Dos laços derivados de percepções e possessões, convívio com o passado e
afinidades pretéritas, a mescla sutil de tempos, os poemas por vezes sendo
escritos como um carisma tempestuoso do acaso, as luzes descontínuas de rupturas
com o desconhecido, a Poesia veleja através da escrita os nós da técnica e o
ritmo de civilizações encontradas em livros e no antiquíssimo saber das
representações e observações. Por isto não há bem ou mal na criação, e toda
perspectiva será sempre plural. Criar não se limita a expressar concepções
contrárias ou favoráveis, mas antes a suprimir as distâncias, as cisões e as
organizações isoladas do mundo. Criar é a mais altruísta atividade humana. O
poeta sabe onde indagar a cada coisa por seus dilemas e desesperações. Mais do
que qualquer outro ser, ele sabe como embaralhar as repetições e as surpresas,
de modo a abrigar em seu verbo a experiência integral com que enraíza o
individual no coletivo e vice-versa.
Mario Meléndez (Chile, 1971) se reconhece nessa aventura criativa e seus
versos revelam a recepção simultânea de todas as vozes, toda a física corporal
da escrita e os caracteres viscerais do tempo que se desfaz e refaz a todo
instante em cada poema seu. Nele o teatro da escritura contém uma generosa
transmissão de bens que vão além da simples metáfora, uma vez que constituem os
retratos de personagens assimilados ao longo de sua viagem pelo silêncio
solidário. O ambivalente diálogo que sua poesia esboça no íntimo dessa entidade
que é ele mesmo, o próprio criador, que se multiplica em relações que atestam a
carência do ser e sua maravilhada descoberta do outro.
Falei a princípio da aproximação da voz poética de Mario Meléndez de seu
compatriota Vicente Huidobro, mas cabe aqui recordar o que escreveu o crítico
Luis Benítez ao comentar um dos livros de Meléndez, que ninguém pode definir qual é o valor inegável de uma obra de arte
poética, ou mesmo onde ele se encontra. É algo que está borrado, espalhado pelo
todo, sendo inapreensível pela palavra crítica. Mais do que isto. Sendo
múltipla e vertiginosa a seiva que fomenta a sua origem, o poema acaba por
fundar a sua própria contingência, a sua própria finitude. Acaba por se
realizar como um duplo de si mesmo. E isto os dois poetas chilenos referidos souberam
muito bem. Huidobro com sua tempestade de imagens que se interpenetram até o
completo gozo do infinito; Meléndez com as portas que se dispõe a abrir sem
fazer a menor ideia de quem está por vir. São dois aspectos inquietantes e
cativantes do maravilhoso.
Em outro momento – o poema “Meu gato quer ser poeta” – o poeta real
introduz uma partícula que soa como um improviso inspirado, o corte abrupto nas
escaramuças do destino, o modo como o gato acaba por ver seu desejo ser
refreado.
Assim vamos descobrindo as rupturas incontáveis que este poeta grava na
pele e no espírito de seus poemas. Tê-lo agora em português, publicado no
Brasil, é uma oferta que prestigia aqueles que querem sempre conhecer novos laços
e maneiras de tocar a Poesia. À semelhança – mas sempre distinto – dos grandes
poetas, Meléndez é alguém que pensa, intui e aprende rápido. Para ele o poema
requer uma ação que beira o milagre, o estado – ao mesmo tempo solitário e
solidário – de quem se abre para receber o mundo, a cada experiência, como este
mago da solidão que encontramos no
título de um de seus livros. Assim como ele Mario Meléndez também prepara cada
poema para que um dia se torne lenda.
O mago da solidão, de Mario Meléndez © Edição original, El mago de la soledad (datos)
Tradução e prefácio © Floriano Martins
Preparação de originais para impressão, Márcio Simões
MamaQuilla Edições | Indaial |Brasil
2025
FLORIANO MARTINS (Fortaleza, 1957). Poeta, editor, dramaturgo, ensaísta, artista plástico e tradutor. Criou em 1999 a Agulha Revista de Cultura. Coordenou (2005-2010) a coleção “Ponte Velha” de autores portugueses da Escrituras Editora (São Paulo). Curador do projeto “Atlas Lírico da América Hispânica”, da revista Acrobata. Esteve presente em festivais de poesia realizados em países como Bolívia, Chile, Colômbia, Costa Rica, República Dominicana, El Salvador, Equador, Espanha, México, Nicarágua, Panamá, Portugal e Venezuela. Curador da Bienal Internacional do Livro do Ceará (Brasil, 2008), e membro do júri do Prêmio Casa das Américas (Cuba, 2009), foi professor convidado da Universidade de Cincinnati (Ohio, Estados Unidos, 2010). Tradutor de livros de César Moro, Federico García Lorca, Guillermo Cabrera Infante, Vicente Huidobro, Hans Arp, Juan Calzadilla, Enrique Molina, Jorge Luis Borges, Aldo Pellegrini e Pablo Antonio Cuadra.
FRANKLIN CASCAES (Brasil, 1908-1983). Folclorista, ceramista, antropólogo, gravurista e escritor. Dedicou sua vida ao estudo da cultura açoriana na Ilha de Santa Catarina e região, incluindo aspectos folclóricos, culturais, suas lendas e superstições. Usou uma linguagem fonética para retratar a fala do povo no cotidiano. Seu trabalho somente passou a ser divulgado em 1974, quando tinha 66 anos. A Universidade Federal de Santa Catarina mantém um arquivo com a obra de Cascaes, aproximadamente 4.000 peças em cerâmica, madeira, cestaria, gesso, gravuras em nanquim e desenhos a lápis, além de um razoável conjunto de escritos que envolvem lendas, contos, crônicas e cartas, todos resultados do trabalho de 30 anos do escritor junto a população ilhoa coletando depoimentos, histórias e estórias místicas em torno das bruxas, herança cultural açoriana. Por sugestão de Elys Regina Zils, Franklin Cascaes é o artista convidado da presente edição de Agulha Revista de Cultura.
Agulha Revista de Cultura
Número 261 | junho de 2025
Artista convidado: Franklin Cascaes (Brasil, 1908-1983)
Editores:
Floriano Martins | floriano.agulha@gmail.com
Elys Regina Zils | elysre@gmail.com
ARC Edições © 2025
∞ contatos
https://www.instagram.com/agulharevistadecultura/
http://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/
FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
ELYS REGINA ZILS | elysre@gmail.com








Nenhum comentário:
Postar um comentário