Mostrando-se
um artista brilhante desde a juventude, foi na época o expositor mais jovem da Royal
Academy, recebendo prêmios por seus desenhos aos 17 anos, além de receber elogios
de artistas célebres como Augustus John (1878-1961), George Frederic Watts (1817-1904)
e John Singer Sargent (1856-1925). Ao longo de sua carreira, editou e publicou livros
ilustrados, em trabalhos que tinham similaridade com ilustradores como Aubrey Beardsley
(1872-1898) ou o irlandês Herry Clarke (1889-1931).
A
evolução do seu trabalho artístico tem parentesco com o Simbolismo, o decadentismo,
o pré-rafaelismo, a Art Nouveau, e outros movimentos populares no fin-de-siècle
que se opunham ao racionalismo e exaltavam a emoção, a intuição, a espiritualidade,
a natureza, o mito e, formalmente, se apoiavam em formas orgânicas e linhas sinuosas,
inspiradas sobretudo na natureza, ou que apelavam para uma estética do excesso e
da morbidez, em geral aludindo à ideia de que a sociedade estava em declínio moral.
Chegou
a ter algum reconhecimento, com jornais ingleses chamando-o de “gênio” e “melhor
desenhista da Inglaterra”, recebeu ajuda de patronos e chegou a editar algumas revistas
em parceria com outros autores. No contexto da Primeira Guerra Mundial trabalhou
como artista de guerra, explorando técnicas realistas com grande habilidade, e mais
tarde experimentou diversos estilos, como figuras emergentes em rabiscos altamente
expressivos, técnica pela qual sempre mostrou sua sensibilidade para imagens grotescas
e demoníacas, sempre ligadas à espiritualidade e ao sobrenatural.
Daí
temos dois fatos importantes: Spare praticou já na década de 1910 o automatismo
no desenho e na escrita de forma sistemática e deliberada, apropriadamente nomeada
e mesmo teorizada pelo artista londrino, e isso antes da existência do grupo parisiense
liderado por André Breton (1896-1966). O outro fato é que Spare era um ocultista
ou magista, tendo criado um sistema mágico original e totalmente perpassado pela
sua prática artística.
De
modo muito simplificado podemos considerar que Spare acreditava poder operar atos
mágicos através da conexão com o próprio inconsciente, realizado através de um êxtase
ritual, metodicamente atingido, com a finalidade de implantar dentro de si um desejo
sem a interferência da atividade consciente. Daí o aperfeiçoamento e estilização
da técnica do “sigilo”, que é como um selo desenhado para fins mágicos, descrito
por Spare como “monogramas de pensamento”, e que se tornaram muito populares no
meio ocultista com a Magia do Caos, prática mágica desenvolvida nos anos de 1970
que reivindica o legado de Spare.
Os
sigilos de Spare são pequenos desenhos, que podem ou não ser o resultado da combinação
de letras ou outros símbolos, que são em si mesmos um trabalho artístico. Desvinculando
a prática mágica dos rituais tradicionais nos quais ela estava atada, Spare propõe
uma magia que é a obra artística de uma produção individualizada, na qual seria
possível a cada sujeito constituir o seu próprio sistema. Esse modo de conceber
a magia era próprio de correntes intelectuais da virada do século, desagregadoras
e iconoclastas por excelência, sendo Spare um leitor de Nietzsche, que foi talvez
o maior representante dessa postura na filosofia.
Assim,
ao trabalhar com a afirmação da vontade como potência, Spare crê que os pensamentos
são criadores da realidade (o que é, afinal de contas, a consequência lógica do
pensamento mágico), e propõe que as crenças deveriam ser usadas como ferramentas,
de modo a criar diferentes realidades pelo uso de diferentes sistemas de crenças.
E de um modo muito nietzschiano, convida o adepto a se desfazer dos seus valores
morais limitantes, tais como Deus, religião, fé, moral, etc. O que não significa,
naturalmente, atropelar a vontade alheia: trata-se de uma perspectiva amoral, e
não imoral.
Em
sua cosmovisão havia um princípio sexual primordial que permeava toda a criação,
e era a partir da conexão com esse princípio que a magia se tornaria possível, pois
a magia é criação, é um ato que dá nascimento às formas. Por falar em inconsciente
(ou “subconsciente”, que era a palavra que ele utilizava) e nesse princípio sexual,
algo que pode ser entendido como uma espécie de “libido cósmica”, Spare acusou ninguém
menos que Sigmund Freud (1856-1939) de tê-lo plagiado, pois viu na psicanálise uma
espécie de versão laicizada das suas próprias descobertas, pelo menos no que diz
respeito a estes aspectos da teoria.
A
discussão sobre o inconsciente, muito intensa naquele momento histórico, já vinha
se desenvolvendo ao longo do século XIX, e foi fortemente alimentada tanto nos meios
clínicos quanto espiritualistas por casos como o dos loucos (então chamados de “alienados”),
da escrita espírita mediúnica, popularizada especialmente pelo espiritismo de Allan
Kardec (1804-1869), e também por especulações de caráter antropológico bastante
enviesadas sobre os povos então chamados “primitivos”, todos do mais alto interesse
de psiquiatras, ocultistas e artistas, principalmente os surrealistas.
Ao
mesmo tempo, o inconsciente não era para Spare apenas a reserva das memórias, desejos
e traumas individuais, mas era uma fonte do conhecimento de todo o universo, já
que não havia separação, senão em forma de ilusão, entre o Eu e o todo, tal como
se concebe no budismo. A prática do automatismo passa a ser, assim, seguindo a tradição
oracular da qual Spare se filia, um meio de comunicação com o cosmos, uma psicografia
de seres espirituais ou comunicação com forças impessoais, acessíveis por meio do
êxtase.
Dessa
forma Spare fez uso deliberado da escrita e do desenho automático, em situações
que ele descreve como um estado de transe, ou então em que ele estaria possuído
pelo espírito de outros artistas desencarnados. Diversos desses desenhos foram produzidos
a partir de rabiscos muito soltos em linhas sinuosas e errantes, formando quase
sempre a figura de entidades espirituais ou personagens grotescos, comprovadamente
desde pelo menos a década de 1910 e, segundo o próprio artista, já na década anterior.
Em 1925 chegou a compor uma série inteira de desenhos dessa natureza, batizada por
ele como Um Livro de Desenhos Automáticos.
O
artista descreve esse processo como ideias que “são o resultado de experiências
internas” sem que se saiba que forma “devem assumir, e completados sem direção consciente”.
Relatava passar horas desenhando num estado de semissono, para despertar diante
de sua mesa repleta de trabalhos visuais ou literários, que ele classificava sem
modéstia como o “mais belo trabalho”.
Comparações
com os surrealistas são de fato inevitáveis, assim como a indagação a respeito da
possível influência que Spare poderia ter exercido em André Breton e o grupo parisiense
se a sua obra tivesse sido mais conhecida, embora ele tenha sido elogiado pela surrealista
Ithell Colquhoun (1906-1988), já que esta era britânica, tendo assim a oportunidade
de conhecê-lo.
Caso
curioso foi a exposição surrealista de 1936 em Londres na qual certos autores ingleses
como Lewis Carroll (1832-1898) e William Blake (1757-1827) foram reconhecidos por
suas qualidades surrealistas, mas Spare foi completamente ignorado. O artista, por
sua vez, era avesso ao Surrealismo, assim como à arte moderna de maneira geral.
Referiu-se a si mesmo como surrealista uma vez numa carta, mas de forma irônica,
e usou a palavra “surrealista” para batizar cartões mágicos para previsão de corrida
de cavalos, talvez para aumentar o seu apelo comercial.
Spare
foi visto por alguns como um precursor do Surrealismo, mas também do Expressionismo
Abstrato e até da Pop Art, em função de uma série de retratos de estrelas de cinema
que foi, de fato, pioneira na época em sua proposta. Um tanto deslocado no tempo,
situado no interregno entre o Simbolismo e o Surrealismo, Spare é uma figura de
difícil classificação, tanto em termos artísticos quanto mágicos, em função da sua
intensa marca pessoal.
Seguindo
por esta linha, Spare buscava fazer mais do que arte, pelo menos pela acepção moderna
da palavra: o interesse de Spare era produzir arte, magia e conhecimento; tal como
um xamã, operando em estado de transe, pretendia conectar-se à natureza, comunicar-se
com seres de outras dimensões, realizar transformações no mundo a partir dos elos
invisíveis que ligam todas as coisas numa imensa rede, cuja fonte de poder é somente
acessível ao iniciado. Uma arte pré-moderna, e mesmo pré-histórica: uma criação
que vem desde antes da separação entre arte e religião, ou entre religião e ciência,
e os ritos sintetizavam os mais diversos aspectos da cultura de um povo.
Ao
mesmo tempo, porém, ele foi capaz de resgatar tais práticas ancestrais de forma
predominantemente intuitiva e transformá-las em algo único, agora numa concepção
radicalmente moderna, remetendo mesmo ao mito romântico do “gênio” como criador
por excelência, dote que compartilhava com a natureza, e se apresentava assim como
um velho mago, inspirado por pulsões dionisíacas e incompreendido por seus contemporâneos.
Apesar
do reconhecimento recebido em vida, sempre restrito ao seu país, os seus últimos
anos foram de pobreza e baixa visibilidade. Durante a Segunda Guerra Mundial teve
seu ateliê bombardeado em uma Blitzkrieg alemã, ocasião na qual ele perdeu alguma
quantidade de trabalhos, além de ter se ferido.
Após
a sua morte, que ocorreu em 1956, sua obra passou, lamentavelmente, por um período
de esquecimento que durou aproximadamente meio século. É já próximo do século XXI
que começaram a surgir estudos sobre os seus desenhos e pinturas no contexto da
História da Arte. Nesse meio tempo sua memória ainda foi preservada no meio ocultista,
o que provavelmente garantiu a permanência contínua de um público de admiradores
do seu trabalho.
Alguns
dos principais autores que escreveram sobre Spare nessa sua fase de “redescoberta”,
foram Dr. William Wallace, Robert Ansell, Hannen Swaffer, o casal Kenneth e Steffi
Grant (que foram amigos do artista) e Phil Baker, o seu biógrafo. No Brasil o primeiro
trabalho acadêmico sobre ele foi a minha dissertação de mestrado, intitulada “Austin
Osman Spare: Arte, Magia e Estados Não Ordinários de Consciência”, defendida em
2019.
No
mesmo ano houve pela primeira vez uma publicação primorosa de toda a obra escrita
do artista no Brasil, muito rica em imagens e com textos de diversos autores, entre
os quais eu mesmo, além de nomes célebres como Kenneth Grant e o quadrinista Alan
Moore. A edição, organizada por Rogério Bettoni e publicada pela editora Oficina
Palimpsestus, chama-se “Arte e Magia do Caos: Obra reunida de Austin Osman Spare”.
Referências
ANSELL, Robert (org.). Borough Satyr. Londres: Fulgur Press,
2005.
BAKER, Phil. Austin Osman Spare: The Life and Legend of
London’s Lost Artist. Londres:
Strange Attractor Press, 2012.
FIER, Lucas. Austin Osman Spare: Arte,
Magia e Estados Não Ordinários de Consciência. Dissertação de mestrado em Arte.
Universidade Estadual do Paraná, 2021. Disponível em <https://www.academia.edu/92247403/Austin_Osman_Spare_Arte_Magia_e_Estados_N%C3%A3o_Ordin%C3%A1rios_de_Consci%C3%AAncia>.
Acessado em 01 nov. 2022.
GRANT, Kenneth; GRANT, Steffi. Zos Speaks! Encounters With
Austin Osman Spare. Gloucester: Holmes Pub Group Llc, 1998.
SPARE, Austin Osman. The Book of Pleasure (Self-love) –
The Psycology of Ecstasy. Lexington:
Theophania Publishing, 2019.
SPARE, Austin Osman. Arte e Magia do
Caos: Obra reunida de Austin Osman Spare. edição organizada por Rogério Bettoni.
1ª Edição, Belo Horizonte: Palimpsestus, 2021.
LUCAS FIER (Brasil, 1989). Surrealista contemporáneo, su obra está impregnada de temas como el erotismo, lo sagrado y la herejía, desafiando los límites entre lo sagrado y lo profano, la realidad y el sueño, la objetividad y la subjetividad. Explorando elementos simbólicos con gran detalle y una técnica orientada al realismo, fusiona estados oníricos, psicodélicos y fantásticos para exaltar la materialidad de los cuerpos, la opulencia de la vida y la fascinación por el misterio. Es doctor en Historia por la UFPR, máster en Artes por la Facultad de Artes de Paraná (Unespar) (2021) y licenciado en Dibujo por la Escuela de Música y Bellas Artes de Paraná (Unespar) (2012). En sus obras utiliza óleo, grafito, bolígrafo, tinta china, acuarela y acrílico.
BRIANDA ZARETH HUITRÓN (México, 1990). Originaria de Temascalcingo de José María Velasco, México. Artista plástica y pintora surrealista. Realizó sus estudios de pintura en la Academia de San Carlos en Ciudad de México. Sus múltiples facetas artísticas y personalidad curiosa la llevaron a descubrir el surrealismo, corriente en la que encontraría una manera de comunicarse con el mundo. Plasma interpretaciones poéticas donde lo cotidiano es transformado en una realidad fantástica y onírica. Pinturas mágicas que señalan los deseos de la vida por salir en un cuadro. Ha expuesto individualmente y de manera colectiva en México y en el extranjero. Exposiciones individuales: Museo Leonora Carrington de Xilitla, ENCUENTROS ONÍRICOS en el año 2025. Museo de la Mujer, REVELACIONES ONÍRICAS, en el año 2022. PAISAJES ONÍRICOS para el Festival Temascalcingo Honra a Velasco, en el Año 2021. VENTANA A MUNDOS ONÍRICOS, en el Centro Cultural Futurama, Ciudad de México, en el año 2020. Exposiciones Colectivas Col-art en la Galería Oscar Román año 2025 Muestra pictórica EL OFICIO DEL PINTOR, de la Academia de San Carlos, Año 2019. DIMENSIONS, Festival Wave Gotik Treffen, celebrado en Leipzig, Alemania, en el año 2018. Ha participado en la Cátedra por los 100 años del surrealismo, en la Facultad de Filosofía y Letras de la UNAM, impartiendo conferencia sobre surrealismo femenino. Recientemente su obra ha sido publicada en el libro Mujeres Mexicanas en el Arte, de la editorial Agueda y en THE ROOM SURREALIST MAGAZINE, revista de surrealismo internacional. Brianda Zareth Huitrón es la artista invitada de esta edición de Agulha Revista de Cultura.
Agulha Revista de Cultura
Número 263 | dezembro de 2025
Artista convidada: Brianda Zareth Huitrón (México, 1990)
Editores:
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Elys Regina Zils | elysre@gmail.com
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