quinta-feira, 15 de agosto de 2019

Agulha Revista de Cultura # 140 – Agosto de 2019


COMICS & SURREALISMO: VIDAS PARALELAS

The Sandman, de Neil Gaiman
Os olhos abertos do Surrealismo não alcançaram, no horizonte em que surgem suas primeiras visões desejosas de interferir na realidade, o mundo mágico que, a seu lado – em uma espécie de rota paralela –, começava a gestar inesgotáveis perspectivas de criação e influência nos primórdios da cultura de massas. Refiro-me às histórias em quadrinhos.
Talvez a desatenção se deva a um dos fundamentos do Surrealismo, a defesa intransigente de que, como diria André Breton, a imaginação artística deve permanecer livre. Cabe recordar uma observação de René Magritte, em 1958:

Tento, na medida do possível, pintar imagens que me comprometam apenas com o mistério. As ideias políticas sobre a arte e as ideias judiciosas produzem, pelo contrário, o sentimento de compromisso em uma via pela qual se está seguro de chegar ao objetivo apontado, se respeitadas as instruções e as referências… Tais instruções não me poderia ajudar a encontrar as imagens que gosto de pintar.

Sob este aspecto é possível que o Surrealismo entendesse o ambiente das histórias em quadrinhos como o da arte dirigida, onde talvez fosse impossível encontrar espaços para a livre associação de ideias e outros de seus truques prediletos.
Uma declaração de Breton, em 1948, acerca dos cadáveres deliciosos reforça o que penso sobre o tema. Diz ele que este jogo surrealista é a negação violenta da irrisória atividade de imitação dos aspectos físicos à qual ainda uma grande parte – a mais controvertida – da arte contemporânea permanece anacronicamente acorrentada. A ideia de se criar, através dos cadáveres deliciosos, um híbrido de texto e imagem, de algum modo refletia certa obsessão, no Surrealismo, por definir uma linguagem própria, que, neste caso, entraria em conflito com o que vinha se desenvolvendo no universo das histórias em quadrinhos.
Recordemos novamente Magritte, ao dizer que o surrealismo reivindica para a vida desperta uma liberdade parecida com a que temos no sonho. Ora, a essa liberdade se refere Rodrigo Otávio dos Santos, em seu ensaio “O binômio produção/consumo e a origem dos quadrinhos” (revista Humanidades # 2, Fortaleza, 2016), ao comentar o surgimento, em 1905, dos quadrinhos – originalmente na forma de tiras sequenciadas na imprensa diária – Little Nemo in Slumberland, de Winsor McCay, afirmando que o autor se valia da perspectiva onírica para romper com praticamente todas as convenções estabelecidas para os quadrinhos até então. Certamente nos depararíamos com muitos surrealistas que, mesmo atualmente, nos vissem evocando Winsor McCay como precursor do Surrealismo, ao menos em uma linhagem oculta.
Em tal lista subterrânea – que sob aspectos diversos tem definido a cultura do século passado – também poderia constar George Herriman, em espacial pela criação, em 1910, do personagem Krazy Kat, em singular narrativa que explorava os recortes psicológicos envolvendo práticas sadomasoquistas. Outros nomes facilmente virão à tona, como veremos nesta edição de Agulha Revista de Cultura que desvela uma relação oculta inexplicável.
Joker, de Grant Morrison
Se é verdade que o mundo das histórias em quadrinhos jamais formalizou sua adesão ao Surrealismo, é igualmente inegável a influência do mesmo, de modo que poderíamos – pela força de um desejo não realizado – evocar as palavras de Breton em 1952, ao falar da influência do Surrealismo:

É evidente, por outro lado, que depois de 30 anos de existência e em razão da própria influência por grandes ondas mais ou menos fixas que exerceu, não poderia limitar-se apenas àqueles que desejam vivamente formar parte do cenário atual. Hoje não deixam de ser produzidas obras que, sem ser exatamente surrealistas, o são mais ou menos profundamente por seu espírito.

No entanto, o silêncio permaneceu dos dois lados. Reunimos em nossa edição alguns desses criadores que o Surrealismo poderia ter reclamado para si. Uma reunião que abrange da representação onírica à sátira social, do absurdo ao maravilhoso, das viagens no tempo à contracultura, dos traços mitológicos aos rituais do erotismo. Pensemos em Winsor McCay e Robert Crumb, Katsushiro Otomo e Frank Miller, Neil Gaiman e Moebius, todos eles romperam com a casca da lógica e os paradigmas carcomidos da moral. Muitos de seus personagens explodiram os bastidores da realidade, e habitam o imaginário popular. Em homenagem a eles também romperemos com uma tradição de nossa revista há 139 números. Desaparece nesta edição a figura do artista convidado, e cada matéria será ilustrada pelos quadrinistas comentados. Nossos sinceros agradecimentos a todos os valiosos colaboradores.

Os editores

Krazy Kat, de George Herriman 

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ÍNDICE

ADI ROBERTSON| Into the black hole: an interview with comics author Grant Morrison

ALEX DUEBEN | “Hieronymous and Bosch” – Cartoonist Paul Kirchner on leaving comics for advertising and coming home again


DANIELE CROCI | Watching (through) the Watchmen:  Representation and Deconstruction of the Controlling Gaze in Neil Gaiman’s The Sandman

EVELYN WANQ | The French sci-fi comic that inspired Blade Runner and Akira

GIANNI SIMONE | Tsuge Yoshiharu’s japan

JESUS JIMÉNEZ-VAREA | Surrealism, Non-Normative Sexualities, and Racial Identities in Popular Culture: the Case of the Newspaper Comic Strip Krazy Kat

JUAN CARLOS PÉREZ GARCÍA | Robert Crumb: Del comix underground al Génesis ilustrado

MANUEL ESPÍRITO SANTO | Interview with Max Andersson

PEPO PÉREZ | El discurso interior en los cómics de Frank Miller

GUSTAVO RIVA, MARIANO VILAR | Hermenéutica y apophenia – El Batman de Grant Morrison y el delineado del Círculo Hermenéutico 


Robert Crumb

Jheronimus & Bosch, de Paul Kirchner


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EDIÇÃO COMEMORATIVA | CENTENÁRIO DO SURREALISMO 1919-2019
Artistas convidados: Frank Miller, George Herriman, Grant Morrison, Max Andersson, Moebius, Neil Gaiman, Paul Kirchner, Robert Crumb, Tsuge Yoshiharu



Agulha Revista de Cultura
20 ANOS O MUNDO CONOSCO
Número 140 | Agosto de 2019
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo & design | FLORIANO MARTINS
revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
ARC Edições © 2019



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