Introdução: do pensamento à forma, da ideologia à imagem
De Raimundo Lúlio (1232-1315), filósofo e lógico de Maiorca,
ficou muito conhecido pelo seu empenho sistemático
– estruturado
em pontos de uma argumentação filosófica
extremamente sutil – na conversão de judeus e árabes, em
uma época em que tal procedimento ainda não ocorria –
ao menos, não era a maneira mais comum nesse momento da Idade Média, embora tais
técnicas fossem eventualmente empregadas em vítimas
consideradas às margens da Cristandade, como as mulheres declaradas
bruxas ou os heréticos assumidos – pelas vias mais brutais de convencimento
como a roda, a polé, o garrote e a fogueira. Desnecessário dizer que
o próprio Lúlio era uma expressão
de seu tempo e de seu lugar: a Península Ibérica, nesse momento
da Idade Média constituía um espaço de privilegiada tolerância
entre distintas crenças, cristã, árabe e judaica. Tratava-se não apenas da tolerância da outridade, em termos de exclusão quase completa – como a
internação em guetos, realidade cotidiana dos judeus por toda a Europa até
praticamente
o século XIX – ou de emprego de uma mão de obra eventualmente
escrava, mas de uma convivência que não excluía até mesmo o espaço das trocas culturais, o que
significava que, ao menos em parte, todas as três crenças possuíam
uma valência semelhante. Como afirma Aline Dias da Silveira:
“a Península Ibérica é o melhor espaço histórico para estudar
a convivência, trocas culturais, relações
de tolerância e intolerância e heranças culturais entre as religiões
monoteístas
dentro da Europa” (SILVEIRA, 2009, p. 404); a mesma autora acrescenta, adiante:
Um exemplo de tema abordado nestes trabalhos é o trânsito de intelectuais
pertencentes às
três religiões na Idade Média
e seu trabalho conjunto nas traduções (BORGOLTE, 2006, p. 562-584). Séculos antes da obra
de Aristóteles ser discutida na Paris do século
XIII, muçulmanos, cristãos e judeus já trabalhavam em conjunto na tradução e interpretação de textos aristotélicos
na escola de tradução de Bagdá (séculos VII-IX d. C.). A mesma colaboração é documentada
na escola de tradução
de Toledo (século XII-XIII), a qual traduziu
os trabalhos do árabe para o latim. (SILVEIRA, 2009, 9. 405).
Mas tal postura não sobreviveria:
a concentração de poder crescente dos reis europeus, notadamente na conflituosa
Península Ibérica – ponto estratégico, uma vez que
foi o local de fixação dos árabes quando das primeiras invasões
–,
agravada pela necessidade de concentração de capital para aventuras como as grandes
navegações, liquidaria qualquer projeto de convivência ou tolerância.
De tal forma que, como escreveu Anita Novinsky, grupos políticos responsáveis pela
repressão do pensamento emulavam, já no século XVI, as estruturas
de funcionamento da Gestapo:
“As funções dos Familiares
do Santo Ofício eram semelhantes à do Comissário: colher informações,
investigar, confiscar, prender. Os Familiares constituíam uma rede semelhante à
da
Gestapo durante a Alemanha nazista. Sabemos que na Espanha, no começo do século XVI, os Familiares
chegaram a constituir uma irmandade, conhecida pelo nome de Congregação de São Pedro
Mártir, que seguia o modelo das associações fundadas pela inquisição medieval depois
do assassinato do inquisidor São Pedro Mártir, na Itália, em 1252.” (NOVINSKY, 1984,
p. 23).
Apesar de sua sofisticação,
elegância
e complexidade, o pensamento de Lúlio não deixava de atender, de
forma indireta é bem verdade, à agenda obscurantista
que transformaria a Península Ibérica já nos alvores da modernidade; pois a tarefa
dos mecanismos lulianos era convencer o diferente, estancar a necessidade
por trocas culturas, saciar a necessidade de alteridade com uma complicada nova
arte retórica, que não se distanciasse muito da esfera cristã
pré-definida. De certa forma, a posição de Lúlio em
relação à Cultura de sua época é
semelhante
àquela
do Beato de Liébana (701-798), que pretendia combater a heresia
do arianismo e, depois, pelo adocionismo que pretendia manter uma convivência
pacífica
com os invasores árabes: “O Beato estava muito preocupado com aqueles membros da
Igreja que não seguiam a sua ortodoxia cristã, a quem ele chama de falsos irmãos
- monges, sacerdotes, mas, sobretudo, bispos.” (PARMEGIANI, 2009, p. 114). Seu comentário
ao Apocalipse, obra das mais lidas no período, unia uma argumentação monacal complexa à beleza única do trabalho de iluminadores do livro,
que marcaria praticamente todo o maravilhoso medieval e, mesmo, o imaginário Ocidental
no que tange à aceitação e compreensão do Livro do Apocalipse,
de João.
Evidentemente, o convencimento,
nessas condições, tinha de ocorrer de forma absoluta e justamente pela demonstração,
ao mesmo tempo clara e sintética, de um conceito tão
absolutamente complexo e indomável quanto a Verdade e a Divindade. O medievalista
Paolo Lucentini indica, de forma bastante clara, como a teologia medieval adquiriu
um método axiomático, aparentemente derivado da geometria euclideana,
[1] na qual o pensamento teológico surge como
uma espécie de afirmação de uma realidade diretamente verificável
e intuitiva; em um tratado como O livro dos vinte e quatro filósofos, da segunda metade
do século XII, teríamos um exemplo desse texto que se
estrutura como uma argumentação regida pela apresentação sintética de verdades
que se pretendiam paradoxalmente simples/perceptíveis e complexas/divinas. Paolo
Lucentini expressa bem essa questão paradoxal no trecho abaixo:
[Obras como O livro dos
vinte e quatro filósofos] elabora
um pensamento teológico construído formalmente sobre a enunciação de verdades intuitivas,
que parecem surgir de uma espécie de emanação conceitual. (…) O quadro do conjunto
constitui a proposta de um saber teológico policéntrico e ao mesmo tempo unitário que, através
de verdades manifestas e universais – objeto de conhecimento noético – e sua explicação
em termos analíticos e discursivos, conduz, através
de um caminho de impulsos intuitivos e rigor racional, até a
luz incognoscível da única e infinita natureza divina. (LUCENTINI, 2002, p. 11).
Assim, seria dentro desse
espírito que Raimundo Lúlio proporia uma máquina de ilustração do pensamento:
o emprego de uma espécie de roda de papel, encaixada em um centro determinada,
cuja função seria multiplicar as possibilidades combinatórias de dado elemento,
agregando essa potencialidade do múltiplo ao arcabouço de sua filosofia demonstrativa
das virtudes superiores do cristianismo. [2]
Trata-se de um mecanismo, uma máquina de leitura apelidada volvelle, cuja
invenção remonta ao ano 1000 e parece originário do Oriente, tendo se constituído
como uma das muitas formas pelas quais o Ocidente passou a empregar os algarismos
numéricos arábicos, notadamente através de questões em
torno da criptografia de documentos com finalidades estratégicas – hipótese defendida,
por exemplo, por David Kahn (cf. KAHN, 1980, p. 122-127). Na Europa, o primeiro
volvelle aparece nas obras do monge beneditino Matthew Paris, em uma narrativa
que adquire quase o tom de anedota (replicada em diversos pontos da Internet [3]): para consultar gráficos e tabelas circulares
(calendários e demais obras de natureza astrológica) nos tomos
de sua abadia, Paris necessitava girar os pesados e pouco
práticos volumes. Pensando nesse transtorno, Paris idealizou um sistema semelhante
ao que vemos na página anterior (no caso, um volvelle da revisão
de Gemma Frisius para a Cosmographia (1524), de Apianus). Assim,
no Renascimento, a máquina de papel que Lúlio colocaria como mais
um recurso de sua Arte epistemológica teria, a partir
de Apianus, uma larga utilização em tratados de astronomia, bem como forma de cifrar
mensagens, seja como gerador ou decodificador de códigos cifrados.
Se muitos encaram o volvelle como um mecanismo analógico cujo funcionamento
possui semelhanças com aquele de um computador do século XX, essas formas
de utilização iniciais (científicas e militares) não deixam de ser exemplares.
Através do exemplo dos
volvelles, vemos o padrão estrutural de uma abordagem da escritura através de um processo
de abandono e/ou superação da própria escritura.
Poder-se-ia indicar, nesse sentido, a existência de algumas tendências articuladas
que estruturariam tal processo: em primeiro lugar a expansão, que faria o texto,
construído a partir de um ou mais mecanismos, aproximar-se de um processo concreto
(o monge Matthew Paris, girando seus grossos volumes para leitura de tabelas astrológicas) sem deixar,
por outro lado, de ser um texto, de possuir elementos de natureza textual; a interação, que permitiria
um grau maior de participação do leitor na fruição do texto, uma vez que este, em
teoria, poderia ser manipulado, reestruturado e mesmo alterado pelo leitor, como
em uma espécie de planejamento de um instinto e de uma prática
que todos os leitores possuem; a transmutação, pela qual o texto (e o que
ele representa, seja conceito ou narrativa) abriria mão de parte de suas prerrogativas
(até mesmo a de fazer sentido) para se lançar em novas
possibilidades. Evidentemente, confiar apenas em mecanismos, gadgets possíveis de se criar no elemento textual ao mesmo tempo que tenta
a ultrapassagem desse elemento, o eleva à máxima condição. Pois a
leitura (e isso percebemos no primeiro elemento estrutural apontado, a expansão)
sempre pressupôs essas possibilidades em última instância
lúdicas
em sua própria estrutura: iniciativa do leitor ou do autor,
a possibilidade de embaralhar a linearidade do texto está em sua própria natureza ao
mesmo tempo sintagmática e paradigmática, que permite múltiplas
combinações
a partir de um restritíssimo número
de opções
e regras de combinação. Um testemunho histórico que comprova essa possibilidade
de desconstrução estrutural do texto, dada como pós-moderna e identificada
com exemplos que não se limitam aos livros móveis infantis, mas alcança
tramas sofisticadas como La Rayuela, de Julio Cortázar, já
ocorria em um passado imediato tão positivista quanto as últimas décadas do século XIX. Comentando
certo hábito, atribuído às leitoras da época, de saltar, zapear entre diversas
tramas folhetinescas, [5] destituindo
destas sua linearidade, o escritor Raul Pompéia declara o seguinte:
Lia então jornais. Ela sabia ler: um luxo de escola pública
que o zelo paterno cuidara em proporcionar-lhe muito cedo. Lia muito jornais, sem
escolha: do dia ou da véspera, da véspera
ou do ano passado, conforme vinham, embrulhando encomendas de remendo à indústria
da oficina. Lia romances de rodapé, da melhor maneira de serem lidos, baralhadamente,
ora de um jornal, ora de outro, encartando as aventuras da Gazeta nas do País, interessando-se
muito por uma situação dramática
que começava pela Gazeta da Tarde em Boisgobey e
ia desprender-se pela Cidade do Rio, em Montepin. (…) Com uma tal facilidade de
critério, não custa compreender como a donzelinha levava a
existência, lendo também as horas e os dias sem atenção nem coerência,
como se fosse a vida um longo rodapé de jornal, abstruso
e confundido.
(POMPÉIA, 1981, p. 238)
A observação de Pompéia é
notável
por perceber uma tendência dos leitores já em mesclar, confundir, refundir,
aproximar a leitura da própria existência individual do leitor. É bem verdade que, como muitos críticos, poder-se-ia
afirmar que todas as narrativas literárias atuam como uma estrutura que oferece
ao leitor uma forma de leitura, guiando-o nesse processo, mas essa forma, Pompéia percebeu de forma
muito clara, pode ser rejeitada em favor de outras, não previstas, descortinando
mesmo o mecanismo de funcionamento estrutural (no caso descrito por Raul Pompéia, o processo de
identificação de personagens sempre análogos, que levaria naturalmente ao intercâmbio entre estes). O processo seria associado (e, geralmente, isolado) ao romance
mais experimental contemporâneo, como demonstra o trecho abaixo, de Donald
B. Rice em artigo a respeito de La Prise de Constantinople, de Jean Ricardou:
Contudo, a percepção pioneira
revelada no comentário surge uma crítica tingida de misoginia que expressa a visão
de Pompéia, dotada de ironia cruel: seria uma forma errada
de ler; a concepção
preconceituosa, contudo, não deixa de alertar para o fascínio destrutivo, trivializador,
que é a leitura centrada apenas em um processo lúdico
de montagem e destruição. Talvez, nesse sentido, seja necessário termos em conta
a velha desconfiança socrática diante do texto escrito, que as possibilidades
de manipulação/estruturação mencionadas não deixam de trazer à
memória:
[6]
(…) seu amor paternal pela sua invenção [para com
a escrita] foi responsável pela atribuição de qualidades que ela não possui. Pois
com sua descoberta, inventou-se o esquecimento na alma de todos que aprendem, uma
vez que eles deverão confiar em caracteres escritos e não em sua própria
capacidade de memorização. Sua descoberta não é um auxiliar da memória,
mas da reminiscência, e o que é oferecido com ela
aos seus discípulos
não é a
verdade, mas apenas um simulacro de verdade. Eles ouvirão muitas coisas e não aprenderão
nada; a onisciência
parecerá um de seus atributos mas
nada de fato conhecerão; serão uma companhia fastidiosa, tendo sempre de mostrar
uma sabedoria sem realidade. (PLATO, 2008, p. 122-123).
Assim, temos algo os livros
móveis desde os seus primórdios e mesmo as
experiências mais radicais da literatura contemporânea
(do nouveau roman aos beats e destes
à New Wave em ficção
científica,
universo no qual se destaca, sem dúvidas, uma obra como Atrocity
Exhibition,
de J. G. Ballard) uma recuperação da antiga desconfiança
socrática
em relação à escrita, vista como “inferior à
fala”
uma vez que, como a pintura, “(…) não oferece respostas para qualquer questão, sendo
apenas a aparência enganadora de uma criatura viva. Não possui poder
de adaptação, pois emprega sempre as mesmas palavras em qualquer caso.” (JOWETT,
2008, p. 15). Por outro lado, em todas essas experiências e tentativas,
ainda resta a base lúdica que a literatura proporciona como elemento de sua própria constituição,
descoberta pelas leitoras de folhetins e por Raul Pompéia e que dispensa
qualquer aparato. Em última instância, a tentativa de empregar,
de uma forma ou de outra, uma ampliação da perspectiva da leitura é
fazer
a leitura reencontrar sua intuição primordial, ampliá-la e generalizá-la, o que talvez não fosse a intenção de qualquer forma de
experimentação da literatura e do texto. Da mesma forma, a antiga funcionalidade
dos volvelles para Lúlio, convencer e converter, bem como a eventual vacuidade
da empreitada, apenas a adornar uma representação trivial mas decorada de barroquismo
não deixa de ser um fantasma nas tentativas de ultrapassagem do texto conceitual
ou narrativo, uma vez que demonstram como uma estilização na forma ou um aparato
integrado não mudam aspectos como a visão de mundo e o objetivo, ao final, da obra
em si. Essas contradições acompanham toda e qualquer literatura que se pretenda
experimental e é em face dela que autores como Ricardou ou Ballard
buscam seus atalhos e brechas.
O cadavre-exquis
O escritor Miguel Murugarren e o ilustrador Javiwer
Sáez Castán lançaram em 2003, pela
Fondo de Cultura Económica do México, um curioso volume
intitulado Animalário Universal del Professor
Revillod.
Trata-se de um bestiário que se poderia qualificar generativo, no qual temos
diversas pranchas, divididas cada uma em três partes, representando
quando unidas um animal tradicional (por exemplo, o elefante) ao exótico (o coelacanto);
no verso das pranchas, vemos uma breve descrição do bicho representado. As ilustrações
são
imaginativas, mas há um cuidadoso gesto de evitar a entrada de uma fauna mítica
no Animalário, como aquela recenseada por Jorge Luis Borges em
seu Manual de zoologia fantástica.
Tal estratégia
tem um motivo: cada prancha é simetricamente divida em
três partes que pode se combinar, gerando novas feras
com nome e descrição definidos (a mistura, por exemplo, de “pulga”, “tatu” e “rinoceronte” gera uma criatura
chamada “pultaronte”, descrita como “Parasita glutão de vida subterrânea
das florestas remotas”). Existe a possibilidade de se gerar 4096 feras diferentes
– como alardeia, em divertido estilo de almanaque, uma das páginas de rosto do livro;
por outro lado, uma breve parte escrita cria o personagem do professor Revillod
e delega a autoria do livreto a ele (a autoria real surge apenas no final da obra,
estruturada aos moldes de ficha catalográfica. [7] É evidente que a obra convoca o leitor
a produzir, pelo gesto combinatório, as criaturas e que
esse gesto lúdico inauguraria um curioso bestiário
“instantâneo”,
construído ao sabor das escolhas arbitrárias do leitor:
Mais do que um bestiário à moda
antiga, um repositório de formas, de mitos passados, de histórias
fechadas, o que se provoca aqui é
a potencialização do contributo do leitor
para o surgimento de ‘4066
feras diferentes’ (um pouco como o livro
de Quenau Cent mille milliard de poèmes, com os seus dez sonetos
potenciados pelos cruzamentos permitidos pelas tiras). Se pensarmos em Borges, será
menos aparentado com o seu Manual de Zoología Fantástica (…) do que com aquela taxonomia prevista no Emporio celestial de conocimientos benévolos, em que “los animales
se dividen en (a) pertenecientes al Emperador, (b) embalsamados, (c) amaestrados,
(d) lechones, (e) sirenas, (f) fabulosos, (g) perros sueltos, (h) incluidos en esta
clasificación, (i) que se agitan como locos, (j) innumerables, (k) dibujados con
un pincel finísimo de pelo de camello, (1) etcétera, (m) que acaban de romper el
jarrón, (n) que de lejos parecen moscas.” (em “El idioma analítico
de John Wilkins”). Da ordem restrita e zoo-lógica entramos num
campo de permutação livre e ludo-lógica. (MOURA, 2011).
Contudo, a permutação
não
é totalmente
livre: não podemos combinar, por exemplo, quatro bichos ou inverter a ordem na qual
surgem ou criar a partir de bichos que não estão inventariados
no livreto. Trata-se, portanto, mais de uma ilusão de permutação
livre, submetida, por outro lado, às regras inventadas pelo
autor e aos limites do próprio formato físico do volume.
Os autores do Animalário, aliás, sublinhas a convencionalidade
e o rigor desse acordo, ao propor, no final do livro (talvez tendo em mente um público
leitor infantil) ao leitor, em forma de questionário,
combinações
que se destacariam das formas possíveis por um motivo ou outro. Portanto, o livro,
que se baseia em conhecido jogo infantil de combinação, parte tanto da criação de
cada leitor (e do conjunto possível de leitores, ampliando o escopo da produção
de sentidos) como das estritas regras prescritas pelo autor, da possibilidade lúdica
de combinar formas (MOURA, 2011) afirma que o livreto instaura uma espécie
de máquina
de significados) quanto da limitação física do meio, que apenas
torna o exercício do jogo mais excitante. De qualquer forma, essas contradições
não
são
ignoradas por Murugarren e Castán, da mesma forma que não o foram pelos surrealistas,
que empregaram uma forma similar de composição interativa, tendo em vista certa
possibilidade de intercâmbio entre o papel de leitor e de criador, entre a leitura/criação
individual e outra, anterior ao surgimento da escrita, coletiva. Batizaram a tal
jogo cadavre exquis, segundo André
Masson,
a partir de uma sugestão de André Breton. O surgimento do processo – empregado pelos
surrealistas, nas palavras de Breton, como “um meio infalível de dar uma viagem
de férias para a mente crítica e de liberar a atividade
metafórica da mente” (cf. MATTHEWS, 1986, p. 122 apud PIANOWSKI,
2011) – ocorreu em uma das muitas reuniões nas quais os surrealistas se punham a
criar ludicamente e aparece bem descrito por Simone Collinet, esposa à
época de Breton:
Evidentemente, como muitos
elementos da história do surrealismo, tal origem parece corresponder
a uma figuração ficcional mais que à realidade factual, sendo
mais verossímil imaginar que o nome foi proposto por Breton, logo após
a violenta polêmica
em torno da morte de Anatole France, [8]
autor visto como a quintessência da poesia francesa
e de certa atitude dos literatos daquele país, por isso mesmo alvo da mais impiedosa
crítica da parte de Breton e dos surrealistas no panfleto Un cadavre, surgido
no mês da morte de France, em outubro de 1924. [9] De qualquer forma, é
necessário
reter, da experiência do cadavre exquis surrealista,
alguns de seus traços estruturantes – uma vez que não se trata de elementos passíveis
de uma descrição hierárquica rigorosa, mas analogias
inesperadas que ressurgem, com roupagem diferenciada, em novas articulações da literatura
experimental desde então. Nesse sentido, temos, em primeiro lugar, essa curiosa
relação entre o lúdico, o infantil, o livre, o puramente casual e indeterminado
e o estritamente, rigorosamente, planejado; diante do jogo infantil de adivinhação
e sua frouxa estrutura de regras, os surrealistas criaram um complexo sistema de
permutações que, no obstante manter certa noção de liberdade de composição e criação
coletiva, possui regras bem mais restritivas, necessárias para que a construção
quimérica ainda possuísse algum sentido e não fosse um
puro exercício aleatório de junção de palavras.
Trata-se, em todo caso, da tensão da qual os surrealistas não fugiam; segundo Sorane
Alexandrian, a questão principal em torno dos jogos surrealistas era “(…) do ideal
de grupo, de se colocar dentro do gênio comum, mas sem que ninguém abdicasse de sua
individualidade” (ALEXANDRIAN, 1969, p. 50).
As tensões entre forma e
conteúdo, regra e liberdade, que o cadavre exquis
ilustra tão
bem, não estavam restritas aos surrealistas ou surgiram com essa tendência
específica
das vanguardas do início do século XX. As abstrações da
Ciência e da Filosofia, que configuram jogos nos quais
se prefigura o desvelamento da Natureza e do Ser/Consciência inauguraram,
ao final do Renascimento um sistema de permutações e trocas coletivas, um jogo e
uma linguagem universal: “O simbolismo lógico vale provavelmente
para todas as línguas flexionais, porém ganhou esta vastidão pelo
preço da perda do significado. Exatamente a mesma afirmativa pode ser feita em relação
à ciência. Quanto mais
exata, isto é, abstrata, ela se torna, tanto maior o seu campo
de validade e tanto menor o seu significado. (…) A língua
universal artificial válida para todo o Ocidente será, quando alcançada, tautológica e isenta de
significado.” (FLUSSER, 2004, p. 69). Por outro lado, essas tendências abstratas
que trabalham a oposição entre fluxos naturais e espontâneos e um trabalho sistemático
de construção chegou ao campo da poesia e da narrativa na modernidade; a abstração
transformava a poesia em objeto rítmico percussivo, mas também em palco performático
e tela para a pintura tipográfica: “Uma organização
alternativa da linguagem poética liberada enxergava
a própria página
como espaço performático, não
apenas como uma passagem provisória para a deliberação do
texto. (…) Depois de Mallarmé, os poetas não apenas escrevem
palavras mas transformam espaços.” (RASULA; McCAFFERY, 1998, p. xii-xiii). Contudo,
apesar de todos os esforços advindos de campos múltiplos (a Ciência, a arte de
vanguarda, a filosofia) não há uma solução definitiva
para o problema babélico que se afigura no jogo e na linguagem, no objeto
estético e na fruição lúdica, entre a permanência e o momentâneo.
Todas essas oposições, que são sumarizadas pela própria estrutura da
linguagem, não se reduziram à tautologia universal temida por Villém Flusser. A esperança ambiciosa dessa solução absoluta acaba sempre
atrasada pelo prazer do momento oferecida pelo azar do jogo; e esse prazer, aparentemente
pequeno e restrito aos objetos pequenos e perecíveis é
que
nos salva.
NOTAS
1. Lucentini sublinha que, no século XII, o
tratado Elementos de geometria, de Euclides, foi traduzido por Adelardo
de Bath, Ermanno de Carintia e Gerardo de Cremona (cf. LUCENTINI, 2002, p. 11,
nota 4).
2. Entre as virtudes da Arte, como era denominada a exposição luliana,
teríamos, segundo Ruiz
Simon e Anthony Bonner, características como
invenção, demonstração, compendiosidade e generalidade. Na penúltima é que estaria concentrada a potencialidade combinatória que permitira a geração ilimitada
de argumentos a partir de um conjunto limitado de princípios, a base conceitual de um
mecanismo como o volvelle (cf.
BONNER, p. 17, 2007).
3. Como no site do designer de livros pop-up Robert Sabuda (cf. SABUDA, 2011), de onde retiramos
algumas informações para a composição do texto.
4. Isso não quer dizer que o uso do volvelle contemporâneo esteja
exilado unicamente aos livros pop up. Como escreveu Jessica Helfand em seu tratado a respeito
dos volvelles: “O século XX viu um robusto crescimento nas
áreas de design, manufatura e
produção de uma nova geração
de volvelles independentes e de uso mais livre. Categoricamente, tais volvelles não apenas representam um pouco usual e
eclético conjunto de
usos possíveis mas
demonstram, também, uma notável gama de conceitos estilísticos, composicionais, mecânicos, informacionais e cinéticos. Há volvelles que configuram seus dados
perifericamente, centrifugamente e radialmente; que usam círculos com indicadores múltiplos, concêntricos; e que se
beneficiam do generoso uso de recortes [die cut], uma tecnologia que se transformou em particular marca
registrada da moderna impressão em escala industrial.” (HELFAND, 2002, p. 35).
5. O habito, tão contemporâneo, de
saltar de um para outro canal de televisão (empregando para isso o controle
remoto) ou isolar, segmentar e mesmo editar pedaços de um filme ou programa nos
sofisticados aparatos de armazenamento e reprodução audiovisual sempre foi algo
possível e fácil de se realizar com os livros e a
literatura.
6. De certa forma, tal processo ocorre, de forma mais ou menos semelhante,
em outras mídias e
formatos narrativos; no caso do cinema, as tentativas de expansão da experiência cinematográfica, que podem ou não estar atreladas
a propostas de redimensionamento da própria
linguagem cinematográfica.
Evidentemente, tais experiências podem
levar ao esgotamento do meio, que acaba tão saturado de “inovações” técnicas que a experiência da narrativa fílmica em si torna-se secundária diante da fúria tecnológica, sendo o próprio filme aproximado a outras
linguagens, de feição publicitária, como o
anúncio de televisão. É o que
fica mais ou menos demonstrado se observamos a senda que vai de Napoleon (1927), de
Abel Gance, pleno de inovações visuais, tecnológicas e de linguagem, até Avatar (2009), de John Carpenter, filme no qual a trama,
conceitualmente rasa, serve como fio condutor para um espetáculo pirotécnico de efeitos
visuais.
7. Na breve introdução, sátira que
faz o pastiche da linguagem triunfalista dos diários de viagem do século XIX e
dos artigos da National
Geographic, temos mesmo a localização do local no qual as criaturas
são originárias: “Na última edição que a
Real Academia Cartográfica da Suécia publicou de suas afamadas cartas
marítimas, a 53 graus e
48 minutos de latitude Sul e a 44 graus e 26 minutos de latitude Oeste, próximo aos perigosos rochedos Shag,
qualquer observador pode ler dez letras que reclamam orgulhosamente sua atenção: Revillódia” (MURUGARREN; CASTÁN, 2009, p. 6).
8. O ataque a France não seria isolado a esse panfleto: no mesmo ano
(1924), no primeiro manifesto surrealista, Breton afirmaria que “a atitude realista, inspirada no
positivismo, de São Tomás a Anatole
France, parece-me hostil a todo impulso de liberação intelectual e moral.
Tenho-lhe horror, por ser feita de mediocridade, ódio e insípida
presunção.” (BRETON, 1985, p.
36).
9. Em 1930, um grupo de dissidentes do surrealismo, estigmatizados por
Breton no segundo manifesto surrealista, colaboraria em um contragolpe ao velho
“mentor” do grupo aproveitando o título do velho ataque a Anatole France,
Un Cadavre: “A amargura de
ex-discípulos é evidente na
linguagem usada que atinge Breton sem piedade por suas pretensões, suas
inconsistências e,
acima de tudo, sua pérfida
amizade, com emprego de termos como ‘flic’ [nota: tira, policial], ‘papa’ e ‘cura’ para caracterizar Breton.” (BROWDER, 1967, p. 28-29). Estão
representados com textos e ensaios no segundo Un Cadavre:
Georges Bataille, Georges Limbour, Robert Desnos, Raymond Queneau, Michel
Leiris, Alejo Carpentier, Jacques Baron, Jacques Prévert (o próprio que
escreveu a primeira palavra do primeiro cadavre exquis),
Roger Vitrac, Max Morise, Georges Ribemont-Dessaignes e Jacques-André Boiffard.
REFERÊNCIAS
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Número 176 | julho de 2021
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