sexta-feira, 4 de março de 2022

ANTÓNIO CÂNDIDO FRANCO | O Surrealismo em André Coyné

 


Entre os surrealistas franceses que tiveram contacto com Portugal e a língua portuguesa conto pelo menos quatro: Philipe Soupault (1897-1990), que passou por Lisboa e aí se cruzou com Fernando Pessoa (v. Dicionário Fernando Pessoa), mas que nada teve a ver com o surrealismo português; Benjamin Péret (1899-1959), que, para além de ter sido o contacto em Paris de A. Maria Lisboa e Risques Pereira, deixou uma vasta e riquíssima obra sobre o Brasil (com atenção inaudita à família índia), já que casou na década de 20 com uma senhora, Elsie Houston, ligada ao Brasil e por lá viveu duas longas temporadas, a primeira entre Fevereiro de 1929 e Dezembro de 1931 e a segunda entre Junho de 1955 e Agosto de 1956; Nora Mitrani (1921-1961), que se fez e morreu no surrealismo, com André Breton, Hans Bellmer e Julien Gracq, e que tem cruzamento directo com os eventos surrealistas portugueses da década de 40 do século XX em Portugal; por fim, André Coyné (1927), surrealista de muitas maneiras, sobretudo com César Moro (1903-1956), e que tem também uma importante relação com o surrealismo português, quase tão próxima como Nora Mitrani, se bem que mais duma década depois dela e muito menos conhecida.

O caso de Nora, pelo cruzamento directo com Alexandre O’Neill, que a abonou de versos, em poemas conhecidos, como “Um Adeus Português”, e pela marcante edição que fez em Portugal, A Razão Ardente (do romantismo ao surrealismo) (1950; trad. A. O’ Neill), momento forte da história do surrealismo português, é muito mais conhecido entre nós do que Péret ou Coyné – e deixo de lado Soupault, que, tendo sido um dos fundadores do movimento, ao lado de André Breton, nenhum contacto teve com o surrealismo em português. Coyné é de todos o menos conhecido, e por isso aqui traçamos o seu retrato a partir do que dele sabemos, e que não é muito. Nada visamos mais nesta despretensiosa nota do que dar por um lado a perceber o que ele deve ao surrealismo em geral e por outro o que o surrealismo português lhe deve a ele.

Homem de movimento, descendente de família habituada a grandes deslocações no espaço, Coyné, nascido em França (Bas-Quercy), 1927, foi viver muito cedo para fora da terra natal, conhecendo César Moro em 1948, com quem viveu até à morte deste em 1956. César Moro, peruano, foi um dos expoentes do surrealismo internacional e a ele se deve a chegada do surrealismo à América do Sul em 1935, com a exposição de Lima, o primeiro evento surrealista da América do Sul, organizado de colaboração com Emilio Westphalen, que esteve no princípio da década de 80 do século XX ligado à Embaixada do Peru em Lisboa e aqui conviveu com Mário Cesariny. Moro em 1938 foi para o México, onde se cruzou com Breton, e aí preparou com Wolfgang Paalen a mostra internacional do surrealismo de 1940. Em 1948, já de novo em Lima, conheceu André Coyné e não mais se separou dele, a ponto de o fazer seu testamentário. Amor e protecção – eis o que se costuma apontar para a relação dos dois. O francês tinha vinte anos quando conheceu César Moro, vinte e quatro anos mais velho do que ele, e estava próximo dos trinta, quando Moro faleceu, aos cinquenta e três. Fez pois parte da sua formação de jovem adulto com o grande poeta surrealista peruano. Viveu cerca duma década par a par com ele e ficou para sempre ligado ao legado dele. Coyné entrou pela mão de Moro no surrealismo e sempre nele permaneceu, posto que de forma discreta. No regresso a Paris, em 1957, já depois da morte de Moro, cruza Breton, a quem se junta no inquérito de abertura do livro final deste, L’ Art Magique (1957), onde comparece a bem dizer todo o grupo surrealista de Paris dessa época, Nora Mitrani incluída. É ainda por intermédio de Breton que conhece a obra de René Guénon, que o marcará para sempre.


Coyné voltou a pular na geografia e esteve depois disso na Indochina, no Brasil, no México, na Argentina, em Espanha, em Portugal, no Norte de África. Não tenho a data precisa da sua chegada a Portugal mas entrou na década de 60, muito já para o fim, talvez 1970, e isso o diz ele em texto sobre Dominique de Roux, para ensinar francês, língua, cultura e literatura, na Faculdade de Letras de Lisboa, onde esteve um par estirado de anos. Na curta introdução em francês que figura no seu livro publicado em Portugal, Portugal é um Ente – de L’Être du Portugal (Fundação Lusíada, 1999), não assinada mas que tudo aponta ser da sua autoria, diz-se que esteve em Portugal entre 1970 e 1976, o que é por certo o que sucedeu.

Em Lisboa, as relações de Coyné, salvante os alunos e os colegas da Faculdade de Letras, com quem pouco se terá dado, tiveram duas direcções: por um lado o grupo da Filosofia Portuguesa, ao qual chegou por via do pensamento tradicional de René Guénon, e por outro o grupo surrealista, sobretudo Mário Cesariny e Cruzeiro Seixas, a quem o ligavam afinidades homófilas, além da formação mental com Moro e Breton. No meio, estabelecendo uma sólida ponte entre as duas margens, próximas e no mesmo passo afastadas, Lima de Freitas, pintor que Cesariny muito prezava e que tanto se dava com os da Filosofia Portuguesa como com os do surrealismo, e que muito convívio teve com Coyné, que o acompanhou e sobre ele escreveu, dando-o a conhecer em França. Na nota acima referida adianta-se o seguinte: Coyné a sejourné à Lisbonne de 1970 à 1976. Il s’est lié, tant aux grands figures du surréalisme portugais, qu’aux représentants les plus éminents de la culture lusiade.

Houve surrealistas franceses da segunda metade do século XX, como Sarane Alexandrian ou Édouard Jaguer, que escreveram sobre Cruzeiro Seixas e Mário Cesariny mas nenhum conviveu com eles como Coyné. A amizade manteve-se até ao fim e o conviva de Moro veio várias vezes a Portugal, no século XXI, quando já vivia em França, em difíceis condições de saúde, expressamente ver Cruzeiro Seixas, a quem o ligou uma amizade e funda admiração. Dou notícia da sua última vinda a Portugal no Verão de 2011, em exclusivo para estar com Cruzeiro Seixas, a quem prefaciou a estreia em livro (Eu Falo em Chamas, 1986), com estudo escrito em francês, mas título em português, “O Fogo Agora Verde”, bem informado sobre as voltas e as reviravoltas do surrealismo em português e com uma pertinente crítica ao texto de abertura de Antonio Tabucchi no livro La Parola Interdetta – Poeti Surrealisti Portoghesi, 1971. Recolheu mais tarde o texto no livro Portugal é um Ente (pp. 219-231), onde juntou outros consagrados ao surrealismo português (Cesariny, Natália Correia, Lima de Freitas). Tenho dessa altura, Julho de 2011, uma carta de Cruzeiro Seixas onde leio o seguinte: O André e comitiva já me telefonaram de França. Foi o renovar de uma velha amizade. Junto uma foto tirada numa visita que me fizeram na pequena casa de S. Braz de Alportel, ele, Coyné, o Lima de Freitas e o Luís Teixeira da Mota com a mulher. A fotografia é da década de 80 mas as relações de Lima de Freitas com Coyné e com Cruzeiro Seixas são anteriores e datarão do tempo em que este esteve à frente da Galeria S. Mamede, final da década de 60, início da década de 70. Lima de Freitas foi o organizador do mais completo álbum dedicado a Cruzeiro Seixas (1989) e é autor do talvez mais pormenorizado estudo sobre a sua obra no quadro do surrealismo, “O Oiro do Tempo”, por aí se vendo a fortíssima afinidade ideativa entre os dois.


Coyné escreveu parte da sua obra em espanhol, o que se entende, dada a sua longa permanência em Lima, a que se junta o seu convívio com Moro; dedicou-se ainda a Fernando Pessoa, que traduziu para a língua natal e a quem dedicou pelo menos um livro, Regards sur Fernando Pessoa (2005; 2011), como sucedeu a Nora Mitrani, ela também pessoana e autora de pelo menos um importante texto de apresentação do poeta português, dado à estampa em francês na revista Le Surréalisme Même (1957), que Coyné leu por certo e que foi a porta de entrada de Breton na poesia de Pessoa, um dos raros poetas portugueses, se não o único, que o autor de Clé des Champs refere com adesão.

Coyné, além do traçado surrealista, ligou-se à imprensa esotérica, Politica Hermetica, e até à da direita pensante, revista Élements, mas sem nunca deixar de se apresentar como surrealista (v. em Éléments, “Le Surréalisme: entre Révolution et Tradition”, nº 85, Maio-Junho, 1996). Foi de resto na revista Éléments que Coyné publicou um dos seus textos mais interventivos sobre o surrealismo português, “Censure: les surréalistes aussi” (Éléments, n.º 89, Paris, 1997), escolhido depois para fechar a colectânea que em Portugal publicou. Pode haver quem esteja tentado a ver em Coyné, pelas ligações à revista de Alain Benoit, pela proximidade a René Guénon (citado aliás no segundo manifesto de Breton, 1929) e a Julius Evola (presente no inquérito inicial do livro de Breton de 1957, L’Art Magique), o corredor da direita do surrealismo. Admite-se que sim, antes de mais tendo em conta o que


afirma no primeiro livro que publicou em Portugal, Sobre Portugal nestes tempos do Fim (Delraux, 1980), com tradução de Lima de Freitas e constituído por duas entrevistas dadas em Portugal, a primeira publicada em Agosto de 1978 no Jornal Novo e a segunda inédita de Agosto/Setembro de 1979. Nessa época estava já em Abidjão, Costa do Marfim, mas continuava a interessar-se pela situação portuguesa, que de resto nunca o deixou de interessar. Toma aí posição contra a esquerda, contra o partido socialista, a favor da direita de Sá-Carneiro, se bem que elogie a acção de Mourão-Ferreira na Secretaria de Estado da Cultura. De qualquer modo mais do que a circunstância política o que lhe importa é a cifra do mistério, em nada se afastando por aí do corredor central da procura surrealista.

Mário Cesariny homenageou-o na grande colectânea, Textos de Afirmação e de Combate do Movimento Surrealista Mundial (1977), na segunda secção, incluindo um texto dele e de César Moro, datado de Lima, ano de 1953, chamado “Objecção a Todas as Homenagens a Paul Éluard”.

 

 

 


ANTÓNIO CÂNDIDO FRANCO | Ensaísta e editor. Nasceu e cresceu em Lisboa, num dos mais vetustos bairros da cidade, a Graça, em 1956. Aos sete anos foi aluno de Alice Gomes. Há quase quatro décadas que está ligado ao ensino público, onde se esforça por desaprender muito do que lhe ensinaram. Coordena, edita e dirige desde 2012 a revista de “cultura libertária” A Ideia, que se publica desde 1974 e onde Mário Cesariny colaborou em vida. Tudo o que procura é poder inscrever no seu registo o que um inspirado escritor francês mandou gravar na sua lápide: Je cherche l’or du temps.

 

 


JOHN WELSON (País de Gales, 1953). Poeta e artista plástico, Welson é um desses personagens admiráveis por sua incondicional obsessão pela criação. Desde a infância que se dedica à pintura, ao desenho, à cerâmica e logo dando início também à escritura poética. Resultado dessa voracidade criativa é que tem em sua agenda um registro de mais de 300 participações em galerias em vários países. Nas últimas décadas produziu um abstracionismo lírico cuja ótica central é a paisagem de seu País de Gales. A seu respeito escreveu John Richardson: Quer sejamos encantados com a poesia de John Welson, fascinados quando suas pinturas batem à porta de nosso inconsciente, ou nos encontremos iludidos por suas colagens enquanto conscientemente reordenam nossa visão de o que é e o que pode ser, é possível, acredito, discernir através do vidro as sombras, os traços e os impulsos que revelam seu compromisso com a liberdade e o surrealismo. […] Para John, a violência em tomar ou separar é apenas a primeira etapa necessária de uma grande obra de desconstrução, necessária para reconstruir e reconstruir, permitindo assim que a realidade latente da vida cotidiana, que a ideologia burguesa mascara, surja e se destaque. É dessa maneira orgânica que o Maravilhoso nos é revelado. Mais uma vez, ele nos oferece um vislumbre do que poderia ser.
 


 

Agulha Revista de Cultura

Série SURREALISMO SURREALISTAS # 05

Número 204 | março de 2022

Artista convidado: John Welson (País de Gales, 1953)

Tradução: Susana Wald

editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com

editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com

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