A carta vinha da Guiné-Bissau, o amigo era o NS. O poema
nascera, tal como o texto explosivo, no absurdo da guerra colonial em que então
Portugal estava metido e propunha(m) o prazer contra a solidão e a morte envolvente,
transfigurando o horror destas em vida e fruição futuras. Razões da vida profissional
fizeram-me perder de vista o amigo, conquanto o poeta me aparecesse aqui e ali em
breves momentos e, de quando em vez, uma breve missiva me chegasse quer à região
de Espanha onde então habitava, quer à cidade europeia (Londres) para onde o meu
trabalho me transplantou.
Reencontrámo-nos mais
tarde numa rápida manhã alentejana de 1981 e, num desses acasos em que a existência
é fértil, em Toronto, cidade do outro lado do mundo em que por feliz coincidência
nos achávamos.
Reencontro-me agora com
ele, mais velhos os dois, mais questionados. Na sala modesta pejada de livros e
de objectos apontando mais para a memória afectiva que para uma decoração estudada,
centenas e centenas de livros que guardam para oferecer a quem os abrir tudo o que
a imaginação pode dar-nos, conversamos. Sente-se que, aqui, os livros não são um
álibi mas companhia e “paisagem” natural. E é por aí que o triálogo começa. [NS]
Manuel Caldeira (MC)
| Nicolau, porque tens tantos livros? O que é que os
livros representam para ti?
NS | São uma espécie de Jardim Zoológico… sem prisioneiros. Ler é para mim uma
forma de comunicar, de resistir à morte civil e à exaustão do quotidiano. É uma
das minhas formas de brincar com a morte… Como sabes, cada livro põe-nos à prova,
é preciso mantermos uma grande serenidade, um enorme sangue-frio! Os livros são
também, digamo-lo assim, a minha sociedade secreta, uma espécie de mar com ilhas
sempre novas. São também a negação duma determinada sociedade que quer é que a gente
veja televisão e passeie de carro até ao fim da gasolina mental…
Augusto José (AJ) | Mas você vê televisão…
NS | Evidentemente! Mas quem é que não vê? Só os hotentotes, possivelmente. E
mesmo esses… Mas só vejo o essencial, o indispensável. E posso garantir-lhe que
não ouço os discursos nem assisto às telenovelas…
MC | Isso também já seria demasiado!
NS | … a não ser para renovar um certo nojo. Misturado com riso, aliás. A televisão
como presença obsidiante, note, porque também por lá aparecem às vezes belas coisas,
é o grande ser sagrado do nosso tempo. Nessa medida, é óbvio que está a acabar com
a componente mística da religião, que é hoje um rito em aceleração… basta ver as
missas televisivas, sem esquecer que neste país houve durante algum tempo uma emissora
da Igreja que a breve trecho teve de ser vendida a um grupo menos “metafísico”…
Conhecem, já agora, um conto do Bradbury em que ele descreve os EUA totalmente modificados
por se terem estragado, devido a manchas solares, todas as cadeias de televisão?
Pois leiam, que vão gostar. Quanto aos livros, eu não acredito como os chamados
“situacionistas” que seja indispensável liquidar as artes e a cultura. Isso são
teorias espúrias de intelectuais abastardados. O que é preciso é acabar-se com a
ignorância, com a estupidez e isso passa também por amar a cultura mas recusar a
kultura, a tal de colarinhos e gravata.
AJ | Então não crê que a verdadeira cultura ande na rua?
NS | Anda, assim como lá andam também os autómatos quotidianos, os polícias, os
díscolos e toda a sorte de sacanagem… Ser livre não implica ser ignorante. Ser culto
é precisamente o contrário de ser convencional ou atrofiado. O que é preciso é não
se perder o nosso coração de criança, tal como Savater o descreve. Chevaucher le tigre, como dizia Raymond Abellio.
Ter frescura e ser espontâneo, o que não é o mesmo que ser gostosa e brutalmente
acéfalo. O mito do bom selvagem… Quem é que ainda acredita nisso?
AJ | Alguns acreditam…
NS | Ou fingem que acreditam. Como sabe este é o tempo das surpresas, surpresas
de ordem mental e mesmo social. Num dos textos desses senhores um deles dizia em
tom de programa (cito de memória): só haverá uma sociedade mentalmente aberta quando
o artista, saindo à rua, correr o imediato risco de ficar com um olho deitado abaixo…
Repare-se que diziam isto quando em certos países totalitários artistas eram encarcerados
e até mortos. Não é estranho que fosse também nessa altura que estes cavalheiros
despediam um violento ataque ao surrealismo!
Desconfio muito e tenho razões para isso de certa gente benemérita. Assim
que os ouço ou leio que estão a dar muitas palmas ao “popular”, ao “natural”, preparo-me
para o pior. A meu ver é uma pura mistificação… questão de calabouços ou de votos
e sandices semelhantes. A meu ver o povo não precisa de “graxa”, precisa é que o
não aborreçam ou mistifiquem em ordem a ficar ainda mais afastado da plena cidadania.
AJ | Estes quadros são de sua autoria? Diverte-o pintar? Porque pinta?
NS | Se é que se pode chamar pintura ao que faço… Parece-me que a profissão de
pintor implica uma estratégia, uma sistemática. Digamos que a minha “pintura”, ou
a minha atitude enquanto “pintor”, é uma viagem no universo das cores e das formas,
mais nada. Às vezes dou por mim a pintar figuras com alguma habilidade, noutras
nem sou capaz de reproduzir aceitavelmente um cavalo, um rosto… Eu creio que assisto
com gozo e certo sofrimento ao nascimento dos… quadros e, se esta resposta o satisfaz,
então sim, divirto-me. É uma espécie de brincadeira, um jogo… Mas “a posteriori”!
Antes é uma certa angústia, uma inquietação, uma febre enquanto dura a feitura.
Acho – e não estou a ser solene nem, espero, demasiado dramático - que a pintura
é um jogo algo mortal, em suma. Pode morrer-se por dentro e até já houve pintores
que morreram por fora por se haver sumido, ou não ter aparecido, o universo que
buscavam ou intuíam. Para além disto, a pintura como a sinto pode também ser uma
coisa habitual, digamos calma e secreta, como a presença dos ruídos familiares numa
tarde de Agosto… numa noite de Junho, como a presença de um gato, um sabor ou um
cheiro, um acto quotidiano. Mas é sempre uma viagem sem bússolas, no meu caso. Vou
confessar uma coisa: às vezes, principalmente quando estou deitado a descansar,
ou sentado a meditar, ou a andar pelo campo, aparecem-me na cabeça quadros belíssimos…
Mas não sou capaz de os reproduzir, é um desespero! Se conseguisse (mas às vezes
nem tenho materiais adequados) era um grande pintor. Assim sou, tenho consciência
disso, apenas um curioso com alguma felicidade, digamos…
MC | Sem bússola… O homem no labirinto? És um homem em cólera?
NS | Apre, creio que não! Só excursão sem pontos marcados. Ná, definitivamente
não. Pelo contrário, para além da normal indignação de um mais ou menos atento habitante
do meu século, sou um indivíduo que apenas despreza, não odeia. Para odiar é preciso
ainda suar… Já lá vai o tempo em que eu odiava. Odiei muito, assim como amei muito.
Agora, sem eu querer conscientemente, apenas sinto capacidade para amar suavemente
ou desprezar. Aqui há dias, ao ler um texto apontando para as semelhanças mentais
entre o Hitler e o Bin Laden, dei comigo a ter uma sensação de irrealidade, de desprezo
e de pena repugnada.
AJ | E o que é que despreza, fundamentalmente? Quem é que despreza?
NS | Em primeiro lugar desprezo os oportunistas, tanto na vida quotidiana como
nas letras & artes… Aqui na cidade de Portalegre e no Alentejo, para não sair
da região, tenho conhecido vários. Pequenos oportunistas, porque isto é uma terra
pequena. O que aliás não me descansa, às tantas uma pessoa gostava de encontrar
canalhas em grande, como no Balzac… e apanha só canalhinhas à portuguesa! Bom… E
desprezo também os enfatuados, os que se escondem por detrás do dinheiro ou do poder.
A nível geral desprezo os politiqueiros, os raposões que fazem grandes frases e
apenas querem enganar o povo, os – no caso da escrita – que constroem as suas lendas,
grandes ou pequenas, sobre a desgraça dos povos, para acatitarem as respectivas
produções. Mas os que desprezo acima de todos são os que se proclamam irmãos dos
homens e nada mais têm para lhes dar que obtusidade, dureza e frieza. Pessoas por
vezes com grande formação académica e intelectual, universitários e quejandos, mas
que são uns perfeitos patifórios, usando o lugar de que dispõem para exterminar
a dignidade com um evidente sentido de que o podem fazer impunemente.
MC | Podias citar algum nome?
NS | Nem por sombras! Não por sentido de decência, digamos, mas por sentido
das realidades… Se o fizesse estava desgraçado! Não haja equívocos: tenho amor à
pele e “os tais” cá no meigo país (Ribeiro
Couto) são quem manda no dia-a-dia. Se eu falasse abertamente, “quilhavam-me” na
certa. Esclareçamos de uma vez por todas que isto não é ilusão, podia contar estórias
bem reais de manigâncias artilhadas por senhores que são mais nefandas que as de
bandidos das ruelas… Guardo essa voz aberta, vocês desculpem, para um livreco de
memórias… a sair quando já estiver a “fazer tijolo”… Mas os nomes abundam, da política
à religião, da economia à saúde pública… às letras mais respeitáveis, infelizmente.
AJ | Como se define? Poeta surrealista, surrealista só, anarco-surrealista? Como,
afinal?
NS | Ao contrário do que às vezes se usa fazer (“os outros que me definam” e tal… ) tenho muito gosto em me definir…
até para poder epigrafar o que me parece legítimo: creio que sou um poeta surrealista
pop. Nos meus textos, se bem notar, o universo onírico entra e sai (como uma bomba
de pistão?) pela sociedade de consumo adentro, são constantes nos meus textos as
referencias aos objectos e coisas característicos dos tempos que correm, comidas,
lugares quotidianos, coisas vulgares em suma. Isso não é, evidentemente, premeditado,
garanto-lhe que não tenho gosto pelo miserabilismo, não há tanto quanto me dou conta
qualquer propósito preconcebido. Sinto a dada altura que os textos vivem vida própria,
vivem por eles mesmos. Os mundos à Dali não me atraem nada enquanto hacedor, nada me dizem, os vastos painéis
oníricos encaro-os como entidades… bem, falecidas. A meu ver o universo da poesia
não é extático, há uma intrínseca vitalidade nas coisas. Sonho, sim, mas com cadeiras,
janelas, motocicletas, roupas até. Que eu me lembre nunca sonhei com cavalos voadores
ou homens espantados de olhos na ponta do nariz ou assim… O meu surrealismo é de
situações inusitadas entre os factos e as personagens, o que me parece ser muito
peculiar e ter muita força. Aliás, a “imagerie” surrealista à la page (ou pseudo-surrealista, se quiser)
nunca foi cultivada com insistência senão por falsos surrealistas e explorada por
publicistas pouco éticos ou propriamente tolos.
MC | Estás a sorrir largamente ao dizer isso…
NS | Indo além do humor subjacente, seria talvez curioso referir que o que mais
me atrai e atrai-me intensamente nos quadros de Picasso, que é com Cézanne um dos
meus pintores preferidos mas não em todos os momentos (noutras alturas sou mais
sensível a Lee Krasner ou Cy Twombly) é a exemplar presença de objectos transfigurados
mas sem deixarem de ser eles mesmos, reais como tudo (surreais?). Enche-me de admiração
e prazer o partido que ele soube tirar de candeeiros bruxuleantes (como vi na infância,
quando morava no campo), de palmatórias de velas, de caixas de bolachas, de pratos,
de cântaros, de atavios, de garrafas, de coisas para o quotidiano urbano, de instrumentos
para os trabalhos de quinta… Creio que os objectos deste tempo a consumir-se (a
meu ver ainda não saímos verdadeiramente do século vinte) me atraem porque extraio
deles um sentido vestibular de anti-catástrofe que me permite passar indemne para
o universo saudável do sonho inserido na vida corrente. Digamos que os vejo de vários
pontos de vista mas que estão sempre ligados à vida calma e fecunda, à felicidade
simples. Tenho para mim que este mundo, agora sim à beira da destruição atómica
– os soviéticos eram do nosso tempo, continham-se, ao passo que os islamitas vivem
na idade média… com electricidade – não chegou a conhecer perfeitamente, leia-se
estimar, na sua verdadeira dimensão os instrumentos e objectos sobre os quais erigiu
o seu dia-a-dia. Com ressalvas pontuais, é claro. Em contrapartida, veja os índios.
Os objectos eram para eles não entidades anónimas ou sagradas (no sentido em que
pertenceriam a uma mística) mas entidades respeitáveis e poéticas. Tinham um lugar
estimável no mundo. Por seu turno, a nossa sociedade usa os objectos, como usa as pessoas. É uma sociedade canibal,
com ligeiras excepções.
Os objectos motivam-me porquanto os transformo em signos, em símbolos, servem-me
de trampolim para saltar para o meio do mundo, o verdadeiro mundo, onde até os objectos
poderão ser felizes e repousar e ter alegria. Nós, quando estamos em estado de graça,
formamos com tudo o que nos rodeia em singeleza um cosmos único, assombrado, o que
significa que as coisas funcionam como espelhos de um dado real.
NS | Francamente não sei, estimaria bem que assim fosse! É muito possível que
sim, quem sabe? Repare que não tenho gosto de proprietário, para usar este termo,
em relação aos objectos caros que não recuso e até me agradam, pois têm uma qualidade
estética a que sou sensível e que infelizmente não posso comprar a não ser com sacrifícios.
Como constatou já, concerteza, a minha não é uma casa rica, as coisas custam dinheiro,
de que nunca tive grande abundância…
MC | As coisas usam-se como escravos…
NS | Pois, também… A propósito, sabem decerto que em Roma os escravos eram chamados
“utensílios falantes”…
MC | E na China os criados eram posse do patrão enquanto estavam dentro da casa
dele…
NS | Em resumo, os objectos causam-me vertigens e pena: pobres deles, tão usados,
tão explorados. São o lumpenproletariat do
nosso sistema, candidatos à lixeira. E no entanto… Já repararam que têm tanta procura
as feiras de objectos antigos? No programa inglês “People & Arts” vi um programa
sobre feiras de leilões que era deslumbrante. Em episódios, gravei-os todos… Objectos
que, sublinho, normalmente são guardados em sótãos, outro dos lugares mágicos do
surrealismo, até que alguém os descubra, os reencontre…
AJ | Há uns anos morreu-me uma tia, uma senhora muito curiosa, um bocado à antiga.
O sótão da sua casa era surpreendente, um verdadeiro cofre mágico!
NS | Não me fale nisso, que me cresce água na boca! Alguns objectos dos meus primeiros
tempos, que são como companheiros de jornada, olho-os como se olha um dedo do pé,
um detalhe do rosto… Daí em geral não renovar mobiliário pelos anos fora. Não dispenso
a minha velha secretária, a minha velha cama, alguns candeeiros a petróleo, uma
velha banca de cabeceira… Tenho um frigorífico, que comprei a umas senhoras adventistas
que liquidaram os móveis antes de voltarem à América, que já faz parte da família…
No fundo é a velha questão da antiga magia. Os utensílios ficam “carregados” de
nós, mas a latitude aqui é a da magia branca. Claro que se trata do amor intenso
à vida que se viveu…
MC | É uma espécie de passeio pelas diferentes idades.
NS | Outra coisa que me atrai inapelavelmente são as casas. As casas, quer sejam
em claridade ou em sombra, são todas tão estranhas! Nem é necessário procurar muito,
são a coisa mais estranha que há. São o símbolo localizado do cosmos, até se costuma
utilizar a expressão “a casa do mundo”,
mas um cosmos misterioso e secreto, apesar de luminoso. Fantástico e familiar. Efectivamente,
foi o Homem que deu luz à casa, a casa é simultaneamente asilo e prisão. Defesa,
fruição e inquietação. O universo das casas é muito mais inquietante e maravilhoso
que os universos estelares, que aliás só alguns vêem na sua real corporalidade (estão
muito longe). Esses podem ser conhecidos mediante o estudo científico, são objecto
de ciência, a Casa é simplesmente hipótese, porque uma vez erguida pelos arquitectos
deixa de ser apenas um local para se transformar em algo mais. Fica a pertencer
ao universo que só é desvendável através da poesia, feita em verso ou em prosa.
Aqui aponto para um livro excepcional, “A
vida modo de usar” de Georges Pérec, no qual ele descreve um edifício de Paris
e não só quem nele vive mas as coisas que o enchem ou ali são feitas. E quer coisa
mais triste e perturbadora, até inquietante, que uma casa abandonada, em ruínas,
no meio dum campo numa tarde quente de Julho? Quando de súbito, numa curva do caminho
em que passeamos, nos aparece com toda a sua memória de coisas e pessoas idas?
MC | Não é por acaso que é nas casas que há fantasmas…
NS | E acima de tudo a recordação de gente viva! Lá pelo fim dos anos setenta
fui com o Cesariny ver um filme policial intitulado “O gato e o canário” e apesar da película, como ele dizia e bem, ter
alguns buracos, a casa onde decorria a
acção era enfeitiçante, fascinadora. Dava corpo a um ambiente cheio de sugestões
e de ambiguidades no qual a intriga dependia em grande parte da sua beleza e fascínio
sensual e criminal. Num outro filme, também visto pelos dois (ambos partilhávamos
o gosto pelo mistério), de novo o tema das moradias é tratado: é sobre uma casa
que “toma o freio nos dentes” e se põe
a viver angustiante vida própria. Nessa película – “Férias macabras”, dum especialista do fantástico, Dan Curtis – o realizador
devolve à casa o seu poder de fantasmagoria, recoloca a casa no lugar mais perturbador:
universo paralelo, sonho sobre o sonho, realidade inteira e inteira ausência, prazer
e maldição…
AJ | Lembro-me desse filme, vi-o há uns dois anos em reposição na TV por cabo.
Calculo o que teria sentido ao vê-lo no grande écran. Em certos trechos era de fazer
saltar das cadeiras, mas não foi isso que mo conservou na memória. Funcionava como
que em círculo…
NS | Lembra-se da cena da estufa? A cena em que o protagonista, um dos melhores
actores ingleses da época (Oliver Reed, muito bem acompanhado por Burgess Meredith,
Karen Black e Bette Davis) entra na estufa há anos abandonada e a encontra repleta
de rosas, gladíolos, girassóis, orquídeas, tudo mergulhado num ambiente de sonho
e de felicidade edénica… E as luzes, as luzes que de repente rodeiam a casa como
que num verão interminável? A propósito, sabem que uma das coisas que mais perturba
os neuróticos – simples particulares ou gente pública – são as cores brilhantes?
É uma descoberta recente de psiquiatras de topo…
AJ | Desconhecia esse facto, mas não me admiro. Talvez se explique assim a hostilidade
que alguns manifestam pela pintura…
MC | Pelo menos em público… Muitos têm as salas de jantar bem fornecidas de quadros.
NS | Talvez no lar sejam pessoas normais e guardem essas neuroses para nos atrapalharem
a vida… Estou a brincar, é evidente que na maior parte dos casos certa gente tem
quadros devido ao seu preço, como afirmação de status. Mas, falando a sério, sabes que num estudo de Francis Mayer
ele assinala que nas residências de pessoal de topo se encontram sobretudo obras
pouco coloridas? Aliás, o ataque que na época se movia aos impressionistas, mais
do que por deformarem a perspectiva, era
principalmente devido a haver nos seus trabalhos grande profusão de cores…
AJ | Passemos agora a outro tema. O que pensa da literatura portuguesa actual?
E da literatura em si?
NS | Enquanto continente de percursos e prestígios, cá ou lá fora, não me interessa
nada. No que respeita ao folclore do género, vejo-o de longe com certa aversão,
pois me parece fazer parte de um ambiente geral de parlapatice. Não me diz nada
enquanto literatice e creio mesmo que autores que se respeitam sofrem um pouco com
esse cenário. Enquanto paixão interessa-me muito, é uma parte muito importante da
minha vida. Aliás, numa palestra que fiz há uns dois anos em Espanha deixei isso
bem claro. É uma grande aventura. Não posso esquecer o gosto com que defrontei –
não apenas como simples leitor - livros como “Mau tempo no canal” de Nemésio, “Voltar atrás para quê?” de Irene Lisboa, “Apresentação do rosto” de Herberto Hélder, os livros de contos de Branquinho
da Fonseca, prosa de Pascoaes e de Raul Brandão… O teatro do Ionesco, mesmo os seus
contos, as reflexões memorialísticas em que se vasou às vezes, o “Margarita e o mestre” de Bulgakov, “A montanha mágica” de Thomas Mann… São experiências
absolutas, só por isso valeu a pena ter vivido. Não falando em certos autores mais
chegados, cuja escrita também sigo atentamente. No entanto o comboio literário em
estilo Deve-Haver é frequentemente uma tristeza mas, como vivo fora desses meios
onde as pugnas mais intensas acontecem, não sou muito tocado pela eventual peralvilhice.
De vez em quando em fortuitos órgãos de informação topo com inquéritos género
“ano passado nas letras” ou “para onde vai a literatura” que relanceio
com certa má disposição porque aquilo tem mais o tom de treta mercantilista, o usual
tique de coscuvilhice. Pacoviada. A literatura para onde vai? Para onde sempre foi,
para o limbo dos séculos. O que interessa é a poesia e a escrita que se erguem altivamente
para escarnecer as leis e ofender os deuses, como dizia Brassai. O resto é assim
como que cocoricó para seis anos de imortalidade…
AJ | Mas não distingue aqui e ali sinais de inconformismo?
NS | Claro que sim. Mas não se trata apenas de apelar ao inconformismo, o caso
é algo diferente. É preciso uma justificação um pouco mais séria, a vida é qualquer
coisa de muito dramático. Trata-se do seguinte: nos últimos tempos têm tentado dar
a poesia, a escrita, o “complexo literário”,
como algo de supranumerário, talvez porque antes se tentava fazer dele uma arma
de ascensão político-partidária. O que por vezes me parece que há é tácticas de
sector onde o que se busca é fazer do autor uma espécie de padre sem sotaina, no
mais acabado estilo de super-mercado ou de assanhada evangelização para primários.
Aponto, como exemplo, para o neo-naturalismo (para empregar a expressão cunhada
por Levi Condinho) que entre nós quer agora ocupar totalmente, totalitariamente,
a paisagem. De forma ainda mais nefanda que os antigos próceres e proponentes do
“realismo-socialista”, pois esses ainda
tinham uma justificação ideológica. Nestes lê-se, sem ser necessário binóculos,
o simples nivelamento por baixo, para que a sua mediocridade, controlando por fora
e em simultâneo “a praça”, seja legítima
e imprescindível.
No campo das escritas as mais diversas os surrealistas trabalham sem rede,
a própria busca de continentes novos a que se votam é por vezes empatada e prejudicada
por gente que, já sem sequer disfarçar, o que quer é prebendas mesmo que a sua falta
de talento as não justifique. E há encenações para “inglês ver”: certos prosopoemadores, que se desunham em tragédias artilhadas
em livro, quando na vida quotidiana tiram a mascarilha afinal são cidadãos cheios
de calma, muito contentes com o lugar que ocupam na árvore dos níveis…
MC | E tu? És calmo?
NS | Calmíssimo… mas noutro espaço, noutro clima. Talvez seja um privilégio, afinal
eu não ando na literatura…
MC | É possível estar-se fora da literatura e fazerem-se versos que andam publicados
nas revistas da especialidade, em jornais, alguns bem destacados? Achas isso possível?
NS | Claro que é possível. Porque há o publicar-se versos como defesa contra as
condições miseráveis em que nos obrigam a viver espiritualmente – e nem me refiro
a certas condições materiais de parte da população, agora que no país se está a
tentar instaurar uma nova ditadura – e o que se publica para uma carreira “técnico-social”… Afinal, pelo menos em Portugal,
o que é reconhecivelmente andar-se na literatura? É sair em livros sempre que se
estende um dedo, ter gente à volta a tirar-lhe o retrato, literário inclusive até
à saciedade, opinar sobre tudo desde a bola à gastronomia, etc. Para isso é necessário
um estado especial de espírito e até compreendo que como pequenos Dalis certos autores
deliberem servir-se dos malacuecos em
torno. O que me desagrada e nisso nunca estaria é a jogada literata. O que é que
isso tem a ver com poesia e verdade? Nada, a meu ver.
NS | O surrealismo foi um dos primeiros companheiros do cinema. No cinema, o surrealismo
tal como o entendo interessa-se sobretudo pela realidade em todas as direcções.
Daí que esteja bastante para além – aqui como na escrita ou na pintura – do automatismo
ou do absurdo fantasista onde têm procurado encalhá-lo. Como referiu António Maria
Lisboa, surrealismo não é sinónimo de fantasia, mas sim de realidade profunda e
aumentada, surrealidade portanto. Não é pois de estranhar que quem se reclama dessa
condição deteste os apatetados e pedantes filmes de análise, que na verdade tentam
é desvirtuar as questões vitais com intuitos confusionistas. Bem como as películas
que apelam para a justificação da moralidade burguesa mais grosseira, ainda que
finjam revolucionarismo, ou as imbecis fitas para tornar os cretinos ainda mais
cretinos com o pretexto que os estão a divertir, ou seja estupidificar. No plano
técnico, ou artístico se preferir: os que não têm ponta de invenção, que repetem
até à saciedade fórmulas estereotipadas porque junto de certos meios provaram que
rendiam… A essa traquitana opomos a magnificência soberana de películas de Tati,
Chaplin, Buñuel, Resnais, mas também de modernos ou desenquadrados que ainda não
atingiram o Olimpo dos clássicos, encenadores que vão fazendo os seus filmes da
maneira que podem ou que os deixam mas que criam obras de valor que por vezes nem
são reconhecidas na altura em que os fazem. Ou seja, a imaginação além do poder.
Tudo o que permite ao Homem ultrapassar a “condição
humana” mas em termos não desfigurados. O meu realizador preferido talvez seja
Manckievicz, o de “Autópsia de um crime”,
de “O perfume do dinheiro”, de “Bruscamente no verão passado”. Os que já
citei e também Polanski, Hitchcock, Roy Ward Baker, Orson Welles, fitas de Freddie
Francis, Peter Sykes, o “Blade Runner”
de Ridley Scott (a quem dediquei um poema), o Elias Merhige de “O suspeito zero”…
MC | E Antonioni, Pasolini, Fellini…
NS | Quanto a Antonioni, ressalvo que excepto quando começa às voltas e voltinhas
racionalistas. Mas o “Deserto vermelho”
é um filme consistente com certos pedaços soberbos, como a cena em que operários
electricistas explicam à protagonista que estão a montar uma construção metálica
para ouvir as estrelas, uma geringonça que faz parte de um observatório astronómico,
ou outra em que um navio parece navegar por uma rua dum entreposto.
Por outro lado, talvez seja mais correcto dizer que tenho filmes preferidos,
ao invés de falar de encenadores. Gostei muito, por exemplo, do “Os trovadores malditos” de Carné, do “O vagabundo dos sonhos” de René Clair e não
me posso lembrar sem um estremecimento do “Pândora”
de Arthur Levin, triunfo do amor louco e da existência apaixonada. Mas garanto que
a lista é infindável, tenho quase seis mil filmes e, desses, uma enorme parte é
excepcional.
MC | Este é um tema que nos levaria longe… Ultimamente tem-se falado muito no
reacender duma certa rivalidade ocidente-oriente, em termos de oposição como no
tempo dos blocos. A Rússia volta a calçar as esporas, há o surgimento do fundamentalismo
islâmico, mesmo o mais brando do novo nacionalismo árabe, a entrada peculiar no
mercado da China… Preocupa-te o problema atómico?
NS | Até há uns anos não me preocupava em demasia, aliás verificou-se que tinha
razões para pensar assim pois não houve a hecatombe leste-oeste que muitos profetizaram.
Agora começo a estar preocupado. Se nos abstivermos defazer a cena de membros da
“agitprop”, como nalguns sectores se tornou
aconselhável menos por moda que por inconsciência, verificaremos que certos grupos
ou países tentam munir-se de força nuclear sem possuírem um equilíbrio interior
clarificado. Nada de hipocrisias: certo ocidente é ávido e cínico, mas tem um certo
grau de realismo que ao menos lhe diz que as bombas são para cair em cima dos outros
e não sobre eles… Daí, pensando no ressalto, terem-se contido pelos tempos. Mas
o que poderá impedir um prócere de Mafoma, que acredita que o seu deus depois refará
o mundo em três tempos, de destroçar tudo em volta, inclusive o seu próprio habitat? Não deixemos que o politicamente
correcto nos faça reféns de sectores fanatizados. Devemos levar a sério gente que
acha mal que o catolicismo nos explore mas já acha bem que o islamismo nos oprima
ou mande para o Além? Sim, levemo-los a sério mas só para lhes fazer saber que,
como na anedota célebre, é tão nefasto levar-se com um cacete manejado com a mão
direita como com uma cachaporra usada com a mão esquerda. Se conseguirmos que os
fundamentalistas permaneçam desnuclearizados, podemos esperar que os outros preservem
o globo terrestre. De que lhes serviria um mundo sem criados? A não ser que algum
louco assuma ascendente, parece-me que o sentido é o da aproximação ao desarmamento
progressivo, ou pelo menos uma certa dieta armamentista que transporta consigo,
entretanto, problemas de estratégias, jogos de influencia e mercados demarcados.
O que me preocupa verdadeiramente e aliás já se estava a desenhar no horizonte,
é a aliança objectiva dos vários blocos contra o chamado homem comum: os bancos
de dados e os computadores permanecem um enigma para o cidadão vulgar, as super-polícias
secretas são já em parte indiscerníveis, os impérios dos mídia refinaram a sua capacidade
para lavarem os cérebros, certos governos – como nos últimos tempos o governo português,
liderado por um homem simultaneamente obstinado e frio, mas que se nota ter um tique
de contida violência, com uma feição interior autoritária inquietante – tentam desenvolver
capacidades que cada vez mais escapam ao nosso controle, transformando a sociedade
aberta ocidental para pior. Por exemplo, a cultura popular apesar de em muitos casos
ser residual, estão-na a confundir deliberadamente (chegando a dar apoios para se
auto-destruir mais depressa) cada vez mais com cultura de massas. Por outro lado,
também é verdade que o poder, que infelizmente é sempre discricionário, já não controla
bem os próprios organismos que criou. Talvez por isso, creio que precisamente por
isso, é que o governo português está a tentar juntar numa só estrutura piramidal
os organismos repressivos, as “forças da ordem”
como se diz em democracia e que entre nós é um facto ilusório. O que também pode
significar um caos a mais. Assiste-se à desagregação das alavancas do poder, a fera
dos mídia já não se domina bem (já há casos de nítida inflexão fascista, como o
célebre caso lusitano do “Envelope
Digo com ironia magoada: talvez algum louco quebre este ritmo, mas antes
do mundo à Aldous Huxley espreita-nos o mundo à Orwell.
AJ | Pois, o quotidiano difuso mas que constrange. O seu quotidiano constrange-o?
NS | Evidentemente, embora eu tenha mecanismos para lhe escapar. Independentemente
do facto de que estou aposentado, o que facilita o dia-a-dia, eu tenho dois quotidianos,
digamos assim: o de dentro e o de fora que me liga à vida em sociedade, a sociedade
policiada e que tenta não nos deixar em paz mesmo que tenhamos uma quinta isolada
e só saiamos dela de mês a mês (que não é o meu caso, falo simbolicamente). Viver
em sociedade não é fácil para ninguém e muito menos para um poeta, temos de engolir
muito em seco e sabe-se como os próceres do poder não estão para poesias, essas
inanidades… O quotidiano certas vezes gratificante, por vezes penoso que tive nos
tempos em que era preciso aturar canalhas para não perder o ganha-pão, já lá vai.
Este de agora, que tem coisas pouco amáveis em muitos casos, ultrapasso-o sem problemas
de maior, tanto mais que como se sabe o espírito pode mais do que a carne. Digo
isto com perfeito à-vontade, porque nem sou crente, embora tenha um enorme sentido
do sagrado, mas um sagrado não personalizado ou de obediência a um credo. A meu
ver, posto que seja tolerante e tenha bons amigos praticantes, a religião é uma
corruptela do sentimento poético, nascem do mesmo vaso (re-ligare, que significa devolver ao Homem a sua ligação ao cosmos)
mas a religião fica-se em última análise pela vénia a um presumível ser supremo,
extremamente equívoco aliás no que pretende ao nível do mito (há tantos como há
religiões, todos eles ditos o único pelos sequazes), ao passo que a Poesia não precisa
de álibis, fideístas ou outros quaisquer.
Ia então dizendo que o que me perturba é o que sinto passar em volta: a fome
do terceiro mundo, a miséria moral do ocidente, o fanatismo do oriente e a sua hipocrisia
devastadora, a extinção deliberada ou o entravamento da sobrevivência de sociedades
desenquadradas como os esquimós e os índios ainda existentes. Quanto à minha vida
cidadã, não sou muito ambicioso e, se quisesse, podia perfeitamente abstrair-me
pois agora possuo meios materiais suficientes e, acho eu, não se poderia levar a
mal que me “reformasse” mesmo!
Mas não me aborrecem em demasia, os pulhas que por aqui há na cidade não
me tocam – nem é uma cidade insuportável, apenas algo atrasada e onde a venalidade
não assume extremos – e além do mais eu gosto das pessoas quotidianas e da região.
Apesar de deliberadamente algo isolado não sou de forma alguma um afastado, trata-se
de uma escolha livre pois tenho aquilo a que se chama um mundo muito meu.
MC | Tiveste uma infância feliz, já agora?
Em suma: a adolescência foi um mundo encantado que, infelizmente, já só pertence
à recordação. Mas visito-o com frequência, pois uma das minhas melhores faculdades
é a memória quase fotográfica. Como todos os poetas, sou um visual.
AJ | Um visual… como poeta? Não queria dizer como pintor?
NS | Não, como poeta. Os poetas são eminentemente visuais. Só que depois transformam
tudo em palavras, tal como os pintores fazem o mesmo com traços e cores, creio eu.
Evidentemente que um poeta é também um auditivo mas os ritmos, no poema, na feitura
do poema, são mais interiores que outra coisa.
MC | Como uma música ao longe…
NS | Como uma música ao longe! Aliás, já reparaste que a poesia é sempre, penso,
um misto de acção consciente e de nostalgia? Quando leio poesia tenho a impressão
que algo musical soa ao longe… E curiosamente, quando faço poesia, quando algo me
chega e me sento a escrever, apago de imediato qualquer aparelho que esteja a emitir
música. Não sou capaz de escrever nem de ler com música de fundo… Ruídos ainda vá
– o piriquito a pipilar ocasionalmente, carros que passam na rua, vozes de miúdos
a brincar, a minha mulher a cozinhar… Música nem por sombras, ocupava-me a atenção
e tirava-me o som das palavras e das frases que me soam na cabeça…
MC | Mas ainda sobre o quotidiano…
NS | Tudo se passa como numa fotografia a preto e branco que de repente fica cheia
de cores. Claro, o quotidiano pode ser detestável pelo que nos chega de fora, em
certas ocasiões temos de nos abespinhar. Mas nunca tenho conferido, com Sartre,
que “o inferno são os outros”. Sartre
era, na minha opinião, um intelectual com tiques de pequeno-burguês com a mania
dos monstros, daí as suas oscilações conceptuais que durante um lapso de tempo até
o levaram a apoiar Estaline. Incomodado, sim, mas pelas desgraças do tempo, os “disparates do mundo” como dizia Chesterton.
Sigo rumo a Sírius, o humor negro é o princípio que ajuda tudo o resto. O gosto
de viver…
MC | O que é para ti o surrealismo? Qual o papel do surrealismo no mundo actual?
NS | O surrealismo é e sempre foi, no meu caso, a forma mais eficaz e bela de
amar a vida e de resistir. O surrealismo foi e é para mim a campina onde encontrei
a cidade sonhada, o meu rio, o meu deserto e o meu veleiro. Há mares e praias na
minha vida e até os fantasmas tomam a forma que lhes tira a penosidade, afastam-se
cabisbaixos. Ou seja, não tenho fantasmas embora tenha muitas nostalgias… O surrealismo,
sem que o programasse, é e foi a minha aposta na realidade inteira. No plano social,
digo como disse um dos primeiros surrealistas: o mundo a vir ou será surrealista
ou perecerá. E já há indícios seguros desta asserção. Significa isto que se os homens
não conseguirem resistir e mesmo afastar a manipulação pretensamente racionalista
que tenta transformá-los em máquinas produtoras de consumismos e fideísmos, terão
de encarar gravíssimos cenários. Se o mundo não se encaminhar para a prática da
poesia, ou seja viver sem fantasmas interiores e exteriores que nos cortam a realização
pessoal, encaminhar-se-á para o holocausto. Não é mais possível continuar a assistir,
sem perder a humanidade, aos massacres contra o espírito perpetrados por espúrias
religiões reveladas e ideologias que já mostraram ser criminais, ou mesmo contra
a matéria: têm de se enfrentar sem demora os problemas da super-população, do aquecimento
global e da extinção de espécies ameaçadas, das técnicas em aceleração, dos novos
produtos multiplicáveis pela genética e a engenharia de ponta.
AJ | E o surrealismo pode concorrer para catalizar, digamos, a contestação a tudo
isso?
NS | Creio que o papel do surrealismo será determinante. Veja quais as fórmulas
que os novos próceres têm oposto ao antigo racionalismo: o marxismo mostrou não
ser mais que uma religião substituta, quando não um aparelho de desmiolação que
tinha de acabar mal. Os chamados “filhos da
natureza”, desde os hippies até aos
actuais adeptos de uma ecologia “herbívora”, passando por grupos meio-religiosos
meio-políticos, a aparelhagem do poder sabe como lidar com eles: exército emplumado,
polícias estipendiadas, escolas públicas difundindo a técnica de se ser criado eficaz,
o sistema judicial controlado por quadrilheiros legais de alto coturno – têm tudo
para solapar os que em última instância a prisão irá acantonar se necessário. Do
outro lado, é a barbárie quase completa em acção… Sim, creio que a imanência surrealista
tem muito a dizer e a classe dominante sabe disso. Cá como lá, acentuo.
AJ | Há pouco mostrou-me uns livros, Documentos
de Informação e combate do movimento surrealista mundial, de Cesariny, Escritura conquistada, de Floriano Martins,
mais umas revistas… Concluo que o surrealismo está activo e sei que segue fazendo
coisas em diversos países. A acção surrealista é hoje mais fácil ou está, pelo contrário,
mais dificultada?
NS | Depende… Em Portugal está mais dificultada. Não porque hoje em dia nos
prendam, mas porque em “democracia” certos sectores refinam os seus métodos: jornais
ditos de referência que nos marginalizam quase totalmente ou nos entravam, entregando
a “análise” crítica sobre as acções ou eventos surrealistas a observadores (não
lhes chamo críticos) que opinam violentamente, no fundo difamando dessa forma quem
tenha o atrevimento de se dizer surrealista. Sem qualquer possibilidade de revidarmos,
eles dominam o aparelho…
E isto é assim porque o poder, que
em Portugal é muito reaccionário, já percebeu que a “féerie” surrealista é algo mais do que aquilo que tentavam fazer crer
– sonho e fantasia. Nunca foi fantasia e, quanto ao sonho, relembro-lhe que há diversas
formas de sonhar… O que o surrealismo busca, já o referiu António Maria Lisboa,
não é dormir de maneira diferente mas sim estar bem acordado, no sentido lato, com
a capacidade de sonho a funcionar no real que nos querem dar como fronteira. Sendo
poesia viva, ele contém os germes de uma coisa muito perigosa, pois o poder tem
medo que a poesia encarne e por isso é que nos casos limite prende os poetas. Nessa
medida, o golpe que encenam agora é remeter o surrealismo para o passado histórico,
prestigiado mas enfim, passado – utilizando os factos e mesmo as personagens mais
famosas precisamente para calarem a voz surrealista de hoje. Assim como quem diz:
surrealistas foram aqueles, ei-los gente graúda, vocês não são nada, calem-se lá,
nós é que sabemos como é! Como não podem eliminar as nossas obras nem dizer que
não prestam (desmascaravam-se!), recorrem então à censura discreta, impossibilitando-nos
de publicar facilmente, de “aparecer”. Chegam a dar a entender que, se queremos
falar alto e claro, reivindicando o direito que nos assiste de ter voz pública,
é porque queremos “assumir protagonismo”,
uma nova fórmula que inventaram para impor o silencio quando lhes convém, para amesquinhar.
Mas como o surrealismo é imortal, já o dissera Breton – um dos surrealistas
e não “o papa” dos surrealistas como diziam
alguns videirinhos por maldade – irá sempre em frente, ripostando taco-a-taco a
esses cabeçudos de Carnaval.
MC | Como se deu o teu primeiro contacto com o surrealismo?
NS | Deu-se quando eu tinha aí uns 15 anos. Fora acompanhar minha mãe a um médico
local devido a uma ligeira indisposição dela e, na mesa da sala de espera, peguei
numa revista (acho que a “Cruzeiro” ou
a versão brasileira da “Scala”). Foi lá que vi pela primeira vez obras de Brauner,
Chagall, Ernst, Dali, Matta e pequenos trechos de poemas de Éluard, Breton… Soube
então, com emoção e alegria, que o que sentia dentro de mim, conforme ao meu instinto,
afinal tinha nome público bem reconhecível pois até aí só ouvira vagas referencias.
E daí em diante procurei informar-me, fora um deslumbramento. Li mais tarde textos
mais consistentes no saudoso “A paleta e o
mundo” de Mário Dionísio, um dos livros que mais me marcou a nível de felicidade.
Tempos depois, um conhecido que se tornou amigo, funcionário da Gulbenkian, emprestou-me
uma série de revistas e, por essa altura, adquiri o “A intervenção surrealista” de Cesariny. Pouco tempo antes começara a
escrever no saudoso “Suplemento Juvenil”
do “Diário de Lisboa” orientado p’lo Mário Castrim. Em 69, na Guiné-Bissau onde
cumpri “comissão militar por imposição”
(era assim que constava na guia de marcha), li os “Manifestos” bretonianos prefaciados (?) pelo Jorge de Sena. Depois,
já em Portalegre, os “Cantos de Maldoror”
na tradução de Pedro Tamen. Tive contactos, assim como o Carlos Martins, durante
cerca de 2 anos com alguns dos autores que haviam feito sair o número único da revista
“Grifo”, a seguir apreendida pela polícia
política (Pide). Tempos depois, aquando duma viagem a Lisboa para que o meu filho
mais velho tivesse consulta num ortopedista, conheci o Cesariny: estava com o João
junto à estação do Rossio e, olhando em volta, eis que vi o Mário a comprar o jornal
ali mesmo ao pé. Dirigi-me logo a ele e durante vários anos contactámos regularmente,
nomeadamente efectuando textos para colaborações aqui e lá fora. Depois as voltas
da vida fizeram-me seguir outro rumo, sem contudo nos perdermos de vista.
Há um par de anos algo aconteceu de muita importância para mim: conheci,
numa sua vinda ao nosso país, Floriano Martins. Mas sobre isso não irei falar agora,
deixemos passar mais tempo…
AJ | Nos seus textos percebe-se um claro interesse pela espagíria. Há uns tempos,
embora de forma discreta, disseram-me mesmo que você teria contacto com adeptos,
pessoas ligadas à prática da alquimia ou membros da pouco conhecida Irmandade Rosacruz.
Quer comentar?
NS | Não acredite nisso! O surrealismo, é facto, sempre se interessou pela Arte
Magna, no fundo a arte e a imanência surrealistas são, como afirmou Michel Carrouges,
uma operação alquímica no plano da linguagem, das formas e da existência. Quanto
a estar eu em contacto com adeptos… claro que é “lenda”, não tenho categoria para
isso, nem nunca conheci, cá ou lá fora, pessoas que praticassem essas artes, mas
apenas alguns curiosos nesses assuntos. Bem gostava, mas infelizmente é um meio
que me é estranho. Calculo que essa suposição se deva a durante algum tempo ter
vivido perto de S.Julião um médico inglês aposentado, Lionel Crabowe, de quem por
um acaso fortuito me tornei amigo. Como era pessoa de leituras, assinava – pelo
menos recebia – umas revistas ligadas a esses temas, “Alchemy” (inglesa) e “La tour
Saint Jacques” (francesa). Eu lia-as de empréstimo e é natural que algumas vezes
certos amigos ou conhecidos eventualmente me vissem com elas.
Tanto quanto sei, os adeptos não andam assim pela vida quotidiana… Ou talvez
andem, sei lá, mas a verdade é que não conheço nenhum. Refiro-me aos verdadeiros
adeptos, não aos curiosos que o serão como se pode ser pela escultura, pela geologia…
Faço-me entender? É verdade que dum ponto de vista intelectual, de grande leitor,
me tenho debruçado sobre a Santa Philosophia, que é um dos campos que como já disse
o surrealismo também encara com aprazimento, mas é tudo no plano da poética aplicada
ao mito. Além disso, como decerto sabe pelas regras de Geber, o adepto tinha de
ser uma pessoa rica ou pelo menos com meios suficientes para aguentar as despesas
das manipulações e matérias necessárias, que são caras. E tanto eu como os meus
contactos somos o que se chama eufemisticamente “gente pouco abonada”.
MC | Pode sonhar-se com a possibilidade do Euromilhões…
NS | Bem metida… Mas se essa panaceia resolvesse visitar-me, creio que emigraria
antes para uma ilha dos mares do Sul, não gastaria, confesso, as lecas em coisas que me ultrapassam!
AJ | Somos todos emigrantes internos… Bem, creio que nos ficaremos por aqui se
concordarem. Uma última pergunta: que vai fazer depois de nós sairmos?
NS | Beber uma limonada para rebater o nosso almoço talvez um pouco demasiado
substancial… E depois ler um texto sobre o Luther King que comprei recentemente.
Ou rever um filme da Katherine Bigelow que me anda a suscitar.
Ou, às tantas, não fazer nada disso e deixar-me ficar um bocado à janela,
a olhar para a tarde deste dia que tivemos a sorte de estar tão belo apesar de um
pouco frescote. E meditar… sei lá!
NOTA
Nestes tempos algo confusos talvez seja indicado esclarecer, ainda que sem o menor acinte, que nada tenho a ver com algum surrealismo protagonizado por académicos de sucesso e/ou por sucessos académicos que segundo me contam vai fazendo o seu percurso com algumas escaramuças à mistura e eventuais polémicas vincadamente lírico-picturais.
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Agulha Revista de Cultura
UMA AGULHA NA MESA O MUNDO NO PRATO
Número 175 | julho de 2021
Artista convidado:
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
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revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
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