1. Taanteatro põe Artaud na dança
Publicação original: revista Caros Amigos,
maio de 2015.
A companhia paulistana de dança Taanteatro
estreia em maio um projeto ousado: cARTAUDgrafia. O título é uma
combinação da palavra cartografia com o nome de Antonin Artaud, propondo um
mapeamento estético de sua obra através de coreografias. Trata-se de um
mergulho na vida e obra de Artaud, poeta, dramaturgo e pensador francês
conhecido por suas rupturas e inovações na linguagem, além das ideias que o
colocam como um dos nomes mais importantes do teatro do século 20.
Na entrevista a seguir,
o diretor Wolfgang Pannek fala do projeto cARTAUDgrafia, composto por
três espetáculos a serem encenados em 2015, através do Programa de Fomento à
Dança para São Paulo – 16ª edição. O primeiro deles estreia no próximo dia 22
de maio, seguindo em temporada até o dia 31. As outras duas estréias
acontecerão até o fim do ano. Alguns textos de Artaud escolhidos para essas
montagens – Correspondência com Jacques Rivière; México: Viagem ao
País dos Tarahumaras e Mensagens Revolucionárias, além de Artaud,
o Momo – nunca haviam sido encenados nem traduzidos integralmente no
Brasil.
Pannek, alemão radicado
no país desde 1992, co-diretor da Taaanteatro Companhia juntamente com a
bailarina e coreógrafa Maura Baiocchi, tem uma trajetória marcante. Entre
outras coisas, dirigiu Homem Branco e Cara Vermelha, Primeiro Fausto,
Esperando Godot e Máquina Hamlet Fisted, atuou como coreógrafo e
ator em Os Sertões, sob direção de José Celso Martinez Corrêa, é
co-autor dos livros Taanteatro – teatro coreográfico de tensões, Taanteatro
– rito de passagem e Taanteatro MAE Mandala de Energia Corporal.
Na entrevista, ele fala
das traduções e encenações inéditas dos textos de Artaud e do desafio de
converter os escritos do poeta e dramaturgo francês – considerado louco e que
passou por várias internações e sofrimentos – em espetáculos de dança. Trata-se
de um trabalho que mexe com estranhamentos dentro da linguagem cênica, com
conceitos revolucionários de arte, além de incluir críticas ao fenômeno das
migrações que têm levado à morte, em naufrágios no Mar Mediterrâneo, pessoas
que saem de países da África e do Oriente Médio em busca de melhores condições de
vida, cria-se assim uma conexão da obra de Artaud com contextos culturais da
atualidade.
CM | Não é a primeira vez
que a Taanteatro realiza um espetáculo sobre a obra de Antonin Artaud. O que
faz a companhia retornar mais uma vez a este autor tão instigante quanto
complexo?
WP | A primeira incursão da
companhia no universo artaudiano ocorreu em 1996 quando produzimos a mostra
internacional Artaud 100 Anos. Realizada no MASP, Cinemateca, Rádio USP e
Teatro Sérgio Cardoso, a programação itinerante incluía filmes, fotos, leituras
e três espetáculos comissionados. O Teatro Oficina estreou Para Acabar com o
Juízo de Deus, A Conquista do México foi adaptada pelo coreógrafo
japonês Min Tanaka e a Taanteatro Companhia apresentou Artaud – onde deus
corre com olhos de uma mulher cega, espetáculo criado por Maura Baiocchi.
Nosso retorno à Artaud no ano passado com a encenação de 50 desenhos para
assassinar a magia foi estimulado por meus estudos da obra de Gilles
Deleuze. Artaud é um intercessor decisivo de sua filosofia, uma influência
importante para a concepção deleuziana da gênese do pensamento e da subversão
do poder pelo desejo esquizo. Atualmente, frente aos fluxos migratórios e
conflitos interculturais de nosso tempo, a crítica artaudiana da racionalidade
ocidental ganha novamente relevo.
CM | Para o primeiro
espetáculo de uma trilogia prevista para este ano, você escolheu textos de
Artaud que nunca foram encenados e tampouco traduzidos integralmente no Brasil.
Em linhas gerais, fale sobre a escolha desses textos.
WP | O projeto cARTAUDgrafia
é composto por três espetáculos independentes. Cada obra foca numa dimensão
específica da produção de Artaud: o espírito, a cultura, a linguagem. O
conjunto opera como um rito de passagem sobre a crise da representação no
Ocidente. Uma Correspondência tem como referência principal Correspondência
com Jacques Rivière (1924), troca epistolar inédita no Brasil que marca o
ingresso de Artaud no panteão literário francês, sem curvar-se à normatização
estética. México, a segunda parte, baseada em Viagem ao país dos Tarahumaras e Mensagens
Revolucionárias, mostra sua ruptura com a civilização europeia, a busca de
uma cultura original e a disposição de realizar o Teatro da Crueldade no plano
de seu próprio corpo. A última parte, Retorno do Momo, traz sua saída do
limbo psiquiátrico, o retorno do poeta indomado que surpreende o mundo cultural
com suas obras mais explosivas. Partes de Artaud, o Momo foram
traduzidas por Claudio Willer em Escritos de Antonin Artaud. A seleção
que fizemos não esgota sua obra, mas inclui momentos chaves de sua trajetória.
CM | Há conexão entre essas
obras de Artaud convertidas em espetáculos de dança?
WP | Sim, o problema da
liberdade autêntica. Artaud define esse problema a partir da pureza. Pureza
alquímica, não moral. Sua busca de liberdade passa pela transmutação que leva
da matéria bruta de nossa existência herdada e codificada para uma vida
soberana da pura intensidade. Impuro é para Artaud tudo que condiciona o corpo
alheio à sua vontade; predeterminações biológicas, culturais e históricas que
operam como automatismos da percepção, da cognição e do comportamento. Deus é
um micróbio, diz Artaud. Em outras palavras, os juízos do conhecimento, da
moral e da estética desdobram seu poder não somente no plano macro, mas no
interior de cada corpo. Foucault apreendeu com Artaud. Como as impurezas
integram o processo constitutivo do corpo, seu expurgo corresponde a uma
revolução anatômica, à criação do corpo sem órgãos. Artaud sabia que sua
busca, onde condição e finalidade da liberdade se confundem, era paradoxal: Ser
livre para ser puro. E para ser livre, ser puro primeiro.
CM | O que mais chamou sua
atenção nas cartas trocadas entre Artaud e Rivière que você traduziu
especialmente para criar este primeiro espetáculo?
WP | Correspondência com
Jacques Rivière resulta de uma tentativa frustrada. Aos 27 anos, Artaud
espera ver a publicação de seus poemas na Nouvelle Revue Française, revista de
literatura que conta com a colaboração de autores como Paul Valery e André
Gide. Rivière recusa os poemas atribuindo-lhes falta de habilidade e unidade,
estranhezas desconcertantes. Artaud insiste. À recusa segue uma troca
epistolar. Nela o poeta desloca o foco da discussão. O valor de sua criações e
sua existência literária não residem em questões estéticas, mas no fato
vital de terem sido arrancadas do nada absoluto, apesar da erosão
mental sofrida por seu autor. Rivière se sensibiliza e, impressionado com o
rigor intelectual das cartas de Artaud, propõe sua publicação. Em Correspondência
Artaud descobre a carta como meio de expressão poética fulminante. Inicia
também a encenação literária do mito Antonin Artaud, além de antecipar
vários de seus grandes temas: a
cisão entre corpo e espírito, a defesa de uma poesia performativa da
intensidade, a precariedade do Eu e o caráter excepcional do ato de criação.
CM | Foi difícil adaptar Correspondência
– que é um texto epistolar – para a dança?
WP | Do ponto de vista
teatro-coreográfico, a adaptação de uma troca de cartas oferece desafios
maiores do que obras mais imagéticas como o México e o Momo. O espetáculo Uma
Correspondência traz um drama mental, a confrontação de dois modos de
pensar a arte e a cultura. Estes modos de pensar têm correlações com nossas
concepções do corpo e seu movimento. Mas eu não queria abrir mão do texto em
favor de uma encenação puramente física. Sintetizei as cartas ao máximo,
tentando preservar seu estilo, suas ideias principais. A dramaturgia
coreográfica é dividida em duas esferas conectadas por uma membrana onde se
projeta parte dos textos. A esfera aérea da racionalidade contemplativa de
Rivière é branca, valorizada por movimentos olímpicos e simétricos. O espaço da
intensidade artaudiana é negro, sua dança assimétrica e subterrânea.
CM | A terceira e última
cena do espetáculo traz o encontro de Artaud com vários poetas geniais também
considerados loucos, Friedrich Hölderlin, Gérard de Nerval, Lautréamont, Alfred
Jarry, Charles Baudelaire e Arthur Rimbaud, entre outros. O que motivou a escolha
desses nomes?
WP | Villon, Baudelaire,
Nerval, Poe, Lautréamont, Nietzsche, entre outros, são nomes frequentemente
citados em conjunto por Artaud. Trata-se de afinidades eletivas, de amizades
extemporâneas entre guerreiros poéticos que, segundo Artaud, compartilhavam o
mesmo problema: Eram os campos de batalha de um problema que assola o
espírito humano desde as suas origens: o predomínio da carne sobre o espírito
ou do espírito sobre a carne. Artaud rejeita o rótulo da loucura. Para ele
esses poetas não eram loucos, mas gênios libertos dos costumes e do
conformismo burgueses, que morreram na tentativa de preservar sua
individualidade contra todas as formas de massificação e escravidão
contemporâneas.
CM | Apresentar a obra de
poetas malditos é uma forma de enfocar a loucura na arte ou também outros
sentimentos como a liberdade de criação?
WP | A maior maldição que um
criador pode enfrentar é a tentativa de generalização da singularidade de sua
obra ou sua redução a um sintoma patológico. São estratégias totalitárias
complementares que visam a neutralização das forças transformadoras expressas
em suas criações. Em Artaud, liberdade e criação são dimensões inseparáveis.
Liberdade somente existe no ato da criação de si mesmo. Para ele o mundo, a
vida, o corpo, o Eu, o pensamento e a arte nunca são algo dado, mas algo a ser
criado. Mas este ato de criação não é um bem comum e de fácil alcance; é uma
batalha árdua e permanente contra identidades, formas, essências e leis
preestabelecidas. O rótulo da loucura estigmatiza, mas não explica nada.
CM | No espetáculo há uma
relação entre o impacto que causa a estranheza e a cura. Mas trata-se da cura
de quem? Dos poetas malditos, dos loucos? Ou da sociedade que não alcança a
plenitude de obras tão instigantes quanto a de Artaud e as do panteão de poetas
evocados nesta montagem?
WP | A possibilidade da cura
por meio da arte está ligada ao movimento: atividade, interatividade e
criatividade. Experienciar danças extravagantes de poetas malditos, livres de
juízos moralizantes, pode ter um efeito liberador. Mas essas danças, além de
serem uma festa da singularidade compartilhada, são também zonas de perigo.
Contra o ideal contemplativo do Ocidente, Artaud defende uma estética da
ativação. Para alcançar seus objetivos, seu teatro poético precisa gerar
tensões, desequilíbrios, mistérios. Precisa dinamizar equilíbrios estagnados
por meio de formas de expressão ousadas, impregnadas pela energia viva de suas
forças motrizes. A resistência à assimetria é comum. É o medo da queda. Mas
cura é um fenômeno dinâmico. Depende muito mais da capacidade de cair do que da
utopia de um equilíbrio permanente. A experiência da própria atividade e
criatividade potencializa e fortalece por ser um processo de autopoiesis.
CM | Para traduzir a obra de
Artaud em coreografias você utiliza uma linguagem bastante poética. O que é
mais forte na obra dele, a poesia ou o questionamento incisivo dos valores que
a sociedade impõe como normas de comportamento?
WP | É caraterístico do
taanteatro – ou teatro coreográfico de tensões criado por Maura Baiocchi –
investir no desenvolvimento das faculdades poéticas do performer. Esse
investimento a partir de cada corpo, cada experiência de vida, foge da
uniformização das energias expressivas.
Artaud elegeu a si mesmo como personagem principal de sua poética. E seu Eu,
que encontramos sob nomes variados – Artô, Antonin Nalpas, o Crucificado, o
Revelado ou Antonin Artaud – é o objeto de erosões internas e ameaças externas:
por parte da família, da igreja, da medicina, do Estado. Artaud exemplifica ao
extremo a tensão entre a aguda percepção da precariedade do Eu e a necessidade
de insistir em sua existência. Krísis e a crítica são dimensões
constitutivas de sua poesia que não visa mundos ficcionais, mas a gestação mágica
de seu próprio corpo através do sopro, do som, da palavra e do movimento.
CM | Sobretudo em O
Teatro e Seu Duplo, Artaud faz uma relação entre a peste que assolou a
Idade Média e o teatro, sendo este último uma espécie de transbordamento de
humores, um processo inflamatório, enfim, uma fonte de conflitos. Que conflitos
da atualidade estão presentes neste espetáculo?
WP | Artaud apresenta a
peste como um duplo do teatro, isto é, como um fenômeno de contágio espiritual
e corporal que subverte qualquer tipo de ordem e diferenciação sociais, pondo a
todos, de forma indiscriminada e anárquica, em contato com as forças do caos.
Muitos dos conflitos endereçados no espetáculo são antigos e podem ser
resumidos no problema da codificação e domesticação do corpo pelas instituições
sociais, morais e governamentais. Mas em Uma Correspondência a encenação
aponta para formas novas da peste social e intercultural como a que atualmente
vivenciamos frente às migrações em massa vindas da África e do Oriente Médio.
Fazemos referência a essa tragédia na primeira cena do espetáculo, comparando
as embarcações que hoje naufragam no Mar Mediterrâneo à Grand Saint Antoine,
navio citado por Artaud em O Teatro e a Peste, que traz a doença do
Oriente para Marselhas.
CM | Na sua opinião, quem
são os pestilentos na atualidade ou aqueles indivíduos dos quais o
establishment quer se livrar?
WP | Formações de poder
estabelecem-se em todos os grupos sociais, independentemente de seu tamanho,
suas condições econômicas e preferências ideológicas. A questão que se coloca
não é tanto a de sua legitimidade, mas o grau de seu dinamismo, de sua abertura
à transformação. Posso pertencer ao establishment de um grupo e atuar como
pestilento em relação a outro. Essa constatação impede a confortável divisão do
mundo entre carrascos e vítimas. Pestilento – contagioso e possivelmente letal
– é aquele que, através de seus atos ou sua existência, põe em xeque os
mecanismos auto-imunizantes de um
determinado grupo; suas entranhas do poder, sua corrupção, suas mentiras. Nesse
momento, o lugar de trágico destaque entre os pestilentos contemporâneos, cabe
aos já citados centenas de milhares de migrantes que acabam mortos em alto mar
ou confinados em campos de refugiados. Sua miséria evidencia nossa incapacidade,
atestada por Artaud, de compreender e tomar posse da vida.
CM | As obras de Artaud
atraem uma faixa de público, ao mesmo tempo que afugentam outra por sua
complexidade. Como a Taanteatro Companhia lida com o desafio de atrair público
para uma obra que provoca, no mínimo, um profundo estranhamento?
WP | Artaud virou um mito
cultural do século XX. Nas artes performáticas sua influência é consolidada. Há
admiradores e estudiosos de sua obra nas áreas da poesia, artes plásticas,
cinema, filosofia, estudos culturais e antropologia. Mas seu público não se
reduz aos acadêmicos e eruditos. Nietzsche escrevia para todos e para
ninguém, Artaud para analfabetos. Na periferia de São Paulo
apresentamos espetáculos sobre Zaratustra e Frida Kahlo, com êxito e sem
nenhuma necessidade de simplificação. Por outro lado, quem trabalha com esses
autores não se pauta pelo Ibope, mas pela intensidade do encontro. Ainda assim
tivemos com 50 desenhos para assassinar a magia – um trabalho muito estranho
já no título – um público numericamente expressivo. Artaud enfatiza em O
Teatro e seu Duplo a intenção de fazer pensar por meio do efeito da
orquestração de signos materiais sobre a sensibilidade. Sensação e disposição
para o novo não são o privilégio de um estrato social específico.
CM | Depois deste primeiro
espetáculo, cARTAUDgrafia 1 – uma correspondência, que aspectos da obra
de Artaud você pretende abordar na trilogia prevista para 2015?
WP | Se a primeira encenação
explora o espaço branco da razão ocidental, a segunda parte acompanha a
aventura mística de Artaud na terra vermelha e convulsiva do México. Será um
trabalho inteiramente diferente do primeiro, tanto do ponto de vista do
processo criativo quanto do espetáculo resultante; ritualístico e selvagem. A
última parte focará na arte poética de fazer ouro. Mostra Artaud no auge –
alquimista, xamã, poeta – capaz de navegar nas águas rasas da razão bem com nas
profundezas oceânicas do inconsciente.
2. cARTAUDgrafia 2: Viagem ao México
Publicação original: revista Germina,
setembro de 2015.
CM | A Taanteatro encena
agora o segundo espetáculo da trilogia cARTAUDgrafia que estreou em
maio. Sobre a primeira montagem – relacionada às cartas trocadas por Antonin
Artaud e o editor Jacques Rivière – você comentou que sob o ponto de vista
coreográfico não havia elementos simbólicos tão ricos quanto os deste segundo
espetáculo que traz ao público obras relacionadas ao México, à cultura indígena
e mitológica. Fale sobre essa diferença temática.
WP | cARTAUDgrafia 1: Uma
Correspondência tem como referência principal a troca epistolar entre o
poeta emergente Artaud e o editor da Nouvelles Revue Francaise, Jacques
Rivière. As cartas publicadas em 1924 abordam de maneira poético-filosófica
problemas da genealogia do pensamento e da legitimazação formal da poesia.
Marcam o ingresso de Artaud na vida literária de Paris. cARTAUDgrafia 2:
Viagem ao México mostra Artaud num outro momento chave. Em 1936, depois de
integrar o movimento surrealista, criar o Teatro Alfred Jarry e atuar em filmes
como Napoleão e A paixão da Joana D’Arc e, Artaud está
decidido de sair da cultura ocidental. Nos ensaios e manifestos que compõem O
Teatro e seu Duplo, escritos entre 1931 e 1936, Artaud faz o diagnóstico da
decadência do Ocidente, causada pela separação entre cultura e natureza, para
propor o Teatro da Crueldade, isto é, uma forma de teatro que cura do
predomínio da racionalidade branca sobre a carne. Na terra vermelha do
México, submetendo-se ao rito do peyote dos Tarahumaras, Artaud busca a
experiência da cultura ameríndia original, panteísta e pansemiótica, que põe
o homem de acordo com a natureza. Em Os Tarahumaras, invoca uma
natureza que se expressas por meio de hieróglifos, números e formas humanas,
ressalta o simbolismo do fogo e da cruz mexicana e projeta o corpo humano em
devir geológico.
CM | Como essa riqueza
simbólica vem sendo trabalhada, passando da literatura ao palco?
WP | Para a dramaturgia de Viagem
ao México adaptei textos de O Teatro e seu Duplo, Mensagens
Revolucionárias e Os Tarahumaras. Mesclamos dança, texto, vídeo e
música na tentativa de encenar as energias e ideias essenciais dessas obras. Na
criação coreográfica, dirigida pela Maura Baiocchi, focamos em três práticas do
taanteatro (teatro coreográfico de tensões): o mandala de energia corporal, a
caminhada e o rito de passagem. Por meio dessas práticas, exploramos as linhas
coreográficas gerais da encenação, seus estados psicofísicos e sua atmosfera
tensiva. A abordagem ritualística foi fundamental para a criação da cena Tutuguri
– rito do sol negro, que leva Artaud, por meio da aniquilação simbólica do
Eu, à experiência das forças da terra e do vazio. Essa experiência é
para Artaud uma precondição para o renascimento do ser humano sufocado pela
profusão dos códigos culturais. Nessa produção a Taanteatro Companhia conta com
elenco de onze performers e com a colaboração de dois pintores argentinos,
Onofre Roque Fraticelli e Candelária Silvestro, que respondem à imagética
artaudiana nos planos cenográfico e de figurino. A música original
eletroacústica é de Gustavo Lemos e traz a materialidade de ruídos naturais,
referencias da sonoridade tarahumara e de hinos e músicas que marcam as
ideologias da época.
CM | Quais as diferenças ou
aproximações entre o primeiro e o segundo espetáculo da trilogia?
WP | Uma Correspondência demarca os limites do
espaço da racionalidade branca, da cisão entre pensamento e corpo; Viagem ao
México explora o embate entre duas concepções da vida: o materialismo
europeu e a espiritualidade dos descendentes de Moctezuma. Em 1924, Artaud
ainda deseja ascender ao Olimpo da cultura europeia, em 1936 declara a revolução
total contra os valores e as formas dessa cultura. A revolução artaudiana
é, diferentemente da revolução marxista, uma revolução interior que deve
preceder qualquer outra forma de transformação política ou económica. Essa
ruptura com a cultura do Ocidente dá, ao mesmo tempo, continuidade à
radicalização de seu trajeto existencial. Artaud caracteriza sua ida ao México
como fuga da estagnação europeia e busca uma nova ideia do homem. Com
essa viagem de inspiração cosmológica, Artaud se lança num rito de
desintegração que culmina em sua internação e permanência no limbo dos
hospitais psiquiátricos ao longo de nove anos. Na encenação buscamos dar conta
dessa transformação por meio de uma linguagem corporal e audiovisual mais crua
e elementar. A ideia é que performers e público se desloquem no plano sensível
e intelectual junto com Artaud.
CM | Esse envolvimento de
atores e público, com o rompimento dos limites do palco, faz parte também das
ideias de Artaud, não?
WP | Em termos formais, o
Teatro da Crueldade foi concebido por Artaud como uma retomada da ideia de um
teatro total que rompe com as fronteiras
espaciais tradicionais entre palco e público. Artaud via o teatro como uma arte
autônoma, isto é, dotada de uma linguagem especifica e definida pelas
possibilidades de expressão no espaço, não sob o domínio da literatura
dramática e da lógica, mesmo que oculta, do verbo. Artaud queria expressar ideias
e fazer pensar por meio de ações espaço-sensoriais dirigidas aos sentidos. É
importante notar que Artaud não rejeitava de forma genérica o uso da palavra no
teatro. Mas ele questionou a prioridade da palavra em relação à multiplicidade
das formas de expressão que compõem a linguagem do teatro. O projeto cARTAUDgrafia
não tem a pretensão de exemplificar o Teatro da Crueldade. A trilogia faz uso
extenso dos textos de Artaud. Preserva a separação entre palco e plateia. A
intensidade do encontro entre performers e público não está condicionado à
interações diretas entre ambos. Numa perspectiva pós-histórica das formas da
arte, qualquer forma e qualquer tipo de ruptura formal correm o perigo da
re-institucionalização. Do ponto de vista da intensidade, a vitalidade do
encontro entre obra e público não depende somente da novidade, mas da
capacidade de manter o vínculo energético entre as formas empregadas e as
forças expressivas que as alimentam.
CM | A viagem ao México
empreendida por Artaud desencadeia um embate cultural, com críticas ao
pensamento ocidental e ao colonialismo tendo em vista a comparação com aspectos
antropológicos e da cultura indígena. Que aspectos você destacaria como
importantes neste conflito que proporcionou também um boom criativo a Artaud?
WP | Artaud considera o
problema filosófico milenar da separação entre corpo e alma como cerne da crise
do Ocidente. Segundo Artaud, a cultura ocidental perdeu o contato com as forças
naturais e cósmicas que subjazem a proliferação das formas. O dualismo levou o
homem europeu, de um lado, à crença num mundo transcendente incapaz de explicar
o mundo empírico e, de outro, a um materialismo que não compreende a natureza
da consciência. O pensamento ocidental, diz Artaud, repousa numa imagem da
vida sem movimento. Simplificando, o Ocidente pensa na perspectiva do ser
de Parmenides, não do devir de Heráclito. E esse paradigma de uma realidade
essencialmente imutável, exerce a priori efeitos de poder sobre o comportamento
cultural e intercultural do Ocidente, historicamente definido pela conquista e
colonização, pelo desprezo e destruição de outras culturas. A crítica
artaudiana volta-se contra o espírito da burguesia, mas também contra o
marxismo que, de acordo com Artaud, limita-se à revolução social. Artaud
propõe uma revolução total. Ele não acredita que a desapropriação
solucione os problemas sociais; para ele é preciso eliminar o espírito de
propriedade em todos os planos. E isso exige uma revolução simultânea: das
condições de produção, mas, sobretudo, da cultura e da consciência, ou seja,
das maneiras de viver e de pensar.
Artaud critica a
orientação modernista do México de 1936, voltada para ideologias da Europa. Mas
acredita que a antiga cultura solar mexicana possui segredos que podem
ajudar na reconciliação dos seres humanos com o universo. Uma diferença
fundamental em Artaud é que o poeta experiencia macro-problemas, sociais e
cósmicos, como inseparáveis da micro-esfera de sua própria carne, não como
passatempo acadêmico. Consequentemente, não se aproxima da cultura indígena com
o distanciamento analítico do estudioso. Abandona o papel do mero observador
para vivenciar o desconhecido. Busca a revolução interior através da
redescoberta das forças da natureza em seu próprio corpo. A intensidade da produção
de Artaud devém de sua elevada tensão existencial.
CM | Na sua opinião, a crise
profunda de Artaud com a cultura ocidental é muito preponderante sob o ponto de
vista de desencadear também uma crise existencial que culminou com o
agravamento de sua doença psíquica?
WP | Artaud tem consciência aguda da constituição sociocultural do corpo. Sabe que nas codificações do corpo expressam-se as maneiras de ser e de pensar validadas por uma determinada cultura. Mas o que acontece quando esses valores e essas maneiras negam a natureza? Adaptação ou revolta. Adaptação a um modo de vida interiormente divido. Revolta contra a cultura que constitui o próprio corpo. Separação da natureza e conflito com a cultura. A integridade e a integração social do indivíduo são comprometidas, em ambos os casos. Muitos de seus contemporâneos, surrealistas ou não, viraram administradores ou marchands de seus inventos revolucionários juvenis. Artaud nunca desviou do caminho da revolta. Tomar juízo na medida em que envelhecemos, essa é expectativa social. Acontece que Artaud combateu o juízo – de Deus, da moral, da razão, do Estado – até o fim de seus dias. Por isso Breton pode dizer com razão que a juventude sempre reconhecerá essa chama extinta como sua própria. A revolta de Artaud e sua busca de conciliação entre cultura e vida o levaram à projeção aparentemente impossível de um corpo verdadeiro e autônomo, inteiramente livre de determinações socioculturais e até mesmo biológicas: o corpo sem órgãos. Corpo supra-histórico que vai ao encontro do super-homem nietzscheano e de um pensamento da imanência. Trata-se de loucura ou de uma das grandes inspirações filosóficas do século XX?
CM | Em que medida a
criatividade e a loucura se relacionam nas obras de Artaud? Dá para separar ou
reunir criação e delírio?
WP | De-lirare significa estar fora
do lugar, creare expressa a ideia de gerar algo novo. O que considero
dentro ou fora do lugar, velho ou novo, sempre depende dos sistemas de
referência a minha disposição. Tanto a avaliação quanto a criação do novo
demandam uma disposição de deslocamento, a capacidade de sair de um sistema de
referência. Do ponto de vista do sistema vigente, o problema que se coloca é se
e como integrar o novo. O novo pode ser percebido como ameaça para antigas formas
ou como oportunidade para sua transformação. Taxar certas formas de vida de
loucura ou delírio é um modo negativo de integração, integração via condenação,
marginalização. Artaud queria sair de um mundo falso onde cem
antepassados pensaram e viveram para nós, já antes de nós. Ele queria sair
do paradigma e da gramática que definem o pensamento e a linguagem do Ocidente.
Poderíamos chamar seu pensamento de intencionalmente delirante. Mas Artaud
rejeitava que os psiquiatras desqualificassem seu pensamento, não-localizável e
extemporâneo, como delírio. Em outras palavras, precisamos dar atenção ao
contexto estratégico do emprego de um vocabulário, antes de simplesmente
afirmar que em Artaud criação e delírio são indissociáveis.
CM | Como os embates de Artaud
se aproximam dos conflitos culturais da contemporaneidade?
WP | A atualidade das ideias
de Artaud é múltipla, sua crítica é complexa. Ataca as instituições do
pensamento e da sociedade. Capitalismo, Estado, moral, religião, corrida
belicista, guerra econômica, nacionalismo, imperialismo, colonialismo,
progresso industrial; a lista de seus alvos é abrangente. O objetivo do Teatro
da Crueldade – conciliação do ser humano com a natureza e o cosmos – pode ser
interpretado como pensamento ecológico e holístico pioneiro, baseado numa
crítica da razão ocidental e de suas implicações mecanicistas. Nossa trilogia,
em sua segunda fase, continua antenada aos fluxos migratórios contemporâneos,
situando-os como consequências tardias da conquista e das colonizações. Hoje os
descendentes dos astecas fogem de suas próprias terras para sobreviver como mão
de obra barata nos EUA, os bisnetos dos maias escravizam-se em confecções de
vestuário neo-coloniais do Bom Retiro.
CM | Qual o motivo desse
segundo espetáculo abarcar especialmente as obras O Teatro e Seu Duplo, Mensagens
Revolucionárias e Os Tarahumaras, entre outros?
WP | O Teatro e seu Duplo contêm pelo menos dois
textos em que o complexo México é de grande importância: a crítica cultural do
prefácio, escrita sob a inspiração da viagem, e A Conquista do México
(1933), previsto por Artaud como primeira encenação do Teatro da Crueldade. Mensagens
Revolucionárias é um conjunto de artigos, escritos poéticos e conferências
publicados ou proferidos primeiramente em espanhol ao longo de 1936. Nesses
textos Artaud expõe, entre outros assuntos, os motivos de sua fuga da cultura
europeia e suas expectativas relativas à redescoberta da alma indígena.
Em 1975, no México, esse material foi organizado pela primeira vez num livro
intitulado México y Viaje al país de los Tarahumaras, ou seja, junto à
recriação da experiência de Artaud na Sierra Tarahumara, formada por escritos
realizados entre 1936 e 1948. Juntas as três obras formam um caleidoscópio de
perspectivas sobre a possibilidade de libertação do ser humano; uma libertação
xamánica nas serras de um México mítico, criado e vivenciado por Artaud.
CM | As obras de referência
desse espetáculo foram escritas entre 1934 e 1947, seria o período mais
importante da criação de Artaud, tendo em vista que ele faleceu em 1948?
WP | A produção literária de
Artaud estende-se de 1914 a 1948 e é composta por poemas, artigos, cartas,
manifestos, roteiros e romances. Artaud considerava seus escritos iniciais
atípicos para ele mesmo. Por isso suas obras completas abrem com Carta ao
Papa e Correspondência com Jacques Rivière. Existem textos
surrealistas importantes escritos entre 1925 e 1927: O umbigo dos limbos
ou O pesa nervos. Heliogábalo, ou o anarquista no trono é de 1934.
Mas seus livros mais conhecidos certamente são O Teatro e seu duplo (1937),
De uma viagem ao país dos Tarahumaras (1937), Van Gogh, o suicidado
da sociedade (1947), Cartas de Rodez (1946) e Para acabar com o
juízo de deus (1948). Deve-se, sobretudo, às dificuldades de tradução que
obras com Artaud, le Momo (1947) ou Suppôts et Suppliciations
(1947/48) permaneceram internacionalmente menos conhecidas. Depois de 1920 a
sequência de suas publicações foi interrompida somente entre 1939 e 1943,
devido a sua internação durante a Segunda Guerra Mundial. Há indícios que
escrevia durante esse período, mas faltam provas documentais dessa produção.
Nesses anos desenvolveu novos modos de expressão poética reunindo o sopro, a
glossolalia, o desenho, o texto e a dança: uma espécie de teatro da crueldade
no plano performático de seu próprio corpo. Em 1946, Artaud sai do manicômio
com vontade de criação e comunicação acumulada. O retorno do Momo foi um
acontecimento no meio artístico de Paris e rendeu, entre 1946 e 1948, algumas
das obras mais virulentas da poesia do século XX.
CM | Ao que consta, nunca
uma trilogia que tem como referência a obra de Artaud, com este nível de
complexidade, foi montada e encenada no Brasil. Como você se sente diante desse
desafio?
WP | No Brasil tivemos
encenações de peso em torno de Artaud. Rubens Corrêa realizou em 1986 o
aclamado Artaud! Em 1996, produzi em São Paulo a
mostra Artaud 100 Anos e comissionei ao Teatro Oficina Para acabar
com juízo de deus (recentemente reapresentado) e A Conquista do México
ao coreografo japonês Min Tanaka com elenco brasileiro. Na mesma ocasião, Maura
Baiocchi encenou Artaud – onde deus corre com olhos de uma mulher cega,
e o Amok Teatro apresentou em 1998 Cartas de Rodez. No ano passado
encenei 50 desenhos para assassinar a magia. Isso para citar exemplos do
eixo Rio-São Paulo. O que distingue cARTAUDgrafia dessas encenações são
o foco, o formato e a duração do trabalho. Não encenamos um livro específico de
Artaud, fazemos um mapeamento seletivo de sua vida e obra, tendo em vista o
entrelaçamento de três campos críticos: as crises do espírito, da cultura e da
linguagem. Com duração final de quatro a cinco horas a trilogia dá preferência
a textos inéditos ou menos abordados no Brasil.
CM | Quais as suas expectativas
em relação à montagem deste novo espetáculo? O que deseja e que o que acha que
já foi alcançado?
WP | Espero que a nova
encenação seja potente, poeticamente instigante; que, ao abordar a incursão de
Artaud na cultura indígena, mostre facetas menos conhecidas e surpreendentes de
sua obra. Espero poder fugir do mito Artaud e de seus estereótipos. Creio que
em cARTAUDgrafia 1: Uma Correspondência conseguimos captar a lucidez
deste poeta, uma intensidade cristalina sem apelo a uma enfastiante pseudo-visceralidade.
Espero que cARTAUDgrafia 2: Viagem ao México possa transportar o
imaginário do público para além do habitual, e que seja capaz de evidenciar a
atualidade dos questionamentos artaudianos no contexto das imagens que soubemos
colocar em movimento.
CM | A trilogia dedicada à
obra de Artaud será levada também ao exterior? Há planos neste sentido?
WP | É sempre um prazer
poder compartilhar seu trabalho com o público de outros lugares, no Brasil ou
no exterior. Mas é um empreendimento que depende de condições profissionais
adequadas. Política e mercado culturais do Brasil carecem de mecanismos fortes,
capazes de estimular a confiança na viabilização desse tipo de difusão. A mera
manutenção de um grupo artístico, dedicado a um projeto cultural significativo
de médio ou longo prazo, constitui um imenso desafio econômico. Viajar ao
exterior com um projeto grande demanda contatos privilegiados ou enfrentar
meses extenuantes de produção e de pedidos provavelmente infrutíferos.
Atualmente o Ministério da Cultura está reduzindo seus investimentos e o
empresariado brasileiro prefere investir em formas de entretenimento,
supostamente populares, que valorizam sua marca. Nosso foco nunca foi a
valorização de marcas e duvido da possibilidade de encontrar empresários
culturalmente sensíveis que atuem além dessa meta. Mas, naturalmente, estamos
abertos a propostas.
3. O embate crucial de Artaud
Publicação original: Agulha Revista de
Cultura, novembro de 2015.
CM | Um dos textos
fundamentais de cARTAUDgrafia 3 – que inclusive dá título ao espetáculo
– é Artaud, o Momo. A palavra Momo pode ser entendida de diversas
formas: alguns a associam à palavra criança (momê em francês), outros a ligam
ao Momo no sentido do bufão, do bobo, do louco e há ainda a relação com Momos,
o deus grego do teatro satírico. Tendo em vista que, ao longo da trilogia, a
Taanteatro Companhia abordou tanto a infância de Artaud quanto sua relação com
a loucura, como essas duas fases – ou faces – se relacionam neste último
espetáculo?
WP | A identificação de
Artaud com a figura do Momo está presente nos títulos de duas obras escritas em
1947: Artaud, o Momo, livro de poemas, e A Verdadeira História de
Artaud-Momo, a lendária conferência proferida no Théâtre du Vieux
Colombier. É provável que ele valeu-se intencionalmente da multiplicidade de
sentidos que o termo suscita, dessa mistura instigante de consciência alterada,
crítica e humor. Nossa trilogia evita a redução da abordagem da produção
artaudiana a um ponto de vista da patologia. Estamos interessados na atualidade
dos problemas que levantou. Ao distinguir em sua trajetória duas fases
separadas pela irrupção da loucura, corremos o perigo de adotar uma ótica que
Artaud rejeitou, a da psiquiatria. Prefiro considerar as particularidades de
seu processo de subjetivação e de suas transformações espirituais como um
processo de radicalização contínuo que se desdobra ao longo de sua vida. Para
compreender essas transformações é imprescindível perceber sua relação estreita
com a crítica de Artaud da cultura do Ocidente, com seu interesse prático de
superar o problema milenar da separação de corpo e espírito por meio do Teatro
da Crueldade. O diferencial em Artaud é sua tentativa de transcender o plano
meramente discursivo ou artístico. Essa tentativa em forma de uma revolução
interior o leva à ruptura com os paradigmas cognitivos, comportamentais e
criativos de sua cultura, e culmina, em 1937, em sua deportação da Irlanda e na
internação em manicômios franceses até 1946, ou seja, durante todo período da carnificina
industrializada promovida pela Segunda Guerra Mundial. Cada parte da trilogia
problematiza elementos dessa transfiguração ativa que visa em última instância
a criação do corpo sem órgãos, isto é, um corpo autônomo, livre de
determinações socioculturais e até mesmo biológicas. Em cARTAUDgrafia 3:
Retorno do Momo elaboramos trechos da conferência de Artaud, seu acerto de
contas com a psiquiatria.
CM | Na História da
Loucura, Michel Foucault aborda a situação do Bobo ou do Louco na Idade
Média como a do portador da verdade. Eram os bobos, de forma teatral,
que diziam à sociedade aquilo que ninguém tinha coragem de dizer, valendo-se do
humor e da sátira. Levando-se isso em conta, podemos dizer que Antonin Artaud
teve o papel de portador da verdade em seu tempo, ainda que pesasse
sobre ele o estigma da loucura?
WP | Desde a sua
participação no movimento surrealista, Artaud faz questão de confrontar a
sociedade com verdades inconvenientes relativas à arte, cultura, sociedade,
religião, família, pátria, propriedade, guerra, medicina e às drogas.
Paralelamente, ele constrói o personagem Antonin Artaud, que desempenha, no
limiar entre vida e obra, o papel de um portador de tais verdades. Em função de
sua aproximação com Nerval, Nietzsche e Van Gogh, mas, sobretudo, por
experiência própria, Artaud sabia que a sociedade aceita e cultiva de bom grado
as mais absurdas crenças religiosas ou ideológicas, mas dificilmente tolera
certas perspectivas individuais que põem os códigos coletivos em questão. Quem
se opõe ao coletivo deve ser insano, consequentemente acaba estigmatizado.
Creio que Artaud aborda o tema do Momo consciente dos efeitos da história da
loucura sobre sua própria trajetória. Mas nele não existe nenhuma identificação
com a subalternação do bobo da corte, isto é, ao poder. Artaud tem vocação pelo
absoluto e isso o leva à superação revolucionária da história em nome do devir,
como anarquista coroado no trono de sua própria consciência.
CM | Correspondendo à obra
de Artaud, cARTAUDgrafia 3 faz uma intensa crítica aos tratamentos
psiquiátricos, isso representa um grande eixo dentro da montagem. Essa
abordagem demandou pesquisa além das obras de Artaud, houve incursão também
pelos novos métodos de tratamento tendo em vista a expansão da indústria farmacêutica?
WP | A crítica à psiquiatria
é uma dimensão fundamental dos últimos escritos de Artaud e precisa ser
considerada num trabalho como o nosso. Mas não entramos no campo de uma crítica
aos tratamentos da psiquiatria contemporânea, apesar de considerarmos todas as
tentativas de normatização da consciência com sérias reservas. A pesquisa
bibliográfica relativa a Artaud foi extensa. Incluiu, além da obra de Artaud,
biografias e estudos diversos, entre os livros Antonin Artaud na Guerra e
Sobre o eletrochoque, o caso Antonin Artaud de Florence de Mèredieu que
forneceram dados importantes para a criação dramatúrgica.
CM | Em Artaud o Momo,
o autor fala da perda de identidade e de um estado de escoamento que
chega ao vazio, tendo em vista os tratamentos cruéis a que foi submetido. Essa
fragmentação da identidade ou dissolução do Eu foram abordados de que forma no
espetáculo?
WP | Os problemas do Eu e do
Vazio formam uma constante da reflexão de Artaud. Na esteira de Nietzsche,
Artaud questiona a noção do Eu como elemento fundamental do pensamento
ocidental. Ao mesmo tempo, insiste, heroicamente e com grande intensidade, na
afirmação, defesa e criação do Eu de Antonin Artaud. Essa tensão ambígua
caracteriza também sua relação com o Vazio. O Eu e o Vazio designam um limiar
entre a possibilidade e a impossibilidade da vida. Artaud busca a revolução
interior do ser humano, submetendo-se voluntariamente a um rito mexicano que
implica na morte simbólica do Eu. Mas no manicômio recusa, compreensivelmente,
a submissão involuntária à sismoterapia de dissolução-reconstrução, que
opera a desconstrução simbólica de um Eu considerado doente por meio do
eletrochoque. Em outras palavras, a aceitação ou recusa do Eu ou do Vazio
dependem de um contexto que define a noção da saúde em relação à autonomia. O
eletrochoque intervém na vida de Artaud com ironia sinistra: como versão
niilista do Teatro da Crueldade. Na primeira parte de Retorno do Momo
construímos um ambiente povoado por visões, vozes, gestos e movimentos em
estado de suplício e revolta. O combate de um Eu ameaçado em sua integridade
pela “magia negra” do juízo
psiquiátrico e pelos fantasmas de uma sociedade hipersexualizada. Na segunda
parte da peça vemos a resposta crítica de Artaud e sua proposta: a criação de
uma nova anatomia humana.
CM | Como deu-se a escolha
de outros textos – além de Artaud o Momo – para fechar a trilogia? O que
determinou essas escolhas?
WP | A dramaturgia de cARTAUDgrafia
3 é composta por textos provenientes de As Novas Revelações do Ser, A
Verdadeira História de Artaud-Momo, Supostos e Supliciações, Carta
a Pierre Loeb e O Rosto Humano. Além disso, aproveitamos protocolos
médicos e cartas de Artaud do período de internação e a produção pictográfica
do poeta. Dada a riqueza da produção de Artaud posteriormente à sua saída do
manicômio, é claro que qualquer seleção depende de certas preferências. Minhas
escolhas foram motivadas pela intenção de evidenciar uma linha de continuidade
no percurso poético-existencial de Artaud. Essa linha leva de sua desintegração
da cultura europeia, tematizada em Viagem ao México, até um de seus
grandes legados: a concepção do corpo sem órgãos. A ideia da desorganização e
ativação cognitiva do corpo humano por meio de um bombardeio sensorial já
pertencia ao programa do Teatro da Crueldade. Mas a privação de acesso à
máquina convencional da cultura, durante o período de internação, e a
experiência própria da desintegração do Eu sob o eletrochoque, devem ter
reforçado a transferência do foco dos interesses de Artaud: da revolução da
instituição do teatro para a desinstitucionalização de seu próprio corpo. As
Novas Revelações do Ser traz a descrição da separação do poeta do mundo
social e sua invocação de um combate entre forças supra-históricas; os
protocolos psiquiátricos e as cartas artaudianas, dirigidas a políticos,
Hitler, sua mãe e seus médicos, opõe sua luta por liberdade e integridade ao
jargão dos representantes do mundo manicomial; A História Verdadeira de
Artaud-Momo denuncia expressamente a psiquiatria e prepara, a partir de um
reconhecimento – eu não tenho o corpo
que eu deveria ter – a afirmação da necessidade de uma revolução da anatomia
humana. De Supostos e Supliciações selecionei trechos que especificam a
revolta artaudiana contra as codificações do corpo e as glossolalias com o
intuito de encenar o surgimento de uma nova maneira de expressão poética.
Finalmente, em Carta a Pierre Loeb, Artaud esclarece sua concepção do
corpo sem órgãos na figura do homem-árvore, mítico ancestral do ser
humano atual, dotado de pura vontade que decide de si a cada instante.
WP | Deleuze e Guattari
observaram, com bons motivos, que o corpo sem órgãos é algo que nunca se
alcança. A forma definitiva, desvinculada das energias que engendram essa
forma, é a morte do corpo sem órgãos. Quem deseja criar uma coreografia sem
órgãos precisa estar disposto a uma luta permanente contra a formalização,
funcionalização e institucionalização do corpo. Isso implica no combate contra
os próprios inventos deste corpo. O taanteatro ou teatro coreográfico de
tensões dispõe de práticas criativas que estimulam a dança singular de cada
performer. Em cARTAUDgrafia, como em outras produções da Taanteatro
Companhia, procuramos integrar essas singularidades, tanto em trabalhos solo
quanto em cenas e coreografias coletivas. Em termos concretos isso significa
que os performers improvisam a partir de um disparador criativo – uma tensão
metafórica ou temática – proposta pela direção coreográfica. Essas
improvisações ocorrem, por exemplo, no Mandala de Energia Corporal, dinâmica
coreográfica concebida por Maura Baiocchi que integra as faculdades sensíveis,
corporais e cognitivas do performer a favor de uma presença coreográfica em que
força e forma não se divorciam. Os inventos e achados dessa prática passam por
processos seletivos e de compartilhamento. Em outros espetáculos da trilogia
tivemos momentos marcantes, um deles foi a interpretação de Maura Baiocchi para
Montezuma em cARTAUDgrafia2 – Viagem ao México, que remete à ideia de um
transe teatral, dada a intensidade com que se dá a metamorfose da
performer em cena.
CM | Em cARTAUDgrafia 3
como são trabalhados momentos assim tão exigentes e intensos que remetam a
verdadeiras transfigurações?
WP | Todo a equipe de cARTAUDgrafia
trabalha com grande dedicação, mas a dramaturgia reserva momentos de maior
destaque individual ao personagem de Artaud que é presentificado por performers
diferentes. O Artaud em idade adulta conta com a atuação de Alda Maria Abreu e
Maura Baiocchi. Ambas desempenham seu respectivo papel de forma impressionante;
não por mimetizarem o personagem histórico, mas por incorporarem e atualizarem,
cada uma à sua maneira, as energias e os problemas artaudianos. Maura Baiocchi,
como Antonin Artaud e Montezuma, é fora de série. Compartilha com Artaud o
corpo poroso, conectivo e radiante, o corpo esquizofrênico invocado por Deleuze em Lógica do Sentido,
a esquizopresença no taanteatro. É um
fenômeno que transcende a representação teatral convencional. A Taanteatro
Companhia procura cultivar essa disposição por meio de práticas criadas pela
própria Maura. Mas é preciso tomar cuidado com a expressão transe teatral.
Ela pode levar à falsa impressão de uma perda de consciência. Artaud recusou o
transe no teatro. Crueldade significa lucidez aplicada. A qualidade da
presença performática em questão demanda um grau extremo de lucidez e de
percepção das complexas inter-relações de todos os elementos que compõem o
acontecimento performático. Se quisermos estabelecer uma relação entre a
esquizopresença e o transe teatral, a correspondência seria talvez o
transe controlado do xamã. Em cARTAUDgrafia 3, sobretudo no último
monólogo, deparamo-nos com tais instantes, sublimes e extemporais, que não
fazem concessão aos costumes habituais da dança e do teatro.
CM | A deportação de Artaud
da Irlanda – que abre o espetáculo – retoma o tema das migrações
intercontinentais já abordado nos espetáculos anteriores e que funcionam como
uma crítica geopolítica da situação dos nômades que cruzam os mares e muitas
vezes sucumbem à travessia. O que diferencia ou aproxima a deportação de Artaud
da realidade contemporânea?
WP | Ao longo da trilogia,
estabelecemos uma relação entre as migrações extensivas atuais, empreendidas
por motivos políticos, econômicos e ideológicos, e as migrações intensivas que
caracterizam Artaud. Em ambos os casos, é possível falar de tentativas de
autopreservação e autorealização. Por acaso e ironicamente, o Acordo de Dublin
designa na atualidade uma lei que define a política voltada aos refugiados da
União Europeia. Mas naturalmente, seria equivocado insistir em correspondências
excessivamente diretas entre o poeta Artaud em 1937, em busca das fontes
originais da cultura celta na Irlanda, e os problemas enfrentados pelos
migrantes vindos da Síria, Eritreia ou da Nigéria em 2015. Ainda assim, e
apesar das diferenças históricas óbvias, é possível perceber, em ambos os
casos, a grande dificuldade sociocultural, política e econômica de integrar e
se abrir a pessoas e grupos de origens, valores e modos de vida distintos, que,
por motivos diversos, se veem forçados a abandonar uma forma sedentária de vida
e de procurar novas maneiras de existência. Os migrantes, tanto no plano da
geografia quanto no da consciência, são confrontados com fronteiras múltiplas e
muitas vezes são percebidos como invasores indesejados, como uma espécie de
peste social que ameaça o status quo. E, por este motivo, são privados, pelas
sociedades que sentem-se ameaçadas, de sua liberdade e individualidade. É
importante observar que Artaud, em suas viagens e apesar de certos impulsos
místicos, permanecia em última análise “fiel à terra”, num sentido
nietzscheano. Em contrapartida, muita gente, sedentária e supostamente
pragmática, prefere fugir da realidade para paraísos extraterrenos.
CM | Neste espetáculo,
Artaud inicia sua jornada saindo da Irlanda com um bastão que o transforma numa
figura messiânica, isso mais tarde desemboca no seu delírio de se tornar Jesus
Cristo. De que forma isso liga-se na sua vida e no espetáculo à dissolução de
sua identidade, à medida que ele toma outro corpo e, ainda por cima,
santificado?
WP | O desejo dirigido ao
infinito aparece cedo na obra de Artaud, por exemplo, no poema de juventude Navio
Místico. Sabemos que ele passou por flutuações de identidade e por
variações da identificação com Jesus Cristo, especialmente ao longo de sua
internação entre 1932 e 1946, mas o rótulo do delírio contribui pouco à
compreensão dessa identificação. Em A Verdadeira História de Artaud-Momo,
Artaud recusa de forma definitiva a identificação com Jesus Cristo e deixa
claro que considera Deus, ou o conceito de Deus, como entidade parasita que se
apropria e alimenta indevidamente do corpo e da vida humanos. Mostramos isso no
espetáculo. Nossa encenação, apesar de inegáveis simpatias, não idealiza nem
demoniza Artaud. Não o apresenta como louco, nem como santo. Abordamos
problemas apontados por Artaud à medida que ainda possuem relevância para nós.
Entre estes problemas figura a relação entre liberdade e pureza. A pureza
artaudiana não define uma conduta moralista, mas a autodeterminação do corpo
sem órgãos.
CM | O corpo metafísico ou a
proposta do corpo sem órgãos de Artaud é
preponderante neste último espetáculo. Podemos dizer que neste envolvimento
visceral com um dos conceitos fundamentais de Artaud, a Taanteatro realiza uma
jornada importante no campo do Teatro da Crueldade?
WP | O Teatro da Crueldade é
uma poética desenvolvida por Artaud entre 1934 e 1948, que passou por
transformações profundas, deslocando seu foco, cada vez mais, do estético para
o existencial. Em seu último estágio, o Teatro da Crueldade não propõe formas
inovadoras de praticar artes cênicas, mas a transformação da anatomia humana.
Essa proposta culmina no conceito e na prática do corpo sem órgãos que
constitui até hoje um desafio contínuo nas artes e na filosofia. Frente ao
problema filosófico milenar da separação entre corpo e alma, o Teatro da
Crueldade reflete sobre a relação entre energia e signo, enfatizando a
importância da vinculação sensível dos signos performáticos. A pesquisa do
taanteatro desenvolve-se no contexto dessa tradição e, num projeto como cARTAUDgrafia,
revisita inevitavelmente os desafios lançados por Artaud. Mas tendo em vista o
desenvolvimento conceitual e criativo do teatro coreográfico de tensões e da
Taanteatro Companhia ao longo dos últimos vinte e cinco anos, é evidente que
nossa encenação não está movida pelo ímpeto de realizar as propostas
artaudianas articuladas há sete décadas atrás.
CM | A presença dos coros é
muito forte em cARTAUDgrafia 3. Esse foi o modo de representar a
importância das sonoridades em Artaud tendo em vista as glossolalias e outras
experiências poéticas ou de linguagem delirante?
WP | Em cARTAUDgrafia o coro aparece vigorosamente em Viagem ao México e ganha força ainda maior em Retorno do Momo. A decisão de recorrer ao coro é motivada por uma ideia-chave do Teatro da Crueldade que o aproxima do teatro trágico e que articula a relação entre indivíduo, mito e devir. Em Viagem ao México resumimos essa ideia artaudiana da seguinte maneira: o verdadeiro teatro coloca-se ao lado da vida, não da vida individual, mas de uma vida liberta em que a individualidade não passa de um reflexo. Sua tarefa é a criação de um mito, a expressão da vida sob um aspecto universal. O coro é uma forma concreta dessa expressão universal da vida. Trabalhamos com esse veículo de diversas maneiras: Em Viagem ao México um coro de indígenas acompanha e dialoga com o corifeu Artaud em sua crítica da racionalidade branca. Em Retorno do Momo um quarteto de vozes traz uma atmosfera delirante composta por repetições e sobreposições de textos de cartas artaudianas. Nessa peça o coro diferencia também a atmosfera dos textos que abordam o corpo sem órgãos. Usamos recursos diversos de recomposição de textos para grupos de vozes, variações de ritmo, tendo a palavra como matéria sonora – com o intuito de evidenciar o sentido desses textos por meio de uma presença sonora cativante. Um dos coros de Retorno do Momo está dedicado às glossolalias de Artaud, linguagem única de Lettura d’Eprahie, livro mítico e perdido que, segundo o poeta, melhor o representa.
NOTA
As imagens que
acompanham a entrevista integram o acervo da Taanteatro Companhia e foram
gentilmente cedidas por Wolfgang Pannek.
CÉLIA MUSILLI | Jornalista, cronista e poeta. Autora dos livros Sensível desafio (2006) e Todas as mulheres em mim (2010), participou de várias publicações e coletâneas de poesia e crônica. Mestre em Teoria e História Literária pela Unicamp, atualmente é editora de cultura do jornal Folha de Londrina.
Agulha Revista de Cultura
CODINOME ABRAXAS # 02 – TAANTEATRO COMPANHIA (BRASIL)
Imagens: Acervo Taanteatro
Editores:
Floriano Martins | floriano.agulha@gmail.com
Elys Regina Zils | elysre@gmail.com
ARC Edições © 2025
∞ contatos
https://www.instagram.com/agulharevistadecultura/
http://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/
FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
ELYS REGINA ZILS | elysre@gmail.com
Nenhum comentário:
Postar um comentário