MB | Nasci e vivi até meus 8
anos em São João do Caiuá, um vilarejo de 3000 habitantes na zona cafeeira ao
norte do Paraná, onde os únicos movimentos de arte e cultura eram o cinema e o
grupo de teatro fundado por meu pai. A vinda periódica do circo era um evento
aguardado com grande expectativa pela população rural. Era um circo típico daqueles
anos 1950/60 com atrações como o atirador de facas, o mágico, trapezistas,
equilibristas, o engolidor de fogo, malabaristas, a mulher barbada, a
mulher-gorila, contorcionistas e palhaços, claro. Tinha alguns animais também,
me recordo de um elefante, magro e triste. Me lembro também de ter visto algo
muito diferente e estranho, que não sei ao certo se foi no mesmo contexto do
circo. Era um trailer, espécie de museu de cera itinerante que mostrava
crianças ou bebês com deficiências físicas radicais como gêmeos ligados pela
cabeça, assustador para uma criança, mas sem censura. Cenas para uma obra de
realismo mágico.
Realmente, o que despertou pela primeira vez meu imaginário para as artes
da cena foi o circo e eu tinha predileção pelo número das contorcionistas.
Então, a partir dos meus 5 anos, mais ou menos, me exercitava constantemente
tentando repetir aquelas coreografias posturais. Também era fascinada pelos
figurinos que sublinhavam mais ainda a aura de encantamento e superpoder. E
obviamente, eu queria ser como elas quando crescesse. Não fugi com o circo, mas
sua essência nômade e de resistência marcaram meu corpo-alma para sempre.
A figura do palhaço teve uma presença ocasional, porém recorrente em minha
trajetória. Criei o clown Falha Técnica, por volta de 1976, em Brasília, quando
atuava no grupo Esquadrão da Vida, dirigido por Ary Pararraios. Vinte anos
depois, em Arará: histórias que os
ossos cantam, o protagonista da peça era
o líder da Liga Transgênica da Mentira Principal, uma espécie de clown
futurista, e em Artaud, le
Mômo (2016) o palhaço retornou
nas vestes do poeta maldito.
Uma curiosidade: em 1992, em São Paulo, protagonizei o curta metragem Nayara, a mulher gorila, dirigido por Marta Nassar com cenografia e
figurinos de Eurico Rocha e música de Arrigo Barnabé. Cheguei a ganhar um
prêmio de melhor atriz por essa personagem. Foi um momento extraordinário de
reconexão com a magia tragicômica do circo.
FM | Do circo para o teatro, de
um tablado para outro, estudos de dança e os primeiros passos na improvisação.
Quando crias a Liga Eugnósica da Terra, me parece uma presciência, porque o
imperativo de um autoconhecimento ainda não era tão alarmante como hoje, mesmo
considerando o ambiente político daquela década, 1970-80. Como era atuar em
espaço aberto e com uma proposta ousada que ia de encontro ao clima espesso –
para dizer o mínimo – de então? Indago sobretudo por teu espírito, como te
sentias.
MB | A forma do meu sentir foi
se construindo, tipicamente, nos ambientes da vida em família e das escolas, a
seguir, em contato com artistas que cruzaram meu caminho, nos momentos de
criatividade compartilhada ou solitária. Mais fundamental, porém, para minha
sensibilidade corporal e imaginação artística voltada ao espaço aberto foi a convivência diária com a natureza, primeiro,
na zona rural do Paraná, depois, no bioma do cerrado do Centro-Oeste.
Em 1964, minha família se mudou para Brasília. Na época, a capital era um
imenso canteiro de obras coberto de poeira do cerrado. Aos 12 anos, iniciei
meus estudos em balé clássico e aos 14 anos em teatro. As condições culturais
eram precárias, havia pouca infraestrutura. Nas aulas, realizadas em um club comunitário
na asa sul do Plano Piloto usávamos a borda da janela do salão de festas como
barra de exercício. Os estudos de teatro se davam no contexto do curso
pré-universitário e minha primeira professora da arte dramática foi a
arte-educadora Laís Aderne. Em 2017, foi criado em Brasília o EcoMuseu do
Cerrado Laís Aderne.
Aos poucos, a comunidade artística de Brasília foi crescendo e com isso o
espaço para a experimentação foi aumentando. Estudei balé clássico com Lucia
Toller e Norma Lilia e busquei me aprimorar através de cursos complementares
com coreógrafos de São Paulo e Rio de Janeiro como Ademar Dornelles, Graziela
Rodrigues, Clarice Abujamra, Sonia Mota e Rainer Vianna. No que se refere à criação em dança no DF, vale destacar as contribuições
pioneiras de Regina Miranda, Hugo Rodas e Yara de Cunto, coreógrafos com quem
trabalhei na segunda metade dos anos 1970 até o início dos anos 1980, antes de
encenar minhas próprias coreografias.
Um pouco antes de eu lecionar na UnB e na Faculdade de Teatro Dulcina –
1984 a 1986 –, a presença do autoritarismo militar ainda era preeminente, a
ponto de censurarem um de meus primeiros trabalhos – a coreografia de grande
elenco Bumerangue (1982) – ironicamente eleita como um dos 50 espetáculos que marcaram Brasília, décadas depois. Bumerangue, aclamado pelo público e pela crítica, foi criado no contexto do grupo de
dança Asas e Eixos do qual eu fazia parte, inicialmente, como dançarina. Minha
passagem por esse grupo foi breve, não por minha vontade, mas por vontade das
diretoras do grupo que, a partir do momento que Bumerangue sofreu censura do regime, decidiram por me tirar do grupo. A diretora
artística era casada com um general. Bumerangue teve então
uma única apresentação. Foram duas as cenas que causaram o banimento da obra:
uma passeata-protesto em câmera lenta com os dançarinos carregando cartazes em
branco e a cena com a projeção de um curta filmado em super 8 realizado pelo
artista plástico Wagner Hermusche, que mostrava imagens da Brasília daquela
época, dominada por carros oficiais e seus ricos e poderosos ocupantes
contrastando com a população empobrecida da periferia constituída
principalmente por famílias daqueles operários que construíram a capital da
república.
Entre 1984 e 86, criei juntamente com artistas-estudantes da área de
música, dança e teatro – na maioria alunos meus do curso de artes cênicas
recém-criado na Universidade de Brasilia – vários grupos de performance: Corpo
Estranho, Liga Eugnósica da Terra e Fotógrafo Nua.
A Liga Eugnósica da Terra explorou modos alternativos de performatividade
realizando intervenções numa paisagem urbana tão marcada pelas ideias de Lucio
Costa e Oscar Niemeyer. Essa iniciativa alegre e irreverente tinha também um
caráter didático. Eu propus uma forma de aprendizado cênico que elegia as ruas,
os espaços públicos, como extensões da sala de aula e dessa forma os aprendizes
eram incentivados a porem o bloco na rua, sem maiores delongas, com a cara e a
coragem, com muita espontaneidade, improviso e cooperação. O nome Liga
Eugnósica da Terra fazia referência à proliferação de grupos e seitas à la
Rajneesh, Vale do Amanhecer, entre outros, que tomaram de assalto a capital.
Havia essa coexistência entre grupos politizados de esquerda e os
representantes esotéricos de uma nova era. O tema principal de nossas
intervenções urbanas era elementar, porém urgente para aqueles anos: libertação
e empoderamento dos corpos-alma – tanto dos performers quanto do público –
censurados e limitados durante os anos de chumbo.
No clima sociopolítico daqueles anos, a intervenção urbana tinha um aspecto
libertador e contribuiu também para repensar a estética performativa do
trabalho de palco. Essas intervenções ocorriam no contexto de um importante
movimento cultural mais amplo liderado pelo movimento coletivo Concerto Cabeças,
do qual participei como uma das fundadoras, público cativo e performer.
Era impossível não se envolver com as tensões entre os estreitos interesses
de poder e a amplitude celestial-espiritual de Brasília. Mas eu fazia isso de
maneira um tanto iconoclasta a ponto de ter criado, na mesma época, o grupo
Fotógrafo Nua, constituído por apenas duas mulheres, e assumir temporariamente
o pseudônimo de Tristan, em referência ao artista romeno Tristan Tzara, um dos
fundadores do dadaísmo, movimento de experimentação artística radical iniciado
durante a primeira guerra mundial com o intuito de chocar os valores estéticos
da burguesia.
FM | Ainda sobre eugnose, me deu
curiosidade de saber desse personagem, Lili Manicure, quem era, o que
representava, se foi o primeiro, como o público a recebeu, quantos outros lhe
seguiram…
MB | Lili Manicure, foi uma
personagem que criei por volta de 1984/85. Ela tinha o dom de ler a sorte das
pessoas nas unhas e de ajudá-las a realizar seus sonhos e desejos. Lili
circulava pelas ruas e praças públicas do Plano Piloto mas também das cidades
satélites como Taguatinga e Gama. Comparecia ainda em eventos públicos como o
Concerto Cabeças. Sua clientela era formada por transeuntes, mulheres adultas,
crianças e adolescentes. Naquele tempo, usar esmalte era algo só para mulheres.
A maneira como eu pintava as unhas era super-transgressora para a época:
coloria cada unha de uma cor, duas cores em cada unha, cada mão de uma cor,
adicionava penas, pétalas de flores, purpurina etc. Talvez essa personagem
tenha sido a precursora do que se tornou, anos depois, um imenso comércio
lucrativo na indústria da moda e dos cosméticos.
Vale lembrar que a consulta espiritual sempre foi um fenômeno muito
difundido em todos os extratos sociais. Em Brasília especialmente, cidade
afeita a todo tipo de exotismo espiritual, do Vale do Amanhecer a
Extraterrestres. A personagem ganhou clones, entre os quais o artista,
hoje diríamos, trans costarriquenho Marco Vinicio Cabezas com quem
disputei em rua-palco aberto durante um dos Concertos Cabeças no Parque da
Cidade a identidade da verdadeira Lili Manicure. O interesse popular da
personagem chegou ao ponto de valer notícia de jornal: Lili critica o vestibular. [1] Era uma intervenção
divertida, mas que tocava em questões importantes da época: a preocupação com o
futuro, o culto à beleza, o mercado de trabalho e a sobrevivência econômica das
camadas menos favorecidas, o acesso à educação e a liberdade de expressão e de
gênero. Há um comentário lúcido do poeta e jornalista Tetê Catalão que
sintetiza bem meus anseios daquela época:
A arte de Maura aplica-se como reintegração da
pessoa (instinto, razão, emoção) sem discriminar idades, classes sociais, sexo
ou diferenças culturais. Ela provoca uma re-sensibilização geral como se
dissesse a cada um: Vê como é possível. Como você é bonito, como você pode. Como se mostrasse a maneira particular de cada um
ser artista ao seu jeito. Mostrando a possibilidade de transformar homens em
deuses, sem escravizá-los nem iludi-los.
FM | Vamos à dança, começando
pelo sentido de improvisação. Como relacionarias aspectos – ou técnicas – como
o jazz livre, o método Laban e a escritura automática (do Surrealismo), e de
que modo esses jorros criativos teriam um pé na ancestralidade da pincelada
única de Zhu Rouji, o mestre Shitao?
MB | Acredito que a prática da
improvisação é fundamental para o desenvolvimento do/da artista, não importa
qual seja a modalidade ou linguagem artística. Improvisar ajuda a liberar nossa
energia dionisíaca muitas vezes reprimida por convenções, hábitos, regras,
relações de hierarquia etc. Improvisar demanda presença total no aqui e agora.
Ou, presentes em lugar nenhum e no eterno que também é o nunca. Percebe que eu
acabei de improvisar nessa última frase? Improvisando arriscamos mais, damos
espaço para o acaso, o não dito, as entrelinhas, a intuição, o subconsciente,
as emoções represadas. A nossa criança nietzscheana, que diz sim à vida, e o
corpo sem órgãos artaudiano se manifestam. A escrita automática proposta pelo
movimento surrealista quando aplicada ao corpo e à criação de coreografias é
mais uma ferramenta que nos ajuda a dar vazão aos impulsos criativos produzidos
no inconsciente e assim romper certas amarras da razão excessivamente apolínea.
Essas ferramentas de experimentação artística como a improvisação e a escrita
automática nos ensinar a nos comunicar sem medo do outro, do mundo. Se não for
desse jeito, o jogo criativo não passa de representação, imitação ou
reafirmação do que já está estandardizado, calcificado, carimbado em nós. A
vivência do plano das forças exige coragem, disposição para o risco, expansão
da consciência, exercício do entreficar-se e do eterno originar-se. Parece muito abstrato? Complexo?
A criança dá os primeiros passos na vida com ajuda de outros e vai
aprendendo por imitação e repetição. Com os animais também é assim. E isso é
importante, é bom, é fundamental. À medida que vamos nos tornando independentes, os chamados artistas, talvez mais do que os não
artistas, sentem uma necessidade enorme de reinvenção, transgressão, afirmação,
reconhecimento de suas singularidades. Frequentamos escolas, universidades, aprendemos
técnicas, adquirimos habilidades, conhecemos trabalhos de artistas consagrados,
aprendemos a respeitar suas histórias e legados. Nos tornamos experts em
práticas e conceitos que outros inventaram e nos sentimos acanhados, tímidos em
arriscar coisas novas que partam da nossa própria cabeça. Tem sempre alguém na
família, no meio acadêmico ou no grupo de amigos disposto a nos desencorajar.
Não é fácil dar o grito de liberdade. Para as mulheres, e grupos minoritários
em geral é muito mais difícil ainda. Mas não impossível. Eu tive a sorte, desde muito jovem, de nunca ter sido cerceada por meus
pais em meus arroubos criativos que expressavam meus sentimentos em relação ao
mundo ao meu redor. Dos 9 aos 12 anos de idade, a linguagem que mais me
arrebatava era a escrita poética. Eis um dos meus primeiros poemas, escrito em
1966:
VI
Vi o mundo
Vi a natureza
Vi o mundo em chamas
Vi a natureza com calor
Vi o mar
Vi o céu
Vi o mar furioso
Vi o céu alegre
Vi tudo
Vi porque eu vivo
Vi porque quis
Vi porque olhei
Vi porque quando vi eu vivi
Escrita ingênua, sem erudição literária, sem floreios de linguagem. Depois,
na adolescência, meus poemas se tornaram, digamos, mais introspectivos,
ornamentados e, portanto, um tanto aborrecidos. Mas aí eu já me expressava
também através da dança e fui deixando a poesia escrita de lado. Todavia era
uma dança formal, em busca da excelência técnica de movimentos
pré-estabelecidos, seja do balé clássico seja de estilos de dança moderna
oriundos da estética estadunidense. Não havia espaço para a improvisação e a
criatividade, copiávamos sempre fielmente modelos coreográficos e danças já
consagrados. Essa imitação me causava um desconforto imenso e eu me perguntava
por que tudo que aprendíamos vinha do exterior. Tudo que era considerado bom e
belo tinha assinatura de gente de outros países. A coreografia Bumerangue foi o meu primeiro ato crítico-transgressor – grito de liberdade. A partir
daí não parei mais, apesar de ter enfrentado resistência de todos os lados, do
regime militar, do meio acadêmico e da própria classe da dança.
Sempre senti o impulso de criar uma linha própria de dança, sem, ao mesmo tempo, estancá-la em termos
conceituais, didáticos e representacionais. Então, desde cedo, experimentava
muito, abusando da improvisação. Por volta dos meus vinte anos, em Brasília,
inventei e ministrei uma oficina de improvisação chamada Jazz Livre direcionada para jovens de todas as idades, dando ênfase à faixa dos 50+. Paralelamente, eu frequentava as aulas de
Laban de Regina Miranda e participava de suas encenações. O método Laban me
arrebatou por invocar as forças da natureza para o movimento corporal, mas me
incomodava aquela necessidade de circunscrever o corpo dentro de um cubo ou de
um icosaedro e aquela notação coreográfica complicadíssima. Acabava que as
formas predominavam ante as forças, a razão ante as emoções e tínhamos que
seguir um vocabulário restrito.
Nos anos 1980, eu já participava ativamente na cena da dança de Brasília
como dançarina, coreógrafa, professora universitária, ministrante de cursos e
oficinas em academias e espaços culturais e também como criadora de diversos
núcleos de experimentação artística. Naquele tempo não existiam editais
públicos de fomento à dança ou ao teatro. Tudo era feito com muita dificuldade
material, mas esbanjávamos vontade de comunicação e senso colaborativo e
ocasionalmente tínhamos o apoio de agentes públicos em relação à cessão de
espaço para ensaios e apresentações.
Foi nessa época que eu frequentava os cineclubes geralmente localizados em
escolas de línguas estrangeiras como a Aliança Francesa e a Cultura Inglesa e
passei a conhecer e admirar diretores como Pasolini, Fellini e Glauber Rocha.
Em literatura, me debruçava sobre as obras de Nietzsche, Artaud, Ortega y
Gasset apesar de certa dificuldade em compreendê-las. Me faltava erudição
literária e filosófica, mas o que eu consegui captar foi suficiente para tê-los
sempre presente em minha mesa de cabeceira mental. Não é à toa que certo tempo
depois, junto à Taanteatro Companhia, desenvolvi um amplo repertório de
espetáculos sobre a vida e a obra de poetas-filósofos como Artaud, Lautréamont,
Nietzsche, Deleuze e, agora, o filósofo-ativista-psiquiatra da Martinica,
Frantz Fanon.
Vi a sua dança acompanhada por uma música estranha.
Lembro-me de pote de fundição de alquimia. Deixa cair de seu interior os
casacos do universo, um a um. Parece uma substância estranha que um mágico vai
deixando cair na terra. Aquela substância estranha, será que é placenta que
testemunha o nascimento de uma vida? O corpo físico é o casaco do universo que
veste o espírito. O leite materno começa a se derramar, cobrindo a terra.
Parece escrita automática. Sim ou não, mas certamente deixaria os
surrealistas e dadaístas de queixo caído. Resultado do nosso encontro: larguei
meu trabalho na universidade e parti para o Japão em 1987 com o objetivo de me
aprofundar na dança butoh. Lá estudei com Ohno e Min Tanaka. Duas escolas bem diferentes, mas oriundas da mesma fonte: Tatsumi Hijikata, o inventor
do ankoku butoh (dança das trevas). De volta ao Brasil, em 1988, me dediquei à
difusão da dança butoh. Em 1995, quando idealizei e produzi a Mostra 95 Butoh e
Teatro Pesquisa em São Paulo, Curitiba e Brasilia, lancei Butoh Dança Veredas D’Alma, o primeiro livro sobre o
butoh em língua portuguesa, há muito tempo esgotado nas livrarias, mas
disponível online gratuitamente. [2]
Desde 1988, eu já vinha formulando os princípios, as ideias e técnicas de
minha própria pesquisa que denomino dinâmica taanteatro ou teatro coreográfico de
tensões. Obviamente, sintetizo em
meu trabalho aprendizados anteriores e procuro desenvolver minhas intuições no
contexto de uma metodologia que combina rigor apolíneo e desregramento
dionisíaco. A dinâmica taanteatro está em constante aprimoramento, aberta às
transformações sociopolíticas do mundo sem perder sua capacidade de
autopoiesis, de auto-produção, de auto-(des)construção e autocrítica.
Nas nossas práticas psicofísicas, de criação dramatúrgica e coreográfica
sempre há espaço para a improvisação, o acaso, o fluir do inconsciente, o erro, o desregramento dos sentidos, porque são eficientes disparadores de
forças singulares que dificilmente seriam reveladas em ambientes apenas
preocupados com o virtuosismo técnico de formas pré-estabelecidas por outrem. É
preciso explorar todas a faculdades sensoriais, imaginárias e locomotivas do
performer no intuito de ajudá-lo a superar o meramente aleatório e dotar sua
dança com a força da tensão existencial que o move como ser humano e artista.
Em outras palavras, no taanteatro, investimos no desenvolvimento da
singularidade artística de cada performer incentivando-o a buscar seu(s)
próprio(s) tema(s) e estilo.
Sob este aspecto, o taanteatro se filia à tradição do mestre Shitao que
enfatizava a pincelada única ou linha primordial. Por outro lado, é preciso conceder, sem rancor, que nem todo artista tem
a capacidade ou o interesse em se libertar dos ditames de escolas tradicionais
para, como um Shitao, criar seu próprio método. Além
disso, convém distinguir entre as funções e os significados diferentes da
improvisação, por exemplo, entre um iniciante e um mestre. Em cada caso, a
improvisação resulta de um nível de experiência, de conhecimento que implica na
capacidade de dominar o fluxo energético com rigor. Com o rigor que as crianças
têm quando brincam?
FM | Retomo o Surrealismo
pensando em outra situação, a tua referência à metacinese (metakinesis)
aplicada à dança, que me parece se contrapor – porém interligando-se – à ideia
dos vasos comunicantes, à busca alquímica de fusão dos opostos. Primeiro a
separação dos corpos, a identificação de oposições que, ao final, iriam
permitir a fusão dos contrários. Estou na linha certa de compreensão?
MB | No universo da dança, a
noção de metacinese vai além do sentido originalmente biológico do termo:
separação. Em dança – a partir da correlação entre corpo e alma como dois
aspectos de uma mesma realidade e da correspondência recíproca entre movimentos
físicos e movimento psíquicos – metacinese se refere ao movimento expressivo
que reflete a personalidade e os humores da pessoa que dança e que somente se
efetua realmente em comunicação com o público. Em outras palavras, a recepção e
interpretação individual e coletiva do movimento expressivo do dançarino pelo/a
espectador/a faz parte desse movimento e de seu significado. Assim, poderíamos
dizer que o público de uma dança nunca é passivo, mas é seu coautor. E sim,
você está na linha certa de compreensão.
FM | Brasília, São Paulo, Japão.
Damos um salto até a tua descoberta de Kazuo Ohno – o grande mestre do Butoh –,
os ensinamentos, a amizade. Quando lemos, em um de seus aforismos, que as mãos
são feitas para falar com eloquência, como se quisessem expressar nossos
sentimentos. Mas os pés não falam tanto quanto as mãos, porque eles ancoram a
vida, fica bastante claro o encontro do teatro (mãos) com a dança (pés),
representação e movimento. Acho bonito quando ele próprio diz que a tua dança
parece uma substância estranha que um mágico vai deixando cair na terra, elogio
que qualquer um gostaria de receber, mas que é preciso corresponder a ele. De
que modo Kazuo te fez chegar até às concepções de um taanteatro?
MB | No início do ano letivo
de 1986, na UnB, na sala dos professores de meu departamento, folheando uma
revista distribuída pela embaixada do Japão, vi pela primeira vez fotografias
da dança butoh. Aquelas imagens me causaram um impacto gigante e senti uma
afinidade imediata com a presença poética daqueles corpos e sua performance
radicalmente diferente de tudo o que eu conhecia no universo das artes
performativas. Representavam para mim a luz no fim do túnel porque no próprio
meio acadêmico eu sofria muita resistência às minhas propostas inusitadas e,
digamos, libertárias, em relação à dança e aos corpos.
A matéria da revista Japão Hoje ressaltava
os trabalhos de Hijikata, Ohno, Min Tanaka, os grupos Dairakudakan, Sankaijuku,
entre outros. E uma coisa que me chamou especialmente a atenção foi o destaque
que deram à forma lenta como os/as dançarinos/as se deslocavam no tempo-espaço
cênico. Achei que meu trabalho estivesse num caminho avizinhado ao butoh porque
eu estava justamente numa fase da minha pesquisa coreográfica à qual eu chamava
de dança fotográfica para enfatizar seu aspecto estático e extático de
interiorização-exteriorização do movimento. Essa qualidade coreográfica era
experimentada, sobretudo, no meu grupo performático Fotógrafo Nua.
As classes de Ohno eram oficinas de improvisação com base em certos
disparadores como suas falas poéticas sobre o universo, a origem da vida no
útero, suas memórias familiares, principalmente relacionadas à figura materna,
sua admiração pela dançarina de flamenco La Argentina e por obras de arte
impressionistas e simbolistas. Além disso, havia as demonstrações do próprio
Ohno, mas, contrário aos nossos costumes, não havia nenhuma orientação técnica
ou conceitual. Aprendia-se por observação e transmissão afetiva, corporal.
Quando chegava nossa hora de dançar, Ohno nos incentivava dizendo em inglês: free style!. As oficinas eram sobretudo frequentadas por
europeus e a única brasileira, se não me falha a memória, era eu, em 1987.
Numa única ocasião, quando Ohno e eu estávamos ensaiando no seu estúdio,
ele me disse: tension always! O que ele queria dizer com aquilo? Para eu nunca
relaxar a musculatura? Para eu não perder o foco? A comunicação verbal era
difícil. Ele falava quase nada de inglês e eu quase nada de japonês. Essa
dificuldade impedia aprofundarmos o tema. Mas a experiência me marcou e
reavivou uma série de indagações relativas à tensão, um tema tradicionalmente
caro a todas as vertentes da dança moderna.
O butoh exerceu uma influência considerável sobre mim e o taanteatro, a
ponto de em 1995 realizarmos a Mostra 95 Butoh e Teatro Pesquisa em São Paulo,
Curitiba e Brasília com presenças internacionais importantes como Min Tanaka,
Ko Murobushi, Masaki Iwana, a pintora, fotógrafa e pesquisadora de butoh Nourit
Masson-Sékine, entre outros. Mas, desde o princípio, o teatro coreográfico de
tensões se distinguiu dessa fonte de inspiração em função de nossa ênfase na
elaboração de um protocolo dinâmico de treinamento, de uma abordagem conceitual
abrangente e do aspecto multimidiático das encenações da Taanteatro Companhia.
FM | Novas viagens e estudos:
Shiatsu, teatro Nô, teatro de bonecos e xamanismo. A incansável Maura como que
preparava a magia de uma poética que lhe é esplendidamente singular, ao
conseguir realizar, como disse certa vez o coreógrafo Takao Kusuno, a afinação e o magnetismo do eu com a expressão
gestual. Eu veria essa observação
de Takao como a presença na matemática das noções associadas de derivação e
integração, o que permite com que mistures em um mesmo caldeirão alquímico as
perspectivas conceituais ligadas aos limites e rupturas da existência. Quando
estás criando as coreografias, quais aqueles elementos constituintes e seus
temperos, seus truques de linguagem? É possível revelá-los?
MB | Não estou familiarizada
com essas noções matemáticas, lamento. No que se refere ao comentário de Takao
Kusuno a meu respeito, sinto que ele procura descrever a disposição e
capacidade de uma artista da dança de lançar sua subjetividade sem reservas e
de maneira potente, a tal ponto que a cumplicidade entre força genética e forma
expressiva revela a singularidade do movimento. Essa operação alquímica não se baseia em truques, mas antes na vontade de expressar, através da
dança, uma vida inteira, não no sentido mimético, mas como síntese das energias
subjacentes às experiências vitais radicais e, eventualmente, limítrofes.
Quanto mais radical a experiência cinética-energética maior a necessidade de
entender e orientar sua intensidade e seu fluxo. O ponto de partida da
dramaturgia de vários dos meus espetáculos coreográficos nasceu da fusão
tensiva entre motivos de meus sonhos noturnos e diurnos e experiências pessoais
(mitologia [trans]pessoal), porém, re-trabalhados à luz das realidades
culturais sociopolíticas e ambientais que me dizem respeito.
Comparo o corpo que se expressa e dança a um mandala cinético. Mandala, na
tradição hindu-tibetana, significa círculo. Há séculos, artistas visuais dessa
cultura criaram coletivamente mandalas pictóricas gigantes, com areia colorida
e outros materiais delicados, para contar suas histórias e louvar suas crenças.
Inspirada pela simbologia do mandala oriental, inventei o Mandala de Energia
Corporal (MAE), nossa principal dinâmica de desenvolvimento psicofísico e
criação performativa. Essa prática pressupõe um abandono da ideia do corpo como
um mero instrumento da dança ou da ação cênica.
No MAE, damos vasão à autopoiética corporal. Fazendo uma analogia com a
pintura, o corpo é, ao mesmo tempo, as tintas, a tela, o pincel e o/a pintor/a.
Ou seja, a matéria prima, a ferramenta, o suporte, o agente, enfim, os meios e
o resultado. Munidos dessa nova perspectiva, nos lançamos à prática do MAE que
consiste na realização de 7 danças denominadas Dormir-Acordar, Zerar, Arco-Flecha-Alvo, Coração, Serpente, Estados da Matéria e Marrítmo que ativam e aglutinam as
faculdades sensoriais, imaginárias, cognitivas e cinéticas da/o performer. A
última dança dessa sequência, o Marrítmo, sintetiza as danças
anteriores e difere delas por ser um espaço de improviso, experimentação e
criação. Uma característica singular do MAE é o caráter dramatúrgico da
prática, inspirado por As três metamorfoses do espírito, parábola filosófico-poética que abre Assim Falou Zaratustra de Friedrich Nietzsche e narra como o espírito se
torna camelo, o camelo leão e por fim, criança. Abreviadamente, é um dos temperos mágicos da linguagem do Taanteatro.
FM | Talvez antes da entrada em
cena da Taanteatro Companhia pudéssemos falar de tuas relações com Antunes
Filho, Sérgio Mamberti e José Celso Martínez Correa, considerações que podem ter
influído em teu trabalho, quaisquer aspectos que recordes como relevantes em
tua decisão de criar uma associação tomando o teatro – qualquer que seja seu
palco – como o lugar sagrado de encontro em nome da arte e da filosofia.
MB | A influência de Antunes,
Mamberti e José Celso se refere ao fato de terem me apoiado, em momentos
distintos, durante minha trajetória artística a partir dos anos 1990 quando me
transferi para a cidade de São Paulo.
No final de 1989, o diretor teatral Antunes Filho assistiu uma apresentação
minha em cooperação com o músico eletroacústico japonês Kazuo Uehara no
auditório do MASP por ocasião do festival Japão: Arte da Música Hoje. Após a apresentação, o Antunes veio até o camarim,
acompanhado do ator Luis Mello e da atriz Rita Martins Tragtenberg, para me
cumprimentar e convidar a trabalhar como coreógrafa no Centro de Pesquisa
Teatral /CPT, sediado no SESC Consolação. Em razão desse convite, eu me mudei
para São Paulo. Mas do ponto de vista artístico, a colaboração não prosperou
porque o CPT não dispunha de recursos para pagar seus artistas. Por esse
motivo, me desliguei três meses mais tarde do CPT para iniciar meu próprio
grupo de pesquisa. Eu me despedi acompanhada por algumas integrantes do elenco
do Antunes dispostas a aprender comigo e a me remunerarem por isso. Essa nova
empreitada encontrou abrigo no Teatro Ventoforte que era administrado pelo
grupo do Ilo Krugli, falecido em 2019. Recentemente, a gestão atual de São
Paulo demoliu esse histórico teatro sem aviso prévio, em demonstração de
profundo desrespeito à memória cultural da cidade.
O saudoso Sérgio Mamberti foi uma influência generosa e importante,
sobretudo, para o início de minha carreira em São Paulo, enquanto dançarina,
atriz e coreógrafa. Foi no Teatro Crowne Plaza, com curadoria de Sérgio Mamberti
que apresentei, em 1990, um projeto de três solos denominado Absolutas com uma repercussão muito positiva. Posteriormente, ele me apoiou mais
duas vezes: durante a Mostra 95 Butoh e Teatro Pesquisa e em 2005 – por ocasião
do Intercâmbio Cultural Matola-Brasil –, época em que ele atuava no Ministério
da Cultura durante o primeiro governo do presidente Lula. Nós tínhamos sido
convidados pelo grupo teatral Trás do Muro e pela Companhia Municipal de Canto
e Dança da Matola para criar e dirigir um espetáculo em torno da filosofia de
Nietzsche. Assim, a Taanteatro Companhia passou quase dois meses trabalhando em
Moçambique na criação e encenação de Xiphamanine – o eterno originar da árvore mphama apresentada no Teatro África, com grande êxito. Como
atriz, cooperei diretamente com o Sérgio Mamberti quando ele me convidou para
fazer parte da leitura da peça As quatro meninas de Pablo Picasso, apresentada em 2001 na Mostra Surrealismo realizada no
CCBB do Rio de Janeiro.
FM | Em entrevista que deste a
Wolfgang Pannek, em 2023, observas o seguinte: O corpo da performer não é um corpo abortado, não
nasceu de um ato mágico, do nada, mas bem de jogos de forças antiquíssimos da
Natureza e de genes muito antigos, ou seja, de uma ancestralidade planetária,
assim como o planeta Terra possui uma ancestralidade cósmica ilimitada em
termos espaço-temporais. Pensando na mecânica inesgotável dessa ancestralidade, qual o significado
da criação e persistência da Taanteatro Companhia no cenário igualmente
complexo de nossa contemporaneidade – seja no ambiente espiritual da performer,
seja na esfera cósmica do planeta?
MB | O cenário político,
econômico e cultural do Brasil raramente deu motivos substanciais de entusiasmo
aos artistas brasileiros, com exceção dos investimentos em cultura durante o
primeiro governo Lula e, no caso de São Paulo, da primeira gestão municipal da
Marta Suplicy. Ainda assim, esses avanços iniciais cederam, em muitos aspectos,
novamente à estagnação, sem falar no desmonte cultural promovido pela extrema
direita brasileira, entre 2019 e 2022, com a extinção do Ministério da Cultura,
de todos os programas de financiamento de pesquisa e a perseguição às
universidades públicas. O fato é que toda vez que um governo aqui no Brasil
entra em crise, o primeiro setor a sofrer cortes expressivos é o cultural.
Vamos torcer para que esse novo governo Lula, mais simpático às artes e seus
artistas, saiba reconstruir o que se perdeu e investir em programas novos e
duradouros. Diante dessa montanha russa resultante da incapacidade da maioria
dos fomentadores de cultura, de pensar nosso país e seu patrimônio cultural
numa perspectiva abrangente e suprapartidária e diante de um cenário crescente
de tendências reacionárias e predadoras das artes e seus artistas, de fato,
nunca foi fácil encontrar incentivos para seguir criando.
Mas, por sorte, o corpo da/do artista é também uma linha de fuga sem órgãos
(parafraseando Artaud) que vem sendo coreografada desde tempos imemoriais. Uma
linha de dinâmicas extemporâneas que transcendem os horizontes das ordens
sociais imediatas, dinâmicas em que nossa vontade de potência criativa se
conecta com origens e devires ancestrais muito além do momento de nossa
existência individual. E é através dessa atitude ao mesmo tempo visceral e
ética com a vida entendida como rede de tensões incomensurável e em fluxo
contínuo que nos reabastecemos e prosseguimos cuidando um/a dos/as outros/as.
FM | Na mesma entrevista, fazes
referência a obras excessivamente centrada na noção de anthropos, alheias,
portanto, a uma dimensão metafísica que não se limite a uma essência unicamente
dos seres humanos isoladamente daquele conjunto de caracteres comuns que
constituem o planeta. A criação artística, como ainda é praticada hoje, me
parece incorrer demasiadamente nesse conceito, longe de buscar uma simbiose que
permita a própria existência humana livrar-se de suas contradições. Com isto indago
acerca da repercussão da Taanteatro Companhia e da existência de esforços
equivalentes, dentro e fora do país, que julgues valiosos em sua essência.
MB | Nossa crítica do
antropocentrismo nas artes se dá no contexto da ecoperformance, uma abordagem conceitual e arte performativa
proposta por mim em 2009, por ocasião da criação da obra DAN – devir ancestral. Nos anos subsequentes, essa abordagem
teórico-prática seguiu sendo desenvolvida em colaboração com Wolfgang Pannek.
Em 2021, fundamos o IEFF – International Ecoperformance Film Festival
(CineFestival Internacional de Ecoperformance) com o intuito de incentivar a
investigação das tensões entre meio ambiente, corpo, ancestralidade e memória e
a promover obras cinematográficas que visam superar o paradigma dramatúrgico
centrado no anthropos. Esse festival, de realização anual e geralmente
realizado em cooperação com instituições culturais e universidades, alcançou
uma ressonância muito positiva em escala mundial. O IEFF apresentou centenas de
filmes curta-metragens de 6 continentes e mais de 50 países e ganhou, em 2024,
edições nômades apresentadas na Argentina, Alemanha, Austrália, Estados Unidos
e Romênia. Atualmente, planejamos ao mesmo tempo a quinta e sexta edição do
festival. A ulterior no Canadá, em cooperação com a University of Toronto.
FM | Com relação à recepção
crítica do trabalho da Taanteatro Companhia, observo que algumas obras não
obtiveram uma fortuna crítica à altura da qualidade e inovação dos espetáculos
apresentados. Refiro-me a Zaratustra (2009), Máquina Hamlet Fisted (2011) e a trilogia Apokálypsis (2021). Não te parece intrigante esse silêncio?
MB | Além das obras citadas
podemos mencionar a trilogia cARTAUDgrafia (2015), 1001 Platôs (2017) e Mensagens de Moçambique (2018). Curiosamente, nossos projetos cinematográficos Antonin Artaud’s The Theatre and the Plague (2020) e Apokálypsis tiveram maior ressonância jornalística em Paris e
Buenos Aires do que no Brasil.
Mas eu não diria silêncio porque, apesar da
sub-iluminação crítica de obras importantes do catálogo da Taanteatro
Companhia, a maioria delas foi, ao menos, anunciada e positivamente registrada
pela imprensa brasileira. Máquina Zaratustra foi citado pela Folha de S. Paulo entre os 10 Melhores Eventos Culturais da cidade, a revista Bravo! destacou Frida Kahlo: uma mulher de
pedra dá luz à noite entre os Melhores Espetáculos em cartaz, Máquina Hamlet Fisted foi eleito como Melhor Espetáculo de Dança pelo
público da Folha de S. Paulo e 1001 Platôs (2017) foi
indicado para o prêmio APCA na categoria direção coreográfica. Meu solo Artaud, le Momo (2016) obteve três críticas excelentes em Paris,
uma delas da renomada escritora-pesquisadora de Antonin Artaud, Florence de
Mèredieu.
Claro que tais recompensas não substituem a qualificada apreciação crítica
de uma obra no país de origem de seus autores. Desde o início dos anos 2000,
quando observamos uma monetização dos cadernos culturais, um certo silêncio
crítico passou a afetar não somente a Taanteatro Companhia, mas as artes
performativas brasileiras em geral. Antes desse período, nossas obras
geralmente ganharam cobertura ampla e foram com frequência apreciadas pela
crítica. Depois, as redações passaram a favorecer produções de grande
patrocínio e artistas com status de celebridade, o que é raro no campo da dança
contemporânea nacional. Essa mudança induzida pela imprensa fez o mercado de
trabalho e o status social da crítica encolher e, simultaneamente, tornou
invisível, até certo ponto, um número significativo de criadoras e criadores
efetivamente responsáveis pela inovação artística no Brasil. Em decorrência
desta perda cultural, surgiram alternativas online, geralmente, promovidas por
entusiastas e estudiosos das artes, porém, sem a mesma ressonância social.
Ainda assim, apesar de não cobrir todas as encenações, a recepção crítica de
nossas obras, desde 1982 até hoje, tem sido muito favorável.
FM | Não indago sobre planos,
pois me parece que devam permanecer sigilosos até que se realizem. Mas sempre
podemos voltar no tempo. Esquecemos algo?
MB | Inevitavelmente,
esquecemos algo. Afinal, dos meus 68 anos, 56 anos foram dedicados às artes
performativas. É muita coisa para ser lembrada. E a Taanteatro Companhia
completará 35 anos de existência no final de 2025. Em março desse ano, nossa
equipe, formada por Wolfgang Pannek, Mônica Bernardes, Candelaria Silvestro,
Jorge Ndlozy, Janina Arnaud e por mim, dá início ao projeto teatro-coreográfico
Da Violência: Fanon, em torno da obra de Frantz Fanon, graças ao
Programa Municipal de Fomento à Dança para a Cidade de São Paulo. Como vê,
seguimos em busca de respostas diante do cenário ecopolítico contemporâneo.
Também daremos sequência ao Cinefestival Internacional de Ecoperformance
ancorado nas seguintes urgentes indagações: Que ancestral quero ser para meus
descendentes? Que realidades desejo criar? Que legados deixarei?
NOTAS
Entrevista realizada em fevereiro de 2025 especialmente para a presente edição. As imagens que acompanham a entrevista integram o acervo da Taanteatro Companhia e foram gentilmente cedidas por Wolfgang Pannek.
Sugestão de visita: Maura Baiocchi | Selected works (1978-2023): www.youtube.com/watch?v=vf7zYkPFbBo
1. Lili critica o
vestibular, Correio Braziliense, 20/07/1985.
2. Acesso gratuito ao
livro Butoh Dança Veredas D’Alma, de Maura Baiocchi: download.
FLORIANO MARTINS (Brasil, 1957). Poeta, editor, dramaturgo, ensaísta, artista plástico e tradutor. Criou em 1999 a Agulha Revista de Cultura. Coordenou (2005-2010) a coleção “Ponte Velha” de autores portugueses da Escrituras Editora (São Paulo). Curador do projeto “Atlas Lírico da América Hispânica”, da revista Acrobata. Esteve presente em festivais de poesia realizados em países como Bolívia, Chile, Colômbia, Costa Rica, República Dominicana, El Salvador, Equador, Espanha, México, Nicarágua, Panamá, Portugal e Venezuela. Curador da Bienal Internacional do Livro do Ceará (Brasil, 2008), e membro do júri do Prêmio Casa das Américas (Cuba, 2009), foi professor convidado da Universidade de Cincinnati (Ohio, Estados Unidos, 2010). Tradutor de livros de César Moro, Federico García Lorca, Guillermo Cabrera Infante, Vicente Huidobro, Hans Arp, Juan Calzadilla, Enrique Molina, Jorge Luis Borges, Aldo Pellegrini e Pablo Antonio Cuadra.
Agulha Revista de Cultura
CODINOME ABRAXAS # 02 – TAANTEATRO COMPANHIA (BRASIL)
Imagens: Acervo Taanteatro
Editores:
Floriano Martins | floriano.agulha@gmail.com
Elys Regina Zils | elysre@gmail.com
ARC Edições © 2025
∞ contatos
https://www.instagram.com/agulharevistadecultura/
http://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/
FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
ELYS REGINA ZILS | elysre@gmail.com
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