domingo, 4 de julho de 2021

AUGUSTO JOSÉ & MANUEL CALDEIRA | Diálogos com Nicolau Saião

 


Em princípios de 1970 (onde isso já vai!) recebi uma carta de um amigo. Dentro dela, além de um texto abordando o tema das semelhanças entre os animais e os vegetais, vinha um poema que começava assim: “Ter prazer em falar/como quem fosse/ um simples animal, um ser da treva/ Ter prazer em nascer, como quem desse/ o nascimento à própria solidão”.

A carta vinha da Guiné-Bissau, o amigo era o NS. O poema nascera, tal como o texto explosivo, no absurdo da guerra colonial em que então Portugal estava metido e propunha(m) o prazer contra a solidão e a morte envolvente, transfigurando o horror destas em vida e fruição futuras. Razões da vida profissional fizeram-me perder de vista o amigo, conquanto o poeta me aparecesse aqui e ali em breves momentos e, de quando em vez, uma breve missiva me chegasse quer à região de Espanha onde então habitava, quer à cidade europeia (Londres) para onde o meu trabalho me transplantou.

Reencontrámo-nos mais tarde numa rápida manhã alentejana de 1981 e, num desses acasos em que a existência é fértil, em Toronto, cidade do outro lado do mundo em que por feliz coincidência nos achávamos.

Reencontro-me agora com ele, mais velhos os dois, mais questionados. Na sala modesta pejada de livros e de objectos apontando mais para a memória afectiva que para uma decoração estudada, centenas e centenas de livros que guardam para oferecer a quem os abrir tudo o que a imaginação pode dar-nos, conversamos. Sente-se que, aqui, os livros não são um álibi mas companhia e “paisagem” natural. E é por aí que o triálogo começa. [NS]

 

Manuel Caldeira (MC) | Nicolau, porque tens tantos livros? O que é que os livros representam para ti?

 

NS | São uma espécie de Jardim Zoológico… sem prisioneiros. Ler é para mim uma forma de comunicar, de resistir à morte civil e à exaustão do quotidiano. É uma das minhas formas de brincar com a morte… Como sabes, cada livro põe-nos à prova, é preciso mantermos uma grande serenidade, um enorme sangue-frio! Os livros são também, digamo-lo assim, a minha sociedade secreta, uma espécie de mar com ilhas sempre novas. São também a negação duma determinada sociedade que quer é que a gente veja televisão e passeie de carro até ao fim da gasolina mental…

 

Augusto José (AJ) | Mas você vê televisão…

 

NS | Evidentemente! Mas quem é que não vê? Só os hotentotes, possivelmente. E mesmo esses… Mas só vejo o essencial, o indispensável. E posso garantir-lhe que não ouço os discursos nem assisto às telenovelas…

 

MC | Isso também já seria demasiado!

 

NS | … a não ser para renovar um certo nojo. Misturado com riso, aliás. A televisão como presença obsidiante, note, porque também por lá aparecem às vezes belas coisas, é o grande ser sagrado do nosso tempo. Nessa medida, é óbvio que está a acabar com a componente mística da religião, que é hoje um rito em aceleração… basta ver as missas televisivas, sem esquecer que neste país houve durante algum tempo uma emissora da Igreja que a breve trecho teve de ser vendida a um grupo menos “metafísico”… Conhecem, já agora, um conto do Bradbury em que ele descreve os EUA totalmente modificados por se terem estragado, devido a manchas solares, todas as cadeias de televisão? Pois leiam, que vão gostar. Quanto aos livros, eu não acredito como os chamados “situacionistas” que seja indispensável liquidar as artes e a cultura. Isso são teorias espúrias de intelectuais abastardados. O que é preciso é acabar-se com a ignorância, com a estupidez e isso passa também por amar a cultura mas recusar a kultura, a tal de colarinhos e gravata.

 

AJ | Então não crê que a verdadeira cultura ande na rua?

 

NS | Anda, assim como lá andam também os autómatos quotidianos, os polícias, os díscolos e toda a sorte de sacanagem… Ser livre não implica ser ignorante. Ser culto é precisamente o contrário de ser convencional ou atrofiado. O que é preciso é não se perder o nosso coração de criança, tal como Savater o descreve. Chevaucher le tigre, como dizia Raymond Abellio. Ter frescura e ser espontâneo, o que não é o mesmo que ser gostosa e brutalmente acéfalo. O mito do bom selvagem… Quem é que ainda acredita nisso?

 

AJ | Alguns acreditam…

 

NS | Ou fingem que acreditam. Como sabe este é o tempo das surpresas, surpresas de ordem mental e mesmo social. Num dos textos desses senhores um deles dizia em tom de programa (cito de memória): só haverá uma sociedade mentalmente aberta quando o artista, saindo à rua, correr o imediato risco de ficar com um olho deitado abaixo… Repare-se que diziam isto quando em certos países totalitários artistas eram encarcerados e até mortos. Não é estranho que fosse também nessa altura que estes cavalheiros despediam um violento ataque ao surrealismo!

Desconfio muito e tenho razões para isso de certa gente benemérita. Assim que os ouço ou leio que estão a dar muitas palmas ao “popular”, ao “natural”, preparo-me para o pior. A meu ver é uma pura mistificação… questão de calabouços ou de votos e sandices semelhantes. A meu ver o povo não precisa de “graxa”, precisa é que o não aborreçam ou mistifiquem em ordem a ficar ainda mais afastado da plena cidadania.

 

AJ | Estes quadros são de sua autoria? Diverte-o pintar? Porque pinta?

 

NS | Se é que se pode chamar pintura ao que faço… Parece-me que a profissão de pintor implica uma estratégia, uma sistemática. Digamos que a minha “pintura”, ou a minha atitude enquanto “pintor”, é uma viagem no universo das cores e das formas, mais nada. Às vezes dou por mim a pintar figuras com alguma habilidade, noutras nem sou capaz de reproduzir aceitavelmente um cavalo, um rosto… Eu creio que assisto com gozo e certo sofrimento ao nascimento dos… quadros e, se esta resposta o satisfaz, então sim, divirto-me. É uma espécie de brincadeira, um jogo… Mas “a posteriori”! Antes é uma certa angústia, uma inquietação, uma febre enquanto dura a feitura. Acho – e não estou a ser solene nem, espero, demasiado dramático - que a pintura é um jogo algo mortal, em suma. Pode morrer-se por dentro e até já houve pintores que morreram por fora por se haver sumido, ou não ter aparecido, o universo que buscavam ou intuíam. Para além disto, a pintura como a sinto pode também ser uma coisa habitual, digamos calma e secreta, como a presença dos ruídos familiares numa tarde de Agosto… numa noite de Junho, como a presença de um gato, um sabor ou um cheiro, um acto quotidiano. Mas é sempre uma viagem sem bússolas, no meu caso. Vou confessar uma coisa: às vezes, principalmente quando estou deitado a descansar, ou sentado a meditar, ou a andar pelo campo, aparecem-me na cabeça quadros belíssimos… Mas não sou capaz de os reproduzir, é um desespero! Se conseguisse (mas às vezes nem tenho materiais adequados) era um grande pintor. Assim sou, tenho consciência disso, apenas um curioso com alguma felicidade, digamos…

 

MC | Sem bússola… O homem no labirinto? És um homem em cólera?

 

NS | Apre, creio que não! Só excursão sem pontos marcados. Ná, definitivamente não. Pelo contrário, para além da normal indignação de um mais ou menos atento habitante do meu século, sou um indivíduo que apenas despreza, não odeia. Para odiar é preciso ainda suar… Já lá vai o tempo em que eu odiava. Odiei muito, assim como amei muito. Agora, sem eu querer conscientemente, apenas sinto capacidade para amar suavemente ou desprezar. Aqui há dias, ao ler um texto apontando para as semelhanças mentais entre o Hitler e o Bin Laden, dei comigo a ter uma sensação de irrealidade, de desprezo e de pena repugnada.

 

AJ | E o que é que despreza, fundamentalmente? Quem é que despreza?

 

NS | Em primeiro lugar desprezo os oportunistas, tanto na vida quotidiana como nas letras & artes… Aqui na cidade de Portalegre e no Alentejo, para não sair da região, tenho conhecido vários. Pequenos oportunistas, porque isto é uma terra pequena. O que aliás não me descansa, às tantas uma pessoa gostava de encontrar canalhas em grande, como no Balzac… e apanha só canalhinhas à portuguesa! Bom… E desprezo também os enfatuados, os que se escondem por detrás do dinheiro ou do poder. A nível geral desprezo os politiqueiros, os raposões que fazem grandes frases e apenas querem enganar o povo, os – no caso da escrita – que constroem as suas lendas, grandes ou pequenas, sobre a desgraça dos povos, para acatitarem as respectivas produções. Mas os que desprezo acima de todos são os que se proclamam irmãos dos homens e nada mais têm para lhes dar que obtusidade, dureza e frieza. Pessoas por vezes com grande formação académica e intelectual, universitários e quejandos, mas que são uns perfeitos patifórios, usando o lugar de que dispõem para exterminar a dignidade com um evidente sentido de que o podem fazer impunemente.

 

MC | Podias citar algum nome?

 

NS | Nem por sombras! Não por sentido de decência, digamos, mas por sentido das realidades… Se o fizesse estava desgraçado! Não haja equívocos: tenho amor à pele e “os tais” cá no meigo país (Ribeiro Couto) são quem manda no dia-a-dia. Se eu falasse abertamente, “quilhavam-me” na certa. Esclareçamos de uma vez por todas que isto não é ilusão, podia contar estórias bem reais de manigâncias artilhadas por senhores que são mais nefandas que as de bandidos das ruelas… Guardo essa voz aberta, vocês desculpem, para um livreco de memórias… a sair quando já estiver a “fazer tijolo”… Mas os nomes abundam, da política à religião, da economia à saúde pública… às letras mais respeitáveis, infelizmente.

 

AJ | Como se define? Poeta surrealista, surrealista só, anarco-surrealista? Como, afinal?

 

NS | Ao contrário do que às vezes se usa fazer (“os outros que me definam” e tal… ) tenho muito gosto em me definir… até para poder epigrafar o que me parece legítimo: creio que sou um poeta surrealista pop. Nos meus textos, se bem notar, o universo onírico entra e sai (como uma bomba de pistão?) pela sociedade de consumo adentro, são constantes nos meus textos as referencias aos objectos e coisas característicos dos tempos que correm, comidas, lugares quotidianos, coisas vulgares em suma. Isso não é, evidentemente, premeditado, garanto-lhe que não tenho gosto pelo miserabilismo, não há tanto quanto me dou conta qualquer propósito preconcebido. Sinto a dada altura que os textos vivem vida própria, vivem por eles mesmos. Os mundos à Dali não me atraem nada enquanto hacedor, nada me dizem, os vastos painéis oníricos encaro-os como entidades… bem, falecidas. A meu ver o universo da poesia não é extático, há uma intrínseca vitalidade nas coisas. Sonho, sim, mas com cadeiras, janelas, motocicletas, roupas até. Que eu me lembre nunca sonhei com cavalos voadores ou homens espantados de olhos na ponta do nariz ou assim… O meu surrealismo é de situações inusitadas entre os factos e as personagens, o que me parece ser muito peculiar e ter muita força. Aliás, a “imagerie” surrealista à la page (ou pseudo-surrealista, se quiser) nunca foi cultivada com insistência senão por falsos surrealistas e explorada por publicistas pouco éticos ou propriamente tolos.

 

MC | Estás a sorrir largamente ao dizer isso…

 

NS | Indo além do humor subjacente, seria talvez curioso referir que o que mais me atrai e atrai-me intensamente nos quadros de Picasso, que é com Cézanne um dos meus pintores preferidos mas não em todos os momentos (noutras alturas sou mais sensível a Lee Krasner ou Cy Twombly) é a exemplar presença de objectos transfigurados mas sem deixarem de ser eles mesmos, reais como tudo (surreais?). Enche-me de admiração e prazer o partido que ele soube tirar de candeeiros bruxuleantes (como vi na infância, quando morava no campo), de palmatórias de velas, de caixas de bolachas, de pratos, de cântaros, de atavios, de garrafas, de coisas para o quotidiano urbano, de instrumentos para os trabalhos de quinta… Creio que os objectos deste tempo a consumir-se (a meu ver ainda não saímos verdadeiramente do século vinte) me atraem porque extraio deles um sentido vestibular de anti-catástrofe que me permite passar indemne para o universo saudável do sonho inserido na vida corrente. Digamos que os vejo de vários pontos de vista mas que estão sempre ligados à vida calma e fecunda, à felicidade simples. Tenho para mim que este mundo, agora sim à beira da destruição atómica – os soviéticos eram do nosso tempo, continham-se, ao passo que os islamitas vivem na idade média… com electricidade – não chegou a conhecer perfeitamente, leia-se estimar, na sua verdadeira dimensão os instrumentos e objectos sobre os quais erigiu o seu dia-a-dia. Com ressalvas pontuais, é claro. Em contrapartida, veja os índios. Os objectos eram para eles não entidades anónimas ou sagradas (no sentido em que pertenceriam a uma mística) mas entidades respeitáveis e poéticas. Tinham um lugar estimável no mundo. Por seu turno, a nossa sociedade usa os objectos, como usa as pessoas. É uma sociedade canibal, com ligeiras excepções.

Os objectos motivam-me porquanto os transformo em signos, em símbolos, servem-me de trampolim para saltar para o meio do mundo, o verdadeiro mundo, onde até os objectos poderão ser felizes e repousar e ter alegria. Nós, quando estamos em estado de graça, formamos com tudo o que nos rodeia em singeleza um cosmos único, assombrado, o que significa que as coisas funcionam como espelhos de um dado real.

 


AJ | E não acha que esses sentimentos são comuns a muita gente que não vive alienada?

 

NS | Francamente não sei, estimaria bem que assim fosse! É muito possível que sim, quem sabe? Repare que não tenho gosto de proprietário, para usar este termo, em relação aos objectos caros que não recuso e até me agradam, pois têm uma qualidade estética a que sou sensível e que infelizmente não posso comprar a não ser com sacrifícios. Como constatou já, concerteza, a minha não é uma casa rica, as coisas custam dinheiro, de que nunca tive grande abundância…

 

MC | As coisas usam-se como escravos…

 

NS | Pois, também… A propósito, sabem decerto que em Roma os escravos eram chamados “utensílios falantes”…

 

MC | E na China os criados eram posse do patrão enquanto estavam dentro da casa dele…

 

NS | Em resumo, os objectos causam-me vertigens e pena: pobres deles, tão usados, tão explorados. São o lumpenproletariat do nosso sistema, candidatos à lixeira. E no entanto… Já repararam que têm tanta procura as feiras de objectos antigos? No programa inglês “People & Arts” vi um programa sobre feiras de leilões que era deslumbrante. Em episódios, gravei-os todos… Objectos que, sublinho, normalmente são guardados em sótãos, outro dos lugares mágicos do surrealismo, até que alguém os descubra, os reencontre…

 

AJ | Há uns anos morreu-me uma tia, uma senhora muito curiosa, um bocado à antiga. O sótão da sua casa era surpreendente, um verdadeiro cofre mágico!

 

NS | Não me fale nisso, que me cresce água na boca! Alguns objectos dos meus primeiros tempos, que são como companheiros de jornada, olho-os como se olha um dedo do pé, um detalhe do rosto… Daí em geral não renovar mobiliário pelos anos fora. Não dispenso a minha velha secretária, a minha velha cama, alguns candeeiros a petróleo, uma velha banca de cabeceira… Tenho um frigorífico, que comprei a umas senhoras adventistas que liquidaram os móveis antes de voltarem à América, que já faz parte da família… No fundo é a velha questão da antiga magia. Os utensílios ficam “carregados” de nós, mas a latitude aqui é a da magia branca. Claro que se trata do amor intenso à vida que se viveu…

 

MC | É uma espécie de passeio pelas diferentes idades.

 

NS | Outra coisa que me atrai inapelavelmente são as casas. As casas, quer sejam em claridade ou em sombra, são todas tão estranhas! Nem é necessário procurar muito, são a coisa mais estranha que há. São o símbolo localizado do cosmos, até se costuma utilizar a expressão “a casa do mundo”, mas um cosmos misterioso e secreto, apesar de luminoso. Fantástico e familiar. Efectivamente, foi o Homem que deu luz à casa, a casa é simultaneamente asilo e prisão. Defesa, fruição e inquietação. O universo das casas é muito mais inquietante e maravilhoso que os universos estelares, que aliás só alguns vêem na sua real corporalidade (estão muito longe). Esses podem ser conhecidos mediante o estudo científico, são objecto de ciência, a Casa é simplesmente hipótese, porque uma vez erguida pelos arquitectos deixa de ser apenas um local para se transformar em algo mais. Fica a pertencer ao universo que só é desvendável através da poesia, feita em verso ou em prosa. Aqui aponto para um livro excepcional, “A vida modo de usar” de Georges Pérec, no qual ele descreve um edifício de Paris e não só quem nele vive mas as coisas que o enchem ou ali são feitas. E quer coisa mais triste e perturbadora, até inquietante, que uma casa abandonada, em ruínas, no meio dum campo numa tarde quente de Julho? Quando de súbito, numa curva do caminho em que passeamos, nos aparece com toda a sua memória de coisas e pessoas idas?

 

MC | Não é por acaso que é nas casas que há fantasmas…

 

NS | E acima de tudo a recordação de gente viva! Lá pelo fim dos anos setenta fui com o Cesariny ver um filme policial intitulado “O gato e o canário” e apesar da película, como ele dizia e bem, ter alguns buracos, a casa onde decorria a acção era enfeitiçante, fascinadora. Dava corpo a um ambiente cheio de sugestões e de ambiguidades no qual a intriga dependia em grande parte da sua beleza e fascínio sensual e criminal. Num outro filme, também visto pelos dois (ambos partilhávamos o gosto pelo mistério), de novo o tema das moradias é tratado: é sobre uma casa que “toma o freio nos dentes” e se põe a viver angustiante vida própria. Nessa película – “Férias macabras”, dum especialista do fantástico, Dan Curtis – o realizador devolve à casa o seu poder de fantasmagoria, recoloca a casa no lugar mais perturbador: universo paralelo, sonho sobre o sonho, realidade inteira e inteira ausência, prazer e maldição…

 

AJ | Lembro-me desse filme, vi-o há uns dois anos em reposição na TV por cabo. Calculo o que teria sentido ao vê-lo no grande écran. Em certos trechos era de fazer saltar das cadeiras, mas não foi isso que mo conservou na memória. Funcionava como que em círculo…

 

NS | Lembra-se da cena da estufa? A cena em que o protagonista, um dos melhores actores ingleses da época (Oliver Reed, muito bem acompanhado por Burgess Meredith, Karen Black e Bette Davis) entra na estufa há anos abandonada e a encontra repleta de rosas, gladíolos, girassóis, orquídeas, tudo mergulhado num ambiente de sonho e de felicidade edénica… E as luzes, as luzes que de repente rodeiam a casa como que num verão interminável? A propósito, sabem que uma das coisas que mais perturba os neuróticos – simples particulares ou gente pública – são as cores brilhantes? É uma descoberta recente de psiquiatras de topo…

 

AJ | Desconhecia esse facto, mas não me admiro. Talvez se explique assim a hostilidade que alguns manifestam pela pintura…

 

MC | Pelo menos em público… Muitos têm as salas de jantar bem fornecidas de quadros.

 

NS | Talvez no lar sejam pessoas normais e guardem essas neuroses para nos atrapalharem a vida… Estou a brincar, é evidente que na maior parte dos casos certa gente tem quadros devido ao seu preço, como afirmação de status. Mas, falando a sério, sabes que num estudo de Francis Mayer ele assinala que nas residências de pessoal de topo se encontram sobretudo obras pouco coloridas? Aliás, o ataque que na época se movia aos impressionistas, mais do que por deformarem a perspectiva, era principalmente devido a haver nos seus trabalhos grande profusão de cores…

 

AJ | Passemos agora a outro tema. O que pensa da literatura portuguesa actual? E da literatura em si?

 

NS | Enquanto continente de percursos e prestígios, cá ou lá fora, não me interessa nada. No que respeita ao folclore do género, vejo-o de longe com certa aversão, pois me parece fazer parte de um ambiente geral de parlapatice. Não me diz nada enquanto literatice e creio mesmo que autores que se respeitam sofrem um pouco com esse cenário. Enquanto paixão interessa-me muito, é uma parte muito importante da minha vida. Aliás, numa palestra que fiz há uns dois anos em Espanha deixei isso bem claro. É uma grande aventura. Não posso esquecer o gosto com que defrontei – não apenas como simples leitor - livros como “Mau tempo no canal” de Nemésio, “Voltar atrás para quê?” de Irene Lisboa, “Apresentação do rosto” de Herberto Hélder, os livros de contos de Branquinho da Fonseca, prosa de Pascoaes e de Raul Brandão… O teatro do Ionesco, mesmo os seus contos, as reflexões memorialísticas em que se vasou às vezes, o “Margarita e o mestre” de Bulgakov, “A montanha mágica” de Thomas Mann… São experiências absolutas, só por isso valeu a pena ter vivido. Não falando em certos autores mais chegados, cuja escrita também sigo atentamente. No entanto o comboio literário em estilo Deve-Haver é frequentemente uma tristeza mas, como vivo fora desses meios onde as pugnas mais intensas acontecem, não sou muito tocado pela eventual peralvilhice.

De vez em quando em fortuitos órgãos de informação topo com inquéritos género “ano passado nas letras” ou “para onde vai a literatura” que relanceio com certa má disposição porque aquilo tem mais o tom de treta mercantilista, o usual tique de coscuvilhice. Pacoviada. A literatura para onde vai? Para onde sempre foi, para o limbo dos séculos. O que interessa é a poesia e a escrita que se erguem altivamente para escarnecer as leis e ofender os deuses, como dizia Brassai. O resto é assim como que cocoricó para seis anos de imortalidade…

 

AJ | Mas não distingue aqui e ali sinais de inconformismo?

 

NS | Claro que sim. Mas não se trata apenas de apelar ao inconformismo, o caso é algo diferente. É preciso uma justificação um pouco mais séria, a vida é qualquer coisa de muito dramático. Trata-se do seguinte: nos últimos tempos têm tentado dar a poesia, a escrita, o “complexo literário”, como algo de supranumerário, talvez porque antes se tentava fazer dele uma arma de ascensão político-partidária. O que por vezes me parece que há é tácticas de sector onde o que se busca é fazer do autor uma espécie de padre sem sotaina, no mais acabado estilo de super-mercado ou de assanhada evangelização para primários.

Aponto, como exemplo, para o neo-naturalismo (para empregar a expressão cunhada por Levi Condinho) que entre nós quer agora ocupar totalmente, totalitariamente, a paisagem. De forma ainda mais nefanda que os antigos próceres e proponentes do “realismo-socialista”, pois esses ainda tinham uma justificação ideológica. Nestes lê-se, sem ser necessário binóculos, o simples nivelamento por baixo, para que a sua mediocridade, controlando por fora e em simultâneo “a praça”, seja legítima e imprescindível.

No campo das escritas as mais diversas os surrealistas trabalham sem rede, a própria busca de continentes novos a que se votam é por vezes empatada e prejudicada por gente que, já sem sequer disfarçar, o que quer é prebendas mesmo que a sua falta de talento as não justifique. E há encenações para “inglês ver”: certos prosopoemadores, que se desunham em tragédias artilhadas em livro, quando na vida quotidiana tiram a mascarilha afinal são cidadãos cheios de calma, muito contentes com o lugar que ocupam na árvore dos níveis…

 

MC | E tu? És calmo?

 

NS | Calmíssimo… mas noutro espaço, noutro clima. Talvez seja um privilégio, afinal eu não ando na literatura…

 

MC | É possível estar-se fora da literatura e fazerem-se versos que andam publicados nas revistas da especialidade, em jornais, alguns bem destacados? Achas isso possível?

 

NS | Claro que é possível. Porque há o publicar-se versos como defesa contra as condições miseráveis em que nos obrigam a viver espiritualmente – e nem me refiro a certas condições materiais de parte da população, agora que no país se está a tentar instaurar uma nova ditadura – e o que se publica para uma carreira “técnico-social”… Afinal, pelo menos em Portugal, o que é reconhecivelmente andar-se na literatura? É sair em livros sempre que se estende um dedo, ter gente à volta a tirar-lhe o retrato, literário inclusive até à saciedade, opinar sobre tudo desde a bola à gastronomia, etc. Para isso é necessário um estado especial de espírito e até compreendo que como pequenos Dalis certos autores deliberem servir-se dos malacuecos em torno. O que me desagrada e nisso nunca estaria é a jogada literata. O que é que isso tem a ver com poesia e verdade? Nada, a meu ver.

 


AJ | Você tem dedicado uma boa parte do seu tempo a ver cinema e a fazer parte de secções de cinema em colectividades locais. Já agora quais os seus encenadores preferidos. E como se articula cinema e surrealismo?

 

NS | O surrealismo foi um dos primeiros companheiros do cinema. No cinema, o surrealismo tal como o entendo interessa-se sobretudo pela realidade em todas as direcções. Daí que esteja bastante para além – aqui como na escrita ou na pintura – do automatismo ou do absurdo fantasista onde têm procurado encalhá-lo. Como referiu António Maria Lisboa, surrealismo não é sinónimo de fantasia, mas sim de realidade profunda e aumentada, surrealidade portanto. Não é pois de estranhar que quem se reclama dessa condição deteste os apatetados e pedantes filmes de análise, que na verdade tentam é desvirtuar as questões vitais com intuitos confusionistas. Bem como as películas que apelam para a justificação da moralidade burguesa mais grosseira, ainda que finjam revolucionarismo, ou as imbecis fitas para tornar os cretinos ainda mais cretinos com o pretexto que os estão a divertir, ou seja estupidificar. No plano técnico, ou artístico se preferir: os que não têm ponta de invenção, que repetem até à saciedade fórmulas estereotipadas porque junto de certos meios provaram que rendiam… A essa traquitana opomos a magnificência soberana de películas de Tati, Chaplin, Buñuel, Resnais, mas também de modernos ou desenquadrados que ainda não atingiram o Olimpo dos clássicos, encenadores que vão fazendo os seus filmes da maneira que podem ou que os deixam mas que criam obras de valor que por vezes nem são reconhecidas na altura em que os fazem. Ou seja, a imaginação além do poder. Tudo o que permite ao Homem ultrapassar a “condição humana” mas em termos não desfigurados. O meu realizador preferido talvez seja Manckievicz, o de “Autópsia de um crime”, de “O perfume do dinheiro”, de “Bruscamente no verão passado”. Os que já citei e também Polanski, Hitchcock, Roy Ward Baker, Orson Welles, fitas de Freddie Francis, Peter Sykes, o “Blade Runner” de Ridley Scott (a quem dediquei um poema), o Elias Merhige de “O suspeito zero”…

 

MC | E Antonioni, Pasolini, Fellini…

 

NS | Quanto a Antonioni, ressalvo que excepto quando começa às voltas e voltinhas racionalistas. Mas o “Deserto vermelho” é um filme consistente com certos pedaços soberbos, como a cena em que operários electricistas explicam à protagonista que estão a montar uma construção metálica para ouvir as estrelas, uma geringonça que faz parte de um observatório astronómico, ou outra em que um navio parece navegar por uma rua dum entreposto.

Por outro lado, talvez seja mais correcto dizer que tenho filmes preferidos, ao invés de falar de encenadores. Gostei muito, por exemplo, do “Os trovadores malditos” de Carné, do “O vagabundo dos sonhos” de René Clair e não me posso lembrar sem um estremecimento do “Pândora” de Arthur Levin, triunfo do amor louco e da existência apaixonada. Mas garanto que a lista é infindável, tenho quase seis mil filmes e, desses, uma enorme parte é excepcional.

 

MC | Este é um tema que nos levaria longe… Ultimamente tem-se falado muito no reacender duma certa rivalidade ocidente-oriente, em termos de oposição como no tempo dos blocos. A Rússia volta a calçar as esporas, há o surgimento do fundamentalismo islâmico, mesmo o mais brando do novo nacionalismo árabe, a entrada peculiar no mercado da China… Preocupa-te o problema atómico?

 

NS | Até há uns anos não me preocupava em demasia, aliás verificou-se que tinha razões para pensar assim pois não houve a hecatombe leste-oeste que muitos profetizaram. Agora começo a estar preocupado. Se nos abstivermos defazer a cena de membros da “agitprop”, como nalguns sectores se tornou aconselhável menos por moda que por inconsciência, verificaremos que certos grupos ou países tentam munir-se de força nuclear sem possuírem um equilíbrio interior clarificado. Nada de hipocrisias: certo ocidente é ávido e cínico, mas tem um certo grau de realismo que ao menos lhe diz que as bombas são para cair em cima dos outros e não sobre eles… Daí, pensando no ressalto, terem-se contido pelos tempos. Mas o que poderá impedir um prócere de Mafoma, que acredita que o seu deus depois refará o mundo em três tempos, de destroçar tudo em volta, inclusive o seu próprio habitat? Não deixemos que o politicamente correcto nos faça reféns de sectores fanatizados. Devemos levar a sério gente que acha mal que o catolicismo nos explore mas já acha bem que o islamismo nos oprima ou mande para o Além? Sim, levemo-los a sério mas só para lhes fazer saber que, como na anedota célebre, é tão nefasto levar-se com um cacete manejado com a mão direita como com uma cachaporra usada com a mão esquerda. Se conseguirmos que os fundamentalistas permaneçam desnuclearizados, podemos esperar que os outros preservem o globo terrestre. De que lhes serviria um mundo sem criados? A não ser que algum louco assuma ascendente, parece-me que o sentido é o da aproximação ao desarmamento progressivo, ou pelo menos uma certa dieta armamentista que transporta consigo, entretanto, problemas de estratégias, jogos de influencia e mercados demarcados. O que me preocupa verdadeiramente e aliás já se estava a desenhar no horizonte, é a aliança objectiva dos vários blocos contra o chamado homem comum: os bancos de dados e os computadores permanecem um enigma para o cidadão vulgar, as super-polícias secretas são já em parte indiscerníveis, os impérios dos mídia refinaram a sua capacidade para lavarem os cérebros, certos governos – como nos últimos tempos o governo português, liderado por um homem simultaneamente obstinado e frio, mas que se nota ter um tique de contida violência, com uma feição interior autoritária inquietante – tentam desenvolver capacidades que cada vez mais escapam ao nosso controle, transformando a sociedade aberta ocidental para pior. Por exemplo, a cultura popular apesar de em muitos casos ser residual, estão-na a confundir deliberadamente (chegando a dar apoios para se auto-destruir mais depressa) cada vez mais com cultura de massas. Por outro lado, também é verdade que o poder, que infelizmente é sempre discricionário, já não controla bem os próprios organismos que criou. Talvez por isso, creio que precisamente por isso, é que o governo português está a tentar juntar numa só estrutura piramidal os organismos repressivos, as “forças da ordem” como se diz em democracia e que entre nós é um facto ilusório. O que também pode significar um caos a mais. Assiste-se à desagregação das alavancas do poder, a fera dos mídia já não se domina bem (já há casos de nítida inflexão fascista, como o célebre caso lusitano do “Envelope 9”, que mostrou que para o Estado português parece só haver direitos humanos se isso convier aos seus esteios) as polícias são cada vez mais permeáveis à corrupção – que elas mesmo denunciam sem que nada consigam (um caso que se passou em Portalegre com realce nacional) – ao amorfismo e ao desencanto.

Digo com ironia magoada: talvez algum louco quebre este ritmo, mas antes do mundo à Aldous Huxley espreita-nos o mundo à Orwell.

 

AJ | Pois, o quotidiano difuso mas que constrange. O seu quotidiano constrange-o?

 

NS | Evidentemente, embora eu tenha mecanismos para lhe escapar. Independentemente do facto de que estou aposentado, o que facilita o dia-a-dia, eu tenho dois quotidianos, digamos assim: o de dentro e o de fora que me liga à vida em sociedade, a sociedade policiada e que tenta não nos deixar em paz mesmo que tenhamos uma quinta isolada e só saiamos dela de mês a mês (que não é o meu caso, falo simbolicamente). Viver em sociedade não é fácil para ninguém e muito menos para um poeta, temos de engolir muito em seco e sabe-se como os próceres do poder não estão para poesias, essas inanidades… O quotidiano certas vezes gratificante, por vezes penoso que tive nos tempos em que era preciso aturar canalhas para não perder o ganha-pão, já lá vai. Este de agora, que tem coisas pouco amáveis em muitos casos, ultrapasso-o sem problemas de maior, tanto mais que como se sabe o espírito pode mais do que a carne. Digo isto com perfeito à-vontade, porque nem sou crente, embora tenha um enorme sentido do sagrado, mas um sagrado não personalizado ou de obediência a um credo. A meu ver, posto que seja tolerante e tenha bons amigos praticantes, a religião é uma corruptela do sentimento poético, nascem do mesmo vaso (re-ligare, que significa devolver ao Homem a sua ligação ao cosmos) mas a religião fica-se em última análise pela vénia a um presumível ser supremo, extremamente equívoco aliás no que pretende ao nível do mito (há tantos como há religiões, todos eles ditos o único pelos sequazes), ao passo que a Poesia não precisa de álibis, fideístas ou outros quaisquer.

Ia então dizendo que o que me perturba é o que sinto passar em volta: a fome do terceiro mundo, a miséria moral do ocidente, o fanatismo do oriente e a sua hipocrisia devastadora, a extinção deliberada ou o entravamento da sobrevivência de sociedades desenquadradas como os esquimós e os índios ainda existentes. Quanto à minha vida cidadã, não sou muito ambicioso e, se quisesse, podia perfeitamente abstrair-me pois agora possuo meios materiais suficientes e, acho eu, não se poderia levar a mal que me “reformasse” mesmo!

Mas não me aborrecem em demasia, os pulhas que por aqui há na cidade não me tocam – nem é uma cidade insuportável, apenas algo atrasada e onde a venalidade não assume extremos – e além do mais eu gosto das pessoas quotidianas e da região. Apesar de deliberadamente algo isolado não sou de forma alguma um afastado, trata-se de uma escolha livre pois tenho aquilo a que se chama um mundo muito meu.

 

MC | Tiveste uma infância feliz, já agora?

 


NS | Muito. Sempre que olho para trás, é um encantamento. Que maravilha foi aquilo! E a adolescência também me correu bem, mesmo bastante bem. Quando reparo nisso fico nostálgico… contente… admirado. O próprio afastamento da religiosidade, aí pelos doze anos, não me marcou, senti apenas uma certa mágoa por intuir que me andavam a enganar e que era tudo uma convenção. Lembro-me das antigas aulas de catequese, na Sé, um local de que sempre gostei, alternadamente com um indivíduo novo muito delicado e uma senhora já de certa idade que nos tratava com bondade. Não tinham perfil de carolas recalcados. Recordo-me é de um padre de meia-idade ser, uma vez, apanhado por mim numa mentira: naquela altura davam brinquedos aos garotos em troca de senhas de presença nas parlendas e eu tinha direito a uma camioneta de madeira colorida, um desses lindos objectos artesanais que dantes se faziam e foram modernamente substituídos por outros de plástico. O tal padre, não sei porquê, disse que lamentava mas já não havia e que me ia dar outra coisa qualquer… E eu tinha visto que havia. Lembro-me que só senti um certo espanto ao concluir que pessoas, que eu pensava acima de suspeita, podiam mentir ali mesmo nos claustros do templo. A partir daí inflecti o rumo, sem quaisquer amarguras, de forma natural, apenas com a certeza de que a prática religiosa era algo que deixara de me interessar. Mas nunca perdi o sentido do sagrado não fideísta.

Em suma: a adolescência foi um mundo encantado que, infelizmente, já só pertence à recordação. Mas visito-o com frequência, pois uma das minhas melhores faculdades é a memória quase fotográfica. Como todos os poetas, sou um visual.

 

AJ | Um visual… como poeta? Não queria dizer como pintor?

 

NS | Não, como poeta. Os poetas são eminentemente visuais. Só que depois transformam tudo em palavras, tal como os pintores fazem o mesmo com traços e cores, creio eu. Evidentemente que um poeta é também um auditivo mas os ritmos, no poema, na feitura do poema, são mais interiores que outra coisa.

 

MC | Como uma música ao longe…

 

NS | Como uma música ao longe! Aliás, já reparaste que a poesia é sempre, penso, um misto de acção consciente e de nostalgia? Quando leio poesia tenho a impressão que algo musical soa ao longe… E curiosamente, quando faço poesia, quando algo me chega e me sento a escrever, apago de imediato qualquer aparelho que esteja a emitir música. Não sou capaz de escrever nem de ler com música de fundo… Ruídos ainda vá – o piriquito a pipilar ocasionalmente, carros que passam na rua, vozes de miúdos a brincar, a minha mulher a cozinhar… Música nem por sombras, ocupava-me a atenção e tirava-me o som das palavras e das frases que me soam na cabeça…

 

MC | Mas ainda sobre o quotidiano…

 

NS | Tudo se passa como numa fotografia a preto e branco que de repente fica cheia de cores. Claro, o quotidiano pode ser detestável pelo que nos chega de fora, em certas ocasiões temos de nos abespinhar. Mas nunca tenho conferido, com Sartre, que “o inferno são os outros”. Sartre era, na minha opinião, um intelectual com tiques de pequeno-burguês com a mania dos monstros, daí as suas oscilações conceptuais que durante um lapso de tempo até o levaram a apoiar Estaline. Incomodado, sim, mas pelas desgraças do tempo, os “disparates do mundo” como dizia Chesterton. Sigo rumo a Sírius, o humor negro é o princípio que ajuda tudo o resto. O gosto de viver…

 

MC | O que é para ti o surrealismo? Qual o papel do surrealismo no mundo actual?

 

NS | O surrealismo é e sempre foi, no meu caso, a forma mais eficaz e bela de amar a vida e de resistir. O surrealismo foi e é para mim a campina onde encontrei a cidade sonhada, o meu rio, o meu deserto e o meu veleiro. Há mares e praias na minha vida e até os fantasmas tomam a forma que lhes tira a penosidade, afastam-se cabisbaixos. Ou seja, não tenho fantasmas embora tenha muitas nostalgias… O surrealismo, sem que o programasse, é e foi a minha aposta na realidade inteira. No plano social, digo como disse um dos primeiros surrealistas: o mundo a vir ou será surrealista ou perecerá. E já há indícios seguros desta asserção. Significa isto que se os homens não conseguirem resistir e mesmo afastar a manipulação pretensamente racionalista que tenta transformá-los em máquinas produtoras de consumismos e fideísmos, terão de encarar gravíssimos cenários. Se o mundo não se encaminhar para a prática da poesia, ou seja viver sem fantasmas interiores e exteriores que nos cortam a realização pessoal, encaminhar-se-á para o holocausto. Não é mais possível continuar a assistir, sem perder a humanidade, aos massacres contra o espírito perpetrados por espúrias religiões reveladas e ideologias que já mostraram ser criminais, ou mesmo contra a matéria: têm de se enfrentar sem demora os problemas da super-população, do aquecimento global e da extinção de espécies ameaçadas, das técnicas em aceleração, dos novos produtos multiplicáveis pela genética e a engenharia de ponta.

 

AJ | E o surrealismo pode concorrer para catalizar, digamos, a contestação a tudo isso?

 

NS | Creio que o papel do surrealismo será determinante. Veja quais as fórmulas que os novos próceres têm oposto ao antigo racionalismo: o marxismo mostrou não ser mais que uma religião substituta, quando não um aparelho de desmiolação que tinha de acabar mal. Os chamados “filhos da natureza”, desde os hippies até aos actuais adeptos de uma ecologia “herbívora”, passando por grupos meio-religiosos meio-políticos, a aparelhagem do poder sabe como lidar com eles: exército emplumado, polícias estipendiadas, escolas públicas difundindo a técnica de se ser criado eficaz, o sistema judicial controlado por quadrilheiros legais de alto coturno – têm tudo para solapar os que em última instância a prisão irá acantonar se necessário. Do outro lado, é a barbárie quase completa em acção… Sim, creio que a imanência surrealista tem muito a dizer e a classe dominante sabe disso. Cá como lá, acentuo.

 

AJ | Há pouco mostrou-me uns livros, Documentos de Informação e combate do movimento surrealista mundial, de Cesariny, Escritura conquistada, de Floriano Martins, mais umas revistas… Concluo que o surrealismo está activo e sei que segue fazendo coisas em diversos países. A acção surrealista é hoje mais fácil ou está, pelo contrário, mais dificultada?

 

NS | Depende… Em Portugal está mais dificultada. Não porque hoje em dia nos prendam, mas porque em “democracia” certos sectores refinam os seus métodos: jornais ditos de referência que nos marginalizam quase totalmente ou nos entravam, entregando a “análise” crítica sobre as acções ou eventos surrealistas a observadores (não lhes chamo críticos) que opinam violentamente, no fundo difamando dessa forma quem tenha o atrevimento de se dizer surrealista. Sem qualquer possibilidade de revidarmos, eles dominam o aparelho…

 E isto é assim porque o poder, que em Portugal é muito reaccionário, já percebeu que a “féerie” surrealista é algo mais do que aquilo que tentavam fazer crer – sonho e fantasia. Nunca foi fantasia e, quanto ao sonho, relembro-lhe que há diversas formas de sonhar… O que o surrealismo busca, já o referiu António Maria Lisboa, não é dormir de maneira diferente mas sim estar bem acordado, no sentido lato, com a capacidade de sonho a funcionar no real que nos querem dar como fronteira. Sendo poesia viva, ele contém os germes de uma coisa muito perigosa, pois o poder tem medo que a poesia encarne e por isso é que nos casos limite prende os poetas. Nessa medida, o golpe que encenam agora é remeter o surrealismo para o passado histórico, prestigiado mas enfim, passado – utilizando os factos e mesmo as personagens mais famosas precisamente para calarem a voz surrealista de hoje. Assim como quem diz: surrealistas foram aqueles, ei-los gente graúda, vocês não são nada, calem-se lá, nós é que sabemos como é! Como não podem eliminar as nossas obras nem dizer que não prestam (desmascaravam-se!), recorrem então à censura discreta, impossibilitando-nos de publicar facilmente, de “aparecer”. Chegam a dar a entender que, se queremos falar alto e claro, reivindicando o direito que nos assiste de ter voz pública, é porque queremos “assumir protagonismo”, uma nova fórmula que inventaram para impor o silencio quando lhes convém, para amesquinhar.

Mas como o surrealismo é imortal, já o dissera Breton – um dos surrealistas e não “o papa” dos surrealistas como diziam alguns videirinhos por maldade – irá sempre em frente, ripostando taco-a-taco a esses cabeçudos de Carnaval.

 

MC | Como se deu o teu primeiro contacto com o surrealismo?

 

NS | Deu-se quando eu tinha aí uns 15 anos. Fora acompanhar minha mãe a um médico local devido a uma ligeira indisposição dela e, na mesa da sala de espera, peguei numa revista (acho que a “Cruzeiro” ou a versão brasileira da “Scala”). Foi lá que vi pela primeira vez obras de Brauner, Chagall, Ernst, Dali, Matta e pequenos trechos de poemas de Éluard, Breton… Soube então, com emoção e alegria, que o que sentia dentro de mim, conforme ao meu instinto, afinal tinha nome público bem reconhecível pois até aí só ouvira vagas referencias. E daí em diante procurei informar-me, fora um deslumbramento. Li mais tarde textos mais consistentes no saudoso “A paleta e o mundo” de Mário Dionísio, um dos livros que mais me marcou a nível de felicidade. Tempos depois, um conhecido que se tornou amigo, funcionário da Gulbenkian, emprestou-me uma série de revistas e, por essa altura, adquiri o “A intervenção surrealista” de Cesariny. Pouco tempo antes começara a escrever no saudoso “Suplemento Juvenil” do “Diário de Lisboa” orientado p’lo Mário Castrim. Em 69, na Guiné-Bissau onde cumpri “comissão militar por imposição” (era assim que constava na guia de marcha), li os “Manifestos” bretonianos prefaciados (?) pelo Jorge de Sena. Depois, já em Portalegre, os “Cantos de Maldoror” na tradução de Pedro Tamen. Tive contactos, assim como o Carlos Martins, durante cerca de 2 anos com alguns dos autores que haviam feito sair o número único da revista “Grifo”, a seguir apreendida pela polícia política (Pide). Tempos depois, aquando duma viagem a Lisboa para que o meu filho mais velho tivesse consulta num ortopedista, conheci o Cesariny: estava com o João junto à estação do Rossio e, olhando em volta, eis que vi o Mário a comprar o jornal ali mesmo ao pé. Dirigi-me logo a ele e durante vários anos contactámos regularmente, nomeadamente efectuando textos para colaborações aqui e lá fora. Depois as voltas da vida fizeram-me seguir outro rumo, sem contudo nos perdermos de vista.

Há um par de anos algo aconteceu de muita importância para mim: conheci, numa sua vinda ao nosso país, Floriano Martins. Mas sobre isso não irei falar agora, deixemos passar mais tempo…

 

AJ | Nos seus textos percebe-se um claro interesse pela espagíria. Há uns tempos, embora de forma discreta, disseram-me mesmo que você teria contacto com adeptos, pessoas ligadas à prática da alquimia ou membros da pouco conhecida Irmandade Rosacruz. Quer comentar?

 

NS | Não acredite nisso! O surrealismo, é facto, sempre se interessou pela Arte Magna, no fundo a arte e a imanência surrealistas são, como afirmou Michel Carrouges, uma operação alquímica no plano da linguagem, das formas e da existência. Quanto a estar eu em contacto com adeptos… claro que é “lenda”, não tenho categoria para isso, nem nunca conheci, cá ou lá fora, pessoas que praticassem essas artes, mas apenas alguns curiosos nesses assuntos. Bem gostava, mas infelizmente é um meio que me é estranho. Calculo que essa suposição se deva a durante algum tempo ter vivido perto de S.Julião um médico inglês aposentado, Lionel Crabowe, de quem por um acaso fortuito me tornei amigo. Como era pessoa de leituras, assinava – pelo menos recebia – umas revistas ligadas a esses temas, “Alchemy” (inglesa) e “La tour Saint Jacques” (francesa). Eu lia-as de empréstimo e é natural que algumas vezes certos amigos ou conhecidos eventualmente me vissem com elas.

Tanto quanto sei, os adeptos não andam assim pela vida quotidiana… Ou talvez andem, sei lá, mas a verdade é que não conheço nenhum. Refiro-me aos verdadeiros adeptos, não aos curiosos que o serão como se pode ser pela escultura, pela geologia… Faço-me entender? É verdade que dum ponto de vista intelectual, de grande leitor, me tenho debruçado sobre a Santa Philosophia, que é um dos campos que como já disse o surrealismo também encara com aprazimento, mas é tudo no plano da poética aplicada ao mito. Além disso, como decerto sabe pelas regras de Geber, o adepto tinha de ser uma pessoa rica ou pelo menos com meios suficientes para aguentar as despesas das manipulações e matérias necessárias, que são caras. E tanto eu como os meus contactos somos o que se chama eufemisticamente “gente pouco abonada”.

 

MC | Pode sonhar-se com a possibilidade do Euromilhões…

 

NS | Bem metida… Mas se essa panaceia resolvesse visitar-me, creio que emigraria antes para uma ilha dos mares do Sul, não gastaria, confesso, as lecas em coisas que me ultrapassam!

 

AJ | Somos todos emigrantes internos… Bem, creio que nos ficaremos por aqui se concordarem. Uma última pergunta: que vai fazer depois de nós sairmos?

 

NS | Beber uma limonada para rebater o nosso almoço talvez um pouco demasiado substancial… E depois ler um texto sobre o Luther King que comprei recentemente. Ou rever um filme da Katherine Bigelow que me anda a suscitar.

Ou, às tantas, não fazer nada disso e deixar-me ficar um bocado à janela, a olhar para a tarde deste dia que tivemos a sorte de estar tão belo apesar de um pouco frescote. E meditar… sei lá!

 

NOTA

Nestes tempos algo confusos talvez seja indicado esclarecer, ainda que sem o menor acinte, que nada tenho a ver com algum surrealismo protagonizado por académicos de sucesso e/ou por sucessos académicos que segundo me contam vai fazendo o seu percurso com algumas escaramuças à mistura e eventuais polémicas vincadamente lírico-picturais.



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Número 175 | julho de 2021

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