É nesse momento que o grupo surrealista de Paris intervém.
O que choca os surrealistas é a hipocrisia duma moral social que defende, sem folga,
a interdição do incesto e depois faz tábua rasa dele para acusar, livre de obstáculos,
uma jovem de dezoito anos. Os surrealistas deixam no ar uma pergunta: Violette Nozières,
carrasco ou vítima, criminosa ou inocente? Entretanto o processo judicial segue,
com uma opinião envolvente cada vez mais envenenada. O desinteresse pela violação
é de tal ordem que o ministério público chega a oferecer à jovem em troca da retirada
das acusações contra os pais uma redução da pena. É então que o grupo surrealista
decide intervir em força. É preparada uma brochura intitulada Violette Nozières, com uma tiragem de dois
mil exemplares e que se destina a marcar a posição do grupo a favor da rapariga.
Colaboram nela nove artistas plásticos (Man Ray, Dalí, Yves Tanguy, Max Ernest,
Victor Brauner, René Magritte, Marcel Jean, Hans Arp e Alberto Giacometti) e oito
poetas (A. Breton, René Char, P. Éluard, Maurice Henry, E-L-T. Mesens, César Moro,
B. Péret e Guy Rosey). É uma homenagem à vítima do que têm por um massacre de expiação
colectiva.
Quando decidem a impressão do opúsculo, dão-se conta
que todas as portas se fecham. As tipografias francesas estão proibidas pela polícia
de imprimir o panfleto surrealista. Para contornar a proibição, pensa-se na Bélgica,
onde o interdito não funciona. Criam-se para o efeito, com o apoio dos surrealistas
belgas, as edições Nicolas Flamel, onde finalmente aparece a brochura Violette Nozières, capa de Man Ray, quarenta
e quatro páginas e a seguinte data: 1 de dezembro de 1933. Alguns exemplares foram
apreendidos na fronteira pela polícia, mas grande parte da edição – constituída
por vinte exemplares numerados e dois mil em edição vulgar – entra em França, é
distribuída em livraria e vendida por baixo do balcão. O grosso da difusão coincide
com o momento em que o julgamento se inicia, em outubro de 1934. Apesar da ruidosa
defesa dos surrealistas, Violette na barra do tribunal acaba condenada à morte,
pena que, atendendo à idade e género, foi comutada em prisão perpétua. Vinte anos
depois, em 1953, Breton volta ao caso, com um texto “Réhabilitez-la. Cachez-vous!”.
Violette Nozières foi reabilitada em 1963 e morreu três anos depois, no mesmo ano
de Breton.
Conte-se agora outra história, esta em Portugal, setenta
e sete anos empós. Em 20 de julho de 2010 um homem de quarenta anos é preso a norte
de Lisboa, na zona Oeste, lugar de Carqueja, concelho da Lourinhã, freguesia de
São Bartolomeu dos Galegos, já a caminho de Peniche. Chama-se Francisco Leitão;
exerce no lugar a profissão de sucateiro. Vai acusado de quatro crimes: o primeiro
em 1995 e os três seguintes entre 2008 e 2010. O primeiro recai sobre um colega
de profissão, bastante mais velho, e os seguintes sobre jovens da região, Tânia
Ramos, Ivo Delgado e Joana Correia. Os corpos estão por descobrir; fala-se vagamente
em crimes passionais no que diz respeito aos três jovens. A ponta do caso foi o
desaparecimento de Joana Correia, em março de 2010, o único comunicado à polícia.
Ao que parece nesse mesmo dia os pais participavam num programa sobre jovens desaparecidos.
Pouco mais se sabe; o comunicado da polícia é parco. O homem foi levado para a Unidade
Nacional Contra o Terrorismo, da polícia judiciária, em Lisboa.
No dia seguinte há uma torrente nova de informação.
Não é todos os dias que aparece um assassino em série e os jornais e as televisões
estão dispostos a explorar o caso. Precipitam-se para a Lourinhã, na tentativa de
obterem mais pormenores. Nova surpresa: Francisco Leitão vivia num recinto que ele
próprio construíra, sem paralelo com nada conhecido. É uma arquitectura pessoal,
misto de palácio encantado em miniatura e de habitação infantil. O recinto de entrada
está cheio de estatuária em pedra ou em gesso que evoca o titanismo alado do Aleijadinho.
Na região a morada é conhecida pelo castelo.
A reputação de Francisco Leitão junto dos conterrâneos é boa. Homem prestável, pronto
a ajudar, de boa convivência e boas palavras. Passa por excêntrico, mas não por
criminoso. A sua alcunha entre os da zona é Chico do Avião, porque um dia adaptou
um volante de avião a um automóvel. A princípio a alcunha ainda fez algum caminho
na imprensa escrita e nos telejornais. O assassino em série era o Chico do Avião. Não colou, porém. No mesmo
dia chegam outras notícias: há filmes na rede que correm em nome de Francisco Leitão,
todos captados no interior da casa. O carnaval é patente: móveis do século XIX ao
lado de imagens de índios. Numa das sequências anuncia um terramoto para agosto
de 2010, noutra considera-se o rei dos gnomos, o rei Ghob, noutra ainda faz passes
de magia. Anuncia o fim do mundo e o início duma nova era. Correm as primeiras fotografias:
o homem é baixo, atarracado, espesso e terroso. Pouco lhe falta, dizem, para anão.
Está encontrado o nome mediático de Francisco Leitão: Rei Ghob.
É decretada a prisão preventiva de Francisco Leitão.
Recolhe ao calabouço da polícia judiciária em Lisboa. Nos dias próximos, chovem
as imagens do Rei Ghob, extraídas dos filmes que correm na rede e do momento da
chegada ao tribunal de Torres Vedras. Entrevistas com os pais das vítimas e familiares
do acusado. Tem irmãos, cunhados e foi casado. A mulher deixou-o por lhe ter descoberto
casos de homossexualidade. Exploram-se as imagens da casa e dão-se a conhecer pormenores
da acusação. Leitão teria os telemóveis das vítimas. Só isso explica que os pais
de Tânia e de Ivo nunca comunicassem o desaparecimento dos filhos. De quando em
quando, recebiam mensagens escritas, dando notícias do paradeiro dos filhos. Entretanto
as novas que chegam da polícia não são animadoras: os corpos, apesar das buscas,
continuam por encontrar e Leitão persiste em tudo negar.
Chegam entretanto as revoluções do mundo árabe e por
momentos a imprensa distrai-se. O caso arrefece. Quando o primeiro aniversário da
detenção de Francisco Leitão passa, em julho de 2011, aparecem dados novos. Fala-se
de dezoito a vinte violações sexuais de menores feitas no castelo. Regressam as
imagens da exótica moradia de Carqueja e os pormenores da vida sexual de Leitão.
Está descoberto o sentido do Rei Ghob: os gnomos são os miúdos que ele virava do
avesso no castelo. Desfiam-se pormenores: drogas, magias, hipnoses, uma actividade
sexual desmedida. Novo processo judicial, desta vez no tribunal da Lourinhã, por
abuso sexual de menores. Francisco Leitão continua em Lisboa, em prisão preventiva,
a aguardar julgamento. Em novembro o processo de Torres Vedras é marcado para 9
de janeiro. Os corpos continuam por aparecer e o acusado nega qualquer implicação
nos homicídios. Mais não diz. Começa o processo na barra do tribunal de Torres Vedras
e o caso volta em força aos jornais e às televisões. O homem recusa dizer seja o
que for. Por fim, no final de março de 2012, quando é condenado à pena máxima, vinte
e cinco anos de prisão, sem que os corpos tenham aparecido, faz uma breve declaração
de inocência: não matei ninguém! Está tudo
por explicar.
É neste momento que Cruzeiro Seixas se lembra da história
de Violette Nozières e da tomada de posição do grupo surrealista de Paris. Por que
razão se lembrou Cruzeiro Seixas de Violette Nozières? Decerto pelo crime e pelo
processo judicial que a levou a ser condenada à morte. Para além da condenação,
que outros elementos podem ter feito no espírito de Seixas a associação com o caso
de Francisco Leitão? Poucos ou nenhuns. Leitão acabou condenado por três homicídios,
sem que seja possível invocar para ele a condição de vítima que os surrealistas
franceses pediram para a jovem de Paris. Esta foi vítima de abusos por parte do
pai, a quem depois, aos dezoito anos, assassinou; aquele, por ciúme, ao que se deu
por provado, cometeu três homicídios, sem que tivesse sofrido qualquer mau trato
por parte das suas vítimas. Que levou pois Seixas a associar os dois casos? Não
mais do que a força do crime, a violência do acto e a pesada condenação dos acusados
nos dois casos.
Que levou Cruzeiro Seixas a tomar a defesa de Francisco
Leitão? Começo por outra pergunta: que motivo de interesse viu Cruzeiro Seixas em
Leitão? Na verdade foi aquilo que nele o interessou, que o levou a tentar uma intervenção
surrealista a seu favor. A única resposta à pergunta é a seguinte: foi a casa do
Rei Ghob que lhe despertou a atenção e o atirou para a personagem. Desde julho de
2010 que ele vira as primeiras imagens da casa nos telejornais da noite. Nessa época,
de mistura com as acusações e com dificuldades de visão que se agravavam dia para
dia, pouco ligou, pelo menos de forma consciente, ao que viu ou ouviu. Foi preciso
esperar pelo regresso do caso, no final do ano de 2011 e nos primeiros meses de
2012, com o julgamento, para reparar nos pormenores do caso (homossexualidade, ciúme,
paixão exacerbada, delírios mágicos) e observar com atenção a casa da Carqueja.
A surpresa nesta foi enorme. Procurou imagens de jornal para poder atentar nela
mais de perto. Nesse momento, o do julgamento de Torres Vedras, todas as noites,
as televisões e os jornais passavam notícias do caso; a abundância de imagens era
farta. À medida que o conhecimento dos pormenores da casa crescia, mais o espanto
subia. Estava diante daquilo que Dalí elogiara como uma arquitectura onde a beleza
se fazia comestível, tão rara em época de normalização clássica. Ao tempo que isso
acontecia, caía a pena máxima em cima de Francisco Leitão. Foram estes cruzamentos
que levaram Cruzeiro Seixas a encarar na primavera de 2012 uma intervenção surrealista
a favor de Leitão.
Como ler esta intervenção? Já se viu que o paralelo
entre Violette Nozières – ou até Germaine Berton, que matou a tiro em 1924 o secretário
de redacção de L’Action Française e que
motivou no ano seguinte a sua defesa pelos surrealistas franceses – e Francisco
Leitão não existe. A rapariga foi vítima de atitudes que a sociedade actual condena;
actuou pois em legítima defesa. O homem não sofreu qualquer dano; os seus actos,
provados em julgamento, não têm atenuante. Logo não será por aqui que passa o caso
do português. O trilho de leitura é outro. Também a aproximação deste caso com o
de Timothy Mc Veigh, que mereceu de Mário Cesariny uma intervenção plástica em sua
defesa, não tem saída. Veigh foi condenado à morte por electrocussão depois de acusação
de terrorismo político, pena que cumpriu em 2001 e que está na origem da intervenção
de Cesariny. Esta é para ser encarada como protesto contra a pena de morte. Nada
de semelhante no caso de Francisco Leitão.
A intervenção de Seixas só pode ter uma justificação
(aceitando como provados os crimes cometidos): chamar a atenção para uma situação
em que o Eu social tinha pouca consistência. Só uma tal fragilidade explica os delírios
proféticos, os furores passionais, os transportes mágicos, os entusiasmos imaginativos.
É ela que explica ainda os crimes de sangue e até a falta de arrependimento posterior
(aceitando sempre que ele cometeu os crimes pelos quais foi condenado). Este homem
tinha um largo e extenso Eu arcaico, sem censuras de qualquer espécie, que se sobrepunha
ao seu pequeno Eu social, muito pouco trabalhado e desenvolvido e no qual empenhava
apenas uma curta parcela da sua vida, aquela que lhe permitia ter no dia-a-dia uma
boa vizinhança com as pessoas do lugar. Mas até aí o Eu arcaico vinha ao de cima,
com os delírios arquitecturais da casa. Em tudo o resto, do amor ao entendimento
social, na vida privada ou no relacionamento com as instituições, este homem vivia
sem Eu social. Ao contrário dos casos em que o investimento no Eu civilizado é total,
abafando por inteiro o Eu arcaico, o que aqui se encontra é o caso dum homem que
por razões pessoais ou de isolamento geográfico, ou pela mistura das duas, ignorava
as restrições do Eu social e vivia segundo os ditames livres do Eu arcaico.
Que quero dizer com isto? E que tem isto a ver com a
intervenção surrealista em seu favor? Cruzeiro Seixas percebeu o Eu arcaico deste
homem pela arquitectura que dele viu. Tratava-se duma arquitectura muito mais essencial
do que todas as que são feitas hoje pelos arquitectos de renome. Era o caso dalguém
que não aceitava a normalização na construção (piscina, relva e rectângulo) e sem
nada conhecer de Dalí, de Gaudí, de Breton (escrevendo sobre o Facteur Cheval) ou
de Hundertwasser empreendera uma obra que tinha fortes afinidades com as criações
e as teorizações destes autores. Foi isso que o atraiu para Leitão. Viu nele a situação
dalguém que chegava ao automatismo psíquico sem nunca ter lido uma linha sobre o
assunto; tocava por processos seus o que muitos surrealistas haviam tocado doutro
modo. Que faltou então a este homem para ser Dalí ou Gaudí, mesmo que só o Dalí
e o Gaudí da Carqueja? Doutro modo: que tiveram a mais do que ele Dalí, Gaudí, Hundertwasser
ou Breton (que afirmou no manifesto de 1930 que o mais simples dos actos surrealistas era vir para a rua de pistola em punho
e disparar ao acaso sobre a multidão)? Tiveram a mais a alquimia do verbo ou a das
cores e a das formas. Uma coisa é incendiar o mundo, outra representá-lo. Há pois
uma diferença entre um Eu arcaico que se vive de forma espontânea e simples e um Eu arcaico que é vivido em termos
de representações simbólicas, de enriquecimentos progressivos de conteúdos. Breton
teve sempre o cuidado de avisar que o mais simples não era o mais recomendável.
Uma coisa é ser Germaine Berton, Violette Nozières ou Francisco Leitão, outra é
ser marquês de Sade, André Breton ou António Maria Lisboa.
O que Seixas quer dizer com a sua chamada de atenção
é que tais seres podiam dar saída diferente ao seu Eu arcaico caso houvesse desde
a infância outra educação, que não aquela que prepara para a concorrência desenfreada
em volta do dinheiro, e que exige a formação dum Eu social sufocante e exclusivo.
Francisco Leitão podia ter sido tão-só o Gaudí ou o Bataille da Carqueja se lhe
tivessem ensinado, além ou aquém dos processos do recalque, que ele não pôde incorporar,
as técnicas da construção simbólica. Que teria sido o poeta de Isso Ontem Único sem tais técnicas? Porventura
só parricida e violador da mãe. Em vez de ser hoje um grande poeta exemplar, seria
sem tais avanços apenas mais um caso prisional. Assim, com a elaboração simbólica
que interiorizou e desenvolveu graças ao surrealismo e ao automatismo, foi um ser
discreto, em permanente trânsito, capaz de fazer um equilíbrio complexo mas eficaz
entre as suas tendências instintivas mais fundas e pessoais, os desejos irreprimíveis
do seu Eu primitivo, e as imposições sociais exteriores. Assim porventura teria
sido Francisco Leitão caso lhe houvessem dito ou mostrado que além da dicotomia
entre a censura e o acto de satisfação imediata dos desejos primitivos e originais,
os mais imperiosos nestes casos de absoluta insolubilidade do Eu arcaico, existia
um terceiro termo, o da representação simbólica, capaz de conciliar com eficácia
as duas vias.
ANTÓNIO CÂNDIDO FRANCO | Ensaísta e editor. Nasceu e cresceu em Lisboa, num dos mais vetustos bairros da cidade, a Graça, em 1956. Aos sete anos foi aluno de Alice Gomes. Há quase quatro décadas que está ligado ao ensino público, onde se esforça por desaprender muito do que lhe ensinaram. Coordena, edita e dirige desde 2012 a revista de “cultura libertária” A Ideia, que se publica desde 1974 e onde Mário Cesariny colaborou em vida. Tudo o que procura é poder inscrever no seu registo o que um inspirado escritor francês mandou gravar na sua lápide: Je cherche l’or du temps.
NELSON DE PAULA (Brasil, 1950) | Poeta, ensayista, cuentista y artista visual. En su obra integral pretende ser un traficante de sueños, y atravesar las fronteras de las dimensiones, con lo ilegal debajo del brazo. Ha publicado alrededor de 60 libros de poesía y arte visual. Entre otros destacamos: O Plasma, Vozes do Aquém, Projeto para uma Revolução Fundamentalista, A Hóstia de Isis, Sete pulos na encruzilhada. Como artista plástico, participó en Bienales, expos individuales y colectivas en Brasil y el resto del mundo. Fue miembro del Grupo Surrealista de São Paulo. Participó en la Exposición Surrealista “Las llaves del deseo”, Costa Rica, Cartago, 2016. Colaborador de la revista Matérika (Costa Rica). Reside en São Paulo.
Série SURREALISMO SURREALISTAS # 12
Número 211 | junho de 2022
Artista convidado: Nelson de Paula (Brasil, 1950)
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
concepção editorial, logo, design, revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS
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