segunda-feira, 27 de junho de 2022

ANTÓNIO CÂNDIDO FRANCO | Violette Nozières e o Rei Ghob

 


A história de Violette Nozières conta-se em poucas palavras: Violette Nozières é uma rapariga de dezoito anos, que vive em Paris, e que nada indicia que venha a ter qualquer notoriedade. Os pais são modestos, vivem num bairro popular, e ela abandonou os estudos, trocando-os por uma vida de boémia nocturna. De supetão, em finais de agosto de 1933, a jovem de dezoito anos é presa e o seu caso salta para as páginas dos jornais; está acusada de homicídio de pai e mãe. As notícias despertam a curiosidade do público. Os jornais voltam ao caso. Violette envenenou na noite de 21 de agosto os pais, mas a mãe sobreviveu e denunciou a filha. Dias depois, nova pitada de sal no argumento: a rapariga acusa o pai de violação sexual continuada. Apesar da acusação, Violette permanece presa, o auto policial prossegue, a imprensa relata pormenores escabrosos sobre a licenciosidade sexual da jovem.

É nesse momento que o grupo surrealista de Paris intervém. O que choca os surrealistas é a hipocrisia duma moral social que defende, sem folga, a interdição do incesto e depois faz tábua rasa dele para acusar, livre de obstáculos, uma jovem de dezoito anos. Os surrealistas deixam no ar uma pergunta: Violette Nozières, carrasco ou vítima, criminosa ou inocente? Entretanto o processo judicial segue, com uma opinião envolvente cada vez mais envenenada. O desinteresse pela violação é de tal ordem que o ministério público chega a oferecer à jovem em troca da retirada das acusações contra os pais uma redução da pena. É então que o grupo surrealista decide intervir em força. É preparada uma brochura intitulada Violette Nozières, com uma tiragem de dois mil exemplares e que se destina a marcar a posição do grupo a favor da rapariga. Colaboram nela nove artistas plásticos (Man Ray, Dalí, Yves Tanguy, Max Ernest, Victor Brauner, René Magritte, Marcel Jean, Hans Arp e Alberto Giacometti) e oito poetas (A. Breton, René Char, P. Éluard, Maurice Henry, E-L-T. Mesens, César Moro, B. Péret e Guy Rosey). É uma homenagem à vítima do que têm por um massacre de expiação colectiva.

Quando decidem a impressão do opúsculo, dão-se conta que todas as portas se fecham. As tipografias francesas estão proibidas pela polícia de imprimir o panfleto surrealista. Para contornar a proibição, pensa-se na Bélgica, onde o interdito não funciona. Criam-se para o efeito, com o apoio dos surrealistas belgas, as edições Nicolas Flamel, onde finalmente aparece a brochura Violette Nozières, capa de Man Ray, quarenta e quatro páginas e a seguinte data: 1 de dezembro de 1933. Alguns exemplares foram apreendidos na fronteira pela polícia, mas grande parte da edição – constituída por vinte exemplares numerados e dois mil em edição vulgar – entra em França, é distribuída em livraria e vendida por baixo do balcão. O grosso da difusão coincide com o momento em que o julgamento se inicia, em outubro de 1934. Apesar da ruidosa defesa dos surrealistas, Violette na barra do tribunal acaba condenada à morte, pena que, atendendo à idade e género, foi comutada em prisão perpétua. Vinte anos depois, em 1953, Breton volta ao caso, com um texto “Réhabilitez-la. Cachez-vous!”. Violette Nozières foi reabilitada em 1963 e morreu três anos depois, no mesmo ano de Breton.

Conte-se agora outra história, esta em Portugal, setenta e sete anos empós. Em 20 de julho de 2010 um homem de quarenta anos é preso a norte de Lisboa, na zona Oeste, lugar de Carqueja, concelho da Lourinhã, freguesia de São Bartolomeu dos Galegos, já a caminho de Peniche. Chama-se Francisco Leitão; exerce no lugar a profissão de sucateiro. Vai acusado de quatro crimes: o primeiro em 1995 e os três seguintes entre 2008 e 2010. O primeiro recai sobre um colega de profissão, bastante mais velho, e os seguintes sobre jovens da região, Tânia Ramos, Ivo Delgado e Joana Correia. Os corpos estão por descobrir; fala-se vagamente em crimes passionais no que diz respeito aos três jovens. A ponta do caso foi o desaparecimento de Joana Correia, em março de 2010, o único comunicado à polícia. Ao que parece nesse mesmo dia os pais participavam num programa sobre jovens desaparecidos. Pouco mais se sabe; o comunicado da polícia é parco. O homem foi levado para a Unidade Nacional Contra o Terrorismo, da polícia judiciária, em Lisboa.

No dia seguinte há uma torrente nova de informação. Não é todos os dias que aparece um assassino em série e os jornais e as televisões estão dispostos a explorar o caso. Precipitam-se para a Lourinhã, na tentativa de obterem mais pormenores. Nova surpresa: Francisco Leitão vivia num recinto que ele próprio construíra, sem paralelo com nada conhecido. É uma arquitectura pessoal, misto de palácio encantado em miniatura e de habitação infantil. O recinto de entrada está cheio de estatuária em pedra ou em gesso que evoca o titanismo alado do Aleijadinho. Na região a morada é conhecida pelo castelo. A reputação de Francisco Leitão junto dos conterrâneos é boa. Homem prestável, pronto a ajudar, de boa convivência e boas palavras. Passa por excêntrico, mas não por criminoso. A sua alcunha entre os da zona é Chico do Avião, porque um dia adaptou um volante de avião a um automóvel. A princípio a alcunha ainda fez algum caminho na imprensa escrita e nos telejornais. O assassino em série era o Chico do Avião. Não colou, porém. No mesmo dia chegam outras notícias: há filmes na rede que correm em nome de Francisco Leitão, todos captados no interior da casa. O carnaval é patente: móveis do século XIX ao lado de imagens de índios. Numa das sequências anuncia um terramoto para agosto de 2010, noutra considera-se o rei dos gnomos, o rei Ghob, noutra ainda faz passes de magia. Anuncia o fim do mundo e o início duma nova era. Correm as primeiras fotografias: o homem é baixo, atarracado, espesso e terroso. Pouco lhe falta, dizem, para anão. Está encontrado o nome mediático de Francisco Leitão: Rei Ghob.


No mesmo dia o homem é presente ao tribunal de Torres Vedras, onde vivem os pais de Joana Correia. Tem dezenas de populares excitados à espera. Querem fazer justiça; insultam-no e agarram-no. Ele mostra-se de cara descoberta, indiferente à desordem. Comporta-se como um alienígena; tem mais pressa do que medo. Os pormenores da acusação saltam para a imprensa: deixando de lado o colega de profissão, de que pouco se sabe, a não ser o nome, Pisa Lagartos, os dois primeiros jovens, Tânia Ramos e Ivo Delgado, desaparecidos em 2008, são namorados; Leitão, perdido de amor pelo rapaz, comete assim um duplo crime movido pelo ciúme. O terceiro é uma rapariga, Joana Correia, dezasseis anos, que namorava uma outra paixão de Leitão. O processo usado nos três foi o mesmo: sequestro num subterrâneo da habitação, preparado para o efeito, um simples buraco de pouco mais dum metro no pátio da casa, seguido de homicídio. Mais tarde ocultação dos corpos. O acusado nega tudo e recusa dizer mais.

É decretada a prisão preventiva de Francisco Leitão. Recolhe ao calabouço da polícia judiciária em Lisboa. Nos dias próximos, chovem as imagens do Rei Ghob, extraídas dos filmes que correm na rede e do momento da chegada ao tribunal de Torres Vedras. Entrevistas com os pais das vítimas e familiares do acusado. Tem irmãos, cunhados e foi casado. A mulher deixou-o por lhe ter descoberto casos de homossexualidade. Exploram-se as imagens da casa e dão-se a conhecer pormenores da acusação. Leitão teria os telemóveis das vítimas. Só isso explica que os pais de Tânia e de Ivo nunca comunicassem o desaparecimento dos filhos. De quando em quando, recebiam mensagens escritas, dando notícias do paradeiro dos filhos. Entretanto as novas que chegam da polícia não são animadoras: os corpos, apesar das buscas, continuam por encontrar e Leitão persiste em tudo negar.

Chegam entretanto as revoluções do mundo árabe e por momentos a imprensa distrai-se. O caso arrefece. Quando o primeiro aniversário da detenção de Francisco Leitão passa, em julho de 2011, aparecem dados novos. Fala-se de dezoito a vinte violações sexuais de menores feitas no castelo. Regressam as imagens da exótica moradia de Carqueja e os pormenores da vida sexual de Leitão. Está descoberto o sentido do Rei Ghob: os gnomos são os miúdos que ele virava do avesso no castelo. Desfiam-se pormenores: drogas, magias, hipnoses, uma actividade sexual desmedida. Novo processo judicial, desta vez no tribunal da Lourinhã, por abuso sexual de menores. Francisco Leitão continua em Lisboa, em prisão preventiva, a aguardar julgamento. Em novembro o processo de Torres Vedras é marcado para 9 de janeiro. Os corpos continuam por aparecer e o acusado nega qualquer implicação nos homicídios. Mais não diz. Começa o processo na barra do tribunal de Torres Vedras e o caso volta em força aos jornais e às televisões. O homem recusa dizer seja o que for. Por fim, no final de março de 2012, quando é condenado à pena máxima, vinte e cinco anos de prisão, sem que os corpos tenham aparecido, faz uma breve declaração de inocência: não matei ninguém! Está tudo por explicar.

É neste momento que Cruzeiro Seixas se lembra da história de Violette Nozières e da tomada de posição do grupo surrealista de Paris. Por que razão se lembrou Cruzeiro Seixas de Violette Nozières? Decerto pelo crime e pelo processo judicial que a levou a ser condenada à morte. Para além da condenação, que outros elementos podem ter feito no espírito de Seixas a associação com o caso de Francisco Leitão? Poucos ou nenhuns. Leitão acabou condenado por três homicídios, sem que seja possível invocar para ele a condição de vítima que os surrealistas franceses pediram para a jovem de Paris. Esta foi vítima de abusos por parte do pai, a quem depois, aos dezoito anos, assassinou; aquele, por ciúme, ao que se deu por provado, cometeu três homicídios, sem que tivesse sofrido qualquer mau trato por parte das suas vítimas. Que levou pois Seixas a associar os dois casos? Não mais do que a força do crime, a violência do acto e a pesada condenação dos acusados nos dois casos.


Seixas foi porém além do que a associação permite; pretendeu intervir em favor do condenado. Entrou em contacto com velhos amigos que na década de cinquenta e de sessenta estiveram ligados à actividade surrealista em Portugal, falou-lhes de Violette Nozières e propôs-lhes um estudo do caso e a feitura dum comunicado à imprensa em que se tomaria a defesa de Francisco Leitão. Ninguém se lembrava de Violette; olharam-no pois com frieza e desconfiança; ninguém se quis comprometer. Reformulou então o projecto, sem todavia desistir dele. Quase cego, com mais de noventa anos, pediu a uma amiga, que o guiasse até Carqueja, na ponta da Lourinhã, para falar com as pessoas do local e montar a história. Demais, queria fotografias do lugar e da casa. Não conseguiu obter um único testemunho, pois todos recusaram falar. Obteve porém as fotografias que desejava. Depois, por problemas de saúde, foi obrigado a afastar-se para Famalicão, Minho, deixando Lisboa e arrumando até ao momento em que escrevo (final do verão de 2012) o caso.

Que levou Cruzeiro Seixas a tomar a defesa de Francisco Leitão? Começo por outra pergunta: que motivo de interesse viu Cruzeiro Seixas em Leitão? Na verdade foi aquilo que nele o interessou, que o levou a tentar uma intervenção surrealista a seu favor. A única resposta à pergunta é a seguinte: foi a casa do Rei Ghob que lhe despertou a atenção e o atirou para a personagem. Desde julho de 2010 que ele vira as primeiras imagens da casa nos telejornais da noite. Nessa época, de mistura com as acusações e com dificuldades de visão que se agravavam dia para dia, pouco ligou, pelo menos de forma consciente, ao que viu ou ouviu. Foi preciso esperar pelo regresso do caso, no final do ano de 2011 e nos primeiros meses de 2012, com o julgamento, para reparar nos pormenores do caso (homossexualidade, ciúme, paixão exacerbada, delírios mágicos) e observar com atenção a casa da Carqueja. A surpresa nesta foi enorme. Procurou imagens de jornal para poder atentar nela mais de perto. Nesse momento, o do julgamento de Torres Vedras, todas as noites, as televisões e os jornais passavam notícias do caso; a abundância de imagens era farta. À medida que o conhecimento dos pormenores da casa crescia, mais o espanto subia. Estava diante daquilo que Dalí elogiara como uma arquitectura onde a beleza se fazia comestível, tão rara em época de normalização clássica. Ao tempo que isso acontecia, caía a pena máxima em cima de Francisco Leitão. Foram estes cruzamentos que levaram Cruzeiro Seixas a encarar na primavera de 2012 uma intervenção surrealista a favor de Leitão.

Como ler esta intervenção? Já se viu que o paralelo entre Violette Nozières – ou até Germaine Berton, que matou a tiro em 1924 o secretário de redacção de L’Action Française e que motivou no ano seguinte a sua defesa pelos surrealistas franceses – e Francisco Leitão não existe. A rapariga foi vítima de atitudes que a sociedade actual condena; actuou pois em legítima defesa. O homem não sofreu qualquer dano; os seus actos, provados em julgamento, não têm atenuante. Logo não será por aqui que passa o caso do português. O trilho de leitura é outro. Também a aproximação deste caso com o de Timothy Mc Veigh, que mereceu de Mário Cesariny uma intervenção plástica em sua defesa, não tem saída. Veigh foi condenado à morte por electrocussão depois de acusação de terrorismo político, pena que cumpriu em 2001 e que está na origem da intervenção de Cesariny. Esta é para ser encarada como protesto contra a pena de morte. Nada de semelhante no caso de Francisco Leitão.

A intervenção de Seixas só pode ter uma justificação (aceitando como provados os crimes cometidos): chamar a atenção para uma situação em que o Eu social tinha pouca consistência. Só uma tal fragilidade explica os delírios proféticos, os furores passionais, os transportes mágicos, os entusiasmos imaginativos. É ela que explica ainda os crimes de sangue e até a falta de arrependimento posterior (aceitando sempre que ele cometeu os crimes pelos quais foi condenado). Este homem tinha um largo e extenso Eu arcaico, sem censuras de qualquer espécie, que se sobrepunha ao seu pequeno Eu social, muito pouco trabalhado e desenvolvido e no qual empenhava apenas uma curta parcela da sua vida, aquela que lhe permitia ter no dia-a-dia uma boa vizinhança com as pessoas do lugar. Mas até aí o Eu arcaico vinha ao de cima, com os delírios arquitecturais da casa. Em tudo o resto, do amor ao entendimento social, na vida privada ou no relacionamento com as instituições, este homem vivia sem Eu social. Ao contrário dos casos em que o investimento no Eu civilizado é total, abafando por inteiro o Eu arcaico, o que aqui se encontra é o caso dum homem que por razões pessoais ou de isolamento geográfico, ou pela mistura das duas, ignorava as restrições do Eu social e vivia segundo os ditames livres do Eu arcaico.

Que quero dizer com isto? E que tem isto a ver com a intervenção surrealista em seu favor? Cruzeiro Seixas percebeu o Eu arcaico deste homem pela arquitectura que dele viu. Tratava-se duma arquitectura muito mais essencial do que todas as que são feitas hoje pelos arquitectos de renome. Era o caso dalguém que não aceitava a normalização na construção (piscina, relva e rectângulo) e sem nada conhecer de Dalí, de Gaudí, de Breton (escrevendo sobre o Facteur Cheval) ou de Hundertwasser empreendera uma obra que tinha fortes afinidades com as criações e as teorizações destes autores. Foi isso que o atraiu para Leitão. Viu nele a situação dalguém que chegava ao automatismo psíquico sem nunca ter lido uma linha sobre o assunto; tocava por processos seus o que muitos surrealistas haviam tocado doutro modo. Que faltou então a este homem para ser Dalí ou Gaudí, mesmo que só o Dalí e o Gaudí da Carqueja? Doutro modo: que tiveram a mais do que ele Dalí, Gaudí, Hundertwasser ou Breton (que afirmou no manifesto de 1930 que o mais simples dos actos surrealistas era vir para a rua de pistola em punho e disparar ao acaso sobre a multidão)? Tiveram a mais a alquimia do verbo ou a das cores e a das formas. Uma coisa é incendiar o mundo, outra representá-lo. Há pois uma diferença entre um Eu arcaico que se vive de forma espontânea e simples e um Eu arcaico que é vivido em termos de representações simbólicas, de enriquecimentos progressivos de conteúdos. Breton teve sempre o cuidado de avisar que o mais simples não era o mais recomendável. Uma coisa é ser Germaine Berton, Violette Nozières ou Francisco Leitão, outra é ser marquês de Sade, André Breton ou António Maria Lisboa.


É pois muito fácil perceber agora o que Cruzeiro Seixas pretendeu com a sua intervenção a favor do Rei Ghob: é preciso dizer a uma sociedade normalizada, fruto das interdições milenares que criaram a Lei e o castigo, que nem sempre é possível recalcar o Eu arcaico. Há indivíduos que por motivos vários continuam de forma irrefragável ligados a essa matéria primordial, em que os interditos (incesto, pedofilia e homicídio) não existem. Tais indivíduos são naturalmente refractários à formação e ao amadurecimento do Eu social; constituem uma minoria, já que a grande maioria segue o caminho inverso, interiorizar os interditos a tal ponto que sufoca em nevoeiro o Eu arcaico, que se torna assim um Encoberto recalcado. Trata-se todavia duma minoria visível, que se manifesta de forma ruidosa, deixando uma marca à sua volta. A sociedade dos interditos inventou as prisões, os hospícios e os asilos para esconder e castigar essa minoria anormal. Entre essa fauna estão os parricidas, os tarados sexuais, os assassinos em série, os estripadores, quer dizer, todos os que vivem seu Eu arcaico de forma imediata (Breton diria simples), sendo incapazes de lhe sobrepor o Eu social.

O que Seixas quer dizer com a sua chamada de atenção é que tais seres podiam dar saída diferente ao seu Eu arcaico caso houvesse desde a infância outra educação, que não aquela que prepara para a concorrência desenfreada em volta do dinheiro, e que exige a formação dum Eu social sufocante e exclusivo. Francisco Leitão podia ter sido tão-só o Gaudí ou o Bataille da Carqueja se lhe tivessem ensinado, além ou aquém dos processos do recalque, que ele não pôde incorporar, as técnicas da construção simbólica. Que teria sido o poeta de Isso Ontem Único sem tais técnicas? Porventura só parricida e violador da mãe. Em vez de ser hoje um grande poeta exemplar, seria sem tais avanços apenas mais um caso prisional. Assim, com a elaboração simbólica que interiorizou e desenvolveu graças ao surrealismo e ao automatismo, foi um ser discreto, em permanente trânsito, capaz de fazer um equilíbrio complexo mas eficaz entre as suas tendências instintivas mais fundas e pessoais, os desejos irreprimíveis do seu Eu primitivo, e as imposições sociais exteriores. Assim porventura teria sido Francisco Leitão caso lhe houvessem dito ou mostrado que além da dicotomia entre a censura e o acto de satisfação imediata dos desejos primitivos e originais, os mais imperiosos nestes casos de absoluta insolubilidade do Eu arcaico, existia um terceiro termo, o da representação simbólica, capaz de conciliar com eficácia as duas vias.

 

 


ANTÓNIO CÂNDIDO FRANCO | Ensaísta e editor. Nasceu e cresceu em Lisboa, num dos mais vetustos bairros da cidade, a Graça, em 1956. Aos sete anos foi aluno de Alice Gomes. Há quase quatro décadas que está ligado ao ensino público, onde se esforça por desaprender muito do que lhe ensinaram. Coordena, edita e dirige desde 2012 a revista de “cultura libertária” A Ideia, que se publica desde 1974 e onde Mário Cesariny colaborou em vida. Tudo o que procura é poder inscrever no seu registo o que um inspirado escritor francês mandou gravar na sua lápide: Je cherche l’or du temps.

 

 


NELSON DE PAULA (Brasil, 1950) | Poeta, ensayista, cuentista y artista visual. En su obra integral pretende ser un traficante de sueños, y atravesar las fronteras de las dimensiones, con lo ilegal debajo del brazo. Ha publicado alrededor de 60 libros de poesía y arte visual. Entre otros destacamos: O Plasma, Vozes do Aquém, Projeto para uma Revolução Fundamentalista, A Hóstia de Isis, Sete pulos na encruzilhada. Como artista plástico, participó en Bienales, expos individuales y colectivas en Brasil y el resto del mundo. Fue miembro del Grupo Surrealista de São Paulo. Participó en la Exposición Surrealista “Las llaves del deseo”, Costa Rica, Cartago, 2016. Colaborador de la revista Matérika (Costa Rica). Reside en São Paulo.

 



Agulha Revista de Cultura

Série SURREALISMO SURREALISTAS # 12

Número 211 | junho de 2022

Artista convidado: Nelson de Paula (Brasil, 1950)

editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com

editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com

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