quarta-feira, 10 de dezembro de 2025

MARIA EMANUELLE CARDOSO | Inventando cidades com Diana Luz Neves

 


Era dezembro pela manhã quando recebi o convite gentil de Diana para escrever o prefácio de seu livro. Em um primeiro momento, mostrei todos os dentes, em um sorriso largo. Um livro é um milagre, e a palavra é uma dádiva. Isto é, responsabilidade das grandes! Falar de uma mulher que escreve, nascida no Norte de Minas e agora litorânea - requer uma sensibilidade brutal. Entrei no jogo, sabendo que ler Diana é uma vitória por si só. Fiquei aflita. Quando li o seu livro de estreia, coração-pássaro-espuma-esfinge, já soube que estava diante de uma bruxa da linguagem, afinal de contas, sua destreza com as palavras era digna de feitiçaria, e das boas, curativas. Não por acaso, sua segunda obra "Charme Fantasma" recebeu o prêmio Carolina Maria de Jesus, em 2023. O título nos presenteia com o aroma de sua poética: vamos sair enfeitiçados, achando que um inseto encostou em nosso braço, mas não se assuste! Era só poesia. Entendi já nos primeiros poemas que ficaria encantada e esse charme iria me perseguir até as entranhas.

Um poema que me causou espanto foi interurbano. A gente adentra a página como quem nada quer, pensando no que pode haver entre duas cidades. Decerto, as pessoas são outras, os prédios, as avenidas conduzem a destinos outros. Um amor está à espreita, caso tenhamos a sorte de todos os passos conduzirem ao encontro. Conforme avançamos a leitura, percebemos que nos desencontros, nas quinas, inflexões, reside a paisagem. Diana evoca o mito de Aracne, a eterna tecelã, para nos contar da eterna teia que é a saudade, da construção que é o afeto, esse ônibus ao outro que estamos atrasados para pegar (mas sempre dá tempo). E como dá tempo nos sentamos, aliviados, diante desse ponto de partida e chegada que é o outro. Estamos tecendo com o que pudemos, aceitamos esse trabalho com a linha que temos e não paramos, pois sabemos que o único modo de encurtar uma distância é percorrendo-a. Mal sabemos que estamos, com isso, construindo uma outra distância. Maior.

Em termos subjetivos, o poema que se tornou imediatamente meu favorito foi interurbano. Certamente o levarei para passear. A relação entre mãe e filha é delicada. No meu caso, a relação neta-avó. A meu ver, o que vemos ao olhar uma mulher que percorreu distâncias maiores é um reflexo. Um reflexo do que é ser mulher, das náuseas e sorrisos que compartilhamos. Do que nos espera. Um desejo insaciável de ser, sempre o desejo, nos locomovendo ao outro, que é nós mesmos. Bordar bem, achar a palavra certa, encurtar uma distância, ser mulher-filha-mãe: uma questão de orgulho e, talvez, de controle. Descobrimos, ora ou outra, que a viagem não tem fim. É necessário suportar o enjoo de movimento. Precisamos tolerar que o destino talvez seja outro, o motorista pode pegar outra estrada e ainda assim, precisamos continuar. Seguimos com esse propósito vital, viajar de encontro ao afeto. Que continuemos viajando apesar dos choques e acidentes. É preciso manter a calma, pois aqui nada é nosso – só a palavra.

Enquanto não chegamos, inventamos uma cidade. Eu começo: a minha é na beira da praia e todo cidadão deverá por lei ter um gato de cada cor. Nos divertimos. Esperamos. Durante o percurso é preciso olhar as janelas, mas não esquecer que aqui dentro também é paisagem. E é possível contar das colinas nossas ao outro, conduzi-lo pelas hortas – dizer olha: aquela plantação ali a cheia do rio levou, mas eu já estou fazendo outra. Não, essa terra aqui está descansando. Do outro do lado do rio só se chega mergulhando. Dá para ensinar ao outro onde e como mergulhar, caso queiram pegar o peixe. Convidamos o outro para se sentar embaixo do cajueiro, oferecemos uma Coca-Cola. Dizemos: Olha bem, essa terra seca também dá para amar, se estiver disposto. Vez ou outra contamos uma piada (e isso é só para contar os dentes do outro) depois dizemos olha: eu perdi um também. Quando criança, gostava de correr pelo quintal, então cai. Você já correu pelo quintal? Você já caiu? Depois fingimos que estamos fazendo outra coisa, pois o amor é pão que cresce fermentado de silêncios. A viagem é longa e o outro adormece.


Podemos então contar baixinho um silêncio, tem de ser no momento exato do adormecer, para que o outro não saiba se foi um sonho ou acontecimento o que ouviu. O caminho para despertar o outro é o afago, afago que fazemos com a curiosidade de um observador de formigas. E quer saber o que elas comem. E quer saber para onde vão. E quer segui-las. E quer saber a boca de quem elas comeram primeiro. Para jogar com o livro, Diana nos concede a mitologia, a psicanálise, a astrologia e a filosofia como os eixos norteadores da partida. A regra é clara e é uma só: toda peça movida deve ser movida com amor. Tire os teus sapatos. Pode jogar os dados. Dessa vez, Diana te deixa ganhar.

Ler Diana Luz Neves requer um mergulho lento em poções mágicas. Aqui, tudo é milagre: a linguagem, o afeto, o nome com o qual as coisas existem para nós, e para o outro. Adentrar Charme Fantasma é um convite a olhar – tudo é olho. e podem te olhar de canto, te olhar com o corpo-cidade, te olhar com as mãos. Ao lê-la me senti menina-ventríloquo-mulher-pássaro, suas palavras, seus encantos conduzindo meu corpo e por fim, levando-o ao voo. E voo através do verbo, pouso em seus versos: um desafio, um afago. O que nos locomove através das páginas, do caminho, do outro é a fome. Há esse instinto primordial de sobrevivência, essa fome-febre-fere inerente ao corpo. Corpo esse que aquece, aconchega, leva ao delírio. Planamos no mundo munidos da palavra até os dentes, dispostos a fraturar tudo. Mas nem tudo é assim, repleto de sim. Há a pausa, a procura pela interrogação. Descobrimos ao repousar sob a sombra do cajueiro que as reticências são três sementes com ânsia de brotar. Podemos nos alimentar desse novo princípio, ousar seguir, ousar difamar através do sonho. Seguimos nessa estrada do talvez, na ponta dos pés como quem cheira a silêncios. Há nos trapézios esse acúmulo do não dito, do não tocado, agora também corpo, querendo sair para nadar. Saímos com o corpo procurando uma palavra e só encontramos nós mesmos. Se me permitem afagar o mistério, digo que Diana deve tecer todas as noites, e com isso nos entrega um golpe Greco-fatal-maternal. Se seguimos por sua teia como bússola, descobriremos o fantasma final: todo caminho é linguagem.




MARIA EMANUELLE CARDOSO (Minas Gerais, 2000). É bióloga e mestranda em Biodiversidade na UNIMONTES. Seu livro de estreia, Amarelo mostarda, foi publicado em 2024 pela editora Nauta. Tem poemas publicados em mais de 50 antologias e revistas em português, inglês e espanhol. Ganhou o segundo lugar do Prêmio Poesia Agora Verão 2021 (Trevo) e participou do Clipe Poesia 2023 na Casa das Rosas. Seu segundo livro, Foram os peixes a inaugurar a linguagem, está no prelo.






BRIANDA ZARETH HUITRÓN (México, 1990). Originaria de Temascalcingo de José María Velasco, México. Artista plástica y pintora surrealista. Realizó sus estudios de pintura en la Academia de San Carlos en Ciudad de México. Sus múltiples facetas artísticas y personalidad curiosa la llevaron a descubrir el surrealismo, corriente en la que encontraría una manera de comunicarse con el mundo. Plasma interpretaciones poéticas donde lo cotidiano es transformado en una realidad fantástica y onírica. Pinturas mágicas que señalan los deseos de la vida por salir en un cuadro. Ha expuesto individualmente y de manera colectiva en México y en el extranjero. Exposiciones individuales: Museo Leonora Carrington de Xilitla, ENCUENTROS ONÍRICOS en el año 2025. Museo de la Mujer, REVELACIONES ONÍRICAS, en el año 2022. PAISAJES ONÍRICOS para el Festival Temascalcingo Honra a Velasco, en el Año 2021. VENTANA A MUNDOS ONÍRICOS, en el Centro Cultural Futurama, Ciudad de México, en el año 2020. Exposiciones Colectivas Col-art en la Galería Oscar Román año 2025 Muestra pictórica EL OFICIO DEL PINTOR, de la Academia de San Carlos, Año 2019. DIMENSIONS, Festival Wave Gotik Treffen, celebrado en Leipzig, Alemania, en el año 2018. Ha participado en la Cátedra por los 100 años del surrealismo, en la Facultad de Filosofía y Letras de la UNAM, impartiendo conferencia sobre surrealismo femenino. Recientemente su obra ha sido publicada en el libro Mujeres Mexicanas en el Arte, de la editorial Agueda y en THE ROOM SURREALIST MAGAZINE, revista de surrealismo internacional. Brianda Zareth Huitrón es la artista invitada de esta edición de Agulha Revista de Cultura.

  



Agulha Revista de Cultura

Número 263 | dezembro de 2025

Artista convidada: Brianda Zareth Huitrón (México, 1990)

Editores:

Floriano Martins | floriano.agulha@gmail.com

Elys Regina Zils | elysre@gmail.com

ARC Edições © 2025


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