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COMICS & SURREALISMO: VIDAS PARALELAS
The Sandman, de Neil Gaiman |
Talvez a desatenção se deva a um dos fundamentos
do Surrealismo, a defesa intransigente de que, como diria André Breton, a imaginação artística deve permanecer livre.
Cabe recordar uma observação de René Magritte, em 1958:
Tento,
na medida do possível, pintar imagens que me comprometam apenas com o mistério.
As ideias políticas sobre a arte e as ideias judiciosas produzem, pelo contrário,
o sentimento de compromisso em uma via pela qual se está seguro de chegar ao objetivo
apontado, se respeitadas as instruções e as referências… Tais instruções não me
poderia ajudar a encontrar as imagens que gosto de pintar.
Sob este aspecto é possível que o Surrealismo
entendesse o ambiente das histórias em quadrinhos como o da arte dirigida, onde
talvez fosse impossível encontrar espaços para a livre associação de ideias e outros
de seus truques prediletos.
Uma declaração de Breton, em 1948, acerca
dos cadáveres deliciosos reforça o que penso sobre o tema. Diz ele que este jogo
surrealista é a negação violenta da irrisória
atividade de imitação dos aspectos físicos à qual ainda uma grande parte – a mais
controvertida – da arte contemporânea permanece anacronicamente acorrentada.
A ideia de se criar, através dos cadáveres deliciosos, um híbrido de texto e imagem,
de algum modo refletia certa obsessão, no Surrealismo, por definir uma linguagem
própria, que, neste caso, entraria em conflito com o que vinha se desenvolvendo
no universo das histórias em quadrinhos.
Recordemos novamente Magritte, ao dizer que
o surrealismo reivindica para a vida desperta
uma liberdade parecida com a que temos no sonho. Ora, a essa liberdade se refere
Rodrigo Otávio dos Santos, em seu ensaio “O binômio produção/consumo e a origem
dos quadrinhos” (revista Humanidades #
2, Fortaleza, 2016), ao comentar o surgimento, em 1905, dos quadrinhos – originalmente
na forma de tiras sequenciadas na imprensa diária – Little Nemo in Slumberland, de Winsor McCay, afirmando que o autor se valia da perspectiva onírica para
romper com praticamente todas as convenções estabelecidas para os quadrinhos até
então. Certamente nos depararíamos com muitos surrealistas que, mesmo atualmente,
nos vissem evocando Winsor McCay como precursor do Surrealismo, ao menos em uma
linhagem oculta.
Em tal lista subterrânea – que sob aspectos
diversos tem definido a cultura do século passado – também poderia constar George
Herriman, em espacial pela criação, em 1910, do personagem Krazy Kat, em singular
narrativa que explorava os recortes psicológicos envolvendo práticas sadomasoquistas.
Outros nomes facilmente virão à tona, como veremos nesta edição de Agulha Revista de Cultura que desvela uma
relação oculta inexplicável.
Joker, de Grant Morrison |
É
evidente, por outro lado, que depois de 30 anos de existência e em razão da própria
influência por grandes ondas mais ou menos fixas que exerceu, não poderia limitar-se
apenas àqueles que desejam vivamente formar parte do cenário atual. Hoje não deixam
de ser produzidas obras que, sem ser exatamente surrealistas, o são mais ou menos
profundamente por seu espírito.
No entanto, o silêncio permaneceu dos dois
lados. Reunimos em nossa edição alguns desses criadores que o Surrealismo poderia
ter reclamado para si. Uma reunião que abrange da representação onírica à sátira
social, do absurdo ao maravilhoso, das viagens no tempo à contracultura, dos traços
mitológicos aos rituais do erotismo. Pensemos em Winsor McCay e Robert Crumb, Katsushiro
Otomo e Frank Miller, Neil Gaiman e Moebius, todos eles romperam com a casca da
lógica e os paradigmas carcomidos da moral. Muitos de seus personagens explodiram
os bastidores da realidade, e habitam o imaginário popular. Em homenagem a eles
também romperemos com uma tradição de nossa revista há 139 números. Desaparece nesta
edição a figura do artista convidado,
e cada matéria será ilustrada pelos quadrinistas comentados. Nossos sinceros agradecimentos
a todos os valiosos colaboradores.
Os
editores
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● ÍNDICE
ADI ROBERTSON| Into the black hole: an interview with comics author Grant Morrison
ALEX DUEBEN | “Hieronymous and Bosch” – Cartoonist Paul Kirchner on leaving
comics for advertising and coming home again
DANIELE CROCI | Watching (through) the Watchmen: Representation and Deconstruction of the Controlling
Gaze in Neil Gaiman’s The Sandman
EVELYN
WANQ | The French sci-fi comic that inspired Blade Runner and Akira
GIANNI SIMONE | Tsuge
Yoshiharu’s japan
JESUS JIMÉNEZ-VAREA
| Surrealism, Non-Normative Sexualities, and Racial Identities in Popular Culture:
the Case of the Newspaper Comic Strip Krazy
Kat
JUAN CARLOS PÉREZ GARCÍA
| Robert Crumb: Del comix underground al Génesis ilustrado
MANUEL ESPÍRITO SANTO
| Interview with Max Andersson
PEPO PÉREZ | El discurso
interior en los cómics de Frank Miller
GUSTAVO RIVA, MARIANO
VILAR | Hermenéutica y apophenia – El Batman de Grant Morrison y el delineado del
Círculo Hermenéutico
*****
EDIÇÃO COMEMORATIVA | CENTENÁRIO
DO SURREALISMO 1919-2019
Artistas convidados: Frank Miller,
George Herriman, Grant Morrison, Max
Andersson, Moebius, Neil Gaiman, Paul Kirchner, Robert
Crumb, Tsuge Yoshiharu
Agulha Revista de Cultura
20 ANOS O MUNDO CONOSCO
Número 140 | Agosto de 2019
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo & design | FLORIANO MARTINS
revisão de textos & difusão | FLORIANO
MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
ARC Edições © 2019
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