quarta-feira, 18 de junho de 2025

FLORIANO MARTINS | Antes que o poema se converta em lenda – A poesia de Mario Meléndez

 


Mario Meléndez é um filho dileto de Vicente Huidobro no melhor sentido que a linguagem poética requer. Jamais por uma questão de influência, mas antes pela altíssima afinação com o inesperado, aquele jogo de encantamento entre palavras e coisas que tanto defendia o autor de Altazor. Surpreende o modo como avalia que certas cenas se repetem ao longo da história da humanidade, que quase sempre estamos às voltas com falsas promessas de remissão. Uma voz que busca entendimento vital entre o acaso e sua percepção dos elementos que regem o cotidiano. Frutos e furtos, o que nasce espontaneamente e aquilo que tomamos como uma nota precisa de nossa harmonia existencial. Não importa a extensão do conflito, é preciso criar perspectivas de equilíbrio. Tomar dos ventos, devolver aos mares. Renomear as trilhas para que elas jamais se convertam em ruínas.

Dos laços derivados de percepções e possessões, convívio com o passado e afinidades pretéritas, a mescla sutil de tempos, os poemas por vezes sendo escritos como um carisma tempestuoso do acaso, as luzes descontínuas de rupturas com o desconhecido, a Poesia veleja através da escrita os nós da técnica e o ritmo de civilizações encontradas em livros e no antiquíssimo saber das representações e observações. Por isto não há bem ou mal na criação, e toda perspectiva será sempre plural. Criar não se limita a expressar concepções contrárias ou favoráveis, mas antes a suprimir as distâncias, as cisões e as organizações isoladas do mundo. Criar é a mais altruísta atividade humana. O poeta sabe onde indagar a cada coisa por seus dilemas e desesperações. Mais do que qualquer outro ser, ele sabe como embaralhar as repetições e as surpresas, de modo a abrigar em seu verbo a experiência integral com que enraíza o individual no coletivo e vice-versa.

Mario Meléndez (Chile, 1971) se reconhece nessa aventura criativa e seus versos revelam a recepção simultânea de todas as vozes, toda a física corporal da escrita e os caracteres viscerais do tempo que se desfaz e refaz a todo instante em cada poema seu. Nele o teatro da escritura contém uma generosa transmissão de bens que vão além da simples metáfora, uma vez que constituem os retratos de personagens assimilados ao longo de sua viagem pelo silêncio solidário. O ambivalente diálogo que sua poesia esboça no íntimo dessa entidade que é ele mesmo, o próprio criador, que se multiplica em relações que atestam a carência do ser e sua maravilhada descoberta do outro.

Falei a princípio da aproximação da voz poética de Mario Meléndez de seu compatriota Vicente Huidobro, mas cabe aqui recordar o que escreveu o crítico Luis Benítez ao comentar um dos livros de Meléndez, que ninguém pode definir qual é o valor inegável de uma obra de arte poética, ou mesmo onde ele se encontra. É algo que está borrado, espalhado pelo todo, sendo inapreensível pela palavra crítica. Mais do que isto. Sendo múltipla e vertiginosa a seiva que fomenta a sua origem, o poema acaba por fundar a sua própria contingência, a sua própria finitude. Acaba por se realizar como um duplo de si mesmo. E isto os dois poetas chilenos referidos souberam muito bem. Huidobro com sua tempestade de imagens que se interpenetram até o completo gozo do infinito; Meléndez com as portas que se dispõe a abrir sem fazer a menor ideia de quem está por vir. São dois aspectos inquietantes e cativantes do maravilhoso.


Seus livros – alguns deles: Vuelo subterráneo, El circo de papel, La muerte tiene los días contados, Jardín de escombros, El mago de la soledad, Apuntes para una leyenda – são como uma irrupção de circunstancias, a evocação de analogias que surpreendem pela maneira como correspondem tanto à imitação da realidade como à sensação de que vivemos no mais completo desterro de tudo, essa espécie de essência que requer incontáveis métodos de correspondência. As imagens arrebatadoras de um voo subterrâneo ou de um jardim de escombros são filhas daquele ditado do inconsciente que tanto prezou o Surrealismo. Ao mesmo tempo constituem também a força que permite a Mario Meléndez cruzar o rio do esquecimento – Um de seus mais belos poemas: “Atravessei o esquecimento na barca de Caronte” – munido daquele enxame de imagens desconcertantes que fez com que o Huidobro e Hans Arp cruzassem a realidade de um tempo de guerras em suas novelas exemplares. Neste poema de algum modo ouvimos o desafio de Meléndez a Caronte para que ambos refaçam o curso das águas do Letes a quatro mãos.

Em outro momento – o poema “Meu gato quer ser poeta” – o poeta real introduz uma partícula que soa como um improviso inspirado, o corte abrupto nas escaramuças do destino, o modo como o gato acaba por ver seu desejo ser refreado.

Assim vamos descobrindo as rupturas incontáveis que este poeta grava na pele e no espírito de seus poemas. Tê-lo agora em português, publicado no Brasil, é uma oferta que prestigia aqueles que querem sempre conhecer novos laços e maneiras de tocar a Poesia. À semelhança – mas sempre distinto – dos grandes poetas, Meléndez é alguém que pensa, intui e aprende rápido. Para ele o poema requer uma ação que beira o milagre, o estado – ao mesmo tempo solitário e solidário – de quem se abre para receber o mundo, a cada experiência, como este mago da solidão que encontramos no título de um de seus livros. Assim como ele Mario Meléndez também prepara cada poema para que um dia se torne lenda.

 

O mago da solidão, de Mario Meléndez © Edição original, El mago de la soledad (datos)

Tradução e prefácio © Floriano Martins

Preparação de originais para impressão, Márcio Simões

MamaQuilla Edições | Indaial |Brasil

ed.mamaquilla@gmail.com

2025 



FLORIANO MARTINS (Fortaleza, 1957). Poeta, editor, dramaturgo, ensaísta, artista plástico e tradutor. Criou em 1999 a Agulha Revista de Cultura. Coordenou (2005-2010) a coleção “Ponte Velha” de autores portugueses da Escrituras Editora (São Paulo). Curador do projeto “Atlas Lírico da América Hispânica”, da revista Acrobata. Esteve presente em festivais de poesia realizados em países como Bolívia, Chile, Colômbia, Costa Rica, República Dominicana, El Salvador, Equador, Espanha, México, Nicarágua, Panamá, Portugal e Venezuela. Curador da Bienal Internacional do Livro do Ceará (Brasil, 2008), e membro do júri do Prêmio Casa das Américas (Cuba, 2009), foi professor convidado da Universidade de Cincinnati (Ohio, Estados Unidos, 2010). Tradutor de livros de César Moro, Federico García Lorca, Guillermo Cabrera Infante, Vicente Huidobro, Hans Arp, Juan Calzadilla, Enrique Molina, Jorge Luis Borges, Aldo Pellegrini e Pablo Antonio Cuadra.




FRANKLIN CASCAES (Brasil, 1908-1983). Folclorista, ceramista, antropólogo, gravurista e escritor. Dedicou sua vida ao estudo da cultura açoriana na Ilha de Santa Catarina e região, incluindo aspectos folclóricos, culturais, suas lendas e superstições. Usou uma linguagem fonética para retratar a fala do povo no cotidiano. Seu trabalho somente passou a ser divulgado em 1974, quando tinha 66 anos. A Universidade Federal de Santa Catarina mantém um arquivo com a obra de Cascaes, aproximadamente 4.000 peças em cerâmica, madeira, cestaria, gesso, gravuras em nanquim e desenhos a lápis, além de um razoável conjunto de escritos que envolvem lendas, contos, crônicas e cartas, todos resultados do trabalho de 30 anos do escritor junto a população ilhoa coletando depoimentos, histórias e estórias místicas em torno das bruxas, herança cultural açoriana. Por sugestão de Elys Regina Zils, Franklin Cascaes é o artista convidado da presente edição de Agulha Revista de Cultura.

 


Agulha Revista de Cultura

Número 261 | junho de 2025

Artista convidado: Franklin Cascaes (Brasil, 1908-1983)

Editores:

Floriano Martins | floriano.agulha@gmail.com

Elys Regina Zils | elysre@gmail.com

ARC Edições © 2025


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