ISABEL
MEYRELLES (em conversa com Susana Moreira Marques, 2010)
I.
Surrealismo e contemporaneidade: contornos
do animal e do pós-antropocentrismo
Desde
a sua criação, o surrealismo trabalha o imaginário do animal para promover a quebra
das fronteiras entre o real e o fictício e a transcendência dos limites da linguagem
e da identidade, frequentemente graças a técnicas de fluxo de pensamento e escrita
automática. Estas técnicas permitem denunciar o entendimento de restrições socioculturais,
sentimentos recalcados e interesses desconhecidos. A título de exemplo, lembre-se
um breve excerto de Les Champs magnétiques (1919), livro escrito por André
Breton e Philippe Soupault, que evoca uma variedade impressionante de animais não
humanos:
Les talus se fendillent sous la chaleur des wagons rapides et des escarbilles
rouges de toute la vapeur qui coule loin sur les arbres. On ne sait quelle est cette
odeur des loups morts de faim qui vous prend à la gorge dans les wagons des classes
inférieures. Courage pour ces cris des locomotives hystériques et pour ces gémissements
des roues suppliciées. Au-dehors, les arbres enivrés de tous les regards ont le
vertige monstrueux des foules au départ d’un avion pour un voyage éternel. À tous
les signaux, une énorme bête se tient cachée et regarde d’un seul oeil ce grand
lézard bruyant qui glisse sur des ruisseaux de diamants et sur les cailloux des
mines aériennes.
Como se verifica neste episódio de automatismo psíquico, intitulado
“Train”, estão presentes dois animais concretos: o lobo e o lagarto, e um terceiro
não identificável, uma “besta que vê com um único olho”. Embora possa tratar-se
de um humano, talvez esta figura aponte para uma criatura metamorfoseada – um ciclope
da mitologia grega. A presença desta besta não só faz pensar a transcendência, que
com o seu único olho combate os modelos convencionais, como a metamorfose entre
o real e o fictício, levando a um caso de biomorfismo. Assim, a metamorfose desempenha
uma função fundamental no que diz respeito à quebra das fronteiras entre as espécies,
uma vez que traça um desvio face à dicotomia humano / não humano.
No primeiro manifesto do surrealismo, André
Breton escreve: la faune et la flore du surréalisme
sont inavouables. Esta declaração aponta, por
um lado, para a dificuldade em comunicar estes imaginários, pela linguagem convencional;
por outro, para uma dimensão de oculto, pelo adjetivo inconfessáveis. O que não pode (ou não deve) ser dito em voz alta poderá
relacionar-se com o interdito de Georges Bataille, envolvendo as esferas do estranho,
exótico, monstruoso ou fantasioso. Atendendo ao inconsciente como lugar de desejos
reprimidos, o interdito limita a liberdade de expressão e, nesse sentido, a fauna
e a flora simbolizam uma imaginação desgovernada, por quebrarem as fronteiras da
transgressão. A transgressão difere da volta
à natureza: ela suspende o interdito sem suprimi-lo.
É nesta libertação temporária, dividida entre interdito e transgressão, que o surrealismo
retrata o animal. Carlos M. Luis explicita:
El simbolismo animal le confiere al surrealismo una llave de paso para penetrar
en el mundo de lo maravilloso. Refiriéndose a las obras del tintorero suizo Aloys
Zotl que había pintado un bestiario fabuloso, Breton expresó lo siguiente: sabemos qué enigmas esconden (los animales)
en cada uno de nosotros y el rol primordial que juega en el simbolismo del subconsciente [...]. Una vez instalados en un mundo abierto
al espacio de las posibilidades simbólicas, los surrealistas dejaron que su imaginación
los poblase con sus ricos bestiarios.
Importa atentar num poema em que o reino animal é, ao contrário
da primeira passagem, representado sem transformações. Vejam-se os últimos versos
do poema “Au seuil des tours”, ainda em Les Champs magnétiques (Breton/Soupault), cujo
bestiário conta com camelos, tubarões, girafas e focas:
Le galop des chameaux
Port perdu
La gare est à droite café de la gare Bifur C’est la peur
Préfectures océaniques
Je me cache dans un tableau historique
Si vert qu’il va fleurir
Les feuilles sont des soupirs tendres
À la hâte coupez vos désirs trois mâts échappés danseurs fous
La mer n’a plus de couleur venez voir la mer des algues
La giroflée mappemonde ou requin
La pauvre girafe est à droite
Le phoque gémit
Les inspecteurs ont dans leurs mains des obscurités et des martins-pêcheurs
un graphomètre animal des villes sèches
Pour vous étamines perdues État-major des éternités froides
Os estudos ecocríticos e zoopoéticos têm problematizado veementemente
o antropocentrismo, cosmovisão que fixa o ser humano no centro do universo, em detrimento
das restantes espécies. Nesta senda, é importante refletir sobre o modo como os
animais são retratados no meio artístico, já que as repercussões vão desde tanto estimá-los e respeitá-los quanto maltratá-los
e matá-los (Hickmann 2013). A representação de animais tidos como majestosos,
sendo a sua beleza grandiosamente ilustrada, pode resultar no desejo de possuir troféus desses animais, como peles, chifres e outras partes
do corpo. O mesmo se passará na romantização artística da caça: o retrato prestigiado
desta prática pode trazer riscos às espécies (ameaçadas). É neste sentido que John
Berger comenta: o modo como os animais eram
retratados na pintura romântica do século XIX era já um reconhecimento do seu iminente
desaparecimento. O desenvolvimento de um pensamento ecocrítico, explorando a
representação do animal não humano na arte e, em especial na literatura, convida
a combater a subalternidade dos seres não humanos. Esta ideia é enfatizada por Sérgio
Guimarães de Sousa e Ana Ribeiro: não podermos
continuar a relacionarmo-nos com a natureza e com os seres não humanos que nela
se alojam como se esta e estes não passassem de uma mera moldura da nossa (problemática)
presença. Numa palavra, todas as formas de vida afiguram-se essenciais à sobrevivência.
Ora, já em Prolégomènes à un troisième manifeste du surréalisme ou non (1942),
André Breton manifestava que o entendimento entre as espécies é benéfico:
Pourtant je persiste
à croire que cette vue anthropomorphique sur le monde animal trahit en manière de
penser de regrettables facilités. Je ne vois aucun inconvénient, pour le faire saisir,
à ouvrir les fenêtres sur les plus grands paysages utopiques […] L’homme n’est peut-être
pas le centre, le point de mire de l’univers. On peut se laisser aller à croire
qu’il existe au-dessus de lui, dans l’échelle animale, des êtres dont comportement
lui est aussi étranger que le sien peut l’être à l’éphémère ou à la baleine.
A partir
deste pressuposto analisarei o universo animal presente em Isabel Meyrelles, no
contexto dos estudos pós-antropocêntricos, determinando de que forma o pensamento
de André Breton poderá ser pertinente para a obra da autora portuguesa. De facto,
Meyrelles, uma das primeiras mulheres associadas ao surrealismo português, tendo
acompanhado de perto a sua fundação, conta uma vasta produção artística em torno
da fauna. A autora debruça-se sobre o cruzamento de espécies – animais reais, como
o tigre ou a formiga, e criaturas híbridas ou mitológicas, como o minotauro ou o
unicórnio –, numa obra em que a complexidade humana e o selvagem paradoxalmente
se unem e afastam. Uma dimensão fantástica pode muitas vezes estar subentendida,
como explica Floriano Martins:
O que há de mais autêntico nessa escultora-poeta,
que não teme o confronto com essas contradições, é a maneira como recorta as diversas
texturas do mundo à sua volta e lhes dá uma deslumbrante conotação fabular. Não
é que tudo ali seja fábula, mas antes, que o fabuloso está presente em todos os
momentos evocados por sua obra, poesia e escultura. Em todo momento nos lembra:
o imaginário é parte de nossa vida. Vem daí, decerto, que se valha, na poesia, da
cumplicidade com tigres e espelhos, sobretudo em O Livro do Tigre e O Mensageiro dos Sonhos. Apoia-se no bestiário fantástico que
já desenvolve plenamente em suas esculturas e no desdobramento de imagens, no jogo
lúdico que os espelhos permitem [...] Nenhum labirinto é digno de seu nome, se não
traz em suas entranhas um minotauro.
Sempre num universo surrealista, a imagética do animal acompanha
toda a obra de Isabel Meyrelles: a cada novo passo dentro do labirinto, o leitor
encontra uma espécie diferente. Após voltas e voltas, é inevitável questionar a
natureza do labirinto: pretenderá Isabel Meyrelles forçar o leitor a visitar o seu
bestiário, guiando-o até ao centro, onde há uma rutura com o antropocentrismo, substituído
pela abordagem zoopoética?
II.
O caso de Isabel Meyrelles
Nascida
em 1929, em Matosinhos, Isabel Meyrelles muda-se aos vinte anos para Lisboa, tendo
em vista estudar escultura. Em 1950, devido à opressão salazarista, particularmente
sufocante para os artistas – alvos de constantes censuras, proibições e perseguições
–, exila-se em Paris. Aí, frequenta a Escola Nacional Superior de Belas Artes, a
Universidade de Sorbonne e a Académie de la Grand Chaumière, aprofundando os seus
conhecimentos em escultura e em estudos literários. Além de escultora, carreira
que mantém até à atualidade, foi também tradutora para francês de obras de José
Régio, Jorge Amado, Vitorino Nemésio, Maria Gabriela Llansol e Mário Cesariny. Em
1951, publicou o primeiro livro de poemas, Em Voz Baixa, seguido por Palavras
Nocturnas (1954), únicos livros escritos somente em português. Os restantes,
O Rosto Deserto (1966), Le Livre du tigre (1976) e O Mensageiro
dos Sonhos (2004), são publicados em edição bilingue com traduções feitas por
si própria, Natália Correia e Vítor Castro. O último livro foi apenas divulgado
na compilação Poesia, pelas Edições Quasi, que reúne toda a sua criação poética.
A sua obra artística é composta, então, por cinco livros de poemas e mais de quarenta
esculturas.
Os traços surrealistas na poesia de Isabel Meyrelles nem sempre
foram evidentes, nomeadamente nas suas primeiras obras, Em Voz Baixa e Palavras
Nocturnas, que em muito se assemelham:
em ambas predomina a temática amorosa, a curta extensão dos poemas e, como afirma
Perfecto E. Cuadrado, um tom de tímida confissão,
de segredo em voz baixa, às vezes de monólogo
sussurrado à mesa do café ou no leito subitamente despovoado. Este caráter de
simplicidade subjacente aos dois livros, mais perceptível no primeiro, é ainda alvo
de atenção para António Ramos Rosa: Não pode
haver maior simplicidade – a simplicidade do nada poético […] Ou será que a palavra
Amor é por si o maior poema? Em contraste com o poema de André Breton e Philippe
Soupault citado acima, nestes dois livros de Meyrelles não há sinais de escrita
automática ou de livres associações. Pelo contrário: os seus poemas, com uma linguagem
predominantemente direta e clara, quase sempre enunciam um sujeito poético falando
para alguém, que por vezes assume o papel de tu. Cuadrado, por outro lado, diz que a autora alcança uma fase de maior madurez a partir de O Rosto Deserto,
fase na qual os vestígios de surrealismo se começam a manifestar mais consideravelmente.
Entre estes, destacam-se o humor, a exaltação lírica e o pensamento livre – visível
numa das estruturas que a autora adota: a
adivinhação popular (Martins 2010). Veja-se, por exemplo, o poema “Devinette”.
[2] Ademais, note-se a primeira ocorrência
de um animal – a mosca – no poema de O Rosto Deserto:
Mon premier est une
table,
noire et vide;
mon deuxième est
une chaise,
ce coursier en attente;
mon troisième c’est
le temps,
qui glisse à petits
pas de mouche;
mon tout
c’est toi
le cercle parfait.
A mosca
é um animal frequentemente associado a ideias de inquietude e decadência, uma vez
que circula em torno de matérias em decomposição. Além disto, a mosca [venenosa]
é apresentada como a quarta praga no Êxodo, o segundo livro da Bíblia, onde é enviada
ao Egito para auxiliar na libertação dos israelitas. Noutra linha, se recordarmos
a pintura La persistencia de la memoria (1931) de Salvador Dalí, este inseto
é associado ao avançar do tempo – perceptível pela mosca pousada no relógio –, o
qual, como os relógios que derretem, se dissipa. Neste poema-adivinha, o cercle parfait, que realça a ideia de continuidade,
só pode ser alcançado com a combinação dos três elementos mencionados: a mesa, a
cadeira e o tempo. A mesa dá suporte; a cadeira permite um lugar de espera; e o
tempo é vinculado aos pequenos passos de uma mosca, salientando o processo lento
da sua passagem. O sujeito poético, procurando alcançar o seu todo, que é o tu, prende-se num ciclo de espera angustiante,
à semelhança dos métodos de sobrevivência que a mosca adota, dependente de matéria
orgânica.
Já em
Le Livre du tigre, a faceta surrealista de Isabel Meyrelles manifesta-se
de forma mais clara, como constata Fátima Marinho em O Surrealismo em Portugal:
Curiosamente, é num livro muito mais recente,
de 1976, que Isabel Meyrelles apresenta mais elementos surrealistas. Le Livre
du Tigre [...] possui, com
efeito, metáforas e imagens que apontam directamente para as associações ousadas
de André Breton e dos seus discípulos: le rivage aura des
dents / et des doigts de souffre et de sel, / [...] et le temps, le temps, lui,
/ peigne ses cheveux de sable noir / et se nourrit de mon désir de toi.
Ainda
no livro de 1976, é possível encontrar a herança do surrealismo francês, incluindo
a narração de episódios aleatórios e, no texto em questão, uma estrutura fabular.
Veja-se o poema seguinte:
Era uma vez um tigre
todo enroscado
em cima duma cama desfeita
e que rugia tanto
que os cortinados esvoaçavam
como velas de barcos
e que três moscas
que andavam por ali
a tratar da vida
morreram com um ataque cardíaco.
Uma fada que passou na altura
comovida pela sombria beleza
do terrível senhor, disse-lhe:
“Pede-me três coisas
e eu dar-te-ei satisfação,
mas primeiro estende-te ao comprido
para que eu possa assegurar-me
de que tu não és um tigre de papel”.
— “Em verdade te digo
que tudo anda maluco
e tu mais que todos os outros”
respondeu o tigre
estirando-se preguiçosamente.
“Mas já que insistes,
eis os meus dois primeiros desejos:
que não me beijem as orelhas
nem que me acariciem
as costas.
Quanto ao meu terceiro desejo,
é que eu gostaria de saber
que sabor tem uma fada”.
E comeu-a.
Moralidade: mais vale um tigre na cama
que uma (boa) fada (um tanto) doida.
Era uma vez um tigre evoca o universo das fábulas, na linhagem
de Esopo e La Fontaine, conferindo um caráter híbrido ao poema, mesmo se [só formalmente] o poema de Isabel Meyrelles
e as fábulas da Antiguidade ou de La Fontaine têm alguma semelhança (Marinho
1987). Por outras palavras, nas fábulas as personagens são animais que agem como
seres humanos, numa identidade ambígua, o que faz com que este género se baseie
num processo alegórico de antropomorfização
do mundo animal, com vista à representação dos usos e costumes das sociedades humanas
(Neves 2013). Graças a esta contínua associação psicológica, produzida nas fábulas,
mas também em todas as formas artísticas que abordam o animal, este passa a ser
alvo de uma codificação cultural (como são os casos recorrentes da raposa e do lobo,
animais continuamente presos a atributos de deslealdade e maldade). O facto de estes
animais serem, ao longo dos séculos, representados com estas características faz
com que haja uma contaminação na perceção da outridade do animal. Talvez seja por
este motivo que Meyrelles se distingue de La Fontaine: usufruindo do automatismo
psíquico e rejeitando o pensamento racionalista, governado por uma teoria dualista,
o animal de Isabel Meyrelles consegue ser interpretado pelo autor e pelo leitor
através dos seus atributos naturais, afastando-se da codificação cultural. Partindo
deste princípio, Lucile Desblache comenta em Écrire l’animal aujourd’hui (2006):
O poema de Isabel Meyrelles parece ainda próximo de um texto
de Poisson Soluble (1924) de André Breton, que principia da seguinte forma:
Il y avait une fois un dindon sur une digue
[...] Aussi le dindon est-il resté sur la digue et depuis ce jour fait-il peur à
l’enfant qui va à l’école. É inegável a semelhança formal entre os
dois textos: ambos se iniciam com era uma
vez, narram uma história cujo protagonista é um animal e terminam com uma lição
de moral. Será este género escolhido pelos surrealistas para romper com a tradição
fabular clássica? Tratar-se-á de simples apropriação da estrutura formal ou haverá
uma desconstrução consciente das expectativas associadas a este género? E, em último
lugar, haverá uma diferença no papel do animal entre as fábulas surrealistas e as
tradicionais?
Este poema
relata o momento em que um tigre insatisfeito é confrontado com uma fada. A fada
concede-lhe três desejos, desde que este prove que é um tigre real e não um tigre
de papel. [4] Orgulhoso do seu plano,
dedica dois dos seus desejos a carícias e reserva o terceiro para a devoração da
fada. Tais carícias poderão estar associadas ao misticismo chinês e hinduísta. Segundo
a tradição chinesa, o tigre é uma das quatro criaturas celestiais, ocupando o cargo
de deus do Oeste e representando coragem e força; tal é reforçado pela lenda de
que o tigre vive mil anos, tornando-se branco quando atinge os quinhentos. Por este
motivo, a sua imagem era pintada nas paredes das aldeias e nas portas dos templos,
na crença de que afastaria os espíritos malvados (Roberts 2004). Já no hinduísmo,
a sua dimensão divina deve-se ao facto de ser o animal que a deusa Maa Durga monta.
Assim, a metáfora dos cortinados como velas de barcos; as três moscas como dado
abstrato e insignificante para o desfecho; a interação sobrenatural entre um animal
e uma fada; e a lição ambígua mais vale um
tigre na cama / que uma (boa) fada (um tanto) doida, remetendo para a ideia
de que as fadas são bondosas – tudo serve para fazer o elogio do selvagem e da natureza
animal.
Tal como
em O Rosto Deserto, também neste texto de Le Livre du Tigre surgem
[três] moscas que podem estar associadas
a sensações de inquietude e decadência, comuns ao pensar a fragilidade da vida.
Evidentemente, há um tigre, que, dando
título a um livro da autora, joga nos últimos versos com uma dimensão erótica: os
versos é que eu gostaria de saber / que sabor
tem uma fada sugerem uma relação íntima entre o tigre e a fada, que concretizar-se
com e comeu-a. Dado que este ato de devoração
se passa numa cama – reforçando, mais uma vez, a presença do erotismo –, o leitor
pode mesmo estar perante uma prática de canibalismo sexual. Prática, em rigor, invertida,
no sentido em que é o macho que se alimenta da fêmea, contrariamente ao que costuma
acontecer no reino animal. Igualmente pertinente será considerar a entrada para
leito de Dicionário de Símbolos de
Jean Chevalier e Alain Gheerbrant: além de simbolizar a regeneração pelo sono e
pelo amor (2015), também é o lugar da morte
(ibidem), tornando-se responsável por dar e absorver vida, assim como matar
e morrer.
III. Da zoopoética ao bestiário de Isabel Meyrelles
Como mencionado antes, a zoopoética
motiva uma escuta e um olhar sensíveis ao animal não humano e às produções artísticas
que o reproduzem – naturalmente, nem todos os textos sobre animais são zoopoéticos,
sendo, para isso, necessário o reconhecimento da subjetividade da espécie animal.
Por outras palavras, conforme explica Márcia Seabra Neves, a propósito do pensamento
derridiano, existem dois tipos de aproximação ao animal: a dos que nunca cruzaram o olhar de um animal, fazendo dele uma coisa vista
e que não vê, um todo genérico; e a daqueles que […] consentem o olhar do animal
sobre eles tendo em conta o seu ponto de vista (2018). Ou seja, este ato caracteriza-se
por uma forma de ver o animal como um ser que pode ver-nos de volta: l’animal nous regarde, et nous sommes nus devant
lui (Derrida 2006). [5]
Nas cinco obras poéticas de Isabel Meyrelles, além de menções
indiretas ao imaginário animal (asas,
garras e uivos), são referidos sessenta e sete animais (incluindo repetições)
em pouco mais de uma centena de poemas. Numa breve lista, com o objetivo de listar
as espécies incluídas e eliminando os animais já mencionados ao longo do texto,
constam: cisnes, andorinhas, gaivotas, borboletas, peixes, gatos, elefantes, serpentes,
cabras, a fénix, unicórnios e minotauros. Perante estes dados, optou-se por agrupar
as espécies em cinco categorias: aves, animais aquáticos, insetos/rastejantes, mamíferos
e seres mitológicos. Resta perguntar: que funções exercem estes animais e de que
maneira surgem? De que modo constituem metáforas? Quão percetível é a zoopoética
nos poemas de Meyrelles?
No poema “14” de Em Voz Baixa, o sujeito dirige-se ao objeto
amado, a quem confessa o gradual esquecimento do seu sorriso, chegando a compará-lo
a uma ilha perdida dentro de mim, simultaneamente
distante/perto e presente/perdido. O traço surrealizante manifesta-se [n]o vento que muda as estrelas / para o dorso
das andorinhas: esta constante transformação, capaz de alterar o cosmos, não
pode pertencer à realidade. Além disso, as andorinhas são habitualmente associadas
à liberdade e à sorte; e, considerando que carregam as estrelas nos seus dorsos,
podem remeter para uma conexão entre o céu e a terra. Por outro lado, os peixes
que vivem nos oceanos, não completamente expostos à luz e ao som da civilização,
são equiparados aos olhos do objeto amado. Estes peixes enfatizam a dificuldade
do sujeito em alcançar o Outro, cujos olhos se escondem da sua tentativa de encontro
na profundidade. Veja-se o poema:
Dias há,
em que o teu sorriso
é uma ilha perdida dentro de
mim
e o teu nome
o vento que muda as estrelas
para o dorso das andorinhas.
Dias há,
em que procuro os teus olhos
e silenciosamente te digo
“meu amor”
como se eles fossem peixes
e as palavras animais estranhos
capazes de turvar a paz
das grandes profundidades.
O poema remata com os versos animais estranhos / capazes de turvar a paz. Serão estes animais humanos
ou não humanos? De qualquer modo, surgem num contexto em que estranhos enfatiza o seu carácter enigmático:
estes animais só parecem perturbar a tranquilidade das profundezas. Ora, esta profundeza
pode ser uma representação da psique humana, no sentido em que as palavras abalam
o que há de oculto no inconsciente. Os peixes e andorinhas, individualmente, expressam
um caráter sobretudo metafórico neste poema, o que é realçado noutro segmento do
mesmo teor: as palavras como animais estranhos. Este verso convida o leitor a meditar
sobre o poder da linguagem e a sua autonomia, que se prende com a crença na domesticidade
da linguagem, que, no final, é sui generis e tão (ou mais) estranha como o animal (não) humano.
No poema seguinte, de Palavras Nocturnas, livro que tematiza
um amor mais nocturno e já quase elegíaco,
segundo Perfecto E. Cuadrado, o animal selecionado é o pássaro. Eis um poema curto,
tal como a vida deste pássaro, composto apenas por dois versos: Sou um grito de pássaro / morto nas tuas mãos.
Não há dúvidas de que o sujeito se identifica com um grito de pássaro / morto. Estes versos exigem uma leitura em clave surrealista:
um pássaro morto não tem a capacidade de gritar, embora possa fazê-lo antes da sua
morte. É dizer, o eu poético não só já
está morto quando grita, como também já está nas mãos do tu, cujas mãos poderão ser a causa da sua morte. Abordar esta representação
do pássaro à luz da zoopoética implica reconhecer que, na sua posição, poderia estar
um ser humano: qualquer morte, independentemente da espécie, é um acontecimento
doloroso. Noutra nota, vale lembrar que o amor predominante em Palavras Nocturnas
é taciturno, pelo que este grito também poderá representar a falta de liberdade,
de expressão ou de lugar de fala do sujeito poético – assim, o verso nas tuas mãos suscita possíveis sensações
de vulnerabilidade e aprisionamento. E, por isso, se questiona: quem está morto
é o pássaro, o grito, o amor ou o eu lírico?
Ou, indo mais longe: a civilização ou a natureza?
O terceiro texto a ser analisado evoca uma criatura do panorama
mitológico: o unicórnio. Este animal lendário, frequentemente lembrado pela sua
pureza e beleza, acrescenta ao poema a dimensão de fantástico – sobre a qual Isabel
Meyrelles manifesta uma preferência. O unicórnio contribui para o confronto entre
as expectativas da realidade humana e do universo imaginado, uma vez que, graças
à não convencionalidade deste animal, as limitações do quotidiano são transgredidas.
Atente-se no poema de O Rosto Deserto:
Entre o unicórnio e tu
o espaço de um grito
cega procura
do teu corpo
no interior de ti
tu meu amor
espaço entre unicórnio
e eu
Os primeiros versos indicam um intervalo entre o unicórnio e o
Outro, medido pelo espaço de um grito.
Não podendo este intervalo ser medido numa escala de comprimento, por estarmos ante uma dimensão ficcional, o seu significado leva a
uma sensação de urgência e procura excessiva (que chega a ser cega) pelo corpo do tu. Considere-se
ainda que este corpo pode também ser do eu,
navegando dentro de si próprio e enfrentando sentimentos de estranheza (espaço de um grito) perante a sua identidade.
No final do poema, dá-se uma inversão de papéis: o Outro torna-se o espaço intermédio
entre sujeito e unicórnio. Esta troca indica o ponto de encontro entre o mundo maravilhoso
do unicórnio e o mundo real do eu lírico,
em que o objeto amado toma uma posição oscilante de intimidade. Tal pressuposição
é reforçada na Etymologiae, a primeira enciclopédia da cultura ocidental,
escrita por Isidoro de Sevilla durante os séculos VI e VII, segundo a qual o unicórnio
só se deixa capturar quando adormece perto de uma jovem, acalmando a sua ferocidade
(Sevilla 2004). Esta característica enfatiza a dificuldade de aproximação por parte
do sujeito poético e o facto de esta relação ser irrealizável. Embora haja desejo
de proximidade, o eu e o tu pertencem a universos diferentes, ainda
que conectados: assim como o unicórnio e o ser humano.
Para André
Breton, os animais fora de série são igualmente
merecedores de apreço, talvez em compensação pela falta de atenção que lhes era
concedida habitualmente, exercendo novamente uma tomada de posição face aos modelos
tradicionais. Como o autor menciona em Flagrant délit: ainsi le bestiaire surréaliste, sur toutes les
autres espèces, accorde la prééminence à des types hors série, d’aspect aberrant
ou fin de règne comme l’ornithorynque, la mante religieuse ou le tamanoir (1964).
Já Isabel Meyrelles, não
optando por nenhum animal de aparência aberrante,
dá, por outro lado, ênfase aos insetos, quilópodes e invertebrados rastejantes,
dos quais se destacam: moscas, abelhas, centopeias, vermes, grilos e cigarras. Leia-se
o poema de Meyrelles no qual predomina um último inseto, a formiga:
O silêncio está pavimentado de muros
os muros estão cheios de formigas
as formigas têm
dois metros de comprido
mas ninguém vê nada.
E depois?
Os muros são da cor de silêncio
as formigas trazem máscaras
negras
e sólidas botas ferradas
mas ninguém vê nada.
E depois?
O silêncio é feito de formigas
os muros têm mãos retrácteis
as brochas são de chewing-gum
mas ninguém vê nada.
E depois?
Os muros estão pavimentados
de silêncio
as mãos têm luvas de silêncio
as formigas são devoradas em
silêncio
mas ninguém vê nada.
E depois?
Todas as características atribuídas às formigas, desde os dois metros de comprido à utilização de máscaras negras e botas ferradas, desconcertam o leitor. Talvez as formigas deste poema
personifiquem o ser humano, que, neste caso, poderá corresponder a um polícia ou
soldado. Assim, rapidamente se percebe que o poema é envolvido por uma atmosfera
de opressão: as formigas, identidades de policiamento, controlam a linguagem; forçam
o silêncio e impedem a visão do exterior. Estas circunstâncias enquadram-se na vivência
de um país governado pelo regime fascista, cujo povo é submetido ao cumprimento
da boa conduta e à repressão da sua liberdade. No poema não são escassas as provas
desta opressão: os muros apontam para as barreiras físicas e psicológicas e o silêncio
evoca a censura, que, embora camuflada, está sempre presente. A constante repetição
do verso mas ninguém vê nada alude à normalização
destas condições, como um mecanismo de defesa que a população desenvolve para gerir
a sua impotência. A pergunta e depois?
remete para o pensamento das forças políticas confrontadas com a corrupção das suas
ações: o sentimento de apatia torna-se norma (ninguém vê nada). Destarte, nas duas últimas estrofes do poema há uma
mudança da consciência das formigas: estas já não se mascaram nem vestem, mas formam
o silêncio e são devoradas por ele. Aqui sugiro uma segunda leitura: este inseto
representa a população comum, vista como pequena e insignificante pelo poder do
regime, e por isso é devorado. Em rigor, neste poema as formigas servem uma função
essencialmente metafórica. É possível aproximar a formiga ao ser humano, neste contexto,
às figuras policiais ou militares: as primeiras seguem uma hierarquia na qual as
formigas operárias servem a rainha, responsabilizando-se pela procura de comida
e pelo cuidado pelas crias; as segundas obedecem às entidades superiores, não contestando
os seus valores morais.
Por último, O Mensageiro de Sonhos acrescenta o elefante
ao bestiário poético de Isabel:
À força de bater com a cabeça
nas tuas paredes
sinto que estou a transformar-me
num grande elefante cinzento
barrindo tristemente
no teu salão,
quebrando por inadvertência
as Wedgwood do tio Pedro,
a terrina K’ang-hi da avó
e todo o serviço da Companhia
das Índias
do primo António.
É esse o drama quando se é
um grande elefante cinzento
solitário e desajeitado:
o próprio peso da inércia
pode quebrar muitas coisas,
o desejo, a indiferença,
as porcelanas, o silêncio,
a ausência, tu, eu,
mas não as tuas paredes.
A minha grande cabeça elefantóide
continuará infatigavelmente,
estupidamente
a bater nelas
ad nauseam.
O poema abre com a confissão do sujeito poético: sinto que estou a transformar-me / num grande
elefante cinzento. A partir desta ideia surrealizante de metamorfose, vinculada
pela rutura com a noção tradicional de forma humana e pela comunhão com o ser animal,
que já contribui para um contexto de estranhamento, o sujeito poético procede a
bater com a cabeça / nas tuas paredes.
Tal comportamento, além de revelar uma tendência destrutiva (interior) e uma incapacidade
de adequação ao meio, também se reflete na destruição (exterior) – através da quebra
das porcelanas: a terrina e o serviço da Companhia das Índias. Além de esta metamorfose
ser causada pela barreira erguida pelo tu,
o automatismo e a falta de controlo estão aqui
presentes: o elefante não consegue movimentar-se sem partir algum objeto ou sem
bater com a cabeça nas tuas paredes, tornando-se
solitário e desajeitado. Está aprisionado, e não é capaz de fugir a uma possível
claustrofobia: é esse o drama quando se é
/ um grande elefante cinzento, originando-se um processo de alienação. A consciência
de estar num ciclo vicioso de destruição salienta o sentimento de impotência: a minha grande cabeça elefantoide / continuará
infatigavelmente, estupidamente / a bater nelas; ao mesmo tempo que sugere uma
vontade sempre insatisfeita. Este desejo pela quebra das paredes incorpora uma forma
não só de libertação, do mundo exterior e de si próprio, como de aproximação ao
Outro (tuas paredes, teu salão, e tu, eu); resultando, por fim, numa dor tão insuportável, que leva à
indisposição física ad nauseam.
Finalmente,
quando questionada sobre a sua poesia no documentário de 2022, Meyrelles confessa:
não sei se estava a sonhar ou o que estava
a fazer… acordar de manhã e fazer um poema a toda a velocidade para não me esquecer
[…] eu nunca corrigi uma palavra, porque eu não sabia. O facto de nenhum dos
poemas aqui citados ter sido corrigido pela autora é um dado revelador: o universo
animal que a acompanha é oriundo da sua imaginação e do seu inconsciente. Mesmo
observando que alguns poemas apontam para uma leitura significativamente metafórica,
apelando a conceitos como o antropomorfismo (os casos da formiga ou do elefante),
não é por esse motivo que a estes animais não deve ser dada a oportunidade de, nas
palavras de Derrida, serem lidos de volta.
É nesse sentido que a zoopoética desafia o antropocentrismo: criando espaço para
uma apreciação holística do mundo natural. A razão pela qual Isabel Meyrelles opta
por determinados animais ao longo da sua produção poética permanecerá uma incógnita.
Talvez em seus sonhos lhe enderecem poemas, lhe deem a ver o invisível (Marques 2010, como os olhos de um gato. [6]
IV. Diálogos entre poesia e escultura
Ao longo da
sua vida, Isabel Meyrelles dedicou-se significativamente mais à atividade escultórica
do que à poética. Isto é evidente não só pela grande quantidade de peças escultóricas
que produziu como, também, pelo facto de ainda hoje protagonizar várias exposições.
É de destacar duas que tiveram lugar nos últimos anos: “Isabel Meyrelles – Como
a sombra a vida foge” na Fundação Cupertino de Miranda (2019-2020) e “Isabel Meyrelles:
Qual de nós os fantasmas” no Museu Municipal Amadeo Souza-Cardoso (2023). No que
toca às suas influências, e como foi referido, a autora debruça-se sobre os desenhos
do seu amigo Cruzeiro Seixas, como lembra numa entrevista em 2004, [7] realizada por Raquel Santos:
Para mim, [a literatura e a escultura]
são duas linguagens diferentes. Eu vejo em três dimensões, a minha visão é em três
dimensões. Quando olho para os desenhos de Cruzeiro Seixas, e eu olho sempre para
esses, penso: “oh, que pena não servirem para escultura”. E, aliás, fiz várias esculturas,
enfim, inspiradas por desenhos dele [...] Mas eu creio que [as esculturas] passam
mais pela ironia onírica, eu gosto de rir de mim mesma.
Além da ironia, é perceptível o papel desempenhado pelas partes
do corpo humano, pelos objetos do quotidiano e pelas figuras mitológicas. [8] As suas esculturas de gatos,
unicórnios e dragões estão ligadas aos imaginários egípcio, ocidental e oriental,
complementando na sua escultura uma dimensão transcultural muito rica. A este propósito,
Augusto Cabrita afirma: as suas esculturas
geram frequentemente perplexidade no espectador, convocando-o, em primeira instância,
para uma geografia de desestruturação, para depois o conduzir ao questionamento
e a uma eventual reconfiguração das suas próprias perspetivas representacionais
(2021). A dimensão transgressora das configurações do corpo e da imaginação alinha-se
com a ênfase fantástica e surrealista que Isabel Meyrelles elege para se definir.
Nesta sequência, considera-se pertinente averiguar os possíveis diálogos entre a
sua arte plástica e segmentos da sua obra poética, tendo em vista o prolongamento
do seu bestiário artístico, e a contemplação desses animais e respetivos universos.
Já foi evidenciado que a ave é uma figura recorrente na poesia
de Isabel Meyrelles, trabalhada ao longo dos seus cinco livros. Na sua escultura,
há pelo menos uma peça representativa desta classe animal: O Vigia [9], criada em 2004, em bronze: figuração de um pé com um pequeno
tronco e cabeça de gavião. Ora, na mitologia egípcia, Hórus, deus do sol e dos céus,
é descrito com um corpo híbrido: cabeça de falcão e asas de gavião. Devido a isto,
o gavião é recorrentemente associado ao sol e à liberdade, também por ser uma ave
de rapina que pode voar livremente. Por outro lado, segundo a mitologia grega, a
águia é o símbolo de Zeus (uma personagem evocada pela autora nos seus últimos poemas)
e, como o gavião é considerado uma águia de menor tamanho, poder-se-á estabelecer
uma relação entre estes dois animais. Mesmo que na poesia de Meyrelles só se faça
alusão a gaivotas e pássaros (no coletivo), importa citar um poema de Em Voz
Baixa: Eu morrerei / e nos outros serei
a recordação / dum grande pássaro selvagem / que bateu as asas / longamente… / longamente…
/ Enquanto se ouvir / o eco das minhas asas, / terei a vida das aves. Não esquecendo
o título da escultura O Vigia, que assinala um certo viés de vigilância,
talvez estes versos aludam para o sentimento de eternidade que as figuras mitológicas
carregam. Já o pé na terra, segurando uma cabeça de ave, cujo lugar é no céu, dá
conta da dimensão paradoxal do surrealismo: sugerindo, simultaneamente, o equilíbrio
das forças humana (indivíduo) e mitológica (divino e animal).
Permanecendo no universo da mitologia grega, a escultura A
Coxa de Zeus, datada de 1996, exibe a frente de um cavalo saindo da coxa de
Zeus. Esta peça, por sua vez, remete para o nascimento de Dionísio, deus das festas
e filho de Zeus, que terá nascido da coxa de seu pai. O facto de a figura retratada
ser metade cavalo (e não um corpo humano) poderá ser explicado pela ironia onírica, referida por Meyrelles na
sua entrevista. Paralelamente, os cavalos também marcam presença na sua poesia,
em Le Livre du Tigre, num poema sem título: Libertei os demónios / é inútil que se escondam / atrás da fonte cor-de-rosa
/ do Jardim das Delícias, / sei que estão lá / de nada serve atravessar / este mar
encristado de cavalos selvagens (2004). Terá Isabel Meyrelles pensado em Dionísio
como um cavalo ou como um centauro, transcendendo as fronteiras entre as espécies
humana e não humana?
Vejamos um último diálogo intermedial entre o poema já analisado
“Entre o unicórnio e tu” e a escultura Licorne, de 2003. Nesta peça de bronze,
a figura circular do unicórnio propõe uma dimensão de continuidade que convida o
espectador à apreciação do desconhecido. O verso espaço entre unicórnio / e eu pode ainda ser alusivo ao espaço central
vazio na escultura, que lembra um desenho de Cruzeiro Seixas, no qual os mesmos
elementos podem ser observados.
Sem esquecer a menção inicial à sexualidade na escultura surrealista,
é curioso ter em mente outras duas interpretações do unicórnio. Por um lado, como
uma figura que combate contra o Sol e o eclipse;
ele os devora (Chevalier/Gheerbrant 2015), e que, por isso, assume uma posição
de neutralidade, podendo representar a imagem
do hermafrodita (ibidem), realçada pelos versos cega procura / do teu corpo / no interior de ti. Por outro lado, simbolizando
com seu chifre único no meio da fronte, a
flecha espiritual, o raio solar,
a espada de Deus, a revelação divina, a penetração do divino na criatura (ibidem, itálico dos autores),
o unicórnio significará a transcendência da sexualidade (ibidem).
A análise do imaginário animal em Isabel Meyrelles, construído
através da sua poesia surrealizante e das suas esculturas fantásticas, permite estabelecer
conexões significativas entre a sua produção artística, o surrealismo francês e
português, e a perspectiva contemporânea da zoopoética. O desenvolvimento do seu
bestiário revela a presença constante de animais, alguns como símbolos e metáforas,
para o sujeito poético, para a sociedade e para o abstrato, transcendendo as suas
representações literais, aproximando-se de emoções, desejos, medos e recalcamentos
humanos. Simultaneamente, estes sentimentos afirmam-se transversais à espécie humana
e não humana, pelo que a autora nunca adota uma perspectiva antropocêntrica na sua
arte: o antropomorfismo não é o único modo de leitura. Ademais, o diálogo dos poemas
com as esculturas da artista contribui para o entendimento de como o seu imaginário
animal se expande para além das palavras, ganhando materialidade: as esculturas
oferecem uma dimensão tátil e tridimensional ao bestiário poético, enriquecendo
a experiência estética e simbólica das obras, e reforçando a reflexão acerca a natureza
humana, aliada à natureza animal. Nos
moldes do surrealismo, a obra de Isabel Meyrelles certamente favorece a criação
de uma consciência nova, trazendo uma enorme contribuição, não só para o surrealismo
português, como para os estudos zoopoéticos.
NOTAS
1. Expressão proferida pela autora no artigo “Do céu de Lisboa caiu
uma surrealista”, do jornal Público, datado de 27 de outubro de 2010, disponível
em www.publico.pt/2010/10/27/jornal/do-ceu-de-lisboa-caiu-uma-surrealista-20443821 (acesso em 20/06/2023).
2. Privilegiou-se a versão original francesa, dado que a sua extensão
inicial se aproxima mais do modelo de uma adivinha. A versão portuguesa, por Natália
Correia, intitula-se “Adivinha” e conta apenas com quatro versos: É uma mesa negra e vazia / uma cadeira corcel
expectante / é o tempo com passos de mosca / és tu meu círculo perfeito.
3. Segundo Armelle Le Brás-Chopard, em Le Zoo des philosophes (2000),
prevalecem duas doutrinas filosóficas que definem as relações entre o humano e o
animal: as teorias monistas, que estabelecem uma continuidade entre o homem e o
animal; e as dualistas, que destacam uma separação entre eles, contribuindo para
uma visão antropocêntrica, como resume Márcia Neves (2013).
4. A expressão tigre de papel
ou paper tiger é de origem chinesa, sendo
a tradução literal de zhilaohu. Para além
de caracterizar, na via popular, um indivíduo de aparência rígida e poderosa que,
na realidade, é frágil, tornou-se uma frase conhecida por ter sido o slogan de Mao
Zedong, líder da República Popular da China de 1949 a 1976. A expressão aplicou-se
ao governo dos Estados Unidos durante o respetivo período.
5. Vale lembrar que o conceito pensar através do animal, também pertinente, é explicado por Kári Driscoll
e Eva Hoffmann, na sua introdução a What Is Zoopoetics? Texts, bodies, entanglement:
em última análise, o pensamento animal no sentido de que vem depois ou, de facto, decorre
desse encontro com o animal e é isso que
a filosofia ocidental tem [...] procurado esquecer. A poesia, ao contrário, seria
definida como aquela forma de pensar que não se esqueceu, mas continuou a pensar ou a pensar sobre a questão do animal (2018, tradução minha).
6. Susana Moreira Marques, entrevistando Isabel Meyrelles, pergunta-lhe
acerca de vários animais. Relativamente ao gato, Isabel responde: Fico sempre muito admirada com os olhos deles.
O que é que eles estão a ver? Eu estou convencida que eles veem o invisível
(2010).
7.
Documentário realizado pela RTP, datado de 13 de julho de 2004, disponível em https://arquivos.rtp.pt/conteudos/isabel-meyrelles (acesso
em 27/06/2023).
8. Retirado
da crónica para o website Comunidade Cultura e Arte, escrita por Augusto
António Cabrita, em 4 de junho de 2021, disponível em https://comunidadeculturaearte.com/isabel-meyrelles-a-primeira-surrealista-portuguesa/ (acesso em 20/06/2023)
9. Todas
as imagens aqui presentes foram retiradas dos websites São Mamede – Galeria de
Arte (que reúne uma secção dedicada à escultora Isabel Meyrelles, disponível
em www.saomamede.com/artista.php?ver=obr&id_artista=42) e Fellini Gallery (www.fellinigallery.com/artists/isabel-meyrelles) (acesso em 30/06/2023). No caso das pinturas de Cruzeiro Seixas,
o website consultado foi o Centro Português de Serigrafia: www.cps.pt/pt/search/?q=cruzeiro+seixas> (acesso em 20/08/2023).
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ANA CAROLINA MEIRELES. Mestranda em Estudos Literários, Culturais e Interartes, com especialização em Estudos Comparatistas, pela Universidade do Porto, Portugal. É licenciada em Línguas, Literaturas e Culturas, com área de concentração em Estudos Portugueses e Franceses, pela mesma instituição. Além de se interessar por literatura portuguesa, estudos feministas e intermidiáticos, a sua investigação atual centra-se em ecocrítica, estudos animais e surrealismo, áreas em que tem trabalhado graças às duas bolsas de investigação que recebeu, colaborando também com o Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa (ILCML) e o Centro de Investigação Transdisciplinar: Espaço, Cultura, Memória (CITCEM). Coeditou o livro Escrever com os pardais – Notas para uma zoopoética (com Helena I. Lopes, Porto: ILC, 2024) e encontra-se atualmente a desenvolver a sua tese de mestrado sobre zoopoética e ecofeminismo na poesia portuguesa contemporânea escrita por mulheres. O presente ensaio teve publicação original em Cadernos de Literatura Comparada # 49, dezembro de 2023.
RUBEM GRILO (Brasil, 1946). Gravador, desenhista, ilustrador. Em 1970, estuda xilogravura com José Altino (1946), na Escolinha de Arte do Brasil, no Rio de Janeiro. No ano seguinte, passa a frequentar a Seção de Iconografia da Biblioteca Nacional e entra em contato com as gravuras de Oswaldo Goeldi (1895-1961), Lívio Abramo (1903-1992), Marcelo Grassmann (1925), entre outros. Nesse período, inicia curso de xilogravura na Escola de Belas Artes da UFRJ e é orientado por Adir Botelho (1932). Em visitas ao ateliê de Iberê Camargo (1914-1994), recebe lições de gravura em metal e, na Escola de Artes Visuais do Parque Lage-EAV/Parque Lage, estuda litografia com Antonio Grosso (1935). No início da década de 1970, ilustra jornais como Opinião, Movimento, Versus, Pasquim, Jornal do Brasil. Na Folha de S. Paulo, cria ilustrações para os fascículos da coleção “Retrato do Brasil”. Em 1985, publica o livro Grilo: Xilogravuras, pela Circo Editorial. Em 1990, é premiado pela Xylon Internacional, na Suíça. Em 1998, participa, com sala especial, da 24ª Bienal Internacional de São Paulo e, no ano seguinte, é curador geral da Mostra Rio Gravura. Tem trabalhos publicados em revistas especializadas como Graphis e Who’s Who in Art Graphic (Suíça), Idea (Japão), e Print (Estados Unidos). Nossos agradecimentos a Jacob Klintowitz pela presença de Rubem Grilo como artista convidado desta edição de Agulha Revista de Cultura.
Agulha Revista de Cultura
Número 262 | setembro de 2025
Artista convidado: Rubem Grilo (Brasil, 1946)
Editores:
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ARC Edições © 2025
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