quinta-feira, 20 de março de 2025

FLORIANO MARTINS | O universo em sintonia com Maura Baiocchi – Uma entrevista

 


FM | Eu gostaria de começar este nosso diálogo pelo circo, por várias razões, que vão da multiplicidade de cores e temas do picadeiro, passando pela interação com o público, até chegarmos às cenas-limites, em especial para as crianças, que significam números como o engolidor de fogo e os trapezistas. Na época – meados dos anos 1960 – o circo tinha ainda atrações com animais. Hoje, ele se converteu mais em um espetáculo de dança. Mesmo o humor tem uma presença mais acessória. Quais as tuas impressões dessa primeira experiência visual?

 

MB | Nasci e vivi até meus 8 anos em São João do Caiuá, um vilarejo de 3000 habitantes na zona cafeeira ao norte do Paraná, onde os únicos movimentos de arte e cultura eram o cinema e o grupo de teatro fundado por meu pai. A vinda periódica do circo era um evento aguardado com grande expectativa pela população rural. Era um circo típico daqueles anos 1950/60 com atrações como o atirador de facas, o mágico, trapezistas, equilibristas, o engolidor de fogo, malabaristas, a mulher barbada, a mulher-gorila, contorcionistas e palhaços, claro. Tinha alguns animais também, me recordo de um elefante, magro e triste. Me lembro também de ter visto algo muito diferente e estranho, que não sei ao certo se foi no mesmo contexto do circo. Era um trailer, espécie de museu de cera itinerante que mostrava crianças ou bebês com deficiências físicas radicais como gêmeos ligados pela cabeça, assustador para uma criança, mas sem censura. Cenas para uma obra de realismo mágico.

Realmente, o que despertou pela primeira vez meu imaginário para as artes da cena foi o circo e eu tinha predileção pelo número das contorcionistas. Então, a partir dos meus 5 anos, mais ou menos, me exercitava constantemente tentando repetir aquelas coreografias posturais. Também era fascinada pelos figurinos que sublinhavam mais ainda a aura de encantamento e superpoder. E obviamente, eu queria ser como elas quando crescesse. Não fugi com o circo, mas sua essência nômade e de resistência marcaram meu corpo-alma para sempre.

A figura do palhaço teve uma presença ocasional, porém recorrente em minha trajetória. Criei o clown Falha Técnica, por volta de 1976, em Brasília, quando atuava no grupo Esquadrão da Vida, dirigido por Ary Pararraios. Vinte anos depois, em Arará: histórias que os ossos cantam, o protagonista da peça era o líder da Liga Transgênica da Mentira Principal, uma espécie de clown futurista, e em Artaud, le Mômo (2016) o palhaço retornou nas vestes do poeta maldito. 

Uma curiosidade: em 1992, em São Paulo, protagonizei o curta metragem Nayara, a mulher gorila, dirigido por Marta Nassar com cenografia e figurinos de Eurico Rocha e música de Arrigo Barnabé. Cheguei a ganhar um prêmio de melhor atriz por essa personagem. Foi um momento extraordinário de reconexão com a magia tragicômica do circo.

 

FM | Do circo para o teatro, de um tablado para outro, estudos de dança e os primeiros passos na improvisação. Quando crias a Liga Eugnósica da Terra, me parece uma presciência, porque o imperativo de um autoconhecimento ainda não era tão alarmante como hoje, mesmo considerando o ambiente político daquela década, 1970-80. Como era atuar em espaço aberto e com uma proposta ousada que ia de encontro ao clima espesso – para dizer o mínimo – de então? Indago sobretudo por teu espírito, como te sentias.

 

MB | A forma do meu sentir foi se construindo, tipicamente, nos ambientes da vida em família e das escolas, a seguir, em contato com artistas que cruzaram meu caminho, nos momentos de criatividade compartilhada ou solitária. Mais fundamental, porém, para minha sensibilidade corporal e imaginação artística voltada ao espaço aberto foi a convivência diária com a natureza, primeiro, na zona rural do Paraná, depois, no bioma do cerrado do Centro-Oeste.

Em 1964, minha família se mudou para Brasília. Na época, a capital era um imenso canteiro de obras coberto de poeira do cerrado. Aos 12 anos, iniciei meus estudos em balé clássico e aos 14 anos em teatro. As condições culturais eram precárias, havia pouca infraestrutura. Nas aulas, realizadas em um club comunitário na asa sul do Plano Piloto usávamos a borda da janela do salão de festas como barra de exercício. Os estudos de teatro se davam no contexto do curso pré-universitário e minha primeira professora da arte dramática foi a arte-educadora Laís Aderne. Em 2017, foi criado em Brasília o EcoMuseu do Cerrado Laís Aderne.

Aos poucos, a comunidade artística de Brasília foi crescendo e com isso o espaço para a experimentação foi aumentando. Estudei balé clássico com Lucia Toller e Norma Lilia e busquei me aprimorar através de cursos complementares com coreógrafos de São Paulo e Rio de Janeiro como Ademar Dornelles, Graziela Rodrigues, Clarice Abujamra, Sonia Mota e Rainer Vianna. No que se refere à criação em dança no DF, vale destacar as contribuições pioneiras de Regina Miranda, Hugo Rodas e Yara de Cunto, coreógrafos com quem trabalhei na segunda metade dos anos 1970 até o início dos anos 1980, antes de encenar minhas próprias coreografias.

Um pouco antes de eu lecionar na UnB e na Faculdade de Teatro Dulcina – 1984 a 1986 –, a presença do autoritarismo militar ainda era preeminente, a ponto de censurarem um de meus primeiros trabalhos – a coreografia de grande elenco Bumerangue (1982) – ironicamente eleita como um dos 50 espetáculos que marcaram Brasília, décadas depois. Bumerangue, aclamado pelo público e pela crítica, foi criado no contexto do grupo de dança Asas e Eixos do qual eu fazia parte, inicialmente, como dançarina. Minha passagem por esse grupo foi breve, não por minha vontade, mas por vontade das diretoras do grupo que, a partir do momento que Bumerangue sofreu censura do regime, decidiram por me tirar do grupo. A diretora artística era casada com um general. Bumerangue teve então uma única apresentação. Foram duas as cenas que causaram o banimento da obra: uma passeata-protesto em câmera lenta com os dançarinos carregando cartazes em branco e a cena com a projeção de um curta filmado em super 8 realizado pelo artista plástico Wagner Hermusche, que mostrava imagens da Brasília daquela época, dominada por carros oficiais e seus ricos e poderosos ocupantes contrastando com a população empobrecida da periferia constituída principalmente por famílias daqueles operários que construíram a capital da república.

Entre 1984 e 86, criei juntamente com artistas-estudantes da área de música, dança e teatro – na maioria alunos meus do curso de artes cênicas recém-criado na Universidade de Brasilia – vários grupos de performance: Corpo Estranho, Liga Eugnósica da Terra e Fotógrafo Nua.

A Liga Eugnósica da Terra explorou modos alternativos de performatividade realizando intervenções numa paisagem urbana tão marcada pelas ideias de Lucio Costa e Oscar Niemeyer. Essa iniciativa alegre e irreverente tinha também um caráter didático. Eu propus uma forma de aprendizado cênico que elegia as ruas, os espaços públicos, como extensões da sala de aula e dessa forma os aprendizes eram incentivados a porem o bloco na rua, sem maiores delongas, com a cara e a coragem, com muita espontaneidade, improviso e cooperação. O nome Liga Eugnósica da Terra fazia referência à proliferação de grupos e seitas à la Rajneesh, Vale do Amanhecer, entre outros, que tomaram de assalto a capital. Havia essa coexistência entre grupos politizados de esquerda e os representantes esotéricos de uma nova era. O tema principal de nossas intervenções urbanas era elementar, porém urgente para aqueles anos: libertação e empoderamento dos corpos-alma – tanto dos performers quanto do público – censurados e limitados durante os anos de chumbo.

No clima sociopolítico daqueles anos, a intervenção urbana tinha um aspecto libertador e contribuiu também para repensar a estética performativa do trabalho de palco. Essas intervenções ocorriam no contexto de um importante movimento cultural mais amplo liderado pelo movimento coletivo Concerto Cabeças, do qual participei como uma das fundadoras, público cativo e performer.

Era impossível não se envolver com as tensões entre os estreitos interesses de poder e a amplitude celestial-espiritual de Brasília. Mas eu fazia isso de maneira um tanto iconoclasta a ponto de ter criado, na mesma época, o grupo Fotógrafo Nua, constituído por apenas duas mulheres, e assumir temporariamente o pseudônimo de Tristan, em referência ao artista romeno Tristan Tzara, um dos fundadores do dadaísmo, movimento de experimentação artística radical iniciado durante a primeira guerra mundial com o intuito de chocar os valores estéticos da burguesia.

 

FM | Ainda sobre eugnose, me deu curiosidade de saber desse personagem, Lili Manicure, quem era, o que representava, se foi o primeiro, como o público a recebeu, quantos outros lhe seguiram…

 

MB | Lili Manicure, foi uma personagem que criei por volta de 1984/85. Ela tinha o dom de ler a sorte das pessoas nas unhas e de ajudá-las a realizar seus sonhos e desejos. Lili circulava pelas ruas e praças públicas do Plano Piloto mas também das cidades satélites como Taguatinga e Gama. Comparecia ainda em eventos públicos como o Concerto Cabeças. Sua clientela era formada por transeuntes, mulheres adultas, crianças e adolescentes. Naquele tempo, usar esmalte era algo só para mulheres. A maneira como eu pintava as unhas era super-transgressora para a época: coloria cada unha de uma cor, duas cores em cada unha, cada mão de uma cor, adicionava penas, pétalas de flores, purpurina etc. Talvez essa personagem tenha sido a precursora do que se tornou, anos depois, um imenso comércio lucrativo na indústria da moda e dos cosméticos.


As minhas clientes eram orientadas a permanecerem com as unhas decoradas de um jeito extravagante por pelo menos uma semana, duas ou até um mês todo senão seus desejos não se realizariam. Uma performance de rua com contato humano direto e que esbanjava o que eu chamaria hoje de humor xamânico ou humor místico. Além disso, Lili Manicure tinha os pés na terra, pois se apresentava como a presidente do Sindicato das Manicures e lutava pelo reconhecimento e direitos trabalhistas das mesmas.

Vale lembrar que a consulta espiritual sempre foi um fenômeno muito difundido em todos os extratos sociais. Em Brasília especialmente, cidade afeita a todo tipo de exotismo espiritual, do Vale do Amanhecer a Extraterrestres. A personagem ganhou clones, entre os quais o artista, hoje diríamos, trans costarriquenho Marco Vinicio Cabezas com quem disputei em rua-palco aberto durante um dos Concertos Cabeças no Parque da Cidade a identidade da verdadeira Lili Manicure. O interesse popular da personagem chegou ao ponto de valer notícia de jornal: Lili critica o vestibular. [1] Era uma intervenção divertida, mas que tocava em questões importantes da época: a preocupação com o futuro, o culto à beleza, o mercado de trabalho e a sobrevivência econômica das camadas menos favorecidas, o acesso à educação e a liberdade de expressão e de gênero. Há um comentário lúcido do poeta e jornalista Tetê Catalão que sintetiza bem meus anseios daquela época:


A arte de Maura aplica-se como reintegração da pessoa (instinto, razão, emoção) sem discriminar idades, classes sociais, sexo ou diferenças culturais. Ela provoca uma re-sensibilização geral como se dissesse a cada um: Vê como é possível. Como você é bonito, como você pode. Como se mostrasse a maneira particular de cada um ser artista ao seu jeito. Mostrando a possibilidade de transformar homens em deuses, sem escravizá-los nem iludi-los.


FM | Vamos à dança, começando pelo sentido de improvisação. Como relacionarias aspectos – ou técnicas – como o jazz livre, o método Laban e a escritura automática (do Surrealismo), e de que modo esses jorros criativos teriam um pé na ancestralidade da pincelada única de Zhu Rouji, o mestre Shitao?

 

MB | Acredito que a prática da improvisação é fundamental para o desenvolvimento do/da artista, não importa qual seja a modalidade ou linguagem artística. Improvisar ajuda a liberar nossa energia dionisíaca muitas vezes reprimida por convenções, hábitos, regras, relações de hierarquia etc. Improvisar demanda presença total no aqui e agora. Ou, presentes em lugar nenhum e no eterno que também é o nunca. Percebe que eu acabei de improvisar nessa última frase? Improvisando arriscamos mais, damos espaço para o acaso, o não dito, as entrelinhas, a intuição, o subconsciente, as emoções represadas. A nossa criança nietzscheana, que diz sim à vida, e o corpo sem órgãos artaudiano se manifestam. A escrita automática proposta pelo movimento surrealista quando aplicada ao corpo e à criação de coreografias é mais uma ferramenta que nos ajuda a dar vazão aos impulsos criativos produzidos no inconsciente e assim romper certas amarras da razão excessivamente apolínea. Essas ferramentas de experimentação artística como a improvisação e a escrita automática nos ensinar a nos comunicar sem medo do outro, do mundo. Se não for desse jeito, o jogo criativo não passa de representação, imitação ou reafirmação do que já está estandardizado, calcificado, carimbado em nós. A vivência do plano das forças exige coragem, disposição para o risco, expansão da consciência, exercício do entreficar-se e do eterno originar-se. Parece muito abstrato? Complexo?

A criança dá os primeiros passos na vida com ajuda de outros e vai aprendendo por imitação e repetição. Com os animais também é assim. E isso é importante, é bom, é fundamental. À medida que vamos nos tornando independentes, os chamados artistas, talvez mais do que os não artistas, sentem uma necessidade enorme de reinvenção, transgressão, afirmação, reconhecimento de suas singularidades. Frequentamos escolas, universidades, aprendemos técnicas, adquirimos habilidades, conhecemos trabalhos de artistas consagrados, aprendemos a respeitar suas histórias e legados. Nos tornamos experts em práticas e conceitos que outros inventaram e nos sentimos acanhados, tímidos em arriscar coisas novas que partam da nossa própria cabeça. Tem sempre alguém na família, no meio acadêmico ou no grupo de amigos disposto a nos desencorajar. Não é fácil dar o grito de liberdade. Para as mulheres, e grupos minoritários em geral é muito mais difícil ainda. Mas não impossível. Eu tive a sorte, desde muito jovem, de nunca ter sido cerceada por meus pais em meus arroubos criativos que expressavam meus sentimentos em relação ao mundo ao meu redor. Dos 9 aos 12 anos de idade, a linguagem que mais me arrebatava era a escrita poética. Eis um dos meus primeiros poemas, escrito em 1966:


VI


Vi o mundo

Vi a natureza

Vi o mundo em chamas

Vi a natureza com calor

Vi o mar

Vi o céu

Vi o mar furioso

Vi o céu alegre

Vi tudo

Vi porque eu vivo

Vi porque quis

Vi porque olhei

Vi porque quando vi eu vivi

 

Escrita ingênua, sem erudição literária, sem floreios de linguagem. Depois, na adolescência, meus poemas se tornaram, digamos, mais introspectivos, ornamentados e, portanto, um tanto aborrecidos. Mas aí eu já me expressava também através da dança e fui deixando a poesia escrita de lado. Todavia era uma dança formal, em busca da excelência técnica de movimentos pré-estabelecidos, seja do balé clássico seja de estilos de dança moderna oriundos da estética estadunidense. Não havia espaço para a improvisação e a criatividade, copiávamos sempre fielmente modelos coreográficos e danças já consagrados. Essa imitação me causava um desconforto imenso e eu me perguntava por que tudo que aprendíamos vinha do exterior. Tudo que era considerado bom e belo tinha assinatura de gente de outros países. A coreografia Bumerangue foi o meu primeiro ato crítico-transgressor – grito de liberdade. A partir daí não parei mais, apesar de ter enfrentado resistência de todos os lados, do regime militar, do meio acadêmico e da própria classe da dança.

Sempre senti o impulso de criar uma linha própria de dança, sem, ao mesmo tempo, estancá-la em termos conceituais, didáticos e representacionais. Então, desde cedo, experimentava muito, abusando da improvisação. Por volta dos meus vinte anos, em Brasília, inventei e ministrei uma oficina de improvisação chamada Jazz Livre direcionada para jovens de todas as idades, dando ênfase à faixa dos 50+. Paralelamente, eu frequentava as aulas de Laban de Regina Miranda e participava de suas encenações. O método Laban me arrebatou por invocar as forças da natureza para o movimento corporal, mas me incomodava aquela necessidade de circunscrever o corpo dentro de um cubo ou de um icosaedro e aquela notação coreográfica complicadíssima. Acabava que as formas predominavam ante as forças, a razão ante as emoções e tínhamos que seguir um vocabulário restrito.

Nos anos 1980, eu já participava ativamente na cena da dança de Brasília como dançarina, coreógrafa, professora universitária, ministrante de cursos e oficinas em academias e espaços culturais e também como criadora de diversos núcleos de experimentação artística. Naquele tempo não existiam editais públicos de fomento à dança ou ao teatro. Tudo era feito com muita dificuldade material, mas esbanjávamos vontade de comunicação e senso colaborativo e ocasionalmente tínhamos o apoio de agentes públicos em relação à cessão de espaço para ensaios e apresentações.

Foi nessa época que eu frequentava os cineclubes geralmente localizados em escolas de línguas estrangeiras como a Aliança Francesa e a Cultura Inglesa e passei a conhecer e admirar diretores como Pasolini, Fellini e Glauber Rocha. Em literatura, me debruçava sobre as obras de Nietzsche, Artaud, Ortega y Gasset apesar de certa dificuldade em compreendê-las. Me faltava erudição literária e filosófica, mas o que eu consegui captar foi suficiente para tê-los sempre presente em minha mesa de cabeceira mental. Não é à toa que certo tempo depois, junto à Taanteatro Companhia, desenvolvi um amplo repertório de espetáculos sobre a vida e a obra de poetas-filósofos como Artaud, Lautréamont, Nietzsche, Deleuze e, agora, o filósofo-ativista-psiquiatra da Martinica, Frantz Fanon.


E foi na segunda metade dos anos 1980 que encontrei o espírito dionisíaco encarnado na figura de Kazuo Ohno ao realizar seu estilo de dança denominada butoh. Encontrei aí uma das ressonâncias mais forte aos meus anseios criativos. Conheci Kazuo Ohno e seu filho Yoshito por ocasião da apresentação de Mar Morto e La Argentina no Teatro Nacional de Brasília, em abril de 1986. O impacto que essas obras e a performance desses dançarinos japoneses nos causaram vão perdurar para sempre em nossa memória. Eu e Eliana Carneiro – minha parceira de coreografia na época – apresentamos Du-Elo para Kazuo Ohno, Yoshito e sua comitiva no jardim de Burle Marx do saguão da Sala Villa-Lobos do Teatro Nacional. Eis aqui as impressões de Kazuo Ohno sobre Du-Elo escritas em forma de poema:

 

Vi a sua dança acompanhada por uma música estranha. Lembro-me de pote de fundição de alquimia. Deixa cair de seu interior os casacos do universo, um a um. Parece uma substância estranha que um mágico vai deixando cair na terra. Aquela substância estranha, será que é placenta que testemunha o nascimento de uma vida? O corpo físico é o casaco do universo que veste o espírito. O leite materno começa a se derramar, cobrindo a terra.

 

Parece escrita automática. Sim ou não, mas certamente deixaria os surrealistas e dadaístas de queixo caído. Resultado do nosso encontro: larguei meu trabalho na universidade e parti para o Japão em 1987 com o objetivo de me aprofundar na dança butoh. Lá estudei com Ohno e Min Tanaka. Duas escolas bem diferentes, mas oriundas da mesma fonte: Tatsumi Hijikata, o inventor do ankoku butoh (dança das trevas). De volta ao Brasil, em 1988, me dediquei à difusão da dança butoh. Em 1995, quando idealizei e produzi a Mostra 95 Butoh e Teatro Pesquisa em São Paulo, Curitiba e Brasilia, lancei Butoh Dança Veredas DAlma, o primeiro livro sobre o butoh em língua portuguesa, há muito tempo esgotado nas livrarias, mas disponível online gratuitamente. [2]

Desde 1988, eu já vinha formulando os princípios, as ideias e técnicas de minha própria pesquisa que denomino dinâmica taanteatro ou teatro coreográfico de tensões. Obviamente, sintetizo em meu trabalho aprendizados anteriores e procuro desenvolver minhas intuições no contexto de uma metodologia que combina rigor apolíneo e desregramento dionisíaco. A dinâmica taanteatro está em constante aprimoramento, aberta às transformações sociopolíticas do mundo sem perder sua capacidade de autopoiesis, de auto-produção, de auto-(des)construção e autocrítica.

Nas nossas práticas psicofísicas, de criação dramatúrgica e coreográfica sempre há espaço para a improvisação, o acaso, o fluir do inconsciente, o erro, o desregramento dos sentidos, porque são eficientes disparadores de forças singulares que dificilmente seriam reveladas em ambientes apenas preocupados com o virtuosismo técnico de formas pré-estabelecidas por outrem. É preciso explorar todas a faculdades sensoriais, imaginárias e locomotivas do performer no intuito de ajudá-lo a superar o meramente aleatório e dotar sua dança com a força da tensão existencial que o move como ser humano e artista. Em outras palavras, no taanteatro, investimos no desenvolvimento da singularidade artística de cada performer incentivando-o a buscar seu(s) próprio(s) tema(s) e estilo.

Sob este aspecto, o taanteatro se filia à tradição do mestre Shitao que enfatizava a pincelada única ou linha primordial. Por outro lado, é preciso conceder, sem rancor, que nem todo artista tem a capacidade ou o interesse em se libertar dos ditames de escolas tradicionais para, como um Shitao, criar seu próprio método. Além disso, convém distinguir entre as funções e os significados diferentes da improvisação, por exemplo, entre um iniciante e um mestre. Em cada caso, a improvisação resulta de um nível de experiência, de conhecimento que implica na capacidade de dominar o fluxo energético com rigor. Com o rigor que as crianças têm quando brincam?

 

FM | Retomo o Surrealismo pensando em outra situação, a tua referência à metacinese (metakinesis) aplicada à dança, que me parece se contrapor – porém interligando-se – à ideia dos vasos comunicantes, à busca alquímica de fusão dos opostos. Primeiro a separação dos corpos, a identificação de oposições que, ao final, iriam permitir a fusão dos contrários. Estou na linha certa de compreensão?

 

MB | No universo da dança, a noção de metacinese vai além do sentido originalmente biológico do termo: separação. Em dança – a partir da correlação entre corpo e alma como dois aspectos de uma mesma realidade e da correspondência recíproca entre movimentos físicos e movimento psíquicos – metacinese se refere ao movimento expressivo que reflete a personalidade e os humores da pessoa que dança e que somente se efetua realmente em comunicação com o público. Em outras palavras, a recepção e interpretação individual e coletiva do movimento expressivo do dançarino pelo/a espectador/a faz parte desse movimento e de seu significado. Assim, poderíamos dizer que o público de uma dança nunca é passivo, mas é seu coautor. E sim, você está na linha certa de compreensão.

 

FM | Brasília, São Paulo, Japão. Damos um salto até a tua descoberta de Kazuo Ohno – o grande mestre do Butoh –, os ensinamentos, a amizade. Quando lemos, em um de seus aforismos, que as mãos são feitas para falar com eloquência, como se quisessem expressar nossos sentimentos. Mas os pés não falam tanto quanto as mãos, porque eles ancoram a vida, fica bastante claro o encontro do teatro (mãos) com a dança (pés), representação e movimento. Acho bonito quando ele próprio diz que a tua dança parece uma substância estranha que um mágico vai deixando cair na terra, elogio que qualquer um gostaria de receber, mas que é preciso corresponder a ele. De que modo Kazuo te fez chegar até às concepções de um taanteatro?

 

MB | No início do ano letivo de 1986, na UnB, na sala dos professores de meu departamento, folheando uma revista distribuída pela embaixada do Japão, vi pela primeira vez fotografias da dança butoh. Aquelas imagens me causaram um impacto gigante e senti uma afinidade imediata com a presença poética daqueles corpos e sua performance radicalmente diferente de tudo o que eu conhecia no universo das artes performativas. Representavam para mim a luz no fim do túnel porque no próprio meio acadêmico eu sofria muita resistência às minhas propostas inusitadas e, digamos, libertárias, em relação à dança e aos corpos.

A matéria da revista Japão Hoje ressaltava os trabalhos de Hijikata, Ohno, Min Tanaka, os grupos Dairakudakan, Sankaijuku, entre outros. E uma coisa que me chamou especialmente a atenção foi o destaque que deram à forma lenta como os/as dançarinos/as se deslocavam no tempo-espaço cênico. Achei que meu trabalho estivesse num caminho avizinhado ao butoh porque eu estava justamente numa fase da minha pesquisa coreográfica à qual eu chamava de dança fotográfica para enfatizar seu aspecto estático e extático de interiorização-exteriorização do movimento. Essa qualidade coreográfica era experimentada, sobretudo, no meu grupo performático Fotógrafo Nua.

As classes de Ohno eram oficinas de improvisação com base em certos disparadores como suas falas poéticas sobre o universo, a origem da vida no útero, suas memórias familiares, principalmente relacionadas à figura materna, sua admiração pela dançarina de flamenco La Argentina e por obras de arte impressionistas e simbolistas. Além disso, havia as demonstrações do próprio Ohno, mas, contrário aos nossos costumes, não havia nenhuma orientação técnica ou conceitual. Aprendia-se por observação e transmissão afetiva, corporal. Quando chegava nossa hora de dançar, Ohno nos incentivava dizendo em inglês: free style!. As oficinas eram sobretudo frequentadas por europeus e a única brasileira, se não me falha a memória, era eu, em 1987.

Numa única ocasião, quando Ohno e eu estávamos ensaiando no seu estúdio, ele me disse: tension always! O que ele queria dizer com aquilo? Para eu nunca relaxar a musculatura? Para eu não perder o foco? A comunicação verbal era difícil. Ele falava quase nada de inglês e eu quase nada de japonês. Essa dificuldade impedia aprofundarmos o tema. Mas a experiência me marcou e reavivou uma série de indagações relativas à tensão, um tema tradicionalmente caro a todas as vertentes da dança moderna.


A partir daí, comecei a repensar e estudar o conceito de tensão de maneira mais ampla, na dança e para além dela, nos campos da literatura, do teatro, cinema e arquitetura, por exemplo. Mas, sobretudo, observava como as tensões movem os seres humanos e estão presentes e ativas em todos os modos de arte e de vida. Distingui entre tensões intra, inter e infra-corporais e concebi o princípio tensão como denominador energético-semiótico comum da polifonia midiática de uma performance e de suas relacões intermodais. Juntamente com Wolfgang Pannek, co-diretor da Taanteatro, vimos documentando sistematicamente o processo de teorização e o conjunto das práticas performativas correlatas por meio do projeto editorial da Taanteatro Companhia que até agora inclui seis livros publicados entre 2007 e 2020. O ponta pé inicial de nossa pesquisa foi dado quando recebi a Bolsa Vitae de Arte e Cultura em 1991/92. O projeto agraciado chamava-se Taanteatro – uma pesquisa para a transformação da Dança. Anos depois, a nossa primeira publicação foi resultado de minha dissertação de mestrado na PUC/SP denominada Corpo e comunicação: o princípio tensão na experiência Taanteatro.

O butoh exerceu uma influência considerável sobre mim e o taanteatro, a ponto de em 1995 realizarmos a Mostra 95 Butoh e Teatro Pesquisa em São Paulo, Curitiba e Brasília com presenças internacionais importantes como Min Tanaka, Ko Murobushi, Masaki Iwana, a pintora, fotógrafa e pesquisadora de butoh Nourit Masson-Sékine, entre outros. Mas, desde o princípio, o teatro coreográfico de tensões se distinguiu dessa fonte de inspiração em função de nossa ênfase na elaboração de um protocolo dinâmico de treinamento, de uma abordagem conceitual abrangente e do aspecto multimidiático das encenações da Taanteatro Companhia.

 

FM | Novas viagens e estudos: Shiatsu, teatro Nô, teatro de bonecos e xamanismo. A incansável Maura como que preparava a magia de uma poética que lhe é esplendidamente singular, ao conseguir realizar, como disse certa vez o coreógrafo Takao Kusuno, a afinação e o magnetismo do eu com a expressão gestual. Eu veria essa observação de Takao como a presença na matemática das noções associadas de derivação e integração, o que permite com que mistures em um mesmo caldeirão alquímico as perspectivas conceituais ligadas aos limites e rupturas da existência. Quando estás criando as coreografias, quais aqueles elementos constituintes e seus temperos, seus truques de linguagem? É possível revelá-los?

 

MB | Não estou familiarizada com essas noções matemáticas, lamento. No que se refere ao comentário de Takao Kusuno a meu respeito, sinto que ele procura descrever a disposição e capacidade de uma artista da dança de lançar sua subjetividade sem reservas e de maneira potente, a tal ponto que a cumplicidade entre força genética e forma expressiva revela a singularidade do movimento. Essa operação alquímica não se baseia em truques, mas antes na vontade de expressar, através da dança, uma vida inteira, não no sentido mimético, mas como síntese das energias subjacentes às experiências vitais radicais e, eventualmente, limítrofes. Quanto mais radical a experiência cinética-energética maior a necessidade de entender e orientar sua intensidade e seu fluxo. O ponto de partida da dramaturgia de vários dos meus espetáculos coreográficos nasceu da fusão tensiva entre motivos de meus sonhos noturnos e diurnos e experiências pessoais (mitologia [trans]pessoal), porém, re-trabalhados à luz das realidades culturais sociopolíticas e ambientais que me dizem respeito.

Comparo o corpo que se expressa e dança a um mandala cinético. Mandala, na tradição hindu-tibetana, significa círculo. Há séculos, artistas visuais dessa cultura criaram coletivamente mandalas pictóricas gigantes, com areia colorida e outros materiais delicados, para contar suas histórias e louvar suas crenças. Inspirada pela simbologia do mandala oriental, inventei o Mandala de Energia Corporal (MAE), nossa principal dinâmica de desenvolvimento psicofísico e criação performativa. Essa prática pressupõe um abandono da ideia do corpo como um mero instrumento da dança ou da ação cênica.

No MAE, damos vasão à autopoiética corporal. Fazendo uma analogia com a pintura, o corpo é, ao mesmo tempo, as tintas, a tela, o pincel e o/a pintor/a. Ou seja, a matéria prima, a ferramenta, o suporte, o agente, enfim, os meios e o resultado. Munidos dessa nova perspectiva, nos lançamos à prática do MAE que consiste na realização de 7 danças denominadas Dormir-Acordar, Zerar, Arco-Flecha-Alvo, Coração, Serpente, Estados da Matéria e Marrítmo que ativam e aglutinam as faculdades sensoriais, imaginárias, cognitivas e cinéticas da/o performer. A última dança dessa sequência, o Marrítmo, sintetiza as danças anteriores e difere delas por ser um espaço de improviso, experimentação e criação. Uma característica singular do MAE é o caráter dramatúrgico da prática, inspirado por As três metamorfoses do espírito, parábola filosófico-poética que abre Assim Falou Zaratustra de Friedrich Nietzsche e narra como o espírito se torna camelo, o camelo leão e por fim, criança. Abreviadamente, é um dos temperos mágicos da linguagem do Taanteatro.

 

FM | Talvez antes da entrada em cena da Taanteatro Companhia pudéssemos falar de tuas relações com Antunes Filho, Sérgio Mamberti e José Celso Martínez Correa, considerações que podem ter influído em teu trabalho, quaisquer aspectos que recordes como relevantes em tua decisão de criar uma associação tomando o teatro – qualquer que seja seu palco – como o lugar sagrado de encontro em nome da arte e da filosofia.

 

MB | A influência de Antunes, Mamberti e José Celso se refere ao fato de terem me apoiado, em momentos distintos, durante minha trajetória artística a partir dos anos 1990 quando me transferi para a cidade de São Paulo.

No final de 1989, o diretor teatral Antunes Filho assistiu uma apresentação minha em cooperação com o músico eletroacústico japonês Kazuo Uehara no auditório do MASP por ocasião do festival Japão: Arte da Música Hoje. Após a apresentação, o Antunes veio até o camarim, acompanhado do ator Luis Mello e da atriz Rita Martins Tragtenberg, para me cumprimentar e convidar a trabalhar como coreógrafa no Centro de Pesquisa Teatral /CPT, sediado no SESC Consolação. Em razão desse convite, eu me mudei para São Paulo. Mas do ponto de vista artístico, a colaboração não prosperou porque o CPT não dispunha de recursos para pagar seus artistas. Por esse motivo, me desliguei três meses mais tarde do CPT para iniciar meu próprio grupo de pesquisa. Eu me despedi acompanhada por algumas integrantes do elenco do Antunes dispostas a aprender comigo e a me remunerarem por isso. Essa nova empreitada encontrou abrigo no Teatro Ventoforte que era administrado pelo grupo do Ilo Krugli, falecido em 2019. Recentemente, a gestão atual de São Paulo demoliu esse histórico teatro sem aviso prévio, em demonstração de profundo desrespeito à memória cultural da cidade.

O saudoso Sérgio Mamberti foi uma influência generosa e importante, sobretudo, para o início de minha carreira em São Paulo, enquanto dançarina, atriz e coreógrafa. Foi no Teatro Crowne Plaza, com curadoria de Sérgio Mamberti que apresentei, em 1990, um projeto de três solos denominado Absolutas com uma repercussão muito positiva. Posteriormente, ele me apoiou mais duas vezes: durante a Mostra 95 Butoh e Teatro Pesquisa e em 2005 – por ocasião do Intercâmbio Cultural Matola-Brasil –, época em que ele atuava no Ministério da Cultura durante o primeiro governo do presidente Lula. Nós tínhamos sido convidados pelo grupo teatral Trás do Muro e pela Companhia Municipal de Canto e Dança da Matola para criar e dirigir um espetáculo em torno da filosofia de Nietzsche. Assim, a Taanteatro Companhia passou quase dois meses trabalhando em Moçambique na criação e encenação de Xiphamanine – o eterno originar da árvore mphama apresentada no Teatro África, com grande êxito. Como atriz, cooperei diretamente com o Sérgio Mamberti quando ele me convidou para fazer parte da leitura da peça As quatro meninas de Pablo Picasso, apresentada em 2001 na Mostra Surrealismo realizada no CCBB do Rio de Janeiro.


O José Celso, querido Zé, conheci quando eu ainda morava em Brasília. Anos depois, ele e o Marcelo Drummond assistiram a Absolutas e, na sequência, o Zé Celso me convidou para fazer parte da primeira leitura pública de sua peça Cacilda. O Zé também esteve presente na estreia da obra de inauguração da Taanteatro Companhia, O Livro dos Mortos de Alice – Danças Transitórias apresentada no Sesc Pompeia. Em 1996, comissionamos ao Teatro Oficina a encenação de Para dar um fim no juízo de deus apresentado no Teatro do MASP no contexto da mostra internacional Artaud 100 Anos, idealizada por Wolfgang Pannek e produzida pela Taanteatro Companhia. Entre 2002 e 2004, colaborei diretamente com o Zé Celso como coreógrafa de Os Sertões. O Wolfgang atuou em quatro peças dessa pentalogia, inclusive fazendo o papel do Bispo Sardinha. Entre todas essas figuras muito distintas do cenário teatral de São Paulo, somente com o Zé Celso tive uma cooperação artística mais substancial. Apesar do estilo de encenação do Teatro Oficina diferir bem do Taanteatro, e de exercer pouco impacto estético sobre nosso trabalho, sempre admiramos a paixão incondicional e contagiante do Zé Celso por seu teatro e somos eternamente gratos por ele ter permitido a nós, contagiá-lo.

 

FM | Em entrevista que deste a Wolfgang Pannek, em 2023, observas o seguinte: O corpo da performer não é um corpo abortado, não nasceu de um ato mágico, do nada, mas bem de jogos de forças antiquíssimos da Natureza e de genes muito antigos, ou seja, de uma ancestralidade planetária, assim como o planeta Terra possui uma ancestralidade cósmica ilimitada em termos espaço-temporais. Pensando na mecânica inesgotável dessa ancestralidade, qual o significado da criação e persistência da Taanteatro Companhia no cenário igualmente complexo de nossa contemporaneidade – seja no ambiente espiritual da performer, seja na esfera cósmica do planeta?

 

MB | O cenário político, econômico e cultural do Brasil raramente deu motivos substanciais de entusiasmo aos artistas brasileiros, com exceção dos investimentos em cultura durante o primeiro governo Lula e, no caso de São Paulo, da primeira gestão municipal da Marta Suplicy. Ainda assim, esses avanços iniciais cederam, em muitos aspectos, novamente à estagnação, sem falar no desmonte cultural promovido pela extrema direita brasileira, entre 2019 e 2022, com a extinção do Ministério da Cultura, de todos os programas de financiamento de pesquisa e a perseguição às universidades públicas. O fato é que toda vez que um governo aqui no Brasil entra em crise, o primeiro setor a sofrer cortes expressivos é o cultural. Vamos torcer para que esse novo governo Lula, mais simpático às artes e seus artistas, saiba reconstruir o que se perdeu e investir em programas novos e duradouros. Diante dessa montanha russa resultante da incapacidade da maioria dos fomentadores de cultura, de pensar nosso país e seu patrimônio cultural numa perspectiva abrangente e suprapartidária e diante de um cenário crescente de tendências reacionárias e predadoras das artes e seus artistas, de fato, nunca foi fácil encontrar incentivos para seguir criando.

Mas, por sorte, o corpo da/do artista é também uma linha de fuga sem órgãos (parafraseando Artaud) que vem sendo coreografada desde tempos imemoriais. Uma linha de dinâmicas extemporâneas que transcendem os horizontes das ordens sociais imediatas, dinâmicas em que nossa vontade de potência criativa se conecta com origens e devires ancestrais muito além do momento de nossa existência individual. E é através dessa atitude ao mesmo tempo visceral e ética com a vida entendida como rede de tensões incomensurável e em fluxo contínuo que nos reabastecemos e prosseguimos cuidando um/a dos/as outros/as.

 

FM | Na mesma entrevista, fazes referência a obras excessivamente centrada na noção de anthropos, alheias, portanto, a uma dimensão metafísica que não se limite a uma essência unicamente dos seres humanos isoladamente daquele conjunto de caracteres comuns que constituem o planeta. A criação artística, como ainda é praticada hoje, me parece incorrer demasiadamente nesse conceito, longe de buscar uma simbiose que permita a própria existência humana livrar-se de suas contradições. Com isto indago acerca da repercussão da Taanteatro Companhia e da existência de esforços equivalentes, dentro e fora do país, que julgues valiosos em sua essência.

 

MB | Nossa crítica do antropocentrismo nas artes se dá no contexto da ecoperformance, uma abordagem conceitual e arte performativa proposta por mim em 2009, por ocasião da criação da obra DAN – devir ancestral. Nos anos subsequentes, essa abordagem teórico-prática seguiu sendo desenvolvida em colaboração com Wolfgang Pannek.

Em 2021, fundamos o IEFF – International Ecoperformance Film Festival (CineFestival Internacional de Ecoperformance) com o intuito de incentivar a investigação das tensões entre meio ambiente, corpo, ancestralidade e memória e a promover obras cinematográficas que visam superar o paradigma dramatúrgico centrado no anthropos. Esse festival, de realização anual e geralmente realizado em cooperação com instituições culturais e universidades, alcançou uma ressonância muito positiva em escala mundial. O IEFF apresentou centenas de filmes curta-metragens de 6 continentes e mais de 50 países e ganhou, em 2024, edições nômades apresentadas na Argentina, Alemanha, Austrália, Estados Unidos e Romênia. Atualmente, planejamos ao mesmo tempo a quinta e sexta edição do festival. A ulterior no Canadá, em cooperação com a University of Toronto.


Apesar de seu êxito nacional e internacional, em meios artísticos e acadêmicos, esse projeto visionário, que investiga a despedida da antropocena em direção à simbiocena, até hoje não encontrou nenhum suporte financeiro no Brasil. Mas por ser um projeto com ideias tão potentes, tem conseguido sobreviver por causa da grande empatia que causa entre artistas e públicos que se identificam com o seu aspecto visionário e sua vocação de cuidado com todos os seres, a vida e o planeta.

 

FM | Com relação à recepção crítica do trabalho da Taanteatro Companhia, observo que algumas obras não obtiveram uma fortuna crítica à altura da qualidade e inovação dos espetáculos apresentados. Refiro-me a Zaratustra (2009), Máquina Hamlet Fisted (2011) e a trilogia Apokálypsis (2021). Não te parece intrigante esse silêncio?

 

MB | Além das obras citadas podemos mencionar a trilogia cARTAUDgrafia (2015), 1001 Platôs (2017) e Mensagens de Moçambique (2018). Curiosamente, nossos projetos cinematográficos Antonin Artauds The Theatre and the Plague (2020) e Apokálypsis tiveram maior ressonância jornalística em Paris e Buenos Aires do que no Brasil.

Mas eu não diria silêncio porque, apesar da sub-iluminação crítica de obras importantes do catálogo da Taanteatro Companhia, a maioria delas foi, ao menos, anunciada e positivamente registrada pela imprensa brasileira. Máquina Zaratustra foi citado pela Folha de S. Paulo entre os 10 Melhores Eventos Culturais da cidade, a revista Bravo! destacou Frida Kahlo: uma mulher de pedra dá luz à noite entre os Melhores Espetáculos em cartaz, Máquina Hamlet Fisted foi eleito como Melhor Espetáculo de Dança pelo público da Folha de S. Paulo e 1001 Platôs (2017) foi indicado para o prêmio APCA na categoria direção coreográfica. Meu solo Artaud, le Momo (2016) obteve três críticas excelentes em Paris, uma delas da renomada escritora-pesquisadora de Antonin Artaud, Florence de Mèredieu.

Claro que tais recompensas não substituem a qualificada apreciação crítica de uma obra no país de origem de seus autores. Desde o início dos anos 2000, quando observamos uma monetização dos cadernos culturais, um certo silêncio crítico passou a afetar não somente a Taanteatro Companhia, mas as artes performativas brasileiras em geral. Antes desse período, nossas obras geralmente ganharam cobertura ampla e foram com frequência apreciadas pela crítica. Depois, as redações passaram a favorecer produções de grande patrocínio e artistas com status de celebridade, o que é raro no campo da dança contemporânea nacional. Essa mudança induzida pela imprensa fez o mercado de trabalho e o status social da crítica encolher e, simultaneamente, tornou invisível, até certo ponto, um número significativo de criadoras e criadores efetivamente responsáveis pela inovação artística no Brasil. Em decorrência desta perda cultural, surgiram alternativas online, geralmente, promovidas por entusiastas e estudiosos das artes, porém, sem a mesma ressonância social. Ainda assim, apesar de não cobrir todas as encenações, a recepção crítica de nossas obras, desde 1982 até hoje, tem sido muito favorável.

 

FM | Não indago sobre planos, pois me parece que devam permanecer sigilosos até que se realizem. Mas sempre podemos voltar no tempo. Esquecemos algo?

 

MB | Inevitavelmente, esquecemos algo. Afinal, dos meus 68 anos, 56 anos foram dedicados às artes performativas. É muita coisa para ser lembrada. E a Taanteatro Companhia completará 35 anos de existência no final de 2025. Em março desse ano, nossa equipe, formada por Wolfgang Pannek, Mônica Bernardes, Candelaria Silvestro, Jorge Ndlozy, Janina Arnaud e por mim, dá início ao projeto teatro-coreográfico Da Violência: Fanon, em torno da obra de Frantz Fanon, graças ao Programa Municipal de Fomento à Dança para a Cidade de São Paulo. Como vê, seguimos em busca de respostas diante do cenário ecopolítico contemporâneo. Também daremos sequência ao Cinefestival Internacional de Ecoperformance ancorado nas seguintes urgentes indagações: Que ancestral quero ser para meus descendentes? Que realidades desejo criar? Que legados deixarei?


NOTAS

Entrevista realizada em fevereiro de 2025 especialmente para a presente edição. As imagens que acompanham a entrevista integram o acervo da Taanteatro Companhia e foram gentilmente cedidas por Wolfgang Pannek.

Sugestão de visita: Maura Baiocchi | Selected works (1978-2023): www.youtube.com/watch?v=vf7zYkPFbBo

1. Lili critica o vestibular, Correio Braziliense, 20/07/1985.

2. Acesso gratuito ao livro Butoh Dança Veredas D’Alma, de Maura Baiocchi: download.




FLORIANO MARTINS
(Brasil, 1957). Poeta, editor, dramaturgo, ensaísta, artista plástico e tradutor. Criou em 1999 a Agulha Revista de Cultura. Coordenou (2005-2010) a coleção “Ponte Velha” de autores portugueses da Escrituras Editora (São Paulo). Curador do projeto “Atlas Lírico da América Hispânica”, da revista Acrobata. Esteve presente em festivais de poesia realizados em países como Bolívia, Chile, Colômbia, Costa Rica, República Dominicana, El Salvador, Equador, Espanha, México, Nicarágua, Panamá, Portugal e Venezuela. Curador da Bienal Internacional do Livro do Ceará (Brasil, 2008), e membro do júri do Prêmio Casa das Américas (Cuba, 2009), foi professor convidado da Universidade de Cincinnati (Ohio, Estados Unidos, 2010). Tradutor de livros de César Moro, Federico García Lorca, Guillermo Cabrera Infante, Vicente Huidobro, Hans Arp, Juan Calzadilla, Enrique Molina, Jorge Luis Borges, Aldo Pellegrini e Pablo Antonio Cuadra.

 



Agulha Revista de Cultura

CODINOME ABRAXAS # 02 – TAANTEATRO COMPANHIA (BRASIL)

Imagens: Acervo Taanteatro

Editores:

Floriano Martins | floriano.agulha@gmail.com

Elys Regina Zils | elysre@gmail.com

ARC Edições © 2025




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