quinta-feira, 20 de março de 2025

CÉLIA MUSILLI | Três vezes conversando com Wolfgang Pannek

 



1. Taanteatro põe Artaud na dança

Publicação original: revista Caros Amigos, maio de 2015.

 

A companhia paulistana de dança Taanteatro estreia em maio um projeto ousado: cARTAUDgrafia. O título é uma combinação da palavra cartografia com o nome de Antonin Artaud, propondo um mapeamento estético de sua obra através de coreografias. Trata-se de um mergulho na vida e obra de Artaud, poeta, dramaturgo e pensador francês conhecido por suas rupturas e inovações na linguagem, além das ideias que o colocam como um dos nomes mais importantes do teatro do século 20.

Na entrevista a seguir, o diretor Wolfgang Pannek fala do projeto cARTAUDgrafia, composto por três espetáculos a serem encenados em 2015, através do Programa de Fomento à Dança para São Paulo – 16ª edição. O primeiro deles estreia no próximo dia 22 de maio, seguindo em temporada até o dia 31. As outras duas estréias acontecerão até o fim do ano. Alguns textos de Artaud escolhidos para essas montagens – Correspondência com Jacques Rivière; México: Viagem ao País dos Tarahumaras e Mensagens Revolucionárias, além de Artaud, o Momo – nunca haviam sido encenados nem traduzidos integralmente no Brasil.

Pannek, alemão radicado no país desde 1992, co-diretor da Taaanteatro Companhia juntamente com a bailarina e coreógrafa Maura Baiocchi, tem uma trajetória marcante. Entre outras coisas, dirigiu Homem Branco e Cara Vermelha, Primeiro Fausto, Esperando Godot e Máquina Hamlet Fisted, atuou como coreógrafo e ator em Os Sertões, sob direção de José Celso Martinez Corrêa, é co-autor dos livros Taanteatro – teatro coreográfico de tensões, Taanteatro – rito de passagem e Taanteatro MAE Mandala de Energia Corporal.

Na entrevista, ele fala das traduções e encenações inéditas dos textos de Artaud e do desafio de converter os escritos do poeta e dramaturgo francês – considerado louco e que passou por várias internações e sofrimentos – em espetáculos de dança. Trata-se de um trabalho que mexe com estranhamentos dentro da linguagem cênica, com conceitos revolucionários de arte, além de incluir críticas ao fenômeno das migrações que têm levado à morte, em naufrágios no Mar Mediterrâneo, pessoas que saem de países da África e do Oriente Médio em busca de melhores condições de vida, cria-se assim uma conexão da obra de Artaud com contextos culturais da atualidade.

 

CM | Não é a primeira vez que a Taanteatro realiza um espetáculo sobre a obra de Antonin Artaud. O que faz a companhia retornar mais uma vez a este autor tão instigante quanto complexo?

 

WP | A primeira incursão da companhia no universo artaudiano ocorreu em 1996 quando produzimos a mostra internacional Artaud 100 Anos. Realizada no MASP, Cinemateca, Rádio USP e Teatro Sérgio Cardoso, a programação itinerante incluía filmes, fotos, leituras e três espetáculos comissionados. O Teatro Oficina estreou Para Acabar com o Juízo de Deus, A Conquista do México foi adaptada pelo coreógrafo japonês Min Tanaka e a Taanteatro Companhia apresentou Artaud – onde deus corre com olhos de uma mulher cega, espetáculo criado por Maura Baiocchi. Nosso retorno à Artaud no ano passado com a encenação de 50 desenhos para assassinar a magia foi estimulado por meus estudos da obra de Gilles Deleuze. Artaud é um intercessor decisivo de sua filosofia, uma influência importante para a concepção deleuziana da gênese do pensamento e da subversão do poder pelo desejo esquizo. Atualmente, frente aos fluxos migratórios e conflitos interculturais de nosso tempo, a crítica artaudiana da racionalidade ocidental ganha novamente relevo.

 

CM | Para o primeiro espetáculo de uma trilogia prevista para este ano, você escolheu textos de Artaud que nunca foram encenados e tampouco traduzidos integralmente no Brasil. Em linhas gerais, fale sobre a escolha desses textos.

 

WP | O projeto cARTAUDgrafia é composto por três espetáculos independentes. Cada obra foca numa dimensão específica da produção de Artaud: o espírito, a cultura, a linguagem. O conjunto opera como um rito de passagem sobre a crise da representação no Ocidente. Uma Correspondência tem como referência principal Correspondência com Jacques Rivière (1924), troca epistolar inédita no Brasil que marca o ingresso de Artaud no panteão literário francês, sem curvar-se à normatização estética. México, a segunda parte, baseada em Viagem ao país dos Tarahumaras e Mensagens Revolucionárias, mostra sua ruptura com a civilização europeia, a busca de uma cultura original e a disposição de realizar o Teatro da Crueldade no plano de seu próprio corpo. A última parte, Retorno do Momo, traz sua saída do limbo psiquiátrico, o retorno do poeta indomado que surpreende o mundo cultural com suas obras mais explosivas. Partes de Artaud, o Momo foram traduzidas por Claudio Willer em Escritos de Antonin Artaud. A seleção que fizemos não esgota sua obra, mas inclui momentos chaves de sua trajetória.

 

CM | Há conexão entre essas obras de Artaud convertidas em espetáculos de dança?

 

WP | Sim, o problema da liberdade autêntica. Artaud define esse problema a partir da pureza. Pureza alquímica, não moral. Sua busca de liberdade passa pela transmutação que leva da matéria bruta de nossa existência herdada e codificada para uma vida soberana da pura intensidade. Impuro é para Artaud tudo que condiciona o corpo alheio à sua vontade; predeterminações biológicas, culturais e históricas que operam como automatismos da percepção, da cognição e do comportamento. Deus é um micróbio, diz Artaud. Em outras palavras, os juízos do conhecimento, da moral e da estética desdobram seu poder não somente no plano macro, mas no interior de cada corpo. Foucault apreendeu com Artaud. Como as impurezas integram o processo constitutivo do corpo, seu expurgo corresponde a uma revolução anatômica, à criação do corpo sem órgãos. Artaud sabia que sua busca, onde condição e finalidade da liberdade se confundem, era paradoxal: Ser livre para ser puro. E para ser livre, ser puro primeiro.

 

CM | O que mais chamou sua atenção nas cartas trocadas entre Artaud e Rivière que você traduziu especialmente para criar este primeiro espetáculo?

 

WP | Correspondência com Jacques Rivière resulta de uma tentativa frustrada. Aos 27 anos, Artaud espera ver a publicação de seus poemas na Nouvelle Revue Française, revista de literatura que conta com a colaboração de autores como Paul Valery e André Gide. Rivière recusa os poemas atribuindo-lhes falta de habilidade e unidade, estranhezas desconcertantes. Artaud insiste. À recusa segue uma troca epistolar. Nela o poeta desloca o foco da discussão. O valor de sua criações e sua existência literária não residem em questões estéticas, mas no fato vital de terem sido arrancadas do nada absoluto, apesar da erosão mental sofrida por seu autor. Rivière se sensibiliza e, impressionado com o rigor intelectual das cartas de Artaud, propõe sua publicação. Em Correspondência Artaud descobre a carta como meio de expressão poética fulminante. Inicia também a encenação literária do mito Antonin Artaud, além de antecipar vários de seus grandes temas: a cisão entre corpo e espírito, a defesa de uma poesia performativa da intensidade, a precariedade do Eu e o caráter excepcional do ato de criação.

 

CM | Foi difícil adaptar Correspondência – que é um texto epistolar – para a dança?

 

WP | Do ponto de vista teatro-coreográfico, a adaptação de uma troca de cartas oferece desafios maiores do que obras mais imagéticas como o México e o Momo. O espetáculo Uma Correspondência traz um drama mental, a confrontação de dois modos de pensar a arte e a cultura. Estes modos de pensar têm correlações com nossas concepções do corpo e seu movimento. Mas eu não queria abrir mão do texto em favor de uma encenação puramente física. Sintetizei as cartas ao máximo, tentando preservar seu estilo, suas ideias principais. A dramaturgia coreográfica é dividida em duas esferas conectadas por uma membrana onde se projeta parte dos textos. A esfera aérea da racionalidade contemplativa de Rivière é branca, valorizada por movimentos olímpicos e simétricos. O espaço da intensidade artaudiana é negro, sua dança assimétrica e subterrânea.

 

CM | A terceira e última cena do espetáculo traz o encontro de Artaud com vários poetas geniais também considerados loucos, Friedrich Hölderlin, Gérard de Nerval, Lautréamont, Alfred Jarry, Charles Baudelaire e Arthur Rimbaud, entre outros. O que motivou a escolha desses nomes?

 

WP | Villon, Baudelaire, Nerval, Poe, Lautréamont, Nietzsche, entre outros, são nomes frequentemente citados em conjunto por Artaud. Trata-se de afinidades eletivas, de amizades extemporâneas entre guerreiros poéticos que, segundo Artaud, compartilhavam o mesmo problema: Eram os campos de batalha de um problema que assola o espírito humano desde as suas origens: o predomínio da carne sobre o espírito ou do espírito sobre a carne. Artaud rejeita o rótulo da loucura. Para ele esses poetas não eram loucos, mas gênios libertos dos costumes e do conformismo burgueses, que morreram na tentativa de preservar sua individualidade contra todas as formas de massificação e escravidão contemporâneas.

 



CM | Apresentar a obra de poetas malditos é uma forma de enfocar a loucura na arte ou também outros sentimentos como a liberdade de criação?

 

WP | A maior maldição que um criador pode enfrentar é a tentativa de generalização da singularidade de sua obra ou sua redução a um sintoma patológico. São estratégias totalitárias complementares que visam a neutralização das forças transformadoras expressas em suas criações. Em Artaud, liberdade e criação são dimensões inseparáveis. Liberdade somente existe no ato da criação de si mesmo. Para ele o mundo, a vida, o corpo, o Eu, o pensamento e a arte nunca são algo dado, mas algo a ser criado. Mas este ato de criação não é um bem comum e de fácil alcance; é uma batalha árdua e permanente contra identidades, formas, essências e leis preestabelecidas. O rótulo da loucura estigmatiza, mas não explica nada.

 

CM | No espetáculo há uma relação entre o impacto que causa a estranheza e a cura. Mas trata-se da cura de quem? Dos poetas malditos, dos loucos? Ou da sociedade que não alcança a plenitude de obras tão instigantes quanto a de Artaud e as do panteão de poetas evocados nesta montagem?

 

WP | A possibilidade da cura por meio da arte está ligada ao movimento: atividade, interatividade e criatividade. Experienciar danças extravagantes de poetas malditos, livres de juízos moralizantes, pode ter um efeito liberador. Mas essas danças, além de serem uma festa da singularidade compartilhada, são também zonas de perigo. Contra o ideal contemplativo do Ocidente, Artaud defende uma estética da ativação. Para alcançar seus objetivos, seu teatro poético precisa gerar tensões, desequilíbrios, mistérios. Precisa dinamizar equilíbrios estagnados por meio de formas de expressão ousadas, impregnadas pela energia viva de suas forças motrizes. A resistência à assimetria é comum. É o medo da queda. Mas cura é um fenômeno dinâmico. Depende muito mais da capacidade de cair do que da utopia de um equilíbrio permanente. A experiência da própria atividade e criatividade potencializa e fortalece por ser um processo de autopoiesis.

 

CM | Para traduzir a obra de Artaud em coreografias você utiliza uma linguagem bastante poética. O que é mais forte na obra dele, a poesia ou o questionamento incisivo dos valores que a sociedade impõe como normas de comportamento?

 

WP | É caraterístico do taanteatro – ou teatro coreográfico de tensões criado por Maura Baiocchi – investir no desenvolvimento das faculdades poéticas do performer. Esse investimento a partir de cada corpo, cada experiência de vida, foge da uniformização das energias expressivas. Artaud elegeu a si mesmo como personagem principal de sua poética. E seu Eu, que encontramos sob nomes variados – Artô, Antonin Nalpas, o Crucificado, o Revelado ou Antonin Artaud – é o objeto de erosões internas e ameaças externas: por parte da família, da igreja, da medicina, do Estado. Artaud exemplifica ao extremo a tensão entre a aguda percepção da precariedade do Eu e a necessidade de insistir em sua existência. Krísis e a crítica são dimensões constitutivas de sua poesia que não visa mundos ficcionais, mas a gestação mágica de seu próprio corpo através do sopro, do som, da palavra e do movimento.

 

CM | Sobretudo em O Teatro e Seu Duplo, Artaud faz uma relação entre a peste que assolou a Idade Média e o teatro, sendo este último uma espécie de transbordamento de humores, um processo inflamatório, enfim, uma fonte de conflitos. Que conflitos da atualidade estão presentes neste espetáculo?

 

WP | Artaud apresenta a peste como um duplo do teatro, isto é, como um fenômeno de contágio espiritual e corporal que subverte qualquer tipo de ordem e diferenciação sociais, pondo a todos, de forma indiscriminada e anárquica, em contato com as forças do caos. Muitos dos conflitos endereçados no espetáculo são antigos e podem ser resumidos no problema da codificação e domesticação do corpo pelas instituições sociais, morais e governamentais. Mas em Uma Correspondência a encenação aponta para formas novas da peste social e intercultural como a que atualmente vivenciamos frente às migrações em massa vindas da África e do Oriente Médio. Fazemos referência a essa tragédia na primeira cena do espetáculo, comparando as embarcações que hoje naufragam no Mar Mediterrâneo à Grand Saint Antoine, navio citado por Artaud em O Teatro e a Peste, que traz a doença do Oriente para Marselhas.

 

CM | Na sua opinião, quem são os pestilentos na atualidade ou aqueles indivíduos dos quais o establishment quer se livrar?

 

WP | Formações de poder estabelecem-se em todos os grupos sociais, independentemente de seu tamanho, suas condições econômicas e preferências ideológicas. A questão que se coloca não é tanto a de sua legitimidade, mas o grau de seu dinamismo, de sua abertura à transformação. Posso pertencer ao establishment de um grupo e atuar como pestilento em relação a outro. Essa constatação impede a confortável divisão do mundo entre carrascos e vítimas. Pestilento – contagioso e possivelmente letal – é aquele que, através de seus atos ou sua existência, põe em xeque os mecanismos auto-imunizantes de um determinado grupo; suas entranhas do poder, sua corrupção, suas mentiras. Nesse momento, o lugar de trágico destaque entre os pestilentos contemporâneos, cabe aos já citados centenas de milhares de migrantes que acabam mortos em alto mar ou confinados em campos de refugiados. Sua miséria evidencia nossa incapacidade, atestada por Artaud, de compreender e tomar posse da vida.

 

CM | As obras de Artaud atraem uma faixa de público, ao mesmo tempo que afugentam outra por sua complexidade. Como a Taanteatro Companhia lida com o desafio de atrair público para uma obra que provoca, no mínimo, um profundo estranhamento?

 

WP | Artaud virou um mito cultural do século XX. Nas artes performáticas sua influência é consolidada. Há admiradores e estudiosos de sua obra nas áreas da poesia, artes plásticas, cinema, filosofia, estudos culturais e antropologia. Mas seu público não se reduz aos acadêmicos e eruditos. Nietzsche escrevia para todos e para ninguém, Artaud para analfabetos. Na periferia de São Paulo apresentamos espetáculos sobre Zaratustra e Frida Kahlo, com êxito e sem nenhuma necessidade de simplificação. Por outro lado, quem trabalha com esses autores não se pauta pelo Ibope, mas pela intensidade do encontro. Ainda assim tivemos com 50 desenhos para assassinar a magia – um trabalho muito estranho já no título – um público numericamente expressivo. Artaud enfatiza em O Teatro e seu Duplo a intenção de fazer pensar por meio do efeito da orquestração de signos materiais sobre a sensibilidade. Sensação e disposição para o novo não são o privilégio de um estrato social específico.

 

CM | Depois deste primeiro espetáculo, cARTAUDgrafia 1 – uma correspondência, que aspectos da obra de Artaud você pretende abordar na trilogia prevista para 2015?

 

WP | Se a primeira encenação explora o espaço branco da razão ocidental, a segunda parte acompanha a aventura mística de Artaud na terra vermelha e convulsiva do México. Será um trabalho inteiramente diferente do primeiro, tanto do ponto de vista do processo criativo quanto do espetáculo resultante; ritualístico e selvagem. A última parte focará na arte poética de fazer ouro. Mostra Artaud no auge – alquimista, xamã, poeta – capaz de navegar nas águas rasas da razão bem com nas profundezas oceânicas do inconsciente.

 

 

2. cARTAUDgrafia 2: Viagem ao México

Publicação original: revista Germina, setembro de 2015.

 



CM | A Taanteatro encena agora o segundo espetáculo da trilogia cARTAUDgrafia que estreou em maio. Sobre a primeira montagem – relacionada às cartas trocadas por Antonin Artaud e o editor Jacques Rivière – você comentou que sob o ponto de vista coreográfico não havia elementos simbólicos tão ricos quanto os deste segundo espetáculo que traz ao público obras relacionadas ao México, à cultura indígena e mitológica. Fale sobre essa diferença temática.

 

WP | cARTAUDgrafia 1: Uma Correspondência tem como referência principal a troca epistolar entre o poeta emergente Artaud e o editor da Nouvelles Revue Francaise, Jacques Rivière. As cartas publicadas em 1924 abordam de maneira poético-filosófica problemas da genealogia do pensamento e da legitimazação formal da poesia. Marcam o ingresso de Artaud na vida literária de Paris. cARTAUDgrafia 2: Viagem ao México mostra Artaud num outro momento chave. Em 1936, depois de integrar o movimento surrealista, criar o Teatro Alfred Jarry e atuar em filmes como Napoleão e A paixão da Joana DArc e, Artaud está decidido de sair da cultura ocidental. Nos ensaios e manifestos que compõem O Teatro e seu Duplo, escritos entre 1931 e 1936, Artaud faz o diagnóstico da decadência do Ocidente, causada pela separação entre cultura e natureza, para propor o Teatro da Crueldade, isto é, uma forma de teatro que cura do predomínio da racionalidade branca sobre a carne. Na terra vermelha do México, submetendo-se ao rito do peyote dos Tarahumaras, Artaud busca a experiência da cultura ameríndia original, panteísta e pansemiótica, que põe o homem de acordo com a natureza. Em Os Tarahumaras, invoca uma natureza que se expressas por meio de hieróglifos, números e formas humanas, ressalta o simbolismo do fogo e da cruz mexicana e projeta o corpo humano em devir geológico.

 

CM | Como essa riqueza simbólica vem sendo trabalhada, passando da literatura ao palco?

 

WP | Para a dramaturgia de Viagem ao México adaptei textos de O Teatro e seu Duplo, Mensagens Revolucionárias e Os Tarahumaras. Mesclamos dança, texto, vídeo e música na tentativa de encenar as energias e ideias essenciais dessas obras. Na criação coreográfica, dirigida pela Maura Baiocchi, focamos em três práticas do taanteatro (teatro coreográfico de tensões): o mandala de energia corporal, a caminhada e o rito de passagem. Por meio dessas práticas, exploramos as linhas coreográficas gerais da encenação, seus estados psicofísicos e sua atmosfera tensiva. A abordagem ritualística foi fundamental para a criação da cena Tutuguri – rito do sol negro, que leva Artaud, por meio da aniquilação simbólica do Eu, à experiência das forças da terra e do vazio. Essa experiência é para Artaud uma precondição para o renascimento do ser humano sufocado pela profusão dos códigos culturais. Nessa produção a Taanteatro Companhia conta com elenco de onze performers e com a colaboração de dois pintores argentinos, Onofre Roque Fraticelli e Candelária Silvestro, que respondem à imagética artaudiana nos planos cenográfico e de figurino. A música original eletroacústica é de Gustavo Lemos e traz a materialidade de ruídos naturais, referencias da sonoridade tarahumara e de hinos e músicas que marcam as ideologias da época.

 

CM | Quais as diferenças ou aproximações entre o primeiro e o segundo espetáculo da trilogia?

 

WP | Uma Correspondência demarca os limites do espaço da racionalidade branca, da cisão entre pensamento e corpo; Viagem ao México explora o embate entre duas concepções da vida: o materialismo europeu e a espiritualidade dos descendentes de Moctezuma. Em 1924, Artaud ainda deseja ascender ao Olimpo da cultura europeia, em 1936 declara a revolução total contra os valores e as formas dessa cultura. A revolução artaudiana é, diferentemente da revolução marxista, uma revolução interior que deve preceder qualquer outra forma de transformação política ou económica. Essa ruptura com a cultura do Ocidente dá, ao mesmo tempo, continuidade à radicalização de seu trajeto existencial. Artaud caracteriza sua ida ao México como fuga da estagnação europeia e busca uma nova ideia do homem. Com essa viagem de inspiração cosmológica, Artaud se lança num rito de desintegração que culmina em sua internação e permanência no limbo dos hospitais psiquiátricos ao longo de nove anos. Na encenação buscamos dar conta dessa transformação por meio de uma linguagem corporal e audiovisual mais crua e elementar. A ideia é que performers e público se desloquem no plano sensível e intelectual junto com Artaud.

 

CM | Esse envolvimento de atores e público, com o rompimento dos limites do palco, faz parte também das ideias de Artaud, não?

 

WP | Em termos formais, o Teatro da Crueldade foi concebido por Artaud como uma retomada da ideia de um teatro total que rompe com as fronteiras espaciais tradicionais entre palco e público. Artaud via o teatro como uma arte autônoma, isto é, dotada de uma linguagem especifica e definida pelas possibilidades de expressão no espaço, não sob o domínio da literatura dramática e da lógica, mesmo que oculta, do verbo. Artaud queria expressar ideias e fazer pensar por meio de ações espaço-sensoriais dirigidas aos sentidos. É importante notar que Artaud não rejeitava de forma genérica o uso da palavra no teatro. Mas ele questionou a prioridade da palavra em relação à multiplicidade das formas de expressão que compõem a linguagem do teatro. O projeto cARTAUDgrafia não tem a pretensão de exemplificar o Teatro da Crueldade. A trilogia faz uso extenso dos textos de Artaud. Preserva a separação entre palco e plateia. A intensidade do encontro entre performers e público não está condicionado à interações diretas entre ambos. Numa perspectiva pós-histórica das formas da arte, qualquer forma e qualquer tipo de ruptura formal correm o perigo da re-institucionalização. Do ponto de vista da intensidade, a vitalidade do encontro entre obra e público não depende somente da novidade, mas da capacidade de manter o vínculo energético entre as formas empregadas e as forças expressivas que as alimentam.

 

CM | A viagem ao México empreendida por Artaud desencadeia um embate cultural, com críticas ao pensamento ocidental e ao colonialismo tendo em vista a comparação com aspectos antropológicos e da cultura indígena. Que aspectos você destacaria como importantes neste conflito que proporcionou também um boom criativo a Artaud?

 

WP | Artaud considera o problema filosófico milenar da separação entre corpo e alma como cerne da crise do Ocidente. Segundo Artaud, a cultura ocidental perdeu o contato com as forças naturais e cósmicas que subjazem a proliferação das formas. O dualismo levou o homem europeu, de um lado, à crença num mundo transcendente incapaz de explicar o mundo empírico e, de outro, a um materialismo que não compreende a natureza da consciência. O pensamento ocidental, diz Artaud, repousa numa imagem da vida sem movimento. Simplificando, o Ocidente pensa na perspectiva do ser de Parmenides, não do devir de Heráclito. E esse paradigma de uma realidade essencialmente imutável, exerce a priori efeitos de poder sobre o comportamento cultural e intercultural do Ocidente, historicamente definido pela conquista e colonização, pelo desprezo e destruição de outras culturas. A crítica artaudiana volta-se contra o espírito da burguesia, mas também contra o marxismo que, de acordo com Artaud, limita-se à revolução social. Artaud propõe uma revolução total. Ele não acredita que a desapropriação solucione os problemas sociais; para ele é preciso eliminar o espírito de propriedade em todos os planos. E isso exige uma revolução simultânea: das condições de produção, mas, sobretudo, da cultura e da consciência, ou seja, das maneiras de viver e de pensar.

Artaud critica a orientação modernista do México de 1936, voltada para ideologias da Europa. Mas acredita que a antiga cultura solar mexicana possui segredos que podem ajudar na reconciliação dos seres humanos com o universo. Uma diferença fundamental em Artaud é que o poeta experiencia macro-problemas, sociais e cósmicos, como inseparáveis da micro-esfera de sua própria carne, não como passatempo acadêmico. Consequentemente, não se aproxima da cultura indígena com o distanciamento analítico do estudioso. Abandona o papel do mero observador para vivenciar o desconhecido. Busca a revolução interior através da redescoberta das forças da natureza em seu próprio corpo. A intensidade da produção de Artaud devém de sua elevada tensão existencial.

 

CM | Na sua opinião, a crise profunda de Artaud com a cultura ocidental é muito preponderante sob o ponto de vista de desencadear também uma crise existencial que culminou com o agravamento de sua doença psíquica?

 



WP |
Artaud tem consciência aguda da constituição sociocultural do corpo. Sabe que nas codificações do corpo expressam-se as maneiras de ser e de pensar validadas por uma determinada cultura. Mas o que acontece quando esses valores e essas maneiras negam a natureza? Adaptação ou revolta. Adaptação a um modo de vida interiormente divido. Revolta contra a cultura que constitui o próprio corpo. Separação da natureza e conflito com a cultura. A integridade e a integração social do indivíduo são comprometidas, em ambos os casos. Muitos de seus contemporâneos, surrealistas ou não, viraram administradores ou marchands de seus inventos revolucionários juvenis. Artaud nunca desviou do caminho da revolta. Tomar juízo na medida em que envelhecemos, essa é expectativa social. Acontece que Artaud combateu o juízo – de Deus, da moral, da razão, do Estado – até o fim de seus dias. Por isso Breton pode dizer com razão que a juventude sempre reconhecerá essa chama extinta como sua própria. A revolta de Artaud e sua busca de conciliação entre cultura e vida o levaram à projeção aparentemente impossível de um corpo verdadeiro e autônomo, inteiramente livre de determinações socioculturais e até mesmo biológicas: o corpo sem órgãos. Corpo supra-histórico que vai ao encontro do super-homem nietzscheano e de um pensamento da imanência. Trata-se de loucura ou de uma das grandes inspirações filosóficas do século XX?

 

CM | Em que medida a criatividade e a loucura se relacionam nas obras de Artaud? Dá para separar ou reunir criação e delírio?

 

WP | De-lirare significa estar fora do lugar, creare expressa a ideia de gerar algo novo. O que considero dentro ou fora do lugar, velho ou novo, sempre depende dos sistemas de referência a minha disposição. Tanto a avaliação quanto a criação do novo demandam uma disposição de deslocamento, a capacidade de sair de um sistema de referência. Do ponto de vista do sistema vigente, o problema que se coloca é se e como integrar o novo. O novo pode ser percebido como ameaça para antigas formas ou como oportunidade para sua transformação. Taxar certas formas de vida de loucura ou delírio é um modo negativo de integração, integração via condenação, marginalização. Artaud queria sair de um mundo falso onde cem antepassados pensaram e viveram para nós, já antes de nós. Ele queria sair do paradigma e da gramática que definem o pensamento e a linguagem do Ocidente. Poderíamos chamar seu pensamento de intencionalmente delirante. Mas Artaud rejeitava que os psiquiatras desqualificassem seu pensamento, não-localizável e extemporâneo, como delírio. Em outras palavras, precisamos dar atenção ao contexto estratégico do emprego de um vocabulário, antes de simplesmente afirmar que em Artaud criação e delírio são indissociáveis.

 

CM | Como os embates de Artaud se aproximam dos conflitos culturais da contemporaneidade?

 

WP | A atualidade das ideias de Artaud é múltipla, sua crítica é complexa. Ataca as instituições do pensamento e da sociedade. Capitalismo, Estado, moral, religião, corrida belicista, guerra econômica, nacionalismo, imperialismo, colonialismo, progresso industrial; a lista de seus alvos é abrangente. O objetivo do Teatro da Crueldade – conciliação do ser humano com a natureza e o cosmos – pode ser interpretado como pensamento ecológico e holístico pioneiro, baseado numa crítica da razão ocidental e de suas implicações mecanicistas. Nossa trilogia, em sua segunda fase, continua antenada aos fluxos migratórios contemporâneos, situando-os como consequências tardias da conquista e das colonizações. Hoje os descendentes dos astecas fogem de suas próprias terras para sobreviver como mão de obra barata nos EUA, os bisnetos dos maias escravizam-se em confecções de vestuário neo-coloniais do Bom Retiro.

 

CM | Qual o motivo desse segundo espetáculo abarcar especialmente as obras O Teatro e Seu Duplo, Mensagens Revolucionárias e Os Tarahumaras, entre outros?

 

WP | O Teatro e seu Duplo contêm pelo menos dois textos em que o complexo México é de grande importância: a crítica cultural do prefácio, escrita sob a inspiração da viagem, e A Conquista do México (1933), previsto por Artaud como primeira encenação do Teatro da Crueldade. Mensagens Revolucionárias é um conjunto de artigos, escritos poéticos e conferências publicados ou proferidos primeiramente em espanhol ao longo de 1936. Nesses textos Artaud expõe, entre outros assuntos, os motivos de sua fuga da cultura europeia e suas expectativas relativas à redescoberta da alma indígena. Em 1975, no México, esse material foi organizado pela primeira vez num livro intitulado México y Viaje al país de los Tarahumaras, ou seja, junto à recriação da experiência de Artaud na Sierra Tarahumara, formada por escritos realizados entre 1936 e 1948. Juntas as três obras formam um caleidoscópio de perspectivas sobre a possibilidade de libertação do ser humano; uma libertação xamánica nas serras de um México mítico, criado e vivenciado por Artaud.

 

CM | As obras de referência desse espetáculo foram escritas entre 1934 e 1947, seria o período mais importante da criação de Artaud, tendo em vista que ele faleceu em 1948?

 

WP | A produção literária de Artaud estende-se de 1914 a 1948 e é composta por poemas, artigos, cartas, manifestos, roteiros e romances. Artaud considerava seus escritos iniciais atípicos para ele mesmo. Por isso suas obras completas abrem com Carta ao Papa e Correspondência com Jacques Rivière. Existem textos surrealistas importantes escritos entre 1925 e 1927: O umbigo dos limbos ou O pesa nervos. Heliogábalo, ou o anarquista no trono é de 1934. Mas seus livros mais conhecidos certamente são O Teatro e seu duplo (1937), De uma viagem ao país dos Tarahumaras (1937), Van Gogh, o suicidado da sociedade (1947), Cartas de Rodez (1946) e Para acabar com o juízo de deus (1948). Deve-se, sobretudo, às dificuldades de tradução que obras com Artaud, le Momo (1947) ou Suppôts et Suppliciations (1947/48) permaneceram internacionalmente menos conhecidas. Depois de 1920 a sequência de suas publicações foi interrompida somente entre 1939 e 1943, devido a sua internação durante a Segunda Guerra Mundial. Há indícios que escrevia durante esse período, mas faltam provas documentais dessa produção. Nesses anos desenvolveu novos modos de expressão poética reunindo o sopro, a glossolalia, o desenho, o texto e a dança: uma espécie de teatro da crueldade no plano performático de seu próprio corpo. Em 1946, Artaud sai do manicômio com vontade de criação e comunicação acumulada. O retorno do Momo foi um acontecimento no meio artístico de Paris e rendeu, entre 1946 e 1948, algumas das obras mais virulentas da poesia do século XX.

 

CM | Ao que consta, nunca uma trilogia que tem como referência a obra de Artaud, com este nível de complexidade, foi montada e encenada no Brasil. Como você se sente diante desse desafio?

 

WP | No Brasil tivemos encenações de peso em torno de Artaud. Rubens Corrêa realizou em 1986 o aclamado Artaud! Em 1996, produzi em São Paulo a mostra Artaud 100 Anos e comissionei ao Teatro Oficina Para acabar com juízo de deus (recentemente reapresentado) e A Conquista do México ao coreografo japonês Min Tanaka com elenco brasileiro. Na mesma ocasião, Maura Baiocchi encenou Artaud – onde deus corre com olhos de uma mulher cega, e o Amok Teatro apresentou em 1998 Cartas de Rodez. No ano passado encenei 50 desenhos para assassinar a magia. Isso para citar exemplos do eixo Rio-São Paulo. O que distingue cARTAUDgrafia dessas encenações são o foco, o formato e a duração do trabalho. Não encenamos um livro específico de Artaud, fazemos um mapeamento seletivo de sua vida e obra, tendo em vista o entrelaçamento de três campos críticos: as crises do espírito, da cultura e da linguagem. Com duração final de quatro a cinco horas a trilogia dá preferência a textos inéditos ou menos abordados no Brasil.

 

CM | Quais as suas expectativas em relação à montagem deste novo espetáculo? O que deseja e que o que acha que já foi alcançado?

 

WP | Espero que a nova encenação seja potente, poeticamente instigante; que, ao abordar a incursão de Artaud na cultura indígena, mostre facetas menos conhecidas e surpreendentes de sua obra. Espero poder fugir do mito Artaud e de seus estereótipos. Creio que em cARTAUDgrafia 1: Uma Correspondência conseguimos captar a lucidez deste poeta, uma intensidade cristalina sem apelo a uma enfastiante pseudo-visceralidade. Espero que cARTAUDgrafia 2: Viagem ao México possa transportar o imaginário do público para além do habitual, e que seja capaz de evidenciar a atualidade dos questionamentos artaudianos no contexto das imagens que soubemos colocar em movimento.

 

CM | A trilogia dedicada à obra de Artaud será levada também ao exterior? Há planos neste sentido?

 

WP | É sempre um prazer poder compartilhar seu trabalho com o público de outros lugares, no Brasil ou no exterior. Mas é um empreendimento que depende de condições profissionais adequadas. Política e mercado culturais do Brasil carecem de mecanismos fortes, capazes de estimular a confiança na viabilização desse tipo de difusão. A mera manutenção de um grupo artístico, dedicado a um projeto cultural significativo de médio ou longo prazo, constitui um imenso desafio econômico. Viajar ao exterior com um projeto grande demanda contatos privilegiados ou enfrentar meses extenuantes de produção e de pedidos provavelmente infrutíferos. Atualmente o Ministério da Cultura está reduzindo seus investimentos e o empresariado brasileiro prefere investir em formas de entretenimento, supostamente populares, que valorizam sua marca. Nosso foco nunca foi a valorização de marcas e duvido da possibilidade de encontrar empresários culturalmente sensíveis que atuem além dessa meta. Mas, naturalmente, estamos abertos a propostas.

 



 

3. O embate crucial de Artaud

Publicação original: Agulha Revista de Cultura, novembro de 2015.

 

CM | Um dos textos fundamentais de cARTAUDgrafia 3 – que inclusive dá título ao espetáculo – é Artaud, o Momo. A palavra Momo pode ser entendida de diversas formas: alguns a associam à palavra criança (momê em francês), outros a ligam ao Momo no sentido do bufão, do bobo, do louco e há ainda a relação com Momos, o deus grego do teatro satírico. Tendo em vista que, ao longo da trilogia, a Taanteatro Companhia abordou tanto a infância de Artaud quanto sua relação com a loucura, como essas duas fases – ou faces – se relacionam neste último espetáculo?

 

WP | A identificação de Artaud com a figura do Momo está presente nos títulos de duas obras escritas em 1947: Artaud, o Momo, livro de poemas, e A Verdadeira História de Artaud-Momo, a lendária conferência proferida no Théâtre du Vieux Colombier. É provável que ele valeu-se intencionalmente da multiplicidade de sentidos que o termo suscita, dessa mistura instigante de consciência alterada, crítica e humor. Nossa trilogia evita a redução da abordagem da produção artaudiana a um ponto de vista da patologia. Estamos interessados na atualidade dos problemas que levantou. Ao distinguir em sua trajetória duas fases separadas pela irrupção da loucura, corremos o perigo de adotar uma ótica que Artaud rejeitou, a da psiquiatria. Prefiro considerar as particularidades de seu processo de subjetivação e de suas transformações espirituais como um processo de radicalização contínuo que se desdobra ao longo de sua vida. Para compreender essas transformações é imprescindível perceber sua relação estreita com a crítica de Artaud da cultura do Ocidente, com seu interesse prático de superar o problema milenar da separação de corpo e espírito por meio do Teatro da Crueldade. O diferencial em Artaud é sua tentativa de transcender o plano meramente discursivo ou artístico. Essa tentativa em forma de uma revolução interior o leva à ruptura com os paradigmas cognitivos, comportamentais e criativos de sua cultura, e culmina, em 1937, em sua deportação da Irlanda e na internação em manicômios franceses até 1946, ou seja, durante todo período da carnificina industrializada promovida pela Segunda Guerra Mundial. Cada parte da trilogia problematiza elementos dessa transfiguração ativa que visa em última instância a criação do corpo sem órgãos, isto é, um corpo autônomo, livre de determinações socioculturais e até mesmo biológicas. Em cARTAUDgrafia 3: Retorno do Momo elaboramos trechos da conferência de Artaud, seu acerto de contas com a psiquiatria.

 

CM | Na História da Loucura, Michel Foucault aborda a situação do Bobo ou do Louco na Idade Média como a do portador da verdade. Eram os bobos, de forma teatral, que diziam à sociedade aquilo que ninguém tinha coragem de dizer, valendo-se do humor e da sátira. Levando-se isso em conta, podemos dizer que Antonin Artaud teve o papel de portador da verdade em seu tempo, ainda que pesasse sobre ele o estigma da loucura?

 

WP | Desde a sua participação no movimento surrealista, Artaud faz questão de confrontar a sociedade com verdades inconvenientes relativas à arte, cultura, sociedade, religião, família, pátria, propriedade, guerra, medicina e às drogas. Paralelamente, ele constrói o personagem Antonin Artaud, que desempenha, no limiar entre vida e obra, o papel de um portador de tais verdades. Em função de sua aproximação com Nerval, Nietzsche e Van Gogh, mas, sobretudo, por experiência própria, Artaud sabia que a sociedade aceita e cultiva de bom grado as mais absurdas crenças religiosas ou ideológicas, mas dificilmente tolera certas perspectivas individuais que põem os códigos coletivos em questão. Quem se opõe ao coletivo deve ser insano, consequentemente acaba estigmatizado. Creio que Artaud aborda o tema do Momo consciente dos efeitos da história da loucura sobre sua própria trajetória. Mas nele não existe nenhuma identificação com a subalternação do bobo da corte, isto é, ao poder. Artaud tem vocação pelo absoluto e isso o leva à superação revolucionária da história em nome do devir, como anarquista coroado no trono de sua própria consciência.

 

CM | Correspondendo à obra de Artaud, cARTAUDgrafia 3 faz uma intensa crítica aos tratamentos psiquiátricos, isso representa um grande eixo dentro da montagem. Essa abordagem demandou pesquisa além das obras de Artaud, houve incursão também pelos novos métodos de tratamento tendo em vista a expansão da indústria farmacêutica?

 

WP | A crítica à psiquiatria é uma dimensão fundamental dos últimos escritos de Artaud e precisa ser considerada num trabalho como o nosso. Mas não entramos no campo de uma crítica aos tratamentos da psiquiatria contemporânea, apesar de considerarmos todas as tentativas de normatização da consciência com sérias reservas. A pesquisa bibliográfica relativa a Artaud foi extensa. Incluiu, além da obra de Artaud, biografias e estudos diversos, entre os livros Antonin Artaud na Guerra e Sobre o eletrochoque, o caso Antonin Artaud de Florence de Mèredieu que forneceram dados importantes para a criação dramatúrgica.

 

CM | Em Artaud o Momo, o autor fala da perda de identidade e de um estado de escoamento que chega ao vazio, tendo em vista os tratamentos cruéis a que foi submetido. Essa fragmentação da identidade ou dissolução do Eu foram abordados de que forma no espetáculo?

 

WP | Os problemas do Eu e do Vazio formam uma constante da reflexão de Artaud. Na esteira de Nietzsche, Artaud questiona a noção do Eu como elemento fundamental do pensamento ocidental. Ao mesmo tempo, insiste, heroicamente e com grande intensidade, na afirmação, defesa e criação do Eu de Antonin Artaud. Essa tensão ambígua caracteriza também sua relação com o Vazio. O Eu e o Vazio designam um limiar entre a possibilidade e a impossibilidade da vida. Artaud busca a revolução interior do ser humano, submetendo-se voluntariamente a um rito mexicano que implica na morte simbólica do Eu. Mas no manicômio recusa, compreensivelmente, a submissão involuntária à sismoterapia de dissolução-reconstrução, que opera a desconstrução simbólica de um Eu considerado doente por meio do eletrochoque. Em outras palavras, a aceitação ou recusa do Eu ou do Vazio dependem de um contexto que define a noção da saúde em relação à autonomia. O eletrochoque intervém na vida de Artaud com ironia sinistra: como versão niilista do Teatro da Crueldade. Na primeira parte de Retorno do Momo construímos um ambiente povoado por visões, vozes, gestos e movimentos em estado de suplício e revolta. O combate de um Eu ameaçado em sua integridade pela magia negra” do juízo psiquiátrico e pelos fantasmas de uma sociedade hipersexualizada. Na segunda parte da peça vemos a resposta crítica de Artaud e sua proposta: a criação de uma nova anatomia humana.

 

CM | Como deu-se a escolha de outros textos – além de Artaud o Momo – para fechar a trilogia? O que determinou essas escolhas?

 

WP | A dramaturgia de cARTAUDgrafia 3 é composta por textos provenientes de As Novas Revelações do Ser, A Verdadeira História de Artaud-Momo, Supostos e Supliciações, Carta a Pierre Loeb e O Rosto Humano. Além disso, aproveitamos protocolos médicos e cartas de Artaud do período de internação e a produção pictográfica do poeta. Dada a riqueza da produção de Artaud posteriormente à sua saída do manicômio, é claro que qualquer seleção depende de certas preferências. Minhas escolhas foram motivadas pela intenção de evidenciar uma linha de continuidade no percurso poético-existencial de Artaud. Essa linha leva de sua desintegração da cultura europeia, tematizada em Viagem ao México, até um de seus grandes legados: a concepção do corpo sem órgãos. A ideia da desorganização e ativação cognitiva do corpo humano por meio de um bombardeio sensorial já pertencia ao programa do Teatro da Crueldade. Mas a privação de acesso à máquina convencional da cultura, durante o período de internação, e a experiência própria da desintegração do Eu sob o eletrochoque, devem ter reforçado a transferência do foco dos interesses de Artaud: da revolução da instituição do teatro para a desinstitucionalização de seu próprio corpo. As Novas Revelações do Ser traz a descrição da separação do poeta do mundo social e sua invocação de um combate entre forças supra-históricas; os protocolos psiquiátricos e as cartas artaudianas, dirigidas a políticos, Hitler, sua mãe e seus médicos, opõe sua luta por liberdade e integridade ao jargão dos representantes do mundo manicomial; A História Verdadeira de Artaud-Momo denuncia expressamente a psiquiatria e prepara, a partir de um reconhecimento – eu não tenho o corpo que eu deveria ter – a afirmação da necessidade de uma revolução da anatomia humana. De Supostos e Supliciações selecionei trechos que especificam a revolta artaudiana contra as codificações do corpo e as glossolalias com o intuito de encenar o surgimento de uma nova maneira de expressão poética. Finalmente, em Carta a Pierre Loeb, Artaud esclarece sua concepção do corpo sem órgãos na figura do homem-árvore, mítico ancestral do ser humano atual, dotado de pura vontade que decide de si a cada instante.

 



CM |
O que significa desenhar a partitura física para um corpo sem órgãos tendo em vista um trabalho coreográfico a partir da obra de Artaud?

 

WP | Deleuze e Guattari observaram, com bons motivos, que o corpo sem órgãos é algo que nunca se alcança. A forma definitiva, desvinculada das energias que engendram essa forma, é a morte do corpo sem órgãos. Quem deseja criar uma coreografia sem órgãos precisa estar disposto a uma luta permanente contra a formalização, funcionalização e institucionalização do corpo. Isso implica no combate contra os próprios inventos deste corpo. O taanteatro ou teatro coreográfico de tensões dispõe de práticas criativas que estimulam a dança singular de cada performer. Em cARTAUDgrafia, como em outras produções da Taanteatro Companhia, procuramos integrar essas singularidades, tanto em trabalhos solo quanto em cenas e coreografias coletivas. Em termos concretos isso significa que os performers improvisam a partir de um disparador criativo – uma tensão metafórica ou temática – proposta pela direção coreográfica. Essas improvisações ocorrem, por exemplo, no Mandala de Energia Corporal, dinâmica coreográfica concebida por Maura Baiocchi que integra as faculdades sensíveis, corporais e cognitivas do performer a favor de uma presença coreográfica em que força e forma não se divorciam. Os inventos e achados dessa prática passam por processos seletivos e de compartilhamento. Em outros espetáculos da trilogia tivemos momentos marcantes, um deles foi a interpretação de Maura Baiocchi para Montezuma em cARTAUDgrafia2 – Viagem ao México, que remete à ideia de um transe teatral, dada a intensidade com que se dá a metamorfose da performer em cena.

 

CM | Em cARTAUDgrafia 3 como são trabalhados momentos assim tão exigentes e intensos que remetam a verdadeiras transfigurações?

 

WP | Todo a equipe de cARTAUDgrafia trabalha com grande dedicação, mas a dramaturgia reserva momentos de maior destaque individual ao personagem de Artaud que é presentificado por performers diferentes. O Artaud em idade adulta conta com a atuação de Alda Maria Abreu e Maura Baiocchi. Ambas desempenham seu respectivo papel de forma impressionante; não por mimetizarem o personagem histórico, mas por incorporarem e atualizarem, cada uma à sua maneira, as energias e os problemas artaudianos. Maura Baiocchi, como Antonin Artaud e Montezuma, é fora de série. Compartilha com Artaud o corpo poroso, conectivo e radiante, o corpo esquizofrênico invocado por Deleuze em Lógica do Sentido, a esquizopresença no taanteatro. É um fenômeno que transcende a representação teatral convencional. A Taanteatro Companhia procura cultivar essa disposição por meio de práticas criadas pela própria Maura. Mas é preciso tomar cuidado com a expressão transe teatral. Ela pode levar à falsa impressão de uma perda de consciência. Artaud recusou o transe no teatro. Crueldade significa lucidez aplicada. A qualidade da presença performática em questão demanda um grau extremo de lucidez e de percepção das complexas inter-relações de todos os elementos que compõem o acontecimento performático. Se quisermos estabelecer uma relação entre a esquizopresença e o transe teatral, a correspondência seria talvez o transe controlado do xamã. Em cARTAUDgrafia 3, sobretudo no último monólogo, deparamo-nos com tais instantes, sublimes e extemporais, que não fazem concessão aos costumes habituais da dança e do teatro.

 

CM | A deportação de Artaud da Irlanda – que abre o espetáculo – retoma o tema das migrações intercontinentais já abordado nos espetáculos anteriores e que funcionam como uma crítica geopolítica da situação dos nômades que cruzam os mares e muitas vezes sucumbem à travessia. O que diferencia ou aproxima a deportação de Artaud da realidade contemporânea?

 

WP | Ao longo da trilogia, estabelecemos uma relação entre as migrações extensivas atuais, empreendidas por motivos políticos, econômicos e ideológicos, e as migrações intensivas que caracterizam Artaud. Em ambos os casos, é possível falar de tentativas de autopreservação e autorealização. Por acaso e ironicamente, o Acordo de Dublin designa na atualidade uma lei que define a política voltada aos refugiados da União Europeia. Mas naturalmente, seria equivocado insistir em correspondências excessivamente diretas entre o poeta Artaud em 1937, em busca das fontes originais da cultura celta na Irlanda, e os problemas enfrentados pelos migrantes vindos da Síria, Eritreia ou da Nigéria em 2015. Ainda assim, e apesar das diferenças históricas óbvias, é possível perceber, em ambos os casos, a grande dificuldade sociocultural, política e econômica de integrar e se abrir a pessoas e grupos de origens, valores e modos de vida distintos, que, por motivos diversos, se veem forçados a abandonar uma forma sedentária de vida e de procurar novas maneiras de existência. Os migrantes, tanto no plano da geografia quanto no da consciência, são confrontados com fronteiras múltiplas e muitas vezes são percebidos como invasores indesejados, como uma espécie de peste social que ameaça o status quo. E, por este motivo, são privados, pelas sociedades que sentem-se ameaçadas, de sua liberdade e individualidade. É importante observar que Artaud, em suas viagens e apesar de certos impulsos místicos, permanecia em última análise fiel à terra”, num sentido nietzscheano. Em contrapartida, muita gente, sedentária e supostamente pragmática, prefere fugir da realidade para paraísos extraterrenos.

 

CM | Neste espetáculo, Artaud inicia sua jornada saindo da Irlanda com um bastão que o transforma numa figura messiânica, isso mais tarde desemboca no seu delírio de se tornar Jesus Cristo. De que forma isso liga-se na sua vida e no espetáculo à dissolução de sua identidade, à medida que ele toma outro corpo e, ainda por cima, santificado?

 

WP | O desejo dirigido ao infinito aparece cedo na obra de Artaud, por exemplo, no poema de juventude Navio Místico. Sabemos que ele passou por flutuações de identidade e por variações da identificação com Jesus Cristo, especialmente ao longo de sua internação entre 1932 e 1946, mas o rótulo do delírio contribui pouco à compreensão dessa identificação. Em A Verdadeira História de Artaud-Momo, Artaud recusa de forma definitiva a identificação com Jesus Cristo e deixa claro que considera Deus, ou o conceito de Deus, como entidade parasita que se apropria e alimenta indevidamente do corpo e da vida humanos. Mostramos isso no espetáculo. Nossa encenação, apesar de inegáveis simpatias, não idealiza nem demoniza Artaud. Não o apresenta como louco, nem como santo. Abordamos problemas apontados por Artaud à medida que ainda possuem relevância para nós. Entre estes problemas figura a relação entre liberdade e pureza. A pureza artaudiana não define uma conduta moralista, mas a autodeterminação do corpo sem órgãos.

 

CM | O corpo metafísico ou a proposta do corpo sem órgãos de Artaud é preponderante neste último espetáculo. Podemos dizer que neste envolvimento visceral com um dos conceitos fundamentais de Artaud, a Taanteatro realiza uma jornada importante no campo do Teatro da Crueldade?

 

WP | O Teatro da Crueldade é uma poética desenvolvida por Artaud entre 1934 e 1948, que passou por transformações profundas, deslocando seu foco, cada vez mais, do estético para o existencial. Em seu último estágio, o Teatro da Crueldade não propõe formas inovadoras de praticar artes cênicas, mas a transformação da anatomia humana. Essa proposta culmina no conceito e na prática do corpo sem órgãos que constitui até hoje um desafio contínuo nas artes e na filosofia. Frente ao problema filosófico milenar da separação entre corpo e alma, o Teatro da Crueldade reflete sobre a relação entre energia e signo, enfatizando a importância da vinculação sensível dos signos performáticos. A pesquisa do taanteatro desenvolve-se no contexto dessa tradição e, num projeto como cARTAUDgrafia, revisita inevitavelmente os desafios lançados por Artaud. Mas tendo em vista o desenvolvimento conceitual e criativo do teatro coreográfico de tensões e da Taanteatro Companhia ao longo dos últimos vinte e cinco anos, é evidente que nossa encenação não está movida pelo ímpeto de realizar as propostas artaudianas articuladas há sete décadas atrás.

 

CM | A presença dos coros é muito forte em cARTAUDgrafia 3. Esse foi o modo de representar a importância das sonoridades em Artaud tendo em vista as glossolalias e outras experiências poéticas ou de linguagem delirante?

 

WP | Em cARTAUDgrafia o coro aparece vigorosamente em Viagem ao México e ganha força ainda maior em Retorno do Momo. A decisão de recorrer ao coro é motivada por uma ideia-chave do Teatro da Crueldade que o aproxima do teatro trágico e que articula a relação entre indivíduo, mito e devir. Em Viagem ao México resumimos essa ideia artaudiana da seguinte maneira: o verdadeiro teatro coloca-se ao lado da vida, não da vida individual, mas de uma vida liberta em que a individualidade não passa de um reflexo. Sua tarefa é a criação de um mito, a expressão da vida sob um aspecto universal. O coro é uma forma concreta dessa expressão universal da vida. Trabalhamos com esse veículo de diversas maneiras: Em Viagem ao México um coro de indígenas acompanha e dialoga com o corifeu Artaud em sua crítica da racionalidade branca. Em Retorno do Momo um quarteto de vozes traz uma atmosfera delirante composta por repetições e sobreposições de textos de cartas artaudianas. Nessa peça o coro diferencia também a atmosfera dos textos que abordam o corpo sem órgãos. Usamos recursos diversos de recomposição de textos para grupos de vozes, variações de ritmo, tendo a palavra como matéria sonora – com o intuito de evidenciar o sentido desses textos por meio de uma presença sonora cativante. Um dos coros de Retorno do Momo está dedicado às glossolalias de Artaud, linguagem única de Lettura dEprahie, livro mítico e perdido que, segundo o poeta, melhor o representa. 


NOTA

As imagens que acompanham a entrevista integram o acervo da Taanteatro Companhia e foram gentilmente cedidas por Wolfgang Pannek.



CÉLIA MUSILLI
| Jornalista, cronista e poeta. Autora dos livros Sensível desafio (2006) e Todas as mulheres em mim (2010), participou de várias publicações e coletâneas de poesia e crônica. Mestre em Teoria e História Literária pela Unicamp, atualmente é editora de cultura do jornal Folha de Londrina.






 



Agulha Revista de Cultura

CODINOME ABRAXAS # 02 – TAANTEATRO COMPANHIA (BRASIL)

Imagens: Acervo Taanteatro

Editores:

Floriano Martins | floriano.agulha@gmail.com

Elys Regina Zils | elysre@gmail.com

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