FM | Nelson, nós dois já participamos de
um grupo surrealista sem que nos conhecêssemos pessoalmente até hoje. Acompanhamos
o trabalho um do outro e sei que temos uma visão nada ortodoxa acerca do Surrealismo.
Vamos conversar sobre tudo isto, mas antes queria saber como o Surrealismo entrou
em tua vida.
NP | Desde muito cedo, jovem mesmo, fui
fascinado por alguns trabalhos de Max Ernst. Quando comecei a me aprofundar nas
pesquisas, fiquei feliz de encontrar alguns artistas, famosos ou não, com trabalhos
próximos aos meus. Este convívio com as
obras influenciou diretamente meu trabalho. A partir de um certo ponto me aproximei
do grupo de São Paulo, embora não me considerasse um surrealista da gema.
FM | As minhas discordâncias do Sérgio Lima,
e que determinou meu afastamento do grupo de São Paulo, foram determinadas pelo
meu espírito rebelde, o que é interessante se consideramos o estrato de rebeldia
que sempre caracterizou o Surrealismo. No entanto, por mais que se tenha pretendido
evitar a nódoa do estabelecimento de uma escola, Breton acabou por permitir uma
fatura estética que criou uma dissensão no entendimento de seus próprios conceitos,
em especial aqueles centrados na tríade poesia, amor e liberdade. Não sei quanto
tempo mais permaneceste naquele grupo. Tampouco desconheço o que significou o eventual
choque entre a insistência dogmática do Sérgio e tua compreensão do Surrealismo.
Queria te escutar a respeito.
NP | Sempre tive profundo respeito e carinho
pelo Sérgio. Sempre discutimos muito, mas com muito humor. Eu nunca aceitei o esforço
dogmático, mas tenho que reconhecer que o grupo como um todo introduziu disciplina
no que eu fazia e pensava. Eu era um típico fruto dos anos 1960, fui meio transformado
em cult por grupos oriundos dos meios estudantis. Claro que a realidade era muito
diferente da lenda, mas acho que isso me aproximava mais ainda do surrealismo. Acima
de tudo, as divergências me energizaram. E, quando o espírito mundano me levava
a outros mares, o Sérgio me pegava pela mão e me fazia trabalhar. Mas, nossa convivência
foi muito rica e produtiva, com episódios hilários como colher amoras no pé para
fazer licor, discutindo Heidegger.
NP | Tenho muito pouco controle sobre o
que produzo. É uma experiência mediúnica mesmo. Apenas deixo as forças oníricas
se manifestarem. Neste sentido sou um desbravador de mundos, de quintais onde convivem
bichos malucos e flores exóticas. E, às vezes, hortaliças mágicas.
FM | Tens uma relação de complementariedade
entre a imagem escrita e a imagem plástica. Leio uma séria de sinopses tuas acerca
de um volume fascinante de projetos, publicados ou não. Em uma delas: A poesia é uma ponte entre o que está lá e o
que está no alto dos céus nem sempre é sólida, balança a cada passo, o que torna
cada palavra decisiva na conquista de um lugar um pouco acima. É maravilhoso poder
perceber lá longe a probabilidade real de outros mundos. Primeiro me interessa
saber como se relacionam entre si essas duas imagens.
NP | Nunca enxerguei o texto sem a imagem.
Em verdade o cruzamento das duas formas de linguagem não me parece semântico, mas
sim ontológico. Imagino que seres dimensionais deveriam se expressar em múltiplas
dimensões, das quais a escrita e a imagem são apenas algumas das probabilidades.
O som é a terceira dimensão. Talvez o silêncio, como referendado por H. Blavatsky
seja a porta de acesso a outras formas.
FM | Agora indago sobre as vozes, os sopros
existenciais desses fantasmas que levamos dentro nós, que são frutos da experiência
e da informação, os mundos determinadas pela memória e o desejo, como a descoberta
de novas técnicas foram, com o tempo, definindo o teu ambiente estético? Além das
referências surrealistas, quais os teus sinais de afinidade espalhados pelo mundo?
NP | Apesar de voar por tudo que aparece,
sou uma árvore com raízes profundas, agarrado em minha existência e nas experiências
de vida. Como bom aluno da Filosofia da USP, agarrei os conceitos heideggerianos
do Ser enquanto entidade dialética impositiva. Espalhei muitas migalhas do meu eu
para marcar meu rastro, não como um cometa, mas como alimento para as pombas brancas.
Aliás, a minha relação com a almas viventes não tem fronteiras de espécies.
NP | Não avancei muito na vida acadêmica,
porque na Faculdade consideravam meus ensaios delirantes. E realmente eram. Há algo
de errático no pensamento realmente livre. Por felicidade. Quando criança tive a
oportunidade de conhecer grandes escritores, amigos do meu avô. O que me fascinava
neles era a diversidade e a liberdade. Eu era um leitor insaciável, que misturava,
Tarzan, Conde de Monte Cristo, José Balsamo, Platão e outros. Também conheci personagens
da vida boêmia, via irmão da minha avó, lá no incrível bairro do Bixiga. Mas, do
que nunca entendi como eram brilhantes por serem livres – para desespero de suas
famílias. A explosão dos anos 1960 levou isso a níveis espetaculares. A vida virou
palco. Todos eram saltimbancos e acrobatas. Os mais ousados eram trapezistas ou
andavam na corda bamba. Os anos de chumbo destruíram muita coisa. Ainda não avaliamos
corretamente o tamanho do estrago. Depois disso foi se solidificando um pensamento
sem riscos, baseado na repetição que, ironicamente, ocupou até as mídias digitais.
FM | Vou colar aqui uma reflexão tua que tenho na maior consideração:
Pode ser atribuído ao mero acaso a escrita
automática, ou ditada pelos anjos. Também dá para acreditar que a espada mágica
do profeta, escapa da sua bainha e raspa o teto do céu, abrindo pequenas fendas,
por onde escorre a seiva divina, transformada em tinta pela força do destino. Frases
não são senão a tênue lingerie das ideias, muitas vezes só transvestidas de sensualidade
para poderem ser compartilhadas. A fome de eternidade limita o número de vezes que
o horizonte pode se dobrar sobre si mesmo. Não é uma escada curva e nem em caracol.
É quadrimensional. O peso do tempo converte a gravidade em som. Os ecos são engolidos
pela garganta, provocando o engasgo. Sinapse é como hiato. E como música. O intervalo
determina a pauta. A escrita automática também não é um ditado da experiência
e do sentido de liberdade que damos ao conhecimento de se revelar?
NP | É rastro do pensamento, memória da
ideia futura, do por vir, do vir a ser. A pré-metáfora, quando a justaposição anda
não se encaixou na engrenagem. Mas, ao ser deflagrada cabe ao portador se deixar
levar, de modo relevante. É como um vírus. Que se instala no hospedeiro. Posteriormente
o hospedeiro é que vira relevante, já que é quem propaga.
FM | Uma de tuas inumeráveis ideias de criação
defenda a experiência de transpor de um universo
para outro os indícios semióticos, no limite entre a razão e o sonho. De que
modo podemos verificar em tua obra o alcance desse testemunho de uma obsessão?
NP | Durante o processo de criação, advém
juntos sinais criptografados das referidas simbologias dimensionais. Eles grudam
na formatação. Chamei isso de carrapatos da
inteligência. Não me refiro a um ser superior ou a um demônio, mas a uma inteligência
alienígena, de outra dimensão.
NP | Temo apenas ser um devorador de ideias,
um vampiro faminto por consciências que prolonguem sua existência. Não podemos esquecer
que vampiros não são eternos, precisam de alimento para sobreviver. Por isso, devemos
manter um esforço colossal para sondar o insondável. E priorizar sempre o movimento,
com muita atenção para não confundir com a força da inércia, que parece movimento,
mas não é. A lei da atração tem um contraponto natural na inércia. Precisamos enfiar
um cavalo de Tróia nas nuvens estelares ou do outro lado das dimensões.
FM | De volta ao princípio, o surrealismo,
a tradição brasileira, a respiração, os traços estéticos, um desejo natural de viver
bem, de que modo criar nos permite ir além de nós mesmos e por que razão a expansão
natural da própria existência é algo tão pouco determinante nos criadores em nosso
país?
NP | Acredito muito na diversidade espalhada
por todos os cantos. Há maravilhas nas matrizes africanas, bororo, tupi-guarani.
Sem falar dos caipiras, caiçaras, caboclos, mateiros. Espero que as gerações futuras
bebam muito das lendas e das entidades escondidas em livros, terreiros, templos
e confrarias. Precisamos de amor, bondade, compreensão. Estamos a um passo da vida
estelar, mas atrelados ao colonialismo. Que adianta colonizar mundos? Que burrice.
Vamos pegar carona nos cometas e aproveitar o universo como ele é, um parque de
diversões.
FM | Esquecemos algo?
NP | Ufa!
FLORIANO MARTINS (Fortaleza, 1957). Poeta, editor, dramaturgo, ensaísta, artista plástico e tradutor. Criou em 1999 a Agulha Revista de Cultura. Coordenou (2005-2010) a coleção “Ponte Velha” de autores portugueses da Escrituras Editora (São Paulo). Curador do projeto “Atlas Lírico da América Hispânica”, da revista Acrobata. Esteve presente em festivais de poesia realizados em países como Bolívia, Chile, Colômbia, Costa Rica, República Dominicana, El Salvador, Equador, Espanha, México, Nicarágua, Panamá, Portugal e Venezuela. Curador da Bienal Internacional do Livro do Ceará (Brasil, 2008), e membro do júri do Prêmio Casa das Américas (Cuba, 2009), foi professor convidado da Universidade de Cincinnati (Ohio, Estados Unidos, 2010). Tradutor de livros de César Moro, Federico García Lorca, Guillermo Cabrera Infante, Vicente Huidobro, Hans Arp, Juan Calzadilla, Enrique Molina, Jorge Luis Borges, Aldo Pellegrini e Pablo Antonio Cuadra. Criador e integrante da Rede de Aproximações Líricas. Entre seus livros mais recentes se destacam Un poco más de surrealismo no hará ningún daño a la realidad (ensaio, México, 2015), O iluminismo é uma baleia (teatro, Brasil, em parceria com Zuca Sardan, 2016), Antes que a árvore se feche (poesia completa, Brasil, 2020), Naufrágios do tempo (novela, com Berta Lucía Estrada, 2020), Las mujeres desaparecidas (poesia, Chile, 2022) e Sombras no jardim (prosa poética, Brasil, 2023).
BRIANDA ZARETH HUITRÓN (México, 1990). Originaria de Temascalcingo de José María Velasco, México. Artista plástica y pintora surrealista. Realizó sus estudios de pintura en la Academia de San Carlos en Ciudad de México. Sus múltiples facetas artísticas y personalidad curiosa la llevaron a descubrir el surrealismo, corriente en la que encontraría una manera de comunicarse con el mundo. Plasma interpretaciones poéticas donde lo cotidiano es transformado en una realidad fantástica y onírica. Pinturas mágicas que señalan los deseos de la vida por salir en un cuadro. Ha expuesto individualmente y de manera colectiva en México y en el extranjero. Exposiciones individuales: Museo Leonora Carrington de Xilitla, ENCUENTROS ONÍRICOS en el año 2025. Museo de la Mujer, REVELACIONES ONÍRICAS, en el año 2022. PAISAJES ONÍRICOS para el Festival Temascalcingo Honra a Velasco, en el Año 2021. VENTANA A MUNDOS ONÍRICOS, en el Centro Cultural Futurama, Ciudad de México, en el año 2020. Exposiciones Colectivas Col-art en la Galería Oscar Román año 2025 Muestra pictórica EL OFICIO DEL PINTOR, de la Academia de San Carlos, Año 2019. DIMENSIONS, Festival Wave Gotik Treffen, celebrado en Leipzig, Alemania, en el año 2018. Ha participado en la Cátedra por los 100 años del surrealismo, en la Facultad de Filosofía y Letras de la UNAM, impartiendo conferencia sobre surrealismo femenino. Recientemente su obra ha sido publicada en el libro Mujeres Mexicanas en el Arte, de la editorial Agueda y en THE ROOM SURREALIST MAGAZINE, revista de surrealismo internacional. Brianda Zareth Huitrón es la artista invitada de esta edición de Agulha Revista de Cultura.
Agulha Revista de Cultura
Número 263 | dezembro de 2025
Artista convidada: Brianda Zareth Huitrón (México, 1990)
Editores:
Floriano Martins | floriano.agulha@gmail.com
Elys Regina Zils | elysre@gmail.com
ARC Edições © 2025
∞ contatos
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http://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/
FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
ELYS REGINA ZILS | elysre@gmail.com







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