quarta-feira, 10 de dezembro de 2025

ELYS REGINA ZILS | A mística da travessia Noturna – Sobre Noturno/Precipício, de João Antonio Bezerra Neto



O livro de poemas Noturno/Precipício (2024), de João Antonio Bezerra Neto (Ceará, 1980), configura-se como um denso e coeso ciclo espiritual, em que o poeta traça um itinerário temático que se estende da angústia metafísica à redenção no chão da vida.

A própria atmosfera da obra é marcada por um tom noturno, que refere-se a um estado de vigília constante, uma imersão na “noite escura da alma”, tal como concebida pela tradição mística de São João da Cruz. O poeta, contudo, realiza um movimento de deslocamento, transferindo essa noite essencialmente espiritual para um território existencial e nordestino. A tensão que perpassa a obra é a do diálogo ininterrupto entre o universal e o regional, o metafísico e o terreno, construindo uma poética que elege a morte, o desamparo e o mistério como seus motes centrais.

Formalmente, o texto evoca a tradição barroca na insistente tensão entre transcendência e morte, corpo e espírito, carne e silêncio. Há uma evidente busca por uma linguagem que mescla o erudito e o confessional, utilizando um léxico, às vezes, elevado em contraste com a oralidade do lamento. As influências são diversas, remetendo ao lirismo nostálgico e cotidiano de Manuel Bandeira, à linhagem poética nordestina marcada pela dor e pela lucidez, e a um misticismo de vertente sombria que pode evocar ecos de T.S. Eliot ou mesmo Baudelaire.

O ciclo se inicia com o poema “Noite Escura”, onde o eu lírico se entrega a um rito de provação espiritual. A repetição da expressão “Na noite escura” instaura uma cadência quase litúrgica e hipnótica, um refrão que reforça a sensação de rito e de vigília. O poema se sustenta em imagens fortes (“um anjo me abandona,” “os escombros carnais do silêncio,” “legiões de carrascos”) que traçam uma visão de mundo marcada pelo espanto diante da finitude. A menção ao “sal” e ao “rochedo” é sutil, mas evoca a paisagem simbólica do sertão e do litoral do Nordeste, onde a luta contra a natureza imprime uma religiosidade de maior aspereza e dramaticidade.

Essa religiosidade é confrontada com a questão da negritude e da história em “Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, em Caxias”. Este poema carrega uma dimensão histórica e espiritual marcada pela herança da escravidão. A igreja, erguida por negros cativos, torna-se o símbolo da contradição fundadora do Brasil: o contraste entre o “altar azul” e a dor “surrada no pelourinho.” O poeta ancora o texto em um espaço geográfico e simbólico do Nordeste (Caxias, Maranhão), palco de uma história em que a fé foi, simultaneamente, instrumento de opressão e ferramenta de resistência. O verso “sob o piso encardido, sons de serpentes abafam gritos” transforma o chão do templo em metáfora das vozes soterradas pela violência. O poema oscila entre o catolicismo barroco e o misticismo afro-brasileiro, com o clamor das “almas de pretos velhos,” confirmando uma espiritualidade mestiça e sincrética. Formalmente, os versos são longos, fluidos, com um ritmo cerimonial e elegíaco que reforça o caráter de lamento.

A tensão entre o sagrado e o profano também está presente em “Missa Negra”, onde a religiosidade afro se funde ao esoterismo. O poeta justapõe o pentagrama a Ogum, o orixá guerreiro iorubá, revelando uma cosmologia mestiça onde santos, orixás e entidades noturnas coexistem sem fronteiras nítidas. É uma reencenação de uma cerimônia espiritual invertida, em que o profano se infiltra no altar e a fé é vista como ferida e resistência. A estrutura, composta por versos curtos e densos, assemelha-se a uma ladainha.

Em “Caminhadas”, o eu lírico se entrega a um tom mais coloquial, urbano e fragmentado. A caminhada é a metáfora do existir, e a ausência de pontuação no texto reflete o próprio caminhar descontínuo, a busca frustrada por sentido na paisagem urbana. O poeta, que no início se ocupava dos anjos, agora vaga entre anúncios e bilhetes que prometem soluções mágicas, uma espiritualidade do desencanto que encontra, na observação lúcida da vida, sua última forma de transcendência.

A transição da metafísica para o chão da vida real se dá em poemas como “Noturno da Rua Araguari”. O poema é uma ode ao beco, o subúrbio e o rumor das ruas, em um diálogo com a crônica sentimental e a exaltação do cotidiano. No beco, a vida popular, o samba, os carroceiros e os rocieiros (vendendo ciriguela) compõem um painel da cultura popular contemporânea e urbana. O poeta demonstra uma ternura no olhar para a pobreza e a desordem, elevando o cotidiano à categoria de símbolo de humanidade. A influência de Manuel Bandeira é clara — tanto na escolha do tema (o beco, o subúrbio, a nostalgia) quanto na tonalidade: uma mistura de lirismo, humor e resignação. A epígrafe “Beco das minhas tristezas” de Bandeira se transforma aqui em Beco das memórias.


É neste ponto da travessia, do abismo metafísico ao subúrbio concreto, que o poeta dedica seu olhar mais incisivo às figuras femininas marginalizadas, outorgando-lhes uma dignidade lírica que é, em si, um ato de resistência cultural.

Em “Epitáfio à Prostituta Raquel”, o poeta utiliza um tom elegíaco, mas com um luto íntimo e profundamente humano. A figura da prostituta, classicamente condenada pela moral social, é elevada a uma dimensão mítica: Raquel é retratada como uma esfinge, uma alegoria da beleza profanada e da transcendência possível no corpo e na morte. O poema é um gesto de resgate, um desejo formal de dar dignidade poética àquilo que o discurso moralizante condena. A escolha do epitáfio, forma poética tradicionalmente reservada a figuras ilustres, para uma mulher marginalizada transforma o poema em um ato de resistência estética contra o apagamento social. O eu lírico lhe concede eternidade, transformando seu corpo, antes carne de pecado e escambo, em símbolo e memória. Aqui, a morte de Raquel torna-se um protesto contra a hipocrisia.

O ciclo da finitude está presente também em “Velório de Valéria”, uma elegia contida e lúcida que, de modo igualmente notável, confere monumentalidade a morte de uma mulher comum. A escolha de imortalizar a morte de Valéria, nome comum, representa um ato de validação cultural, conferindo peso lírico a uma vida que o mundo, talvez, ignorasse. Ao aceitar o corpo em sua materialidade final (“tu és só matéria a ser cremada na fornalha”), o poeta desarma a retórica religiosa e monumentaliza a mulher em sua dimensão mais essencial: a humana. Raquel e Valéria, figuras que emergem nesses dois poemas, representam para mim o Nordeste como território de resistência silenciosa, onde a poesia pode contribuir para a restituição da dignidade feminina.

O livro é uma experiência de leitura que ultrapassa a fruição estritamente poética, apresentando-se como um objeto estético total, que une lirismo e visualidade, dada a importância da parceria com seu irmão, o artista visual Ângelo Roncalli (Ceará, 1975), responsável pela capa e pelos desenhos internos, e o apuro da Editora Sol Negro, com o design de Márcio Simões. O uso do azul do projeto (cor fria, espiritual, mas também fúnebre) ecoa os temas recorrentes da obra: morte, fé, melancolia e busca de transcendência.  O projeto gráfico, portanto, funciona como um prolongamento orgânico da palavra. Roncalli, cuja formação não se deu nas belas-artes, mas sim em Letras (o que o leva a se considerar um artista intuitivo), oferece um traço que dialoga com o universo do autor, reforçando a simbiose entre o texto e a imagem.

A figura da capa, com seus traços toscos e nervosos, parece um híbrido de santo e penitente, com as mãos tensas e uma cruz no peito. Ela evoca a iconografia medieval e, simultaneamente, a arte popular nordestina, como a xilogravura de cordel. A cruz no peito não é redenção serena, mas “agonia ritual,” uma materialização da fé sincrética e ferida que atravessa diversos poemas. A rudeza da estética é uma linguagem de resistência cultural e espiritual. Contudo, algumas ilustrações do interior recaem sobre lugares-comuns do imaginário gótico e ocultista.

Em suma, Noturno/Precipício é uma obra coesa e necessária. É a poética de um Nordeste contemporâneo que se alimenta da memória, da mística do sofrimento e da religiosidade mestiça.




ELYS REGINA ZILS (Brasil, 1986). Poeta, artista visual, tradutora. Doutoranda e Mestre em Estudos da Tradução pela PGET/Universidade Federal de Santa Catarina. Possui graduação em Letras-Língua Espanhola e Literaturas e Letras-Português também pela Universidade Federal de Santa Catarina/Florianópolis, Brasil. Se dedica à Literatura Latinoamericana, pesquisando principalmente Vanguardas Literárias e Artísticas com ênfase em Literatura Surrealista Latinoamericana. Editora da Agulha Revista de Cultura (2023), revista criada por Floriano Martins. Tradutora, ao lado dele, de sua trilogia dedicada ao surrealismo, A Bússola do Acaso. Tem sido responsável ainda, parcialmente, pela curadoria e tradução de poetas hispano-americanos para o “Atlas Lírico da América Hispânica”, da revista Acrobata. A Sol Negro Edições, casa de livros artesanais, publicou Os elementos terrestres, de Eunice Odio, edição bilíngue organizada e traduzida por ela. Atualmente tem em preparação a tradução de livros de Marosa di Giorgio e Olga Orozco, para a mesma Sol Negro Edições. Recentemente criou a Editora Mamma Quilla, cujo catálogo estreia com O dia dos cinco orgasmos (Leila Ferraz), Susana Wald – Visões vertiginosas da criação (ensaio e entrevista, ERZ) e Fragmentos de silêncio (poesia e colagem, ERZ), todos em 2024.




BRIANDA ZARETH HUITRÓN (México, 1990). Originaria de Temascalcingo de José María Velasco, México. Artista plástica y pintora surrealista. Realizó sus estudios de pintura en la Academia de San Carlos en Ciudad de México. Sus múltiples facetas artísticas y personalidad curiosa la llevaron a descubrir el surrealismo, corriente en la que encontraría una manera de comunicarse con el mundo. Plasma interpretaciones poéticas donde lo cotidiano es transformado en una realidad fantástica y onírica. Pinturas mágicas que señalan los deseos de la vida por salir en un cuadro. Ha expuesto individualmente y de manera colectiva en México y en el extranjero. Exposiciones individuales: Museo Leonora Carrington de Xilitla, ENCUENTROS ONÍRICOS en el año 2025. Museo de la Mujer, REVELACIONES ONÍRICAS, en el año 2022. PAISAJES ONÍRICOS para el Festival Temascalcingo Honra a Velasco, en el Año 2021. VENTANA A MUNDOS ONÍRICOS, en el Centro Cultural Futurama, Ciudad de México, en el año 2020. Exposiciones Colectivas Col-art en la Galería Oscar Román año 2025 Muestra pictórica EL OFICIO DEL PINTOR, de la Academia de San Carlos, Año 2019. DIMENSIONS, Festival Wave Gotik Treffen, celebrado en Leipzig, Alemania, en el año 2018. Ha participado en la Cátedra por los 100 años del surrealismo, en la Facultad de Filosofía y Letras de la UNAM, impartiendo conferencia sobre surrealismo femenino. Recientemente su obra ha sido publicada en el libro Mujeres Mexicanas en el Arte, de la editorial Agueda y en THE ROOM SURREALIST MAGAZINE, revista de surrealismo internacional. Brianda Zareth Huitrón es la artista invitada de esta edición de Agulha Revista de Cultura.

 



Agulha Revista de Cultura

Número 263 | dezembro de 2025

Artista convidada: Brianda Zareth Huitrón (México, 1990)

Editores:

Floriano Martins | floriano.agulha@gmail.com

Elys Regina Zils | elysre@gmail.com

ARC Edições © 2025


∞ contatos

https://www.instagram.com/agulharevistadecultura/

http://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/

FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com

ELYS REGINA ZILS | elysre@gmail.com

 




 

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário