A própria atmosfera da obra é marcada por um tom noturno, que refere-se a um estado de vigília constante, uma imersão na “noite escura da alma”, tal como concebida pela tradição mística de São João da Cruz. O poeta, contudo, realiza um movimento de deslocamento, transferindo essa noite essencialmente espiritual para um território existencial e nordestino. A tensão que perpassa a obra é a do diálogo ininterrupto entre o universal e o regional, o metafísico e o terreno, construindo uma poética que elege a morte, o desamparo e o mistério como seus motes centrais.
Formalmente, o texto evoca a tradição barroca na insistente tensão entre transcendência e morte, corpo e espírito, carne e silêncio. Há uma evidente busca por uma linguagem que mescla o erudito e o confessional, utilizando um léxico, às vezes, elevado em contraste com a oralidade do lamento. As influências são diversas, remetendo ao lirismo nostálgico e cotidiano de Manuel Bandeira, à linhagem poética nordestina marcada pela dor e pela lucidez, e a um misticismo de vertente sombria que pode evocar ecos de T.S. Eliot ou mesmo Baudelaire.
O ciclo se inicia com o poema “Noite Escura”, onde o eu lírico se entrega a um rito de provação espiritual. A repetição da expressão “Na noite escura” instaura uma cadência quase litúrgica e hipnótica, um refrão que reforça a sensação de rito e de vigília. O poema se sustenta em imagens fortes (“um anjo me abandona,” “os escombros carnais do silêncio,” “legiões de carrascos”) que traçam uma visão de mundo marcada pelo espanto diante da finitude. A menção ao “sal” e ao “rochedo” é sutil, mas evoca a paisagem simbólica do sertão e do litoral do Nordeste, onde a luta contra a natureza imprime uma religiosidade de maior aspereza e dramaticidade.
Essa religiosidade é confrontada com a questão da negritude e da história em “Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, em Caxias”. Este poema carrega uma dimensão histórica e espiritual marcada pela herança da escravidão. A igreja, erguida por negros cativos, torna-se o símbolo da contradição fundadora do Brasil: o contraste entre o “altar azul” e a dor “surrada no pelourinho.” O poeta ancora o texto em um espaço geográfico e simbólico do Nordeste (Caxias, Maranhão), palco de uma história em que a fé foi, simultaneamente, instrumento de opressão e ferramenta de resistência. O verso “sob o piso encardido, sons de serpentes abafam gritos” transforma o chão do templo em metáfora das vozes soterradas pela violência. O poema oscila entre o catolicismo barroco e o misticismo afro-brasileiro, com o clamor das “almas de pretos velhos,” confirmando uma espiritualidade mestiça e sincrética. Formalmente, os versos são longos, fluidos, com um ritmo cerimonial e elegíaco que reforça o caráter de lamento.
A tensão entre o sagrado e o profano também está presente em “Missa Negra”, onde a religiosidade afro se funde ao esoterismo. O poeta justapõe o pentagrama a Ogum, o orixá guerreiro iorubá, revelando uma cosmologia mestiça onde santos, orixás e entidades noturnas coexistem sem fronteiras nítidas. É uma reencenação de uma cerimônia espiritual invertida, em que o profano se infiltra no altar e a fé é vista como ferida e resistência. A estrutura, composta por versos curtos e densos, assemelha-se a uma ladainha.
Em “Caminhadas”, o eu lírico se entrega a um tom mais coloquial, urbano e fragmentado. A caminhada é a metáfora do existir, e a ausência de pontuação no texto reflete o próprio caminhar descontínuo, a busca frustrada por sentido na paisagem urbana. O poeta, que no início se ocupava dos anjos, agora vaga entre anúncios e bilhetes que prometem soluções mágicas, uma espiritualidade do desencanto que encontra, na observação lúcida da vida, sua última forma de transcendência.
A transição da metafísica para o chão da vida real se dá em poemas como “Noturno da Rua Araguari”. O poema é uma ode ao beco, o subúrbio e o rumor das ruas, em um diálogo com a crônica sentimental e a exaltação do cotidiano. No beco, a vida popular, o samba, os carroceiros e os rocieiros (vendendo ciriguela) compõem um painel da cultura popular contemporânea e urbana. O poeta demonstra uma ternura no olhar para a pobreza e a desordem, elevando o cotidiano à categoria de símbolo de humanidade. A influência de Manuel Bandeira é clara — tanto na escolha do tema (o beco, o subúrbio, a nostalgia) quanto na tonalidade: uma mistura de lirismo, humor e resignação. A epígrafe “Beco das minhas tristezas” de Bandeira se transforma aqui em Beco das memórias.
Em “Epitáfio à Prostituta Raquel”, o poeta utiliza um tom elegíaco, mas com um luto íntimo e profundamente humano. A figura da prostituta, classicamente condenada pela moral social, é elevada a uma dimensão mítica: Raquel é retratada como uma esfinge, uma alegoria da beleza profanada e da transcendência possível no corpo e na morte. O poema é um gesto de resgate, um desejo formal de dar dignidade poética àquilo que o discurso moralizante condena. A escolha do epitáfio, forma poética tradicionalmente reservada a figuras ilustres, para uma mulher marginalizada transforma o poema em um ato de resistência estética contra o apagamento social. O eu lírico lhe concede eternidade, transformando seu corpo, antes carne de pecado e escambo, em símbolo e memória. Aqui, a morte de Raquel torna-se um protesto contra a hipocrisia.
O ciclo da finitude está presente também em “Velório de Valéria”, uma elegia contida e lúcida que, de modo igualmente notável, confere monumentalidade a morte de uma mulher comum. A escolha de imortalizar a morte de Valéria, nome comum, representa um ato de validação cultural, conferindo peso lírico a uma vida que o mundo, talvez, ignorasse. Ao aceitar o corpo em sua materialidade final (“tu és só matéria a ser cremada na fornalha”), o poeta desarma a retórica religiosa e monumentaliza a mulher em sua dimensão mais essencial: a humana. Raquel e Valéria, figuras que emergem nesses dois poemas, representam para mim o Nordeste como território de resistência silenciosa, onde a poesia pode contribuir para a restituição da dignidade feminina.
O livro é uma experiência de leitura que ultrapassa a fruição estritamente poética, apresentando-se como um objeto estético total, que une lirismo e visualidade, dada a importância da parceria com seu irmão, o artista visual Ângelo Roncalli (Ceará, 1975), responsável pela capa e pelos desenhos internos, e o apuro da Editora Sol Negro, com o design de Márcio Simões. O uso do azul do projeto (cor fria, espiritual, mas também fúnebre) ecoa os temas recorrentes da obra: morte, fé, melancolia e busca de transcendência. O projeto gráfico, portanto, funciona como um prolongamento orgânico da palavra. Roncalli, cuja formação não se deu nas belas-artes, mas sim em Letras (o que o leva a se considerar um artista intuitivo), oferece um traço que dialoga com o universo do autor, reforçando a simbiose entre o texto e a imagem.
A figura da capa, com seus traços toscos e nervosos, parece um híbrido de santo e penitente, com as mãos tensas e uma cruz no peito. Ela evoca a iconografia medieval e, simultaneamente, a arte popular nordestina, como a xilogravura de cordel. A cruz no peito não é redenção serena, mas “agonia ritual,” uma materialização da fé sincrética e ferida que atravessa diversos poemas. A rudeza da estética é uma linguagem de resistência cultural e espiritual. Contudo, algumas ilustrações do interior recaem sobre lugares-comuns do imaginário gótico e ocultista.
Em suma, Noturno/Precipício é uma obra coesa e necessária. É a poética de um Nordeste contemporâneo que se alimenta da memória, da mística do sofrimento e da religiosidade mestiça.
ELYS REGINA ZILS (Brasil, 1986). Poeta, artista visual, tradutora. Doutoranda e Mestre em Estudos da Tradução pela PGET/Universidade Federal de Santa Catarina. Possui graduação em Letras-Língua Espanhola e Literaturas e Letras-Português também pela Universidade Federal de Santa Catarina/Florianópolis, Brasil. Se dedica à Literatura Latinoamericana, pesquisando principalmente Vanguardas Literárias e Artísticas com ênfase em Literatura Surrealista Latinoamericana. Editora da Agulha Revista de Cultura (2023), revista criada por Floriano Martins. Tradutora, ao lado dele, de sua trilogia dedicada ao surrealismo, A Bússola do Acaso. Tem sido responsável ainda, parcialmente, pela curadoria e tradução de poetas hispano-americanos para o “Atlas Lírico da América Hispânica”, da revista Acrobata. A Sol Negro Edições, casa de livros artesanais, publicou Os elementos terrestres, de Eunice Odio, edição bilíngue organizada e traduzida por ela. Atualmente tem em preparação a tradução de livros de Marosa di Giorgio e Olga Orozco, para a mesma Sol Negro Edições. Recentemente criou a Editora Mamma Quilla, cujo catálogo estreia com O dia dos cinco orgasmos (Leila Ferraz), Susana Wald – Visões vertiginosas da criação (ensaio e entrevista, ERZ) e Fragmentos de silêncio (poesia e colagem, ERZ), todos em 2024.
Agulha Revista de Cultura
Número 263 | dezembro de 2025
Artista convidada: Brianda Zareth Huitrón (México, 1990)
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ARC Edições © 2025
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