1. CÉLIA MUSILLI | O Golem de plástico
Publicação original: Carta Campinas, 19/05/2015.
Primeiro é preciso
saber quem é Golem, o personagem mítico da cultura hebraica que veio do barro e
que foi trazido à vida através de um processo mágico. O Golem inspirou a
criação de outros monstros como Frankenstein, de Mary Shelley, ou o homunculus
da alquimia. Golem, em hebraico, também significa tolo, imbecil e
pode ser visto também como uma variação da palavra gelem que significa
matéria-prima.
A
bailarina e coreógrafa Maura Baiocchi, co-diretora da companhia Taanteatro,
pega este monstro e passeia com ele através das culturas, mais que isso, o traz
até a contemporaneidade para discutir o desejo e sua relação com o consumismo.
Faz isso através do espetáculo TRANS, que estreou na Europa, em 2014, e teve
duas apresentações no último fim de semana no Espaço Cênico O Lugar, em São
Paulo.
Golem
é recriado pela performer numa inquietante mutação em que o corpo é
transformado incessantemente como se fosse mesmo de barro e nunca encontrasse a
forma perfeita. Captar a essência corpórea desse monstro – que parece nunca
estar concluído, mas sempre em processo de construção e desconstrução – é um
dos pontos altos do trabalho coreográfico.
É
visível a criação do monstro nas primeiras cenas, num trabalho em que a
intérprete não move apenas os membros ou os músculos, a impressão é que move
fibras, nervos, células, numa composição que deixa claro seu conhecimento do
corpo e o domínio dos movimentos. Feito com precisão cirúrgica, Golem vai
aparecendo e, quando o espectador acha que ele está pronto, Maura Baiocchi joga
sobre ele camadas não de lama, mas de plástico, ligando a ideia da escravização
da sociedade contemporânea ao consumo. Abre-se desta forma o viés hipercrítico
do espetáculo, linkando o consumismo à escravização que lança no mesmo fosso o
criador/ comprador e suas criaturas, as mercadorias.
Sacolas
de compras são o elemento com os quais a intérprete contracena: jogando-as para
o público, vestindo-se com elas, alimentando-se delas com um desejo voraz de
comer sacos de supermercado, de lojas finas, de magazines sofisticados, de
redes populares. Todas as marcas estão ao alcance do público, para quem também
são jogadas as sacolas, num espetáculo essencialmente interativo. De repente,
todos estão cara a cara com Yves Saint-Laurent ou as Casas Bahia. Marcas para
todos os gostos e para todos os bolsos, um conceito de relações democráticas
falsificadas que se guiam mesmo é pelo poder de compra de cada indivíduo. E as
condições não são iguais para todos.
A
crítica se concentra em três modalidades de produtos consumidos na atualidade:
as grifes de roupas, os provedores de telefonia, os produtos vendidos em bancos
a clientes ávidos por um status prime ou personnalité. Trata-se
da identidade trocada pelo produto. Da marca funcionando como extensão do
indivíduo.
Mas a
criatividade não para por aí. Para mostrar a manipulação do mercado e as
relações de poder, Maura Baiocchi vale-se de outro elemento usado de forma
original e absolutamente plástica: os cabelos. Assim, com a ajuda do público,
desfaz as tranças com que aparece em cena, rompe a barreira dos grampos e dos
elásticos, passando a utilizar a grande cabeleira como um signo a ser
manipulado – em alguns momentos suas madeixas são usadas pelo público como se
fossem varetas de títeres, sendo puxadas de lá para cá, como fazem os
manipuladores de bonecos. Mas os cabelos também são signo da liberdade, da
rebeldia, da transgressão, como nas cenas em que ela dança com pessoas da
plateia, compondo quadros, cirandas frenéticas, brincadeiras de criança,
movimentos que lembram a brincadeira de roda. De tudo isso, salta a mágica
principal do espetáculo: uma bailarina que faz os cabelos dançarem. E se o
público já viu antes intérpretes que mexem pernas e braços com maestria, tem,
enfim, pela frente uma artista que criou, de forma inusitada, uma dança dos
cabelos.
Com
trilha sonora que conta com composições de Giacinto Scelsi, Dmitri
Shostakovitch e Iggy Pop, o espetáculo segue crítico até o fim com o Golem,
sufocado por sacos plásticos, levando alguém do público aos bastidores, com o
teatro em blackout, enquanto o monstro aprisiona vítimas que vão sendo tragadas
pelas marcas humoristicamente repetidas pela performer, que sai sussurrando
nomes de lojas e produtos bancários.
No retorno para as cenas finais, Maura Baiocchi ainda cria momentos lúdicos como se cantasse A Machine for Loving (Hal Cragin, Michel Houellebecq, Iggy Pop) para afirmar que o amor é um sentimento que os cães – essa máquina de amar – conhecem melhor que a espécie humana. Para finalizar, chama o público para um baile, ao som da romântica Les Feuilles Mortes, de Jacques Prévert e Joseph Kosma, na voz de Iggy Pop.
É o
momento em que a plateia se alivia da tensão dramática proporcionada por um
espetáculo altamente crítico e flutua, de rosto colado, de par em par. Com
concepção, direção, figurino e trilha sonora de Maura Baiocchi, TRANS alterna
momentos dramáticos, humorísticos e traz muita poesia visual. Trata-se da
vitrine crítica de uma intérprete na busca incessante do valor humano.
2. VICTOR MAZIN | Transe-Golem
no movimento de Maura Baiocchi
Publicação original:
Escola de Psicanálise Freud-Lacan,
2015. Tradução: Vadim Nikitin
Desgramaticalização e
Acoreografia
A dança de Maura
Baiocchi é imprevisível. Os seus movimentos não seguem a priori nenhuma
contagem. A sua gramática nunca se enquadra numa escritura coreográfica reconhecível.
Volta e meia, os seus movimentos não se coadunam, subitamente cessam,
transformam-se em outra coisa. A coreografia de Maura Baiocchi não é passível
de ser traduzida para nenhuma linguagem concreta da dança e não chega a nenhuma
forma acabada. Pode-se dizer que não se trata de uma linguagem nem de uma
escritura, tampouco de uma coreografia, e sim do que Jacques Lacan chamou de
lalangue (lalíngua).
A
economia de movimentos de Maura é a tradução da figura do Golem em estado de
transformação, uma figura que reiteradamente não encontra forma. O Golem é o
que não se deixa capturar por uma forma, o inacabável.
Aqui é
que cria raízes a monstruosidade. Ela se encontra numa forma inabarcável, numa
letra sem fixação, numa sintaxe em desordem. É uma coreografia de
transformações fora do controle de qualquer gramática, que se metamorfoseia num
transe acoreográfico.
A
forma não se consolida. O Golem sem forma não pode ser identificado, sujeitado
ou controlado. Quem quer que seja o seu criador, ele permanecerá para sempre um
não nascido, um transformador do nascimento.
Retraçando
Triângulos
Quem
cria é aquilo que dança? Quem dança aquilo que dança? Golem conduz Maura ou
Maura conduz Golem? Golem não possui Golem, assim como Maura não possui Maura.
E, de
modo geral, a Maura de Golem e o Golem de Maura não dançam aqui, não só aqui,
nesta passagem genérica, na vereda estreita do Museu dos Sonhos de Freud. A
acoreografia desdobra-se paralelamente em dois triângulos abstratos, cujas
formas, vez por outra, ficam sujeitas à desagregação, como preconiza o mandala
imaginário.
Maura-Golem
traça, com a trajetória do seu movimento, um triângulo invisível: Letra –
Verdade – Morte. O Golem ganha vida com a palavra verdade (emet). Mas
basta apagar uma letra dessa palavra, Aleph, e surge a morte
(met). A configuração Letra – Verdade – Morte nunca se completa, porque se
converte em outro triângulo: Letra – Verdade – Desejo. Tudo está no limiar. No
limiar entre a vida e a morte. Transe.
Se
quiséssemos narrar tudo numa sequência lógica, nosso ponto de partida seria, é
claro, a aparição de Maura na vereda genérica dos sonhos, que acompanhava o seu
interesse em relação ao entorno. O seu Golem como que reconhecia os outros,
brincava com eles, sentava-se no colo, dividia com eles uma maçã. Pode-se dizer
que o Golem-Maura, ao mesmo tempo, seduzia e domava. Mas de repente tudo mudou.
Como se num piscar de olhos uma nuvem de chumbo fechasse um céu ensolarado e
lançasse à terra corriscos estridentes e incandescentes. Terrível.
O Terrível Despertar do Desejo
Terrível – na fronteira
entre o artificial e o natural. Terrível – na compreensão nebulosa de que essa
fronteira é móvel. Terrível pelo fato de serem indistinguíveis o artificial e o
natural. E o Golem – criatura feita de argila, de matéria inanimada, ganha vida
com a ajuda da técnica, de um conhecimento secreto, artificial, contido na
letra. A letra, lembra Lacan, inspira. Mas a letra pode estar morta. Pode ser
incontrolável, porque ela não conhece as outras letras, a existência das outras.
Ruptura. Aqui não há plateia. A acoreografia cerra-se sobre si mesma, sobre a
sua própria letra, sobre a letra morta. A dança do Golem de Maura é a dança de
uma letra morta.
A
letra morta perpassa como cãibra a matéria-prima crua do real. O Aleph dança
por si mesmo. A primeira letra novamente volta do real. O transe de Maura
Baiocchi deslocou os céus sobre a vereda dos sonhos.
Виктор Мазин
| Транс-Голем в движении Мауры Байокки
1. ДЕГРАММАТИЗАЦИЯ И АХОРЕОГРАФИЯ
Танец Мауры Байокки непредсказуем. Движения его априори не просчитываемы. Их грамматика никак не предписана хоть каким-то узнаваемым письмом хореографии. Движения то и дело не складываются, внезапно прекращаются, превращаются в совершенно другие.
Хореография Мауры Байокки не переводится на язык никакого конкретного танца и не обретает никакой законченной формы. Можно сказать, это –
вообще не язык, не письмо, не хореография, а то, что Лакан назвал лялязыком.
Экономика движений Мауры –
перевод Голема как фигуры пребывающей в трансформации, фигуры, вновь вновь не обретающей форму. Голем –
неоформляемое. Здесь и коренится монструозность. Она –
в необретении формы, нефиксации буквы, нестроении синтаксиса. Хореография трансформаций выходит из-под контроля любой грамматики, превращаясь в ахореографию транса. Важны сломы, изломы, переломные моменты и их непредсказуемость.
Форма не консолидируется. Бесформенного Голема не идентифицировать, не подчинить, не поставить под контроль. Кто бы его не творил, он остается недородившимся, трансформером зарождения.
2. ПЕРЕСБОРКА ТРЕУГОЛЬНИКОВ
Творит та, что танцует? Кто танцует ту, что танцует? Голем Мауры или Маура Голема? У Голема нет Голема, как нет у Мауры Мауры.
И вообще, Маура Голема и Голем Мауры танцуют не здесь, не только здесь, в этом родовом проходе, на узкой трассе Музея сновидений Фрейда. Ахореография параллельно разворачивается в двух абстрактных треугольниках, форма которых, то и дело подлежит распаду, как и предписано воображаемой мандале.
Маура-Голем прописывает траекторией своего движения незримый треугольник Буква –
Истина – Смерть. Голема оживляет слово истина («эмет»). Но стоит только стереть одну букву в этом слове, букву алеф, как наступает смерть («мет»). Конфигурация Буква – Истина – Смерть никак окончательно не оформляется, ибо преобразуется в другой треугольник: Буква – Истина – Желание. Все на грани. На грани жизни и смерти. Транс.
Если бы мы хотели рассказать обо всем по порядку, то заговорили бы, конечно, о появлении Мауры на родовой трассе сновидений, которое сопровождалось ее интересом к окружению. Ее Голем как будто признавал других, заигрывал с ними, усаживался на коленки, делился яблоком. Можно сказать, Голем-Маура соблазнял и приручал. Но вдруг все изменилось. Будто в миг залитое солнечным светом небо захлопнулось свинцовой тучей, из которой полетели на землю вспышки пронзительных молний. Жутко.
3. ЖУТКОЕ ПРОБУЖДЕНИЕ ЖЕЛАНИЯ
Но буква может быть мертвой. Она может быть неуправляемой, ибо не знает других букв, бытия других. Разрыв. Здесь публики нет. Ахореграфия замыкается на себе, на своей букве, на букве мертвой. Танец Голема Мауры –
танец мертвой буквы.
Мертвая буква пробегает судорогой по сырой материи реального. Алеф танцует сам по себе. Первая буква вновь и вновь возвращается из реального. Транс Мауры Байокки вывихнул небеса над трассой сновидений.
NOTA
As imagens que
acompanham a entrevista integram o acervo da Taanteatro Companhia e foram
gentilmente cedidas por Wolfgang Pannek.
CÉLIA MUSILLI | Jornalista, cronista e poeta. Autora dos livros Sensível desafio (2006) e Todas as mulheres em mim (2010), participou de várias publicações e coletâneas de poesia e crônica. Mestre em Teoria e História Literária pela Unicamp, atualmente é editora de cultura do jornal Folha de Londrina.
VICTOR MAZIN | Psicanalista praticante, fundador do Freud’s Dream Museum em São Petersburgo (1999), membro honorário do The Museum of Jurassic Technology (Los Angeles), chefe do departamento de psicanálise teórica no East-European Institute of Psychoanalysis (São Petersburgo), e professor associado no The Department of Liberal Arts and Sciences da St. Petersburg State University, além de professor honorário do Institute of Depth Psychology (Kiev). Tradutor do inglês e francês para o russo, foi editor-chefe do periódico Kabinet e membro dos conselhos editoriais dos periódicos Psychoanalysis (Kiev), European Journal of Psychoanalysis (Roma), Transmission (Sheffield), Journal for Lacanian Studies (Londres). Publicou vários artigos e livros sobre psicanálise, desconstrução, cinema e artes visuais.
Agulha Revista de Cultura
CODINOME ABRAXAS # 02 – TAANTEATRO COMPANHIA (BRASIL)
Imagens: Acervo Taanteatro
Editores:
Floriano Martins | floriano.agulha@gmail.com
Elys Regina Zils | elysre@gmail.com
ARC Edições © 2025
∞ contatos
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