O caso de Nora, pelo cruzamento directo
com Alexandre O’Neill, que a abonou de versos, em poemas conhecidos, como “Um Adeus
Português”, e pela marcante edição que fez em Portugal, A Razão Ardente (do romantismo ao surrealismo) (1950; trad. A. O’ Neill),
momento forte da história do surrealismo português, é muito mais conhecido entre
nós do que Péret ou Coyné – e deixo de lado Soupault, que, tendo sido um dos fundadores
do movimento, ao lado de André Breton, nenhum contacto teve com o surrealismo em
português. Coyné é de todos o menos conhecido, e por isso aqui traçamos o seu retrato
a partir do que dele sabemos, e que não é muito. Nada visamos mais nesta despretensiosa
nota do que dar por um lado a perceber o que ele deve ao surrealismo em geral e
por outro o que o surrealismo português lhe deve a ele.
Homem de movimento, descendente de família
habituada a grandes deslocações no espaço, Coyné, nascido em França (Bas-Quercy),
1927, foi viver muito cedo para fora da terra natal, conhecendo César Moro em 1948,
com quem viveu até à morte deste em 1956. César Moro, peruano, foi um dos expoentes
do surrealismo internacional e a ele se deve a chegada do surrealismo à América
do Sul em 1935, com a exposição de Lima, o primeiro evento surrealista da América
do Sul, organizado de colaboração com Emilio Westphalen, que esteve no princípio
da década de 80 do século XX ligado à Embaixada do Peru em Lisboa e aqui conviveu
com Mário Cesariny. Moro em 1938 foi para o México, onde se cruzou com Breton, e
aí preparou com Wolfgang Paalen a mostra internacional do surrealismo de 1940. Em
1948, já de novo em Lima, conheceu André Coyné e não mais se separou dele, a ponto
de o fazer seu testamentário. Amor e protecção – eis o que se costuma apontar para
a relação dos dois. O francês tinha vinte anos quando conheceu César Moro, vinte
e quatro anos mais velho do que ele, e estava próximo dos trinta, quando Moro faleceu,
aos cinquenta e três. Fez pois parte da sua formação de jovem adulto com o grande
poeta surrealista peruano. Viveu cerca duma década par a par com ele e ficou para
sempre ligado ao legado dele. Coyné entrou pela mão de Moro no surrealismo e sempre
nele permaneceu, posto que de forma discreta. No regresso a Paris, em 1957, já depois
da morte de Moro, cruza Breton, a quem se junta no inquérito de abertura do livro
final deste, L’ Art Magique (1957), onde
comparece a bem dizer todo o grupo surrealista de Paris dessa época, Nora Mitrani
incluída. É ainda por intermédio de Breton que conhece a obra de René Guénon, que
o marcará para sempre.
Em Lisboa, as relações de Coyné, salvante
os alunos e os colegas da Faculdade de Letras, com quem pouco se terá dado, tiveram
duas direcções: por um lado o grupo da Filosofia Portuguesa, ao qual chegou por
via do pensamento tradicional de René Guénon, e por outro o grupo surrealista, sobretudo
Mário Cesariny e Cruzeiro Seixas, a quem o ligavam afinidades homófilas, além da
formação mental com Moro e Breton. No meio, estabelecendo uma sólida ponte entre
as duas margens, próximas e no mesmo passo afastadas, Lima de Freitas, pintor que
Cesariny muito prezava e que tanto se dava com os da Filosofia Portuguesa como com
os do surrealismo, e que muito convívio teve com Coyné, que o acompanhou e sobre
ele escreveu, dando-o a conhecer em França. Na nota acima referida adianta-se o
seguinte: Coyné a sejourné à Lisbonne de 1970
à 1976. Il s’est lié, tant aux grands figures du surréalisme portugais,
qu’aux représentants les plus éminents de la culture lusiade.
Houve surrealistas franceses da segunda
metade do século XX, como Sarane Alexandrian ou Édouard Jaguer, que escreveram sobre
Cruzeiro Seixas e Mário Cesariny mas nenhum conviveu com eles como Coyné. A amizade
manteve-se até ao fim e o conviva de Moro veio várias vezes a Portugal, no século
XXI, quando já vivia em França, em difíceis condições de saúde, expressamente ver
Cruzeiro Seixas, a quem o ligou uma amizade e funda admiração. Dou notícia da sua
última vinda a Portugal no Verão de 2011, em exclusivo para estar com Cruzeiro Seixas,
a quem prefaciou a estreia em livro (Eu Falo
em Chamas, 1986), com estudo escrito em francês, mas título em português, “O
Fogo Agora Verde”, bem informado sobre as voltas e as reviravoltas do surrealismo
em português e com uma pertinente crítica ao texto de abertura de Antonio Tabucchi
no livro La Parola Interdetta – Poeti Surrealisti
Portoghesi, 1971. Recolheu mais tarde o texto no livro Portugal é um Ente (pp. 219-231), onde juntou outros consagrados ao
surrealismo português (Cesariny, Natália Correia, Lima de Freitas). Tenho dessa
altura, Julho de 2011, uma carta de Cruzeiro Seixas onde leio o seguinte: O André e comitiva já me telefonaram de França.
Foi o renovar de uma velha amizade. Junto uma foto tirada numa visita que me fizeram
na pequena casa de S. Braz de Alportel, ele, Coyné, o Lima de Freitas e o Luís Teixeira
da Mota com a mulher. A fotografia é da década de 80 mas as relações de Lima
de Freitas com Coyné e com Cruzeiro Seixas são anteriores e datarão do tempo em
que este esteve à frente da Galeria S. Mamede, final da década de 60, início da
década de 70. Lima de Freitas foi o organizador do mais completo álbum dedicado
a Cruzeiro Seixas (1989) e é autor do talvez mais pormenorizado estudo sobre a sua
obra no quadro do surrealismo, “O Oiro do Tempo”, por aí se vendo a fortíssima afinidade
ideativa entre os dois.
Coyné, além do traçado surrealista, ligou-se à imprensa esotérica, Politica Hermetica, e até à da direita pensante, revista Élements, mas sem nunca deixar de se apresentar como surrealista (v. em Éléments, “Le Surréalisme: entre Révolution et Tradition”, nº 85, Maio-Junho, 1996). Foi de resto na revista Éléments que Coyné publicou um dos seus textos mais interventivos sobre o surrealismo português, “Censure: les surréalistes aussi” (Éléments, n.º 89, Paris, 1997), escolhido depois para fechar a colectânea que em Portugal publicou. Pode haver quem esteja tentado a ver em Coyné, pelas ligações à revista de Alain Benoit, pela proximidade a René Guénon (citado aliás no segundo manifesto de Breton, 1929) e a Julius Evola (presente no inquérito inicial do livro de Breton de 1957, L’Art Magique), o corredor da direita do surrealismo. Admite-se que sim, antes de mais tendo em conta o que
Mário Cesariny homenageou-o na grande colectânea,
Textos de Afirmação e de Combate do Movimento
Surrealista Mundial (1977), na segunda secção, incluindo um texto dele e de
César Moro, datado de Lima, ano de 1953, chamado “Objecção a Todas as Homenagens
a Paul Éluard”.
ANTÓNIO CÂNDIDO FRANCO | Ensaísta e editor. Nasceu e cresceu em Lisboa, num dos mais vetustos bairros da cidade, a Graça, em 1956. Aos sete anos foi aluno de Alice Gomes. Há quase quatro décadas que está ligado ao ensino público, onde se esforça por desaprender muito do que lhe ensinaram. Coordena, edita e dirige desde 2012 a revista de “cultura libertária” A Ideia, que se publica desde 1974 e onde Mário Cesariny colaborou em vida. Tudo o que procura é poder inscrever no seu registo o que um inspirado escritor francês mandou gravar na sua lápide: Je cherche l’or du temps.
JOHN WELSON (País de Gales, 1953). Poeta e artista plástico, Welson é um desses personagens admiráveis por sua incondicional obsessão pela criação. Desde a infância que se dedica à pintura, ao desenho, à cerâmica e logo dando início também à escritura poética. Resultado dessa voracidade criativa é que tem em sua agenda um registro de mais de 300 participações em galerias em vários países. Nas últimas décadas produziu um abstracionismo lírico cuja ótica central é a paisagem de seu País de Gales. A seu respeito escreveu John Richardson: Quer sejamos encantados com a poesia de John Welson, fascinados quando suas pinturas batem à porta de nosso inconsciente, ou nos encontremos iludidos por suas colagens enquanto conscientemente reordenam nossa visão de o que é e o que pode ser, é possível, acredito, discernir através do vidro as sombras, os traços e os impulsos que revelam seu compromisso com a liberdade e o surrealismo. […] Para John, a violência em tomar ou separar é apenas a primeira etapa necessária de uma grande obra de desconstrução, necessária para reconstruir e reconstruir, permitindo assim que a realidade latente da vida cotidiana, que a ideologia burguesa mascara, surja e se destaque. É dessa maneira orgânica que o Maravilhoso nos é revelado. Mais uma vez, ele nos oferece um vislumbre do que poderia ser.
Agulha Revista de Cultura
Série SURREALISMO SURREALISTAS # 05
Número 204 | março de 2022
Artista convidado: John Welson (País de Gales, 1953)
Tradução: Susana Wald
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
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