar as conhecendo
à maneira da dança.
A saga
contida nesta ecoperformance carrega para a cena novas facetas de personagens ancestrais de uma grande
bailarina, desde sempre conectada com a pulsação da arte contemporânea
a partir de sua topologia íntima, da qual faz parte um solo de origem,
neste caso o cerrado.
Um
momento de recepção único para jovens gerações, momento de reflexão para o público
mais experiente, vivência anímica e emotiva para aqueles
que quase nunca podem ver dança.
3. RIT.U
CASSIA
NAVAS | Rit.U, o ritual em cena
Publicação original: 4ª Mostra
do Fomento à Dança, 25/09/2010.
Rit.U é obra resultante de projeto
que propôs uma dramaturgia coletiva a
integrantes do Núcleo Taanteatro:
Formação Pesquisa, Criação.
Tendo como proposta uma discussão sobre ancestralidade e meio ambiente urbano organizou-se
também por
intervenções prévias
em ruas, ruínas, praças e parques da cidade de São Paulo, apontando-se para um projeto
híbrido com encenação fora e dentro de um espaço cênico propriamente dito.
O apresentado na 4a Mostra Fomento à Dança
carrega em sua estrutura os traços desta proposição de origem. Da mesma maneira,
sendo uma proposta que engloba formação, pesquisa e criação, também se marca por outro índice original – seu elenco é composto por artistas em processo
de formação, trazendo contrastes marcantes de atuação entre os integrantes.
Rit.U
começa no saguão de O Lugar, e se comporá de uma série de ritosque o espetáculo nosso propõe, em justaposição.
O primeiro deles – bailarinas, como
integrantes do público estão por meio dele e pouco-a-pouco iniciam intervenções
em que invertem seu papel social, de comportadas passam a agir por ações fora do
padrão a se esperar de quem ali está. À semelhança do que poderia acontecer em terreiro
de religião anímica – embolam no meio do hall de entrada, passando de peruas chiques a moças um tanto descontroladas.
O próximo rito do espetáculo, ainda
no hall de O Lugar, é o de um adestrador que entra da rua trazendo feras-intérpretes acorrentadas por coleira.
De chicote em punho (há uma certa referencialidade à estética sadomasoquista),
o adestrador controla as feras que farejam/mordem até serem soltos por sobre as intérpretes do início da função.
Na
cena do palco há
caixas e telas suspensas de papelão onde
são projetas imagens. Por entre elas evoluem os intérpretes até que o espaço fica totalmente vazio. Nele sucedem-se cenas
justapostas, entre
si, como fragmentos de ritos deste Rit.U,
até o momento
que somos chamados para novamente sair para o hall de entrada.
Antes
disso, temos uma heterodoxa e interessante chorus line na boca de frente
e se, em algum momentos, a catarse presente
como elementos de certos ritos parece ser um estado de emoção
ao qual se almeja, sua
tradução manifesta-se através
de tentativas que beiram o amadorismo, como no momento de uma devoração
entre quarto quatro artistas em cena.
Na
sucessão dos fragmentos, há momentos de uma escrita coreográfica mais marcada, onde
os intérpretes
tentam a realização de movimentos em conjunto, terminando pelo chamado à plateia
para a participação de uma dança sobre o palco. Neste momento, torna-se interessante
o contraste entre profissionais e, em princípio, pessoas sem qualquer experiência de dança, acentuando-se
a impressão de que o elenco apresenta performance muito irregular entre seus elementos,
posto assemelharem, no que fazem, ao realizado pelos recém-chegados ao palco.
Esta
cena remete aos espetáculos dos anos 60, onde a irreverência presente na quebra de
barreira entre barco e plateia, em busca de rituais contemporâneos – que fizessem face ao ritual
aristotélico do teatro –
abrissem em
lugar na contracultura mundial. Muitos dos jovens de hoje não tem acesso a este
tipo de espetáculo-obra-estética e, não é de
se estranhar que se sintam atraídos por criações desta natureza, as mesmas constituindo-se
em quase obras de repertório,
em um sentido pós-moderno
do termo .Por elas formam-se não somente alunos de teatro/dança,
mas também públicos em começo de seu amor pela arte da cena.
A Taanteatro Companhia, fundada e dirigida
por Maura Baiocchi e Wolfgang
Pannek, busca no espetáculo
um processo de formação, o que fica evidente pelos intérpretes e seus tipos desiguais
de performance. Ambos coordenam esta obra, articulando conteúdos e emprestando suas
assinaturas aos artistas deste projeto da Companhia, desta feita voltado para temas
do meio ambiente, trabalhado em outras obras/ações do grupo.
A opção
pelo ritual em cena, tradução
de rituais culturais de outra natureza, em estratégias presentes no Taanteatro e em outro sistema de informação cénica praticados por estes artistas, não se dá de forma superficial e distante
da história
da companhia. Pelo contrário, se funda em suas origens e se
desenvolve organicamente em sua trajetória. Todavia, ao trabalhar-se com artistas pouco maduros ou em formação, apresenta-se um trabalho
com fragilidades profissionais a serem pensadas, trabalhadas, para a consolidação
de um elenco mais afinado entre si e deste com seus diretores.
O envolvimento
destes atores, desde
já, manifesta-se no engajamento que demonstram na realização da
proposta – matizado de uma intensidade quase emocionada. Um sentimento que circula
pelo público, sobretudo
entre aqueles que pouco conhecem da história
da arte da performance, que pode ser contada por livros, vídeos e cinema, mas que
se presencia em obras, a história sendo vivenciada (ou
revivida) pela e através da
comoção que esperamos
que ela produza. Neste sentido, Rit.U teria bem mais a oferecer, a partir
de uma maturação de sua história
e de uma mais fundamentada exposição de seus motivos, sobretudo os de natureza formativa.
4.
HOMEM BRANCO E CARA VERMELHA
NELSON
DE SÁ | Homem Branco se perde no deserto americano
Publicação original: Folha de S. Paulo, 11/09/1998.
A Taanteatro
Cia., de Maura Baiocchi e Wolfgang Pannek, é caso à parte.
Suas peças, em salas fora do circuito, são bem realizadas, com intenso cuidado na
criação e acabamento. O desenvolvimento dos textos e o estudo da ação física apontam caminhos únicos.
E seus
temas causam estranheza, pela singularidade. A companhia busca pontes, mas é quase como se não fizesse parte
do teatro paulistano, ou brasileiro. Em Homem
Branco e Cara Vermelha a estranheza está de volta.
É um
belo texto teatral do judeu húngaro, que viveu anos nos EUA, George Tabori. Fala
de um judeu e sua filha, perdidos num deserto americano, e do contato que travam
com um cara vermelha em crise de identidade.
Com humor nada preconceituoso, duas minorias contrapõem as suas mazelas, numa crueza
espantosa. É como se cavassem camada por camada toda a autocomiseração, até encontrar
o maior, o verdadeiro derrotado. Há muito do chamado teatro do absurdo na placidez contraposta a um humor seco. O texto sugere
tal caminho, a montagem o persegue, e o resultado é como que um espetáculo – não
texto – estrangeiro.
Clownesco
Homem Branco
tem uma atuação soberba, atlética,
clownesca, de Linneu Dias. Mas é tão
distante dos derrotados e das minorias daqui que não se consegue penetrar na peça
por emoção, mas apenas por raciocínio, por fria compreensão.
FRANCISCO
WASILEWSKI | Em busca do ator perdido
Publicação original: Palco e Plateia, Porto Alegre, 26/09/1998.
Ah! o ator, esse ser mágico. Sobre ele já dizia o mestre Stanislavski: Acima de tudo, o teatro existe para o ator, sem
o qual não pode absolutamente existir. Pois, justamente ele tem sido algumas vezes colocado por certos encenadores em um segundo plano.
Por isso que assistir Linneu Dias em Homem Branco e Cara Vermelha,
no Porto Alegre em Cena, foi um prazer substituível.
O texto
já é conhecido de nós (apesar
de o diretor esquecer disso no programa da peça). Foi encenado por Camilo de Lélis
há quatro anos, tendo o próprio
no papel dos judeu e o saudoso Salimen Jr. interpretando o índio. Escrito pelo húngaro George Tabori, o texto narra
o conflito entre o judeu que, viajando pelo deserto acompanhado
de sua filha deficiente, planeja enterrar as cinzas da esposa. No meio do caminho
encontrará o índio com quem estabelecerá um jogo dialética sobre todas as formas
de exclusão em nossa sociedade.
Tabori
coloca em seu texto muitas referências ao cinema, o que é facilmente
explicável já que ele manteve uma longa carreira
como roteirista em Hollywood. É notável
a ironia com que o dramaturgo trata do modo de vida norte-americano e também a maneira cáustica com que
o autor fala sobre discriminação, através
de frases ácidas como: Arranhe bastante
o verniz de um branco e um fascista se revelará. É verdade que às vezes o autor
a peca em seu texto com excesso de verborragismo.
Quanto
a encenação de Pannek, já na entrada da sala de espetáculos nós é colocado o clima opressivo
da peça. Com cenário bem bolado (feito a base de papelão) e já vendo a sombria figura
do Urubu (muito bem interpretado por Valter
Felipe), o espectador fica na eminência do confronto que se estabelecerá.
Outro ponto que merece destaque é a
precisa iluminação de Lena Roque que pontua muito bem a passagem do tempo no
texto.
Sobre
as interpretações, é muito prazeroso ver um elenco tão homogêneo. Maura Baiocchi compôs seu papel com rara sensibilidade,
não apelando para os recursos fáceis que os atores, muitas vezes, usam para interpretar
personagens deficientes.
Principalmente,
Linneu Dias que mostra seu Weismann vais
é o grande papel que o esperava há tempo. Compõe uma personagem irônica
de humor terrivelmente cáustico e, além disso,
o ator mostra uma incrível capacidade de hipnotização da plateia, conseguida algumas
vezes apenas com pequeno gesto; com uma entonação especial de alguma forma ou então
com um olhar sarcástico.
Aqueles
que apreciam um grande trabalho de interpretação tiveram nesse Homem Branco e
Cara Vermelha
uma espécie de redenção. O trabalho de Linneu Dias
é a comprovação
de que Stanislavski tinha (e continua tendo)
razão.
RENATO MENDONÇA |
Choque de outsiders rende teatro de texto
Publicação
original: Zero Hora, 29/09/1998.
Para quem reclama da falta
do bom e velho teatro de
texto, a peça
Homem Branco e Cara Vermelha, apresentada na quinta e sexta-feira no Teatro
do Museu do Trabalho, dentro do 5º Porto Alegre em Cena foi um prato cheio.
Apropriadamente, a ação se
passa no meio de um deserto, sobre o olhar vigilante de uma abutre. Um comerciante
judeu (Linneu Dias),
acompanhado da filha deficiente Rute (Maura
Baiocchi), tenta levar as cinzas de sua mulher até Nova Iorque. A ideia é espalhá-las no Rivers Side Park, mas o carro lhes
é roubado
e eles só podem contar com a ajuda de um índio pele-vermelha (Antonio Galleão) em crise de identidade
e a um passo do suicídio.
O diretor
alemão Wolfgang Pannek
acerta no ponto, não apelando para exibicionismos na montagem. O importante é o
texto e o autores. E o desafio intimida. O gaúcho Linneu Dias precisa fazer uma
mistura de um ar patético
com alguma respeitabilidade ao papel
de Arnold Weisman. E é perfeito. Maura Baiocchi que nunca escorrega
para o risível interpretando uma deficiente. Galleão consegue manter a mão firme
para conduzir a transformação de seu personagem.
Homem
Branco e Cara Vermelha
é aparentemente o choque entre três outsiders, discriminados seja pela cor de sua
pele, pelo nível de QI ou pela idade. Mas o autor George Tabori vai muito além. Propõe a admissão das próprias falhas sem culpa e sem
assumir o discurso dominador Defende, com esperança, a possibilidade de transformação.
No final, enquanto estão envolvidos
em uma disputa para ver qual povo é mais
marcado por Deus, Weisman e o índio vão
trocando de roupa entre eles. Num exercício de antropofagia, o pele-vermelha digere só as qualidades
de seu oponente. Ao contrário
de Weisman, aceita Rut como ela é.
De quebra, acaba aceitando a si próprio
e encontra a saída para sair do deserto de ser um só.O comerciante judeu, pouco
antes de morrer, expõe a inutilidade das grandes palavras em confronto com os pequenos
gestos. Preciso tanto de um discurso sobre
injustiça social quanto uma bala na cabeça. Mas são textos como Homem Branco e Cara Vermelha
que podem fazer a diferença entre agir e consentir.
NOTA
Entrevista realizada em fevereiro de
2025 especialmente para a presente edição. As imagens que acompanham a entrevista
integram o acervo da Taanteatro Companhia e foram gentilmente cedidas por Wolfgang
Pannek.
CÁSSIA NAVAS | Professora-pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em Artes da Cena – Instituto de Artes da UNICAMP e professora convidada do Master Danse – Université de Paris 8. Especialista em gestão e políticas culturais pela UNESCO – Université de Dijon Ministère de la Culture France. É conferencista e vem ministrando palestras e seminários em várias instituições, como no Impulstanz (Viena, 2013), SP Escola de Teatro (São Paulo, 2014-15), Centro Cultural São Paulo (2015-17), Projeto Brasil, Mousonturm (Frankfurt, 2016), Centro de Formação e Pesquisa, SESC São Paulo (2016) e FreiburgTheater (2018). Foi pesquisadora do IDART/Secretaria Municipal de Cultura (SP), coordenadora da REDE Stagium e da Oficina Cultural Oswald de Andrade (São Paulo), tendo sido também curadora/consultora de importantes programas/projetos em dança, como: Programa de Qualificação em Dança (São Paulo, 2015-18), Dança + Cidade (São Paulo/2015), Dancing: Inside Out (Frankfurt/2016), Plataforma Formação Estado da Dança (Piracicaba/2016), Seminários Ida-e-Volta, Dança: Brasil-França (France Danse Brésil 2016-17) e CCSP- Centro Cultural São Paulo: Dança em Diálogo (2015-17). Autora de livros como: Imagens da Dança em São Paulo, Dança Moderna, Dança e Mundialização: políticas da cultura no eixo Brasil-França, Vem Dançar, de Teatro do Movimento, um método para o intérprete-criador e da Composição (os dois últimos juntamente com Lenora Lobo), Dança, História, Ensino e Pesquisa / Danse, Histoire, Formation, Recherche (juntamente com Isabelle Launay e Henrique Rochelle), dentre outros.
CÉLIA MUSILLI | Jornalista, cronista e poeta. Autora dos livros Sensível desafio (2006) e Todas as mulheres em mim (2010), participou de várias publicações e coletâneas de poesia e crônica. Mestre em Teoria e História Literária pela Unicamp, atualmente é editora de cultura do jornal Folha de Londrina.
CELSO ARAÚJO | Maranhense, vive em Brasília desde 1968. Cursou Psicologia no Ceub e no último ano do curso iniciou sua atividade no jornalismo, abandonando a graduação. Foi crítico de teatro nos principais jornais do DF, atuou em teatro como autor, ator e diretor. Também atuou como compositor na banda Akneton por mais de quinze anos. Publicou livros sobre artes e a história do teatro em Brasília.
FRANCISCO WASILEWSKI | Escritor, pesquisador, dramaturgo e crítico teatral brasileiro. Pelo imenso número de espetáculos assistidos desde os 10 anos de idade, pelos milhares de programas teatrais colecionados e por sua prodigiosa memória para detalhes das peças e seus bastidores, Wasilewski já foi chamado de enciclopédia viva do teatro. É um pesquisador pioneiro nos estudos do teatro besteirol brasileiro.
NELSON DE SÁ | Jornalista, vinculado à Folha de S. Paulo, onde já exerceu os cargos de redator, editorialista, correspondente em Nova York, editor-assistente, secretário-assistente da redação, repórter especial, crítico de teatro e editor do caderno Ilustrada. Autor do livro Divers/idade? Um Guia para o Teatro dos Anos 90 (1997), coletânea sobre Teatro, e organizador da edição do Diário da Corte (2012) de Paulo Francis. Foi assistente de direção de As Boas, de Jean Genet, e co-tradutor de Hamlet, de William Shakespeare, em montagens do Teatro Oficina, de São Paulo. Em 2003, dirigiu a peça 4.48 Psicose, de Sarah Kane.
RENATO MENDONÇA | Jornalista, exerce as funções de editor de música e de teatro no Segundo Caderno do jornal Zero Hora, de Porto Alegre, onde trabalha há mais de 10 anos. Paralelamente à carreira de jornalista, é compositor e desenvolve estudos de dramaturgia em oficina orientada pela diretora e atriz Graça Nunes. Na área do jornalismo, foi premiado duas vezes: em 2005, com o Prêmio Ari de melhor reportagem cultural em jornalismo gráfico com Ilha das Flores; em 1995, com o 8º Prêmio Setcergs de Jornalismo, edição 1994/1995, categoria Destaque Jornal, pela reportagem Sem Medo da Estrada. Autor de O Homem que Parou o Tempo (biografia do médico gaúcho Gabriel Schlatter), Arnaldo Campos – Um Livreiro de todas as Letras e Planeta Atlântida.
Agulha Revista de Cultura
CODINOME ABRAXAS # 02 – TAANTEATRO COMPANHIA (BRASIL)
Imagens: Acervo Taanteatro
Editores:
Floriano Martins | floriano.agulha@gmail.com
Elys Regina Zils | elysre@gmail.com
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FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
ELYS REGINA ZILS | elysre@gmail.com
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