quinta-feira, 22 de julho de 2021

ALCEBÍADES DINIZ MIGUEL | Raimundo Lúlio e o Livro Móvel (Questões em torno da desintegração, formal ou conceitual, da narrativa)



Introdu
ção: do pensamento à forma, da ideologia à imagem

De Raimundo Lúlio (1232-1315), filósofo e lógico de Maiorca, ficou muito conhecido pelo seu empenho sistemático – estruturado em pontos de uma argumentação filosófica extremamente sutil na conversão de judeus e árabes, em uma época em que tal procedimento ainda não ocorria – ao menos, não era a maneira mais comum nesse momento da Idade Média, embora tais técnicas fossem eventualmente empregadas em vítimas consideradas às margens da Cristandade, como as mulheres declaradas bruxas ou os heréticos assumidos – pelas vias mais brutais de convencimento como a roda, a polé, o garrote e a fogueira. Desnecessário dizer que o próprio Lúlio era uma expressão de seu tempo e de seu lugar: a Península Ibérica, nesse momento da Idade Média constituía um espaço de privilegiada tolerância entre distintas crenças, cristã, árabe e judaica. Tratava-se não apenas da tolerância da outridade, em termos de exclusão quase completa – como a internação em guetos, realidade cotidiana dos judeus por toda a Europa até praticamente o século XIX – ou de emprego de uma mão de obra eventualmente escrava, mas de uma convivência que não excluía até mesmo o espaço das trocas culturais, o que significava que, ao menos em parte, todas as três crenças possuíam uma valência semelhante. Como afirma Aline Dias da Silveira: “a Península Ibérica é o melhor espaço histórico para estudar a convivência, trocas culturais, relações de tolerância e intolerância e heranças culturais entre as religiões monoteístas dentro da Europa” (SILVEIRA, 2009, p. 404); a mesma autora acrescenta, adiante:

 

Um exemplo de tema abordado nestes trabalhos é o trânsito de intelectuais pertencentes às três religiões na Idade Média e seu trabalho conjunto nas traduções (BORGOLTE, 2006, p. 562-584). Séculos antes da obra de Aristóteles ser discutida na Paris do século XIII, muçulmanos, cristãos e judeus já trabalhavam em conjunto na tradução e interpretação de textos aristotélicos na escola de tradução de Bagdá (séculos VII-IX d. C.). A mesma colaboração é documentada na escola de tradução de Toledo (século XII-XIII), a qual traduziu os trabalhos do árabe para o latim. (SILVEIRA, 2009, 9. 405).

 

Mas tal postura não sobreviveria: a concentração de poder crescente dos reis europeus, notadamente na conflituosa Península Ibérica – ponto estratégico, uma vez que foi o local de fixação dos árabes quando das primeiras invasões –, agravada pela necessidade de concentração de capital para aventuras como as grandes navegações, liquidaria qualquer projeto de convivência ou tolerância. De tal forma que, como escreveu Anita Novinsky, grupos políticos responsáveis pela repressão do pensamento emulavam, já no século XVI, as estruturas de funcionamento da Gestapo:

“As funções dos Familiares do Santo Ofício eram semelhantes à do Comissário: colher informações, investigar, confiscar, prender. Os Familiares constituíam uma rede semelhante à da Gestapo durante a Alemanha nazista. Sabemos que na Espanha, no começo do século XVI, os Familiares chegaram a constituir uma irmandade, conhecida pelo nome de Congregação de São Pedro Mártir, que seguia o modelo das associações fundadas pela inquisição medieval depois do assassinato do inquisidor São Pedro Mártir, na Itália, em 1252.” (NOVINSKY, 1984, p. 23).

Apesar de sua sofisticação, elegância e complexidade, o pensamento de Lúlio não deixava de atender, de forma indireta é bem verdade, à agenda obscurantista que transformaria a Península Ibérica já nos alvores da modernidade; pois a tarefa dos mecanismos lulianos era convencer o diferente, estancar a necessidade por trocas culturas, saciar a necessidade de alteridade com uma complicada nova arte retórica, que não se distanciasse muito da esfera cristã pré-definida. De certa forma, a posição de Lúlio em relação à Cultura de sua época é semelhante àquela do Beato de Liébana (701-798), que pretendia combater a heresia do arianismo e, depois, pelo adocionismo que pretendia manter uma convivência pacífica com os invasores árabes: “O Beato estava muito preocupado com aqueles membros da Igreja que não seguiam a sua ortodoxia cristã, a quem ele chama de falsos irmãos - monges, sacerdotes, mas, sobretudo, bispos.” (PARMEGIANI, 2009, p. 114). Seu comentário ao Apocalipse, obra das mais lidas no período, unia uma argumentação monacal complexa à beleza única do trabalho de iluminadores do livro, que marcaria praticamente todo o maravilhoso medieval e, mesmo, o imaginário Ocidental no que tange à aceitação e compreensão do Livro do Apocalipse, de João.

Evidentemente, o convencimento, nessas condições, tinha de ocorrer de forma absoluta e justamente pela demonstração, ao mesmo tempo clara e sintética, de um conceito tão absolutamente complexo e indomável quanto a Verdade e a Divindade. O medievalista Paolo Lucentini indica, de forma bastante clara, como a teologia medieval adquiriu um método axiomático, aparentemente derivado da geometria euclideana, [1] na qual o pensamento teológico surge como uma espécie de afirmação de uma realidade diretamente verificável e intuitiva; em um tratado como O livro dos vinte e quatro filósofos, da segunda metade do século XII, teríamos um exemplo desse texto que se estrutura como uma argumentação regida pela apresentação sintética de verdades que se pretendiam paradoxalmente simples/perceptíveis e complexas/divinas. Paolo Lucentini expressa bem essa questão paradoxal no trecho abaixo:

 

[Obras como O livro dos vinte e quatro filósofos] elabora um pensamento teológico construído formalmente sobre a enunciação de verdades intuitivas, que parecem surgir de uma espécie de emanação conceitual. (…) O quadro do conjunto constitui a proposta de um saber teológico policéntrico e ao mesmo tempo unitário que, através de verdades manifestas e universais – objeto de conhecimento noético – e sua explicação em termos analíticos e discursivos, conduz, através de um caminho de impulsos intuitivos e rigor racional, até a luz incognoscível da única e infinita natureza divina. (LUCENTINI, 2002, p. 11).

 

Assim, seria dentro desse espírito que Raimundo Lúlio proporia uma máquina de ilustração do pensamento: o emprego de uma espécie de roda de papel, encaixada em um centro determinada, cuja função seria multiplicar as possibilidades combinatórias de dado elemento, agregando essa potencialidade do múltiplo ao arcabouço de sua filosofia demonstrativa das virtudes superiores do cristianismo. [2] Trata-se de um mecanismo, uma máquina de leitura apelidada volvelle, cuja invenção remonta ao ano 1000 e parece originário do Oriente, tendo se constituído como uma das muitas formas pelas quais o Ocidente passou a empregar os algarismos numéricos arábicos, notadamente através de questões em torno da criptografia de documentos com finalidades estratégicas – hipótese defendida, por exemplo, por David Kahn (cf. KAHN, 1980, p. 122-127). Na Europa, o primeiro volvelle aparece nas obras do monge beneditino Matthew Paris, em uma narrativa que adquire quase o tom de anedota (replicada em diversos pontos da Internet [3]): para consultar gráficos e tabelas circulares (calendários e demais obras de natureza astrológica) nos tomos de sua abadia, Paris necessitava girar os pesados e pouco práticos volumes. Pensando nesse transtorno, Paris idealizou um sistema semelhante ao que vemos na página anterior (no caso, um volvelle da revisão de Gemma Frisius para a Cosmographia (1524), de Apianus). Assim, no Renascimento, a máquina de papel que Lúlio colocaria como mais um recurso de sua Arte epistemológica teria, a partir de Apianus, uma larga utilização em tratados de astronomia, bem como forma de cifrar mensagens, seja como gerador ou decodificador de códigos cifrados. Se muitos encaram o volvelle como um mecanismo analógico cujo funcionamento possui semelhanças com aquele de um computador do século XX, essas formas de utilização iniciais (científicas e militares) não deixam de ser exemplares.


As volvelles costumam figurar como antecessoras diretas da engenharia de papel que está na base de um amplo mercado de livros (geralmente infantis) que extrapola sua funcionalidade usual, exibindo traços de obra pictórica ou mesmo de escultura. De fato, muitos dos atuais livros pop-up possui algum esquema circular, volvelle remanescente, entre seus mecanismos. De instrumento projetado por astrônomos para facilitar cálculos e configurações dos astros contemplados, economizando a impressão de representações gráficas pela substituição destas por uma única forma de representação, complexa e interativa, o volvelle teria uma rica utilização como mecanismo de maravilhamento em livros de entretenimento, geralmente destinados ao público infantil. [4] Nesse sentido, também é necessário não perdermos de vista o fato de Lúlio, por exemplo, enxergar nesse tipo de dispositivo um elemento lógico, necessário para o desenvolvimento de sua estrutura de entendimento do mundo, mas também retórico, uma vez que essa estrutura de entendimento, em última instância, se pretendia, por seu rigor ou clareza, um instrumento de convencimento, que levasse judeus e islâmicos a abandonar suas crenças originais convencidos diante de uma demonstração de verdade superior. De qualquer forma, os volvelles representam uma das primeiras tentativas de ultrapassar, conceitualmente e formalmente, os limites reflexivos do livro e mesmo do texto, buscando alcançar o leitor por uma via dupla, que se poderia chamar interativa e sinestésica. Evidentemente, como a própria migração de dispositivos como o volvelle para o universo da narrativa infantil demonstra, a representação de conceitos logo migrou para a possibilidade de se contar histórias através de efeitos visuais e táteis muito mais agradáveis que a aridez sequencial das orações em linhas encadeadas.

Através do exemplo dos volvelles, vemos o padrão estrutural de uma abordagem da escritura através de um processo de abandono e/ou superação da própria escritura. Poder-se-ia indicar, nesse sentido, a existência de algumas tendências articuladas que estruturariam tal processo: em primeiro lugar a expansão, que faria o texto, construído a partir de um ou mais mecanismos, aproximar-se de um processo concreto (o monge Matthew Paris, girando seus grossos volumes para leitura de tabelas astrológicas) sem deixar, por outro lado, de ser um texto, de possuir elementos de natureza textual; a interação, que permitiria um grau maior de participação do leitor na fruição do texto, uma vez que este, em teoria, poderia ser manipulado, reestruturado e mesmo alterado pelo leitor, como em uma espécie de planejamento de um instinto e de uma prática que todos os leitores possuem; a transmutação, pela qual o texto (e o que ele representa, seja conceito ou narrativa) abriria mão de parte de suas prerrogativas (até mesmo a de fazer sentido) para se lançar em novas possibilidades. Evidentemente, confiar apenas em mecanismos, gadgets possíveis de se criar no elemento textual ao mesmo tempo que tenta a ultrapassagem desse elemento, o eleva à máxima condição. Pois a leitura (e isso percebemos no primeiro elemento estrutural apontado, a expansão) sempre pressupôs essas possibilidades em última instância lúdicas em sua própria estrutura: iniciativa do leitor ou do autor, a possibilidade de embaralhar a linearidade do texto está em sua própria natureza ao mesmo tempo sintagmática e paradigmática, que permite múltiplas combinações a partir de um restritíssimo número de opções e regras de combinação. Um testemunho histórico que comprova essa possibilidade de desconstrução estrutural do texto, dada como pós-moderna e identificada com exemplos que não se limitam aos livros móveis infantis, mas alcança tramas sofisticadas como La Rayuela, de Julio Cortázar, já ocorria em um passado imediato tão positivista quanto as últimas décadas do século XIX. Comentando certo hábito, atribuído às leitoras da época, de saltar, zapear entre diversas tramas folhetinescas, [5] destituindo destas sua linearidade, o escritor Raul Pompéia declara o seguinte:

 

Lia então jornais. Ela sabia ler: um luxo de escola pública que o zelo paterno cuidara em proporcionar-lhe muito cedo. Lia muito jornais, sem escolha: do dia ou da véspera, da véspera ou do ano passado, conforme vinham, embrulhando encomendas de remendo à indústria da oficina. Lia romances de rodapé, da melhor maneira de serem lidos, baralhadamente, ora de um jornal, ora de outro, encartando as aventuras da Gazeta nas do País, interessando-se muito por uma situação dramática que começava pela Gazeta da Tarde em Boisgobey e ia desprender-se pela Cidade do Rio, em Montepin. (…) Com uma tal facilidade de critério, não custa compreender como a donzelinha levava a existência, lendo também as horas e os dias sem atenção nem coerência, como se fosse a vida um longo rodapé de jornal, abstruso e confundido. (POMPÉIA, 1981, p. 238)

 

A observação de Pompéia é notável por perceber uma tendência dos leitores já em mesclar, confundir, refundir, aproximar a leitura da própria existência individual do leitor.  É bem verdade que, como muitos críticos, poder-se-ia afirmar que todas as narrativas literárias atuam como uma estrutura que oferece ao leitor uma forma de leitura, guiando-o nesse processo, mas essa forma, Pompéia percebeu de forma muito clara, pode ser rejeitada em favor de outras, não previstas, descortinando mesmo o mecanismo de funcionamento estrutural (no caso descrito por Raul Pompéia, o processo de identificação de personagens sempre análogos, que levaria naturalmente ao intercâmbio entre estes). O processo seria associado (e, geralmente, isolado) ao romance mais experimental contemporâneo, como demonstra o trecho abaixo, de Donald B. Rice em artigo a respeito de La Prise de Constantinople, de Jean Ricardou:

 


Todos os romances, mesmo os mais tradicionais, atuam como ferramentas pedagógicas de si próprios, ensinando ao leitor como ele pode (deve?) lê-los. Entretanto, enquanto no romance tradicional o tema da lição geralmente se assenta em algum local dentro da realidade ficcional criada pela obra, o novo romance tende a deslocar esse ponto de interesse para o texto em si. Autoconscientes e autoilustrativas, esses romances designam ao leitor sua estrutura e também, em muitos casos, seu modo de produção que, assim, tornam visíveis – se não explicitamente, ao menos indiretamente – a teoria em ação no texto. (RICE, 1975, p. 106).

 

Contudo, a percepção pioneira revelada no comentário surge uma crítica tingida de misoginia que expressa a visão de Pompéia, dotada de ironia cruel: seria uma forma errada de ler; a concepção preconceituosa, contudo, não deixa de alertar para o fascínio destrutivo, trivializador, que é a leitura centrada apenas em um processo lúdico de montagem e destruição. Talvez, nesse sentido, seja necessário termos em conta a velha desconfiança socrática diante do texto escrito, que as possibilidades de manipulação/estruturação mencionadas não deixam de trazer à memória: [6]

 

(…) seu amor paternal pela sua invenção [para com a escrita] foi responsável pela atribuição de qualidades que ela não possui. Pois com sua descoberta, inventou-se o esquecimento na alma de todos que aprendem, uma vez que eles deverão confiar em caracteres escritos e não em sua própria capacidade de memorização. Sua descoberta não é um auxiliar da memória, mas da reminiscência, e o que é oferecido com ela aos seus discípulos não é a verdade, mas apenas um simulacro de verdade. Eles ouvirão muitas coisas e não aprenderão nada; a onisciência parecerá um de seus atributos mas nada de fato conhecerão; serão uma companhia fastidiosa, tendo sempre de mostrar uma sabedoria sem realidade. (PLATO, 2008, p. 122-123).

 

Assim, temos algo os livros móveis desde os seus primórdios e mesmo as experiências mais radicais da literatura contemporânea (do nouveau roman aos beats e destes à New Wave em ficção científica, universo no qual se destaca, sem dúvidas, uma obra como Atrocity Exhibition, de J. G. Ballard) uma recuperação da antiga desconfiança socrática em relação à escrita, vista como “inferior à fala” uma vez que, como a pintura, “(…) não oferece respostas para qualquer questão, sendo apenas a aparência enganadora de uma criatura viva. Não possui poder de adaptação, pois emprega sempre as mesmas palavras em qualquer caso.” (JOWETT, 2008, p. 15). Por outro lado, em todas essas experiências e tentativas, ainda resta a base lúdica que a literatura proporciona como elemento de sua própria constituição, descoberta pelas leitoras de folhetins e por Raul Pompéia e que dispensa qualquer aparato. Em última instância, a tentativa de empregar, de uma forma ou de outra, uma ampliação da perspectiva da leitura é fazer a leitura reencontrar sua intuição primordial, ampliá-la e generalizá-la, o que talvez não fosse a intenção de qualquer forma de experimentação da literatura e do texto. Da mesma forma, a antiga funcionalidade dos volvelles para Lúlio, convencer e converter, bem como a eventual vacuidade da empreitada, apenas a adornar uma representação trivial mas decorada de barroquismo não deixa de ser um fantasma nas tentativas de ultrapassagem do texto conceitual ou narrativo, uma vez que demonstram como uma estilização na forma ou um aparato integrado não mudam aspectos como a visão de mundo e o objetivo, ao final, da obra em si. Essas contradições acompanham toda e qualquer literatura que se pretenda experimental e é em face dela que autores como Ricardou ou Ballard buscam seus atalhos e brechas.

 

O cadavre-exquis

O escritor Miguel Murugarren e o ilustrador Javiwer Sáez Castán lançaram em 2003, pela Fondo de Cultura Económica do México, um curioso volume intitulado Animalário Universal del Professor Revillod. Trata-se de um bestiário que se poderia qualificar generativo, no qual temos diversas pranchas, divididas cada uma em três partes, representando quando unidas um animal tradicional (por exemplo, o elefante) ao exótico (o coelacanto); no verso das pranchas, vemos uma breve descrição do bicho representado. As ilustrações são imaginativas, mas há um cuidadoso gesto de evitar a entrada de uma fauna mítica no Animalário, como aquela recenseada por Jorge Luis Borges em seu Manual de zoologia fantástica. Tal estratégia tem um motivo: cada prancha é simetricamente divida em três partes que pode se combinar, gerando novas feras com nome e descrição definidos (a mistura, por exemplo, de “pulga”, “tatu” e “rinoceronte” gera uma criatura chamada “pultaronte”, descrita como “Parasita glutão de vida subterrânea das florestas remotas”). Existe a possibilidade de se gerar 4096 feras diferentes – como alardeia, em divertido estilo de almanaque, uma das páginas de rosto do livro; por outro lado, uma breve parte escrita cria o personagem do professor Revillod e delega a autoria do livreto a ele (a autoria real surge apenas no final da obra, estruturada aos moldes de ficha catalográfica. [7] É evidente que a obra convoca o leitor a produzir, pelo gesto combinatório, as criaturas e que esse gesto lúdico inauguraria um curioso bestiário instantâneo”, construído ao sabor das escolhas arbitrárias do leitor:

 

Mais do que um bestiário à moda antiga, um repositório de formas, de mitos passados, de histórias fechadas, o que se provoca aqui é a potencialização do contributo do leitor para o surgimento de ‘4066 feras diferentes’ (um pouco como o livro de Quenau Cent mille milliard de poèmes, com os seus dez sonetos potenciados pelos cruzamentos permitidos pelas tiras). Se pensarmos em Borges, será menos aparentado com o seu Manual de Zoología Fantástica (…) do que com aquela taxonomia prevista no Emporio celestial de conocimientos benévolos, em que “los animales se dividen en (a) pertenecientes al Emperador, (b) embalsamados, (c) amaestrados, (d) lechones, (e) sirenas, (f) fabulosos, (g) perros sueltos, (h) incluidos en esta clasificación, (i) que se agitan como locos, (j) innumerables, (k) dibujados con un pincel finísimo de pelo de camello, (1) etcétera, (m) que acaban de romper el jarrón, (n) que de lejos parecen moscas.” (em “El idioma analítico de John Wilkins”). Da ordem restrita e zoo-lógica entramos num campo de permutação livre e ludo-lógica. (MOURA, 2011).

 

Contudo, a permutação não é totalmente livre: não podemos combinar, por exemplo, quatro bichos ou inverter a ordem na qual surgem ou criar a partir de bichos que não estão inventariados no livreto. Trata-se, portanto, mais de uma ilusão de permutação livre, submetida, por outro lado, às regras inventadas pelo autor e aos limites do próprio formato físico do volume. Os autores do Animalário, aliás, sublinhas a convencionalidade e o rigor desse acordo, ao propor, no final do livro (talvez tendo em mente um público leitor infantil) ao leitor, em forma de questionário, combinações que se destacariam das formas possíveis por um motivo ou outro. Portanto, o livro, que se baseia em conhecido jogo infantil de combinação, parte tanto da criação de cada leitor (e do conjunto possível de leitores, ampliando o escopo da produção de sentidos) como das estritas regras prescritas pelo autor, da possibilidade lúdica de combinar formas (MOURA, 2011) afirma que o livreto instaura uma espécie de máquina de significados) quanto da limitação física do meio, que apenas torna o exercício do jogo mais excitante. De qualquer forma, essas contradições não são ignoradas por Murugarren e Castán, da mesma forma que não o foram pelos surrealistas, que empregaram uma forma similar de composição interativa, tendo em vista certa possibilidade de intercâmbio entre o papel de leitor e de criador, entre a leitura/criação individual e outra, anterior ao surgimento da escrita, coletiva. Batizaram a tal jogo cadavre exquis, segundo André Masson, a partir de uma sugestão de André Breton. O surgimento do processo – empregado pelos surrealistas, nas palavras de Breton, como “um meio infalível de dar uma viagem de férias para a mente crítica e de liberar a atividade metafórica da mente(cf. MATTHEWS, 1986, p. 122 apud PIANOWSKI, 2011) – ocorreu em uma das muitas reuniões nas quais os surrealistas se punham a criar ludicamente e aparece bem descrito por Simone Collinet, esposa à época de Breton:

 


foi durante um desses encontros noturnos de descobrimento e tédio que foram numerosos no tempo do surrealismo – contrariamente ao que se apresenta retrospectivamente – que o cadavre exquis foi inventado. Um de nós disse ‘E se nós jogarmos petit papiers [nota do tradutor: usualmente, um jogo de adivinhação no qual os participantes buscam adivinhar o nome de um ser ou objeto escrito em um papel]? É tão divertido.’ […] Dessa forma, nasceu o cadavre exquis. Da pena de Prevért, mais precisamente, que escreveu as primeiras palavras, se bem que logo seguidas das seguintes; de um: bebe o vinho; de outro: novo. (COLLINET, 1948, p. 28 apud PIANOWSKI, 2011).

 

Evidentemente, como muitos elementos da história do surrealismo, tal origem parece corresponder a uma figuração ficcional mais que à realidade factual, sendo mais verossímil imaginar que o nome foi proposto por Breton, logo após a violenta polêmica em torno da morte de Anatole France, [8] autor visto como a quintessência da poesia francesa e de certa atitude dos literatos daquele país, por isso mesmo alvo da mais impiedosa crítica da parte de Breton e dos surrealistas no panfleto Un cadavre, surgido no mês da morte de France, em outubro de 1924. [9] De qualquer forma, é necessário reter, da experiência do cadavre exquis surrealista, alguns de seus traços estruturantes – uma vez que não se trata de elementos passíveis de uma descrição hierárquica rigorosa, mas analogias inesperadas que ressurgem, com roupagem diferenciada, em novas articulações da literatura experimental desde então. Nesse sentido, temos, em primeiro lugar, essa curiosa relação entre o lúdico, o infantil, o livre, o puramente casual e indeterminado e o estritamente, rigorosamente, planejado; diante do jogo infantil de adivinhação e sua frouxa estrutura de regras, os surrealistas criaram um complexo sistema de permutações que, no obstante manter certa noção de liberdade de composição e criação coletiva, possui regras bem mais restritivas, necessárias para que a construção quimérica ainda possuísse algum sentido e não fosse um puro exercício aleatório de junção de palavras. Trata-se, em todo caso, da tensão da qual os surrealistas não fugiam; segundo Sorane Alexandrian, a questão principal em torno dos jogos surrealistas era “(…) do ideal de grupo, de se colocar dentro do gênio comum, mas sem que ninguém abdicasse de sua individualidade” (ALEXANDRIAN, 1969, p. 50).

As tensões entre forma e conteúdo, regra e liberdade, que o cadavre exquis ilustra tão bem, não estavam restritas aos surrealistas ou surgiram com essa tendência específica das vanguardas do início do século XX. As abstrações da Ciência e da Filosofia, que configuram jogos nos quais se prefigura o desvelamento da Natureza e do Ser/Consciência inauguraram, ao final do Renascimento um sistema de permutações e trocas coletivas, um jogo e uma linguagem universal: “O simbolismo lógico vale provavelmente para todas as línguas flexionais, porém ganhou esta vastidão pelo preço da perda do significado. Exatamente a mesma afirmativa pode ser feita em relação à ciência. Quanto mais exata, isto é, abstrata, ela se torna, tanto maior o seu campo de validade e tanto menor o seu significado. (…) A língua universal artificial válida para todo o Ocidente será, quando alcançada, tautológica e isenta de significado.” (FLUSSER, 2004, p. 69). Por outro lado, essas tendências abstratas que trabalham a oposição entre fluxos naturais e espontâneos e um trabalho sistemático de construção chegou ao campo da poesia e da narrativa na modernidade; a abstração transformava a poesia em objeto rítmico percussivo, mas também em palco performático e tela para a pintura tipográfica: “Uma organização alternativa da linguagem poética liberada enxergava a própria página como espaço performático, não apenas como uma passagem provisória para a deliberação do texto. (…) Depois de Mallarmé, os poetas não apenas escrevem palavras mas transformam espaços.” (RASULA; McCAFFERY, 1998, p. xii-xiii). Contudo, apesar de todos os esforços advindos de campos múltiplos (a Ciência, a arte de vanguarda, a filosofia) não há uma solução definitiva para o problema babélico que se afigura no jogo e na linguagem, no objeto estético e na fruição lúdica, entre a permanência e o momentâneo. Todas essas oposições, que são sumarizadas pela própria estrutura da linguagem, não se reduziram à tautologia universal temida por Villém Flusser. A esperança ambiciosa dessa solução absoluta acaba sempre atrasada pelo prazer do momento oferecida pelo azar do jogo; e esse prazer, aparentemente pequeno e restrito aos objetos pequenos e perecíveis é que nos salva.

 

NOTAS

1. Lucentini sublinha que, no século XII, o tratado Elementos de geometria, de Euclides, foi traduzido por Adelardo de Bath, Ermanno de Carintia e Gerardo de Cremona (cf. LUCENTINI, 2002, p. 11, nota 4).

2. Entre as virtudes da Arte, como era denominada a exposição luliana, teríamos, segundo Ruiz Simon e Anthony Bonner, características como invenção, demonstração, compendiosidade e generalidade. Na penúltima é que estaria concentrada a potencialidade combinatória que permitira a geração ilimitada de argumentos a partir de um conjunto limitado de princípios, a base conceitual de um mecanismo como o volvelle (cf. BONNER, p. 17, 2007).

3. Como no site do designer de livros pop-up Robert Sabuda (cf. SABUDA, 2011), de onde retiramos algumas informações para a composição do texto.

4. Isso não quer dizer que o uso do volvelle contemporâneo esteja exilado unicamente aos livros pop up. Como escreveu Jessica Helfand em seu tratado a respeito dos volvelles: “O século XX viu um robusto crescimento nas áreas de design, manufatura e produção de uma nova geração de volvelles independentes e de uso mais livre. Categoricamente, tais volvelles não apenas representam um pouco usual e eclético conjunto de usos possíveis mas demonstram, também, uma notável gama de conceitos estilísticos, composicionais, mecânicos, informacionais e cinéticos. Há volvelles que configuram seus dados perifericamente, centrifugamente e radialmente; que usam círculos com indicadores múltiplos, concêntricos; e que se beneficiam do generoso uso de recortes [die cut], uma tecnologia que se transformou em particular marca registrada da moderna impressão em escala industrial.” (HELFAND, 2002, p. 35).

5. O habito, tão contemporâneo, de saltar de um para outro canal de televisão (empregando para isso o controle remoto) ou isolar, segmentar e mesmo editar pedaços de um filme ou programa nos sofisticados aparatos de armazenamento e reprodução audiovisual sempre foi algo possível e fácil de se realizar com os livros e a literatura.

6. De certa forma, tal processo ocorre, de forma mais ou menos semelhante, em outras mídias e formatos narrativos; no caso do cinema, as tentativas de expansão da experiência cinematográfica, que podem ou não estar atreladas a propostas de redimensionamento da própria linguagem cinematográfica. Evidentemente, tais experiências podem levar ao esgotamento do meio, que acaba tão saturado de “inovações” técnicas que a experiência da narrativa fílmica em si torna-se secundária diante da fúria tecnológica, sendo o próprio filme aproximado a outras linguagens, de feição publicitária, como o anúncio de televisão. É o que fica mais ou menos demonstrado se observamos a senda que vai de Napoleon (1927), de Abel Gance, pleno de inovações visuais, tecnológicas e de linguagem, até Avatar (2009), de John Carpenter, filme no qual a trama, conceitualmente rasa, serve como fio condutor para um espetáculo pirotécnico de efeitos visuais.

7. Na breve introdução, sátira que faz o pastiche da linguagem triunfalista dos diários de viagem do século XIX e dos artigos da National Geographic, temos mesmo a localização do local no qual as criaturas são originárias: “Na última edição que a Real Academia Cartográfica da Suécia publicou de suas afamadas cartas marítimas, a 53 graus e 48 minutos de latitude Sul e a 44 graus e 26 minutos de latitude Oeste, próximo aos perigosos rochedos Shag, qualquer observador pode ler dez letras que reclamam orgulhosamente sua atenção: Revillódia” (MURUGARREN; CASTÁN, 2009, p. 6).

8. O ataque a France não seria isolado a esse panfleto: no mesmo ano (1924), no primeiro manifesto surrealista, Breton afirmaria que a atitude realista, inspirada no positivismo, de São Tomás a Anatole France, parece-me hostil a todo impulso de liberação intelectual e moral. Tenho-lhe horror, por ser feita de mediocridade, ódio e insípida presunção.” (BRETON, 1985, p. 36).

9. Em 1930, um grupo de dissidentes do surrealismo, estigmatizados por Breton no segundo manifesto surrealista, colaboraria em um contragolpe ao velho mentordo grupo aproveitando o título do velho ataque a Anatole France, Un Cadavre: “A amargura de ex-discípulos é evidente na linguagem usada que atinge Breton sem piedade por suas pretensões, suas inconsistências e, acima de tudo, sua pérfida amizade, com emprego de termos como flic[nota: tira, policial], ‘papa’ e ‘curapara caracterizar Breton.(BROWDER, 1967, p. 28-29). Estão representados com textos e ensaios no segundo Un Cadavre: Georges Bataille, Georges Limbour, Robert Desnos, Raymond Queneau, Michel Leiris, Alejo Carpentier, Jacques Baron, Jacques Prévert (o próprio que escreveu a primeira palavra do primeiro cadavre exquis), Roger Vitrac, Max Morise, Georges Ribemont-Dessaignes e Jacques-André Boiffard.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALEXANDRIAN, Sorane. L’art surréaliste. Paris: Fernand Hazan, 1969.

BONNER, Anthony. The art and logic of Ramon Llull: a user's guide. Brill: Brill Academic Pub, 2007.

BRETON, André. Manifestos do Surrealismo. São Paulo: Editora Brasiliense, 1985.

BROWDER, Clifford. André Breton: arbiter of surrealism. Genève: Librairie Droz, 1967.

COLLINET, Simone. “Les cadavres exquis. 1948” in BRETON, André. Le cadavre exquis son exaltation. Catálogo de exposição. Milão: Galeria Schwartz, 1975.

FLUSSER, Vilém. Língua e realidade. São Paulo: Annablume, 2004

HELFAND, Jessica. Reinventing the Wheel. Princenton: Princenton University Press, 2002.

JOWETT, Benjamin. “Introduction” in PLATO. Phaedrus. Salt Lake City: The Project Gutenberg, 2008.

KAHN, David. “On the Origin of Polyalphabetic Substitution” in Isis, Vol. 71, No. 1 (Mar., 1980).

LUCENTINI, Paolo. Introducción” in El libro de los veinticuatro filósofos. Madrid: Ediciones Siruela, 2002.

MATTHEWS, J.H. Languages of Surrealism. Missouri: University of Missouri, 1986.

MOURA, Pedro. “Animalário Universal do Professor Revillod. Javier Saéz Castán e Miguel Murugarren (Orfeu Mini)” in LerBD (http://lerbd.blogspot.com/2009/11/animalario-universal-do-professor.html) - acesso em 9/12/2011.

MURUGARREN, Miguel [texto]; CASTÁN, Javier Saéz [ilustração]. Animalário Universal do Professor Revillod. Lisboa: Orfeu Negro, 2009.

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