terça-feira, 16 de setembro de 2025

ALICE SANT’ANNA (1988)



Alice Sant’Anna (1988). Poeta. Possui graduação em Jornalismo (2010), pós-graduação em Letras e mestrado em Literatura, Cultura e Contemporaneidade (2013), pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. É colaboradora da revista Serrote, publicada pelo Instituto Moreira Salles, e do jornal O Globo. De acordo com Ewerton Ulysses Cardoso, Alice Sant’Anna dispensa qualquer subterfúgio na hora de escrever o que precisa ser escrito. Não há uma preocupação explícita com o balanço, o ritmo e nem com a abertura de significados diante de uma palavra que diz tudo e nada ao mesmo tempo. Se diz, se escreve, o que se quer dizer e escrever. As palavras são as mesmas que encontramos em conversas corriqueiras. Isso não significa que não há requinte. Pelo contrário! Fazer um trabalho desses, do fluir de palavras que brotam da alma, é coisa para poucos. Em entrevista ela mesma observou: Embora meus poemas surjam da experiência, nem toda experiência chega a virar poema. Adoraria escrever com mais frequência, porque sinto que a escrita depende muito mais de uma abertura, uma disponibilidade interna, do que de efetivamente ter algo para contar. Os poemas não necessariamente nascem de uma experiência grande, marcante, fundadora.



MEU ASSASSINO

 

hoje encontrei meu assassino

dispersa, olhei

para a plateia e lá estava ele

os olhos fixos em mim

soube na mesma hora

de quem se tratava

tentei disfarçar a chuva que deixou a franja

bagunçada na frente dos olhos

mas o assassino me olhava

e eu revidava: era um jogo

sabia que a qualquer respiração

se eu me desconcentrasse ou se tropeçasse

ele não perdoaria nunca (isso já aconteceu antes)

a diferença é que agora sei

como ele se chama sei

o formato do maxilar

e como ele me olha com esses olhos de assassino

pensei em chamar a polícia, os jornais

pensei sobretudo

em mudar de cidade

e não contar para ninguém

assim o meu assassino me procuraria

nos mesmos lugares de sempre

mas frustrando voltaria para casa

e me escreveria longas cartas

dizendo fique avisada, seus dias estão no fim

contudo meu assassino jamais seria

capaz de me encontrar

e por isso as longas cartas

que ele levaria ao correio muito bem

dobradas em envelopes com cheiro

de canetinhas coloridas

não chegariam a parte alguma

pois não constaria o meu nome

em nenhuma página amarela

ou conta de luz

meu assassino bateria na porta

da minha antiga casa

eu o convidaria para entrar

ofereceria um café e diria

que pena! que desencontro! que perda!

ele não mora mais aqui

 

 

AUSÊNCIA

 

tenho te escrito com calma

carta em um caderno azul

arranco da espiral e não posto

por preguiça ou nem morta

tenho medo da espera

durante dias ou semanas um animal horrível

(espécie de raposa) vai me perseguir

por dentro, ou serei a mesma

(um rato?) a me roer

enquanto a resposta não chega

perco muito tempo tentando

dar nomes aos bichos

que sobem a cortina do quarto

 

 

MEU AVÔ

 

deitado com o dedo na boca

o sorriso invertido

curvado como uma montanha

a pele uma cédula

gasta e seca

todos os dias rigorosamente iguais

banheiro, visitas, ampolas de sangue

às vezes tem mordomias como

um pedaço de pão ou uma fruta

doces nem pensar

lá fora passa uma nuvem de carros

sem previsão de alta um táxi amarelo

mais parece uma miragem um filme

na televisão aquele programa da tv5

sobre apartamentos em paris sem saneamento

pessoas que moram em quartos

sem janela, sem ventilação, sem elevador

como será que fazem para subir com a água?

não tomam banho, naturalmente

depois se cansa desse papo

a nuvem se torna mais espessa

na hora do rush o táxi não tem serventia

se não puder tomar o caminho

que leva ao ponto mais alto

de onde se vê a curvatura da terra

 

 

SALTO ORNAMENTAL

 

os poucos segundos diante da câmera

não fariam jus anos (uma vida

inteira) de ensaios e dores musculares

e alimentação regrada e tantas outras privações

os poucos segundos mostram

a atleta no trampolim

ela se prepara para o salto

que quem sabe

vai lhe render uma medalha

uma vaga nas olimpíadas

a consideração de alguém tanta coisa

o treinador apreensivo finge

tranquilidade no telão

vai dar certo já fizemos isso infinitas vezes

ela se prepara para o mergulho

pensa que o melhor é não pensar

em nada

transmitir coragem e autoconfiança

os fotógrafos bastante entediados

sem conseguir entender o que dá

a certos atletas um décimo a mais um a menos

no fim das contas é só um pulo na piscina

a não ser que erre feio

que caia de costas ou de barriga

que uma perna vá pro lado

que um braço não fique junto ao corpo

a não ser que o mergulho seja bruto

e suba muita água a não ser que seja

algo menos que perfeito

o passo de dança ensaiado em cada milímetro

que começa com um sorriso e termina

com a piscina recebendo a atleta sem alarde

sem ondas na água quase

como se nada tivesse acontecido

a atleta se prepara é dada a largada

na hora do salto sabe-se lá

o que se passa na cabeça

enquanto finge não passar nada

ela corre com destreza no trampolim

e mergulha na água de cabeça

sem o mortal

sem as três piruetas

sem a manobra prevista

que treinou a vida toda e lhe valeria

uma medalha ou patrocinadores ou um aumento

sobretudo a admiração de alguém

ela esquece

não teve vontade

deu um branco vai entender

mergulhou na água de cabeça

 

 

UM ENORME RABO DE BALEIA

 

cruzaria a sala nesse momento

sem barulho algum o bicho

afundaria nas tábuas corridas

e sumiria sem que percebêssemos

no sofá a falta de assunto

o que eu queria mas não te conto

era abraçar a baleia mergulhar com ela

sinto um tédio pavoroso desses dias

de água parada acumulando mosquito

apesar da agitação dos dias

da exaustão dos dias

o corpo que chega exausto em casa

com a mão esticada em busca

de um copo d’água

a urgência de seguir para uma terça

ou quarta boia e a vontade

é de abraçar um enorme

rabo de baleia seguir com ela

 

 

TREM NOTURNO

 

nós três rimos muito na cabine e nos assustamos quando o vagão para em uma estação erma, sem gente nos bancos, sem despedidas, o olhar duro do fiscal que dorme sozinho toda noite, o fiscal em sua cabine, sem casa ou mulher, espécie de marinheiro que não embarca em navio algum, que não fica a sós com horizonte algum, mas muito pior, esse fiscal que não pode se perder, está bem firme nos trilhos, em sua rota veneza-budapeste, que se estende por treze horas sem tirar nem pôr, o fiscal que nos recomenda trancar as três fechaduras da cabine, primeiro a de cima e em seguida a do meio, e nós achamos graça de tudo porque ninguém nos levou à estação ou nos espera na plataforma, não conhecemos absolutamente ninguém por estas bandas e por isso mesmo tudo é tão assustador e leve ao mesmo tempo, esse papel com frases em húngaro, algum comando incompreensível que não vamos seguir, as três com os olhos bem abertos fingindo para as outras que estão em sono profundo, quando na verdade as ideias dançam e trocam a ordem dos móveis na cabeça, se bem que provavelmente o único que dorme em todo o trem deve ser o fiscal, ou nem ele, duro que é, talvez prefira fantasiar com gigantes, maremotos




RUBEM GRILO (Brasil, 1946). Gravador, desenhista, ilustrador. Em 1970, estuda xilogravura com José Altino (1946), na Escolinha de Arte do Brasil, no Rio de Janeiro. No ano seguinte, passa a frequentar a Seção de Iconografia da Biblioteca Nacional e entra em contato com as gravuras de Oswaldo Goeldi (1895-1961), Lívio Abramo (1903-1992), Marcelo Grassmann (1925), entre outros. Nesse período, inicia curso de xilogravura na Escola de Belas Artes da UFRJ e é orientado por Adir Botelho (1932). Em visitas ao ateliê de Iberê Camargo (1914-1994), recebe lições de gravura em metal e, na Escola de Artes Visuais do Parque Lage-EAV/Parque Lage, estuda litografia com Antonio Grosso (1935). No início da década de 1970, ilustra jornais como Opinião, Movimento, Versus, Pasquim, Jornal do Brasil. Na Folha de S. Paulo, cria ilustrações para os fascículos da coleção “Retrato do Brasil”. Em 1985, publica o livro Grilo: Xilogravuras, pela Circo Editorial. Em 1990, é premiado pela Xylon Internacional, na Suíça. Em 1998, participa, com sala especial, da 24ª Bienal Internacional de São Paulo e, no ano seguinte, é curador geral da Mostra Rio Gravura. Tem trabalhos publicados em revistas especializadas como Graphis e Who’s Who in Art Graphic (Suíça), Idea (Japão), e Print (Estados Unidos). Nossos agradecimentos a Jacob Klintowitz pela presença de Rubem Grilo como artista convidado desta edição de Agulha Revista de Cultura.

 


Agulha Revista de Cultura

Número 262 | setembro de 2025

Artista convidado: Rubem Grilo (Brasil, 1946)

Editores:

Floriano Martins | floriano.agulha@gmail.com

Elys Regina Zils | elysre@gmail.com

ARC Edições © 2025


∞ contatos

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FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com

ELYS REGINA ZILS | elysre@gmail.com

 




 

 

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