A questão colocada por Júlio Henriques na sua nota foi
entre A Ideia e Salamandra – o que nos obrigará a centrar parte deste texto nas relações
entre estas duas revistas. Diz ele: “Parece-me que a dimensão de crítica da cultura não se encontra
tão declaradamente presente n’ A Ideia como,
por exemplo, numa revista irmã espanhola, a Salamandra, do Grupo Surrealista
de Madrid. E a questão seria esta: a ser verdade, decorrerá isso de diferenças idiossincráticas
hispânicas e lusitanas?”
Comecemos por esta questão. Há motivos de feito para
constatar que a dimensão “crítica da cultura” é mais visível, pelo menos mais declarada,
na revista do Grupo Surrealista de Madrid do que na revista A Ideia. Não cremos que tal se deva a qualquer
idiossincrasia local, hispânica ou lusa. A nossa resposta à pergunta vai noutro
sentido. A diferença deve-se antes a nosso ver à tradição particular de cada uma
das revistas. Paga assim a pena ver a história de cada uma, aproveitando o momento
para as perceber por dentro. É também uma ocasião para dar a conhecer em língua
portuguesa o itinerário e os valores duma revista tão cativante e viva como Salamandra, que desde o século passado mantém
relações estreitas com a região portuguesa – seja por meio do imaginário decorrente
dum espaço vizinho e por isso pródigo em interpelações seja por contactos pessoais,
que começaram cedo logo através de Mário Cesariny, que desde o início da década
de 60 ia regularmente a Madrid, onde ficava instalado na Calle Don Carlos, n.º 3-1dt,
casa de Francisco Aranda e Manolo Rodriguez Mateos.
A propósito de Alberto Pimenta, disse
há uns anos Júlio Henriques que a crítica literária era em Portugal uma ficção real
– ficção porque ausência ou mistificação e real porque orgânica, já que expressão
e movimento de indigência. O mesmo se podia dizer hoje a propósito destas três revistas,
alargando o diagnóstico ao caso espanhol. É mais um motivo que justifica este texto.
Não pretendendo fazer crítica literária, ao menos crítica literária jornalística,
ele intenta compreender a natureza de três publicações – e compreender foi sempre
a finalidade de qualquer escola crítica. Duas delas, Salamandra e Flauta, têm seguramente
por parte dos jornais uma recepção que fica muito aquém da sua importância e do
seu valor. Daí o espaço que de seguida lhes consagramos estar justificado. Elas
existem para ser lidas e comentadas por uma comunidade de leitores críticos e actuantes.
]
A Ideia foi fundada em Paris, em 1974, ainda
antes do 25 de Abril, no meio anarquista ibérico e francês e teve como fundador
e promotor um exilado político, João Freire, ao que sabemos o único oficial do quadro
em actividade – saíra há pouco da Escola Naval – que desertou em plena guerra colonial
– estava em missão bélica em Moçambique. Chegou a Paris no final do Inverno de 1968,
viveu o Maio, ligou-se pouco depois aos Cadernos
de circunstância e acabou cerca de 1970/71 por aderir às ideias libertárias.
Era desde Janeiro de 1970 operário da Renault e veio a militar na CNT francesa e
a frequentar um grupo clássico de afinidade, Commune Libre, animado por Pierre Méric, que não estava federado na
Federação Anarquista [FA].
Freire manteve porém contactos com esta organização
francesa e chegou a participar como observador num seu congresso. Manteve ainda
contactos com o grupo Louise Michel, este da FA, que se reunia então em torno de
Maurice Joyeux. Os contactos com Portugal faziam-se através de Reis Sequeira, um
militante anarco-sindicalista que vinha da velha CGT e que tivera enquanto operário
corticeiro um papel importante na greve geral de 1934. Foi ele que informou de viva
voz João Freire da tradição social do anarquismo português, dando-lhe a conhecer
por testemunho directo as grandes figuras portuguesas do sindicalismo operário libertário
e as suas publicações anteriores ao Estado Novo, em especial o jornal A Batalha, e foi ele com certeza que lhe
enraizou a ideia – tão presente no período inicial da revista – de que o anarquismo
em Portugal sofrera um mero eclipse temporário e estava destinado a renascer da
noite que era a ditadura salazarista.
A isto, é preciso acrescentar o trabalho de Carlos da
Fonseca, que João Freire conhecia e que publicou em 1973 uma Introduction à l’histoire du mouvement libertaire,
ponto de chegada dum volume considerável de investigação anterior e que acabou por
ser o ponto de partida da sua obra de historiador do movimento operário e do movimento
libertário.
Foi neste quadro que no final de 1973 e inícios de 1974
João Freire decidiu avançar com uma publicação anarquista em língua portuguesa,
que devia sair com regularidade e tinha como escopo reatar uma tradição que nunca
se perdera mas que depois da segunda guerra mundial, em resultado de sucessivas
vagas de repressão e duma conjuntura geopolítica nova, parecera perder algo da sua
capacidade de se manifestar com a visibilidade e a inteligência organizativa de
outrora. Os acontecimentos de 1968, em que a bandeira negra voltara a surgir ao
lado da vermelha, indicavam que o renascimento das ideias e das organizações libertárias
começara.
O título escolhido, A Ideia, mostra bem a tentativa de enraizar a nova publicação numa tradição
anterior, que remonta pelo menos até Antero de Quental. Dele são os oito sonetos
do poema hegeliano “A Ideia”, composto na mesma época em que estava em contacto
com a Internacional operária e advogava a Revolução – isto quando a experiência
operária da Comuna de Paris acabava de ter lugar e as Conferências do Casino eram
proibidas. Eis o terceto de remate: “A Ideia,
o sumo Bem, o Verbo, a Essência/ Só se revela aos homens e às nações/ No céu incorruptível
da Consciência!”
Remontando a Antero, o título da revista tem porém passagem
obrigatória no boletim A Ideia., de que
só saiu no Porto um número em 1898, com o subtítulo Periodico Scientifico, mas que é uma peça de grande importância. Aí
o advogado Bernardo Lucas fazia publicar um longo texto, “A questão anarquista”,
o único da publicação, que, sendo a arguição jurídica de defesa em tribunal de três
libertários portuenses acusados de infracção à lei de 13-2-1896 do ministro João
Franco que criminalizava a mera propaganda do anarquismo, é também entre nós uma
das mais completas exposições das teorias anarquistas, no estádio em que elas se
encontravam. O conjunto foi reeditado em 2015 pela editora Letra Livre, com um informado
estudo de Luís Bigotte Chorão intitulado “Para uma História da Repressão do Anarquismo em Portugal
no Século XIX, seguido de “A Questão Anarchista” de Bernardo Lucas” – reedição
recenseada nesta revista pela mão do seu fundador no volume de 2016.
Por sua vez o subtítulo da novel publicação, “órgão
anarquista específico de expressão portuguesa”, indicava que ela pretendia surgir
como a voz dum anarquismo sem caracterizações parcelares – anarco-sindicalismo ou
outros – e dando voz a todas as adjectivações possíveis.
Quando lemos hoje o primeiro número da revista – saído
no final de Abril de 1974 – percebemos que este propósito foi conseguido. No material
reunido por Freire entre Janeiro e Abril de 1974 e que acabou por dar corpo ao número
de estreia da revista, além da nota editorial, “Como íamos dizendo…”, encontramos
duas breves biografias, a de Mário Castelhano, um anarco-sindicalista que morreu
no Tarrafal, e a do italiano Camilo Berneri, um anarquista assassinado pela polícia
política de Estaline em 1937 em plena guerra civil espanhola, textos de Murray Bookchin,
de Diego Abad de Santillán, de Ricardo Sanz e de Miguel Garcia sobre o grupo de
afinidade anarquista, uma frase de Léo Ferré, um parágrafo de Miguel Bakunine, bibliografia
sobre a revolução espanhola e a história da adopção da bandeira negra pelos anarquistas
– o que sucedeu por volta de 1883 em memória dos parisinos assassinados em Maio
de 1871.
Os números imediatos da publicação entre 1974 e 1975
não desmentem o “sintetismo” inicial, que remonta a Sébastien Faure – citado este
no número de estreia. Porventura estes números acentuam mesmo a inclinação sintetista
da revista, em contexto de revolução em Portugal e na iminência do desaparecimento
do ditador em Espanha, com a publicação de vários textos sobre o assunto e com a
urgência organizativa dos grupos libertários da região portuguesa e ibérica. Em
Setembro de 1975 por exemplo, num momento crucial da revolução em Portugal, e quando
a vida do ditador espanhol estava já presa por um fio, o suplemento do número 3
da revista é uma folha volante, dirigida “Aos libertários, aos Trabalhadores, ao
Povo”, defendendo a auto-gestão e a federação dos povos ibéricos e assinada pelo
“grupo anarquista Os Iguais – da Federação Anarquista Ibérica [FAI] – Região Portuguesa”,
então responsável pela edição da revista e dos suplementos.
Esta ideia de dar voz a um anarquismo sem caracterizações
especiais, fugindo a qualquer facciosismo, fosse anarco-sindicalista ou outro, e
dando lugar a todas as singularidades possíveis, num espírito federador que era
afinal o espírito originário da FAI, de que o grupo d’A Ideia fez de início parte, parece-me a marca inicial mais típica da
revista e aquela que pode ter sido determinante para o seu desenvolvimento futuro.
A sua história posterior até 1992, altura em que a primeira série da revista foi
suspensa, embora muito diversa, com orientações e directores distintos – os mais
marcantes foram João Freire e Miguel Serras Pereira, embora este numa fase muito
curta –, confirma a meu ver, mas agora num quadro mais geral, alargado ao campo
da cultura, que foi tomado como um território livre, a genética inicial de recusar
qualquer comportamento fechado, de capela facciosa, mantendo antes um espírito de
diálogo entre correntes da mesma família.
Quando em 2012 assumi a orientação da revista fiz formalmente
uma única mudança – a alteração do subtítulo que passou de revista libertária de cultura para revista de cultura libertária. Foi uma mera alteração da ordem das palavras
mas que teve um sentido preciso: a descrença de que a cultura seja por si só liberdade.
Há cultura que está do lado da indústria e que é tão tóxica como os combustíveis
fósseis. Annie Le Brun teve razão ao dizer que a desflorestação da imaginação é
tão perigosa como a desflorestação da Amazónia. Tracei pois os limites da cultura
que me interessava – aquela que de feito pode representar um avanço no aperfeiçoamento
moral e social e na emancipação humana de todo e qualquer jugo exterior ou interior.
Por comodidade, mas também por referência a um campo bem identificado e ao seu historial,
chamei a isso “cultura libertária”.
O que me interessava porém era pôr em comunicação braçadas
distintas, camadas variadas, e não tanto encontrar uma corrente, um tronco que surgisse
como o único caminho a trilhar, por mais exemplar que fosse. Veja-se neste volume
o espaço dado a Cruzeiro Seixas, a Mário Cesariny, a Mário-Henrique Leiria, a Luiz
Pacheco, quer dizer, ao surrealismo em Portugal, e que de resto tem sido uma constante
da revista desde 2012, e por outro lado a atenção prestada a Ferreira de Castro,
o autor de A selva, tão ligado ao jornalismo
sindical libertário da primeira república, mas que nada teve a ver com o surrealismo,
sendo até mordido aqui e ali por Luiz Pacheco. E no volume anterior a este que o
leitor tem nas mãos, volume recenseado por Júlio Henriques, veja-se o interesse
por André Breton e pela escrita automática ao lado do cuidado posto em Agostinho
da Silva – dois pensadores que dificilmente se encontrariam fora da plataforma desta
revista.
O interesse que a revista manifestou pela tradição pacifista
do anarquismo – e aí, ao que lembro, desde sempre –, essa que tem um ponto de viragem
em Bartholomeus de Ligt, um dos diálogos de Gandhi no Ocidente, e depois em Hem
Day, é também aqui que deve ser visto – sendo o aqui, a necessidade imperiosa de
nada esquecer e de tudo atender e compreender. Um colaborador próximo de Hem Day,
Léo Campion é uma das figuras mais curiosas do anarquismo no século XX e uma daquelas
que nos obriga a consagrar atenção a outro filão abandonado e que muito nos interpela
– a ligação entre anarquismo e franco-maçonaria, quer dizer, a vontade de viver
a tradição iniciática de forma libertária e que é outra das linhas de força desta
revista, de resto presente desde a primeira hora no surrealismo, e que nos levou
a dar espaço a um autor vindo do lado mais esotérico do movimento da Filosofia Portuguesa,
António Telmo (1927-2010), que assim surge também no mesmo tabuleiro de Ferreira
de Castro, de Mário Cesariny, Luiz Pacheco e muitos outros.
Esta necessidade de pôr em diálogo partes entre si desconhecidas
duma só e mesma cultura, encontrando-lhe os vasos comunicantes, tem todavia os limites
que acima tracei e que para cortar qualquer ambição despropositada constituem um
traço inultrapassável – só nos interessam os elementos culturais, que tenham raízes
numa cultura livre, artesanal, fora dos grandes interesses do mercado, praticada
em pequenos grupos de criadores ou de pesquisadores iguais entre si e sustentando
por si e de preferência sem subsídios oficiais as suas publicações. Foi deste modo
que André Breton trabalhou toda a vida – o mesmo para Benjamin Péret, poeta maior,
que morreu na miséria – mas foi também assim que Agostinho da Silva viveu e deu
corpo a todos os seus projectos – ele que viveu numa barraca de pau no descampado
de Brasília quando era professor titular dessa universidade. E foi ainda assim,
sentado a uma pobre de mesa de pinho de que nunca se quis desfazer, que Ferreira
de Castro escreveu por uma necessidade interior os seus primeiros livros. O mesmo
fez o cabalista António Telmo que viveu retirado numa cidade de província, desinteressado
de tudo o que fosse carreira ou projecção social. Este espírito de independência,
esta exigência de simplicidade voluntária, fora de todas as ambições de ascensão
mundana e duma carreira nas letras e nas artes, é a melhor garantia de autenticidade
de qualquer criação cultural. Toda a cultura que não tenha este selo, toda a cultura
que aceite o espírito de concorrência e a competição desenfreada, toda a cultura
que não seja já uma manifestação dum espírito livre, gratuito, amoroso e solidário,
está fora do nosso círculo de interesses e merece o nosso distanciamento crítico.
]
Passemos
agora à publicação do Grupo Surrealista de Madrid. É natural que a minha abordagem
sobre esta revista seja muito mais limitada e possa até enformar erros. Não evoluí
por dentro dela como sucedeu com A Ideia,
à qual me liguei em 1978 ou 1979 e que desde aí acompanhei em todos os passos. Ainda
assim tentarei uma síntese do seu percurso e dos seus valores com os elementos de
que disponho. Antes disso deixo uma nota pessoal. A primeira vez que ouvi falar
da revista Salamandra foi na boca de Mário
Cesariny. Corria o Natal de 1997, quando lhe perguntei o que era feito do surrealismo.
Ele respondeu sem hesitar: “Aqui não, mas em Madrid sim. O Grupo Surrealista de
Madrid publica uma das melhores revistas do mundo – Salamandra.” Nessa altura desconhecia tudo o que se passava em Madrid
e não fazia ideia do que pudesse ser uma das melhores revistas do mundo. A revista
tinha então publicado sete números – o último em 1995 com 64 páginas. Tem hoje 22
números publicados – o último dos quais com 352 páginas, de 2014/15, e prepara para
o Outono de 2020 a saída de mais um número duplo.
O primeiro número de Salamandra saiu em 1987 – “um humilde mas entusiasta caderno de 18 páginas”,
assim o definiu José Manuel Rojo na entrevista que nos deu (A Ideia, n.º 84/85/86, 2018) e que foi a
primeira que do grupo apareceu entre nós. O caderno foi feito por Mariano Auladén,
Eugenio Castro e Pedro Olivares – os dois primeiros haviam-se ligado no final da
década de 70 e início da década de 80 ao Círculo Surrealista de Gíjon, que arrancara
em 1977 e editara em 1978 e 1979 dois números da revista El Orfebre e, já com Auladén e Castro, mais dois de Luz Negra em 1980 e 1981.
O segundo número de Salamandra saiu no ano seguinte, em 1988, com a colaboração de José
Manuel Rojo, que chegara ao surrealismo não por via dos de Gígon, como acontecera
com Auladén e Castro, mas por contactos com Eugenio Granell, que fizera a guerra
civil no POUM, conseguira fugir para a América, contactara André Breton na República
Dominicana, vivera longos anos em Nova Iorque e era uma das origens remotas da fundação
do Grupo Surrealista de Chicago. Foi por seu intermédio que Franklin e Penelope
Rosemont, os fundadores do grupo, conviveram em Paris em 1965 com André Breton.
Nesta década inicial, que vai de 1978 a 1988, com El Orfebre, Luz Negra e os dois números iniciais de Salamandra, o posicionamento político deste círculo não anda longe das
posições políticas do surrealismo na década de 30, quando a se deu a ruptura com
a União Soviética e a aproximação à dissidência trotskista que levou em 1938 Breton
a viajar para o México para se encontrar com Trotsky e aí redigir com ele um manifesto,
“Por uma arte revolucionária independente”, que devia servir de alternativa a uma
arte tutelada por um partido e por um governo – estabelecia-se aí um “regime anarquista
de liberdade individual” para todos os artistas – e que serviu logo depois de programa
à FIARI [Federação Internacional de Arte Revolucionária Independente], que teve
uma curta existência com o início da guerra e a dispersão que se lhe seguiu.
Enrique Carlón, um dos fundadores do Círculo Surrealista
de Gíjon, e Mariano Alaudén foram militantes da Liga Comunista Revolucionária e
retomaram para si, para os seus grupos e as suas publicações, os princípios da militância
política do surrealismo na década de 30 e que haviam tido na guerra e no pós-guerra
continuação em grupos que privilegiaram a política, relativizaram a criação e procuraram
conexões partidárias para o seu labor colectivo dentro do marxismo-leninismo – como
sucedeu com os grupos La Main à Plume
(1941-1944) e Le Surréalisme Révolutionaire
(1947-1948), este último tentando mesmo aproximar-se do PCF, que porém o rejeitou
e hostilizou.
Olivares e Aulaudén abandonaram o projecto de Salamandra em 1991. Estavam então publicados
três números da revista e prestes a sair um quarto que apareceu já sem a colaboração
deles. Regista-se neste número a presença de Mário Cesariny, que de resto estava
em contacto desde o início da década de 80, através de Francisco Aranda, com os
jovens do Círculo Surrealista de Gíjon. A revista tinha como subtítulo – comunicação surrealista, subtítulo usado
desde Luz Negra e que acabava de subintitular
uma nova revista de Gíjon, Kula (1990),
que dava sequência às anteriores. “Comunicação surrealista” é uma expressão seca
e prática, que mostra o que havia de pragmático e de político, de mensagem e de
informação, no retomar da actividade surrealista em Espanha depois da ditadura.
O segundo período da actividade surrealista é aquele
se inicia com El Orfebre e Luz Negra e se desenvolve depois com Salamandra. No período inicial em que se
publica El Orfebre há ainda uma outra
revista, Autxphals, que fez em Madrid
alguns números (1978), de que pouco ficou, mas que basta para mostrar como o meio
ibérico do centro da Península, em língua castelhana, estava nessa altura muito
receptivo à acção surrealista – o que contrasta o seu tanto com o caso português
onde nesses anos, mau grado o riquíssimo livro que Mário Cesariny então publicou,
Textos de afirmação e de combate do movimento
surrealista mundial (1977), apenas um solitário como M. S. Lourenço, mas esse
de excelente calibre, se interessou a sério pelo surrealismo.
Este segundo período, que corre até hoje e que por isso
podemos chamar contemporâneo, nada tem a ver com o primeiro, o que não quer dizer
que não se estabeleçam pontes – Francisco Aranda (1926-89) é exemplo – entre os
dois. O primeiro viveu na dependência de Paris – Picasso, Buñuel, Dali e Miró fizeram
parte do grupo de Breton – enquanto o segundo enraizou de forma selvagem num campo
quase virgem que ficara décadas em pousio e que perdera grande parte da memória
do passado.
Mais do que reivindicar qualquer herança local anterior,
quase enterrada por décadas de ditadura, o surrealismo que nasceu em Espanha na
década de 70 do século XX foi credor de grupos já posteriores ao primeiro impulso
do surrealismo em Espanha e estranhos ao espaço ibérico. Estão nesse caso La Main
à Plume – não é por acidente que um colaborador de Salamandra e membro do Grupo Surrealista da Madrid, Andrés Devesa, publica
neste volume da revista A Ideia um texto
comovidamente dedicado a este grupo francês – e Le Surréalisme Révolutionnaire,
que em parte deu o colectivo Cobra (1948), que por sua vez é uma das raízes mais
vivas e actuantes do situacionismo, duas referências também marcantes da evolução
desta nova vaga do surrealismo no espaço ibérico de língua castelhana.
Para completar o quadro deste segundo período é preciso
uma referência especial ao Grupo Surrealista de Chicago, já referido a propósito
de Granell e sua estadia em Nova Iorque. Este colectivo iniciou a sua actividade
na segunda metade da década de 60 e insistiu desde o arranque na importância da
mensagem política do surrealismo – a revolução
surrealista não era para eles uma metáfora – que enalteceu e privilegiou acima
de qualquer outra. Pouco depois de conhecer o primeiro número de Arsenal – surrealist subversion (1970), revista
do grupo de Chicago, Mário Cesariny apontou esse grupo como uma ideia moral, que
podia dar lugar a “declarações de guerra” duma “violência magnífica” (carta a Laurens
Vancrevel, 8-3-1971; 2017: 77-78).
Entende-se que a evolução do surrealismo se tenha feito
nesses anos pelo lado da política, não da estética – ou mesmo da “negra busca poética”
para usar palavras de Cesariny na carta acima referida. O mundo ocidental começava
então a ficar soterrado em estética e era quase certo que por esse lado nada faltava
ver. Basta pensar no que veio depois para se perceber até que ponto tudo nesse campo
estava esgotado e pronto apenas à repetição. Que eco monótono e vazio o pós-modernismo!
Mas o que havia a mais na estética era o que lhe faltava a ela, à estética, de política
– uma dimensão moral e crítica, capaz de pôr em jogo uma outra noção de cultura,
muito mais propícia à criação gratuita, na ambição do comunismo do génio, quer dizer, na criação colectiva e na recusa da
sua subordinação aos interesses mercantis.
Restava assim a política – mas não qualquer política.
Também ela sob a forma institucional estava em estado de saturação, soterrada e
sufocada por décadas de cínico e por vezes criminoso realismo. Era a sua reinvenção
que faltava e onde tal falta melhor se sentia era no que ela, a política, tinha
de poética. A força e a provocação que o grupo de Chicago pôs no seu nascer, e que
levou Mário Cesariny a falar duma ideia moral, aliadas à necessidade de viver a
poesia, são de sinal idêntico aos meios que o situacionismo dum Debord deitou mão
de modo a iluminar a vida daqueles que se entregavam à tarefa da transformação do
mundo.
Não cremos que qualquer outro momento do surrealismo
tenha tido tanto peso na constituição e no desenvolvimento das ideias do grupo de
Madrid como este legado da reinvenção poética da política, onde encontraram com
agradável surpresa um surrealismo novo que sem perder a antiga virulência crítica
e política já pouco tinha a ver com o velho bolchevismo dissidente do trotskismo
e até com o manifesto de 1938, “Por uma arte revolucionária independente”, em que
as instâncias da literatura e da política/economia estavam em planos separados.
Tratava-se agora de fazer cruzar na política a esplêndida luz da poesia, superando
a arte, vivendo a poesia e realizando o pensamento. As noções que o grupo de Madrid
depois movimentou e criou – exterioridade e materialismo poético – enraízam neste
nó que combina e abraça a via de Chicago e o desenvolvimento situacionista do “surrealismo
revolucionário” de 1947.
Quando Rojo e Eugenio de Castro ficaram sozinhos em
1991 e fizeram o quarto número de Salamandra,
de 32 páginas, o espaço dado aos Rosemont e ao grupo de Chicago foi grande e cada
vez mais cresceu a partir daí. Logo nesse número de 1991, apareceu um texto de Franklin
Rosemont, “O Humor: hoje aqui e amanhã em todo o lado. Breve introdução à próxima
revolução” [texto acabado de publicar no número 4 de Arsenal (1989)], com apresentação do tradutor, José Manuel Rojo, “Introdução
a Franklin Rosemont”. Tanto um como outro bem mereciam aqui uma referência mais
larga – difícil ou impossível em notas tão breves como estas. Como quer que seja,
esta constatação chega para perceber a importância em 1991 dum texto como o de Franklin
Rosemont de que transcrevemos em anexo um passo.
É curioso constatar que foi neste mesmo momento, em
Junho de 1991, numa resposta dada a um inquérito internacional e logo depois reproduzida
no mesmo número de Salamandra onde Rosement
compareceu, que Rojo e Castro usaram pela primeira vez a sigla Grupo Surrealista
de Madrid. O grupo nascia assim na altura em que se livrava de tudo o que podia
ainda fazer lembrar o passado – esse que tinha como grande ponto de referência o
manifesto de 1938 e tudo o que dele decorria e que Breton depois da guerra dera
por superado.
O segundo impulso do surrealismo em Espanha teve assim
dois momentos distintos de afirmação – um primeiro, marcado pela militância trotskista,
e um segundo, que arranca em 1991 e vem até aos dias de hoje, que recolhe a herança
muito mais recente da intervenção dos surrealistas de Chicago e da Internacional
Situacionista. Neste segundo momento, os membros do grupo de Madrid avizinharam-se
das organizações libertárias em Espanha com quem passaram a ter contactos estreitos
e regulares – e isso nos confirmou Jose Manuel Rojo na entrevista atrás referida.
No número 7 de Salamandra,
de 1995, já com o dobro de páginas dos anteriores (64 pp.) e com um subtítulo novo
mas ainda não definitivo, comunicação surrealista,
imaginário crítico, o grupo de Chicago está de regresso, desta vez com a colaboração
de Penelope Rosemont, “Vida e Milagres do Ganso de Oiro” [texto também publicado
no número 4 de Arsenal (1989)] e que bem
merecia aqui pela sua largueza interpretativa um comentário bem mais largo. A expressão
“imaginário crítico” que aparece no subtítulo da revista pela primeira vez parece
dar corpo à ideia duma dimensão interior capaz de pôr em jogo e de recombinar uma
outra noção de cultura que se situe no lado de fora dos valores mercantis. A noção
de exterioridade, com equivalência em experiências libertárias feitas na dobra de
fora da História, como a dos naturianistas, está já presente nesta nova combinatória.
O subtítulo evoluiu logo de seguida para comunicação
surrealista, imaginação insurgente, crítica da vida quotidiana, para se fixar
em 2001-2002, no número duplo 11/12, com 180 pp. em intervenção surrealista, imaginação insurgente, crítica da vida quotidiana,
que ainda hoje tem e que acentua a genética libertária que há pouco lhe encontrámos
para o período que abriu em 1991. Passar de comunicação
a intervenção e de imaginário a imaginação equivale a dar mais luz ao presente, ainda que essa luz aconteça
por fora, no exterior.
O interesse pelo grupo de Chicago não esmoreceu e manifestos,
poemas e obras plásticas foram dadas a conhecer depois disso pelo grupo de Madrid,
com especial destaque para a declaração produzida em Chicago em 1992, na sequência
do motim de Los Angeles, “Três dias que abalaram a Nova Ordem Mundial”, que chegou
a ser traduzida para castelhano e editada por um próximo do grupo. Com esses e outros
textos, pensaram uma colectânea que saiu em 2008, Qué hay de nuevo, viejo? Textos y declaraciones del Movimiento Surrealista
de los Estados Unidos (1967-1999) e que mostra o interesse que o grupo de Madrid
manteve pelo que se passava em Chicago.
Quando se aprecia em conjunto o itinerário de Salamandra desde 1987 até ao número de 2015,
com 352 pp., percebe-se uma publicação com fases distintas e referências diversas,
mas que evoluiu sempre por dentro duma linha e duma tradição, sem nunca abandonar
os seus propósitos e as suas atracções iniciais. Não é uma revista vocacionada para
fazer sínteses entre braçadas culturais distintas mas para perseguir o ponto em
que se situa – o surrealismo, e que não é sequer todo o surrealismo mas aquele que
partiu do segundo manifesto, passou pela declaração de 1938 e depois pelos grupos
mais politizados, cujo derradeiro momento, antes de Madrid, é o de Chicago. Mesmo
o encontro com o situacionismo, que acabou por levar à crítica da vida quotidiana que hoje se inscreve no subtítulo da revista,
pode ser visto como tangencial a este surrealismo que esteve na origem do que mais
estridente houve no grupo Cobra.
Isto quer dizer que certas parcelas da tradição surrealista
desde sempre presentes no seu ideário acabaram por não ter uma apropriação visível
pelo grupo. Referimo-nos à tradição iniciática que vinha dos primórdios e que em
1925, quando Breton optou pela intervenção partidária e Artaud seguiu o apelo iniciático
(para o fazer pagou como não podia deixar de ser o preço de morrer em vida, além
de sofrer a expulsão do grupo), determinou uma encruzilhada de caminhos que só 20
anos depois, e nunca nos grupos mais politizados, se reencontraram, para desaguarem
em plenitude no neo-gnosticismo da reflexão “Do surrealismo nas suas obras vivas”
(1953), antecedente longínquo duma revista como Supérieur Inconnu, fundada em 1995 por Sarane Alexandrian e que publicou
até 2011.
Contemporânea da revista de Madrid e bebendo até nas
mesmas fontes, a revista de Alexandrian apresenta porém uma face distinta, voltada
para a pesquisa do oculto e a aspiração aos mundos desconhecidos e superiores, em
que as declarações políticas primam quase pela ausência – a revolução que aí se ambiciona parece ser
só a do espírito. As fontes surrealistas são tão fecundas e tão largas que tiveram
o condão na mesma época de dar duas publicações tão distintas e tão irreconhecíveis
como a do autor de Histoire de la philosophie
occulte (1983) e a de Madrid.
A troca de cartas entre Breton e Péret, que na amizade
estiveram os dois sempre em sintonia, mostra como as vias dentro do surrealismo,
mesmo daquele que trabalhava em proximidade, eram diversas. Na turbulência do caso
“Carrouges/Pastoreau”, que muito fragilizou o surrealismo parisino no primeiro semestre
de 1951, a correspondência entre Breton e Péret tem curiosas fissuras – embora os
dois tenham assinado em conjunto a principal peça da polémica contra Henri Pastoreau,
o opúsculo L’affaire Pastoureau et Cie
(tenants et aboutissants) (Março, 1951).
Numa carta (6-6-1951) que comenta a declaração “Alta Frequência” (24-5-1951; A Ideia, 2019, pp. 56-66) – teve esta a particularidade
de ser a primeira declaração surrealista a surgir reproduzida no histórico jornal
anarquista francês Le Libertaire (6-7-1951)
– Breton, depois dum diálogo com Victor Crastre, sente e sublinha a necessidade
de distinguir entre formas diversas de “espírito religioso”, salvaguardando algumas,
em atenção ao pensamento gnóstico, o que leva Péret a declarar com firmeza que “todo
o espírito religioso é em meu entender condenável” (carta, 9-7-1951). Estavam aqui
traçadas de antemão duas vias do mesmo caminho, duas correntes da mesma estirpe.
Centrada no conhecimento iniciático, a primeira levou ao “superior desconhecido”
de Alexandrian, que de resto Breton já concebera no pós-guerra como nome para revista,
e a segunda, em atenção a Péret, deu depois a veemência provocatória da revista
do grupo de Madrid.
Seria porém duma injustiça gritante para com Salamandra não reconhecer que aquilo que
a tem movido não pode ser apenas acantonado do lado da virulência política. O que
a distingue dum grupo revolucionário tradicional é exactamente o papel que ela soube
dar à poesia e a todo um conjunto de instrumentos subjectivos de orientação no espaço
e tempo – como o sonho, o devaneio, o delírio verbal, o jogo, a intuição, a alucinação
visionária, a sensação psíquica. É a poetização da política que foi a opção de Chicago
e Debord. Salamandra repeliu, desde o
início, a ideia de que um grupo revolucionário é constituído por militantes que
de forma mecânica repetem palavras de ordem. A revista exigiu um estado de inocência
absoluta aos seus membros – uma predisposição total à aventura do auto-conhecimento,
como condição para qualquer transformação exterior. Nunca como aqui a condição primeira
da transformação da ordem do mundo foi a mudança de vida – assim dando seguimento
a uma das intuições mais fulgurantes do surrealismo da década de 30, a que Debord,
Vaneigem – o da arte de viver, os Rosemont e outros deram seguimento a seu modo
nas décadas seguintes.
Hoje sei porque
motivo Mário Cesariny considerava Salamandra
uma das melhores revistas do mundo. Não era pelo número de páginas, pelo luxo da
edição, pela criatividade da sua paginação, pelo prestígio mediático dos seus colaboradores
e editores, tudo razões que a ele nada interessavam. Ele tinha Salamandra por uma das melhores publicações
do mundo por ela se mostrar um caso exemplar dum tipo de procura que ele mesmo desde
a sua tenra juventude perseguira cheio de entusiasmo. Ele estava pronto a homenagear
a revista por ela ter em si o espírito ígneo, a labareda essencial, o animal mítico
que vive no lume. Salamandra faz parte
duma cultura solar e demiúrgica, duma cultura do fogo, donde tudo procede e para
onde tudo vai, uma cultura essencial da procura do ouro interior e que constitui
a principal linha da cultura libertária tal como acima a indicámos – um pequeno
grupo de pesquisadores que põe em jogo todo o seu espírito de independência, fora
de atracções mundanas e fora de qualquer espírito de competição e de corrida a prémios
e reconhecimentos, e cuja prática é já a realização da poesia e do amor e a superação
da arte e da literatura, quer dizer, da cultura como indústria e mercadoria. Nesse
sentido Salamandra, agente de transformação
e renovação, factor de fixação e de unificação, calor vital, promessa de luz, magia
do fogo, faz parte intrínseca dum tipo de criação que muito nos interessa e valorizamos.
]
É impossível
falar agora da revista Flauta de Luz sem
antes falar de Júlio Henriques e de Joëlle Ghazarian – esta o anjo tutelar da publicação,
e como tal surge na ficha técnica, e aquele o seu director e editor, e assim indicado
na mesma ficha.
Joëlle Ghazarian é autora dum livro chamado Cântico do crime (2007), com uma carta introdutória
de Herberto Helder, ilustrações de Rosa Parma e tradução de Júlio Henriques que
começa assim: “O inferno é branco; o homem e a criança são negros; uma das mulheres
é da família das liliáceas, cor de jacinto azul, a outra é da cor das magnoliáceas,
em tom de magnólia branca: os seus números são cor de papoila, a sua água é verde.”
E termina deste modo: “… e o homem negro bruscamente apressado e sempre com a mesma
exacta aparência, regressa ao lugar de onde vem, algures por ali, com a alma pendurada
à garganta.” É o sopro angélico – e daí a tradução – dalguém que nasceu para passar
invisível no meio da areia da multidão e servir de anjo tutelar, de concha, à música
do verbo. É a inocência que não precisa de matéria nem de forma para arder – fogo
negro do incriado e do sem matriz i/matricial.
Júlio Henriques, por sua vez, apresenta-se do seguinte
modo: “horticultor ortivo e criador de cavalos solazes.
Gosta muito de fechar os olhos pra ver. É tradutor, publicista e editor, mais recentemente
da revista Flauta de Luz. Dedica-se a uma arte exigente, o assobio planado,
que se pratica através do apuramento de uma coisa rara, os tintos sem pesticidas.”
É autor de dois livros, Deus tem caspa
(1988; 3.ª ed., 2014) e Alucinar o estrume
(2017) e tradutor de Debord, Cossery, Orwell e muitos outros. O espaço interior
de Júlio Henriques é amplo o suficiente para ter lá dentro outro ser humano, Alice
Corinde, que como ele também escreve, edita e revê provas – é ela a revisora da
Flauta de Luz e chegou a coordenar uma
publicação, Coice de Mula (n.º 7, 2005).
É ainda a autora do prólogo de Deus tem caspa
e dum livro chamado modas & bordados (1999),
do qual Joëlle Ghazarian disse que é o discurso “dum homem que fala como mulher”,
chamando a Alice “irmã de Júlio Henriques” (em Coice de Mula, n.º 2, Outubro/Dezembro, 1999).
Júlio Henriques como pessoa é o horticultor e o criador
de cavalos. Vive do lado de fora duma civilização urbana, cujo alento inicial remonta
ao Renascimento e cujas formas ascendem à aplicação da técnica à indústria, e todo
o seu cuidado está no contacto com a terra, com a natureza, com os homens do campo,
com as formas de organização social aldeã. É um índio branco – como ele próprio
classificou já alguém. Há nele a nostalgia das formações sociais pré-capitalistas
e até pré-civilizacionais. Basta conhecê-lo, basta saber onde vive e conhecer a
sua casa, basta ouvi-lo falar e ouvir o seu silêncio e observar o seu olhar para
se perceber que o seu espírito fita a distância e vive em sintonia com os longes
arcaicos da memória colectiva. É um saudoso do paraíso, que não se conforma com
a queda e com os castigos que daí decorreram – trabalho, dor, parto, morte. E a
saudade aqui não é tanto, ou não é só, a nostalgia do que se perdeu e perdido ficou
nos confins da História, na sua origem ou antes dela, mas a esperança de reaver
a qualquer momento, inclusive aqui e agora, o que se perdeu e foi glória e luz.
Por isso na sua biografia breve ele diz que para ver precisa de fechar os olhos.
Ao mergulhar no negro da escuridão que é descer as pálpebras, é a idade de oiro,
essa poesia pura e elementar em que na pré-origem tudo se confundia, que, assistido
pelo funcionamento real e selvagem do espírito, ele recupera, revive e traz ao presente
– ele ou a menina Alice por ele.
Como escritor Júlio Henriques nada contradiz o que é
como pessoa. A sua arte é, como ele sublinha, “uma arte
exigente, a do assobio planado, que se pratica através do apuramento de uma coisa
rara, os tintos sem pesticidas”. Não se veja aqui apenas o folgar e a sátira
dos tintos sem pesticidas. Há aí também o fulgor do assobio, o silvo e a silva,
uma arte selvagem própria da selva. Assobiar é hoje raro, raríssimo. Tirando as
crianças, que reconhecem no assobio um sinal musical, pré-falado, o homem civilizado
perdeu gosto de assobiar. Só em casos raros o assobio é consentido e quase sempre
como manifestação de desagrado – a assobiadela. Visto como ordinário, o assobio
é socialmente desconsiderado e condenado. Da minha adolescência guardo a recriminação:
“Em casa, à mesa e na missa não se assobia!” É porém pelo assobio que a serpente
emplumada incita (à desobediência), como é em linguagem de silvo, isto é, sibilina,
que a Sibila na concha se manifesta e dá respostas. A linguagem verbal de Júlio
Henriques tende em último grau para a música pré-falada, que como prestidigitador
ele vai buscar às camadas rarefeitas do mais alto ar. É vê-lo de Inverno na praia,
tocando com as mãos na tocha das estrelas e extraindo do ar frio e leve as astrais
sinfonias do silvo. Ou sabê-lo em criança, nos pinhais do litoral, descalço, pés
na terra, mas mente a falar com os pássaros.
Como ser humano ele, Júlio, é o jocker selvagem dos seus cavalos, a carta
fora do baralho, e como poeta é o mago dos mundos sem órbita, o anti-cânone dos
assobios, o trickster carnavalesco e gratuito
duma literatura tão rica mas tão anémica, que só como máquina de casino pode interessar.
Não há curso universitário de literatura que não dê a entender que se esforça até
à exaustão, mesmo sem grande sucesso, por ligar o seu ensino ao mundo das empresas.
Por isso a literatura, outrora tão ciosa da sua singularidade, transformou-se hoje
num subsídio duma actividade tão nociva e destrutiva como o turismo – o modelo empresarial
mais próximo, ao qual é possível encostar as letras, mesmo à custa da sua mumificação. Eis porque um poeta como Fernando
Pessoa tem desde há muito tanta dificuldade em ser poeta – não passa de marca para
gerar grana. Cesariny no Virgem Negra
apiedou-se dele e deu-lhe voz para gritar bem alto: “E antes de mais tirem de mim
os Jerónimos / Que é clausura de mais para um homem só”. Como poeta, Júlio Henriques
não tem Jerónimos.
Passemos agora à Flauta de Luz, com subtítulo de boletim de topografia e primeiro número em
2013 – um modesto caderno de poucas páginas, que depois evoluiu até atingir as 288
páginas do número 7, acabado de sair já em 2020. O que é digno de nota desde logo
neste itinerário de sete anos – um volume por ano – é a fidelidade aos propósitos
iniciais. Os autores que abriram a revista em Janeiro de 2013, por exemplo David
Watson e Charles Reeve (Jorge Valadas), são os que continuam em destaque no número
de 2020. Redactor da mítica publicação libertária Fifth Estate, nascida em 1965, e que chegou a tirar 20 000 exemplares,
David Watson colaborou na estreia da revista portuguesa com seis teses sobre a energia
nuclear e regressa neste novo número com três novos textos – o epílogo ao seu livro
En el camino a ninguna parte, “Actualizar
os possíveis”; um texto sobre a exploração do espaço, “Saturno e o cientismo”, dos
arquivos da revista estadunidense (1981); por fim um poema, “Isto é o sistema capitalista,
colega”. Charles Reeve, por sua vez, dá uma grande entrevista a Júlio Henriques
– uma das peças cruciais deste número de 2020, atendendo ao rico e exemplar percurso
do entrevistado.
Presença constante na revista feita em Portalegre, David
Watson é capaz de ser uma das melhores portas de entrada para se entender o seu
ideário. No texto “Actualizar os possíveis”, temos uma retrospectiva de quase todo
o itinerário mais recente do autor como crítico do desenvolvimento e com a vantagem
disso ser feito num estilo coloquial, nada ensaístico, em jeito de memória pessoal
e de acerto de contas, com pequenas notas laterais, que se ramificam em direcções
variadas, às vezes antagónicas, mas pertinentes e enriquecedoras sempre. Lamento
não poder restituir o sabor do texto e da sua divagação pessoal. Limito-me pois
a resumir as ideias do autor, que em larga medida se confundem às da revista de
Júlio Henriques.
O ponto de partida é a crítica do desenvolvimento. Em
dado momento diz-se o seguinte: “Afrontar a realidade significa reconhecer que o
capitalismo industrial criou problemas para os quais pode não haver soluções.” A
tecnologia constitui um desses problemas. Desde há dois séculos que ante todos os
problemas sociais que surgem se procura dar uma resposta técnica. Esta é encarada
como a única forma de resolver qualquer questão por mais complicada que seja. Vivemos
deste modo ao longo dos dois últimos séculos sucessivas revoluções tecnológicas
– carvão, petróleo, electricidade de que a tecnologia 5G (quinta geração) é o actual
patamar. Desde há meio século pelo menos que percebemos que estas soluções mecânicas
para a produção de bens, para a comunicação e para o transporte dos humanos trouxeram
consigo inumeráveis problemas, quer no domínio da natureza, com a corrida aos recursos,
a contaminação de bens essenciais e alterações climáticas de grande porte, quer
em termos de organização social, com o que Ivan Illich detectou como a contra-produtividade
das instituições. Há ainda quem defenda – é isso que faz o capitalismo verde – que
estes novos problemas ambientais e sociais só por meio de soluções técnicas podem
ser resolvidos. É tal a sua evidência que não se negam os problemas, mas acredita-se
que o actual complexo industrial ligado à investigação, ao desenvolvimento e à ciência
encontrará, dentro do actual modo de viver, sem pôr em causa o sentido da economia
do lucro e da concorrência, as respostas necessárias.
Do ponto de vista do autor a questão é outra. Chegámos
a um círculo sem saída, que repete até ao limite os problemas que começaram há 200
anos com a mineração e a combustão frenéticas do carvão mineral. Cada nova revolução
tecnológica pretendeu resolver um conjunto de questões que a anterior deixara em
aberto. As questões que temos hoje para resolver são tão graves, a herança negativa
que recebemos da anterior tecnologia é de tão difícil solução e tão decisiva, que
acreditando em respostas mecânicas para os problemas ambientais e sociais, fruto
do avanço técnico anterior, temos de equacionar que os problemas que tais soluções
hipertecnológicas vão trazer não serão nada fáceis. As novas tecnologias serão cada
vez mais devastadoras em termos de saúde humana e natural – é o que estamos a experimentar
com o electromagnetismo da tecnologia 5G – e colocarão a humanidade no perigoso
limiar das distopias dum Lewis Mumford (1895-1990).
Tornando-se o centro nevrálgico da nossa civilização,
que só dela espera soluções, por vezes no campo do milagre, a técnica arrisca-se
a tornar-se o mito central e global da nossa existência ao qual o próprio humano
não pode escapar. Combinar o homem com a máquina é pois neste momento a derradeira
ambição da técnica e dos seus defensores. A superação do humano em nome da perfeição
mecânica está na ordem do dia. É aqui que se coloca a séria possibilidade de estarmos
a viver questões – entre elas a destruição do humano e do meio natural – para as
quais não há solução dentro do modo de vida e do modo de pensar vigentes e da forma
que hoje temos de gerir sociedade e economia – o modelo empresarial.
O que aqui está em jogo para Watson, como já para Mumford
estava, é a desumanização do homem e da sociedade. A utopia transhumanista da robótica
leva a desumanização a limites extremos e por isso insolúveis mas a desumanidade
da técnica vem desde a aurora do capitalismo industrial. Homens antigos, do século
XIX, como William Morris, que assistiram às transformações que decorreram da combustão
do carvão e da primeira revolução industrial, ficaram horrorizados com a fealdade,
a tristeza e o desnorte do novo modo de vida, que destruiu sociedades inteiras onde
a beleza, a criatividade, a alegria, o sentido da terra, da natureza e da ajuda
mútua existiam no dia-a-dia.
Daí o elogio de David Watson à roda de fiar de Gandhi,
onde ele vê uma tecnologia à medida do humano, capaz de o ajudar e de lhe proporcionar
um bem-estar interior – ele fala em serenidade mental e meditação – que a tecnologia
industrial desconhece, favorecendo até o seu oposto – ansiedade, vazio, tédio, desequilíbrio,
perturbação. A roda de fiar é uma tecnologia que humaniza e que não oprime – não
destrói a natureza e o equilíbrio do indivíduo e fortalece as relações comunitárias
em que este se insere. Daí o interesse de Watson por sociedades arcaicas e tribais
que desenvolveram técnicas com o mesmo sinal de humanização e que ainda estão actuantes
e vivas no imaginário e até no espaço geográfico em que o autor se inscreve, os
Estados Unidos.
Eis aqui todo o programa da revista Flauta de Luz – crítica da técnica e da megamáquina
totalitária que desumaniza; crítica do transhumanismo e do pesadelo de querer superar
o humano por meio da perfeição mecânica e da combinação do homem e da máquina; crítica
do capitalismo industrial que destruiu impiedosamente e destrói ainda sociedades
ancestrais, equilibradas e felizes, fruto duma génese milenar que foi quase apagada
da noite para o dia; apologia das formações sociais pré-capitalistas e elogio do
modo de vida camponês e tribal com a consequente defesa intransigente dos direitos
dos índios se apropriarem das terras donde foram expulsos e de retomarem o seu modo
de vida tradicional; crítica pois da civilização europeia que, ao substituir os
indígenas da forma mais hedionda e criminosa, roubando-lhes as terras, exterminando-os
e acantonando-os em reservas miseráveis, só foi capaz de fazer com essas mesmas
terras muito pior do que eles faziam. Enquanto os autóctones viveram milhares de
anos nelas, conservando e desenvolvendo até a sua biodiversidade, o europeu esterilizou
e envenenou para sempre parte dessas terras em pouco mais de dois séculos. O primeiro
número de Flauta de Luz apresentou aos
leitores portugueses a Survival International,
uma organização empenhada na defesa dos povos indígenas do mundo, que este número
mais recente da revista volta a divulgar nos 50 anos da sua fundação em Londres,
em 1969.
Veja-se agora
o subtítulo – boletim de topografia. Boletim
é uma resenha noticiosa enquanto a topografia é a descrição e a representação gráfica
ou escrita dum lugar. Que lugar? Antes de mais o capitalismo industrial tal como
o herdámos e vivemos. É um lugar físico, constituído por acidentes e desnivelamentos
que precisam de representação fiel e duma arte que seja capaz de os indicar com
precisão. A ideia que deles fazemos resulta mais duma arte publicitária ilusória
do que duma observação cuidada, quer dizer, daquelas operações indispensáveis a
qualquer operação topográfica. Daí a necessidade desta topografia. Mas há ainda
um outro lugar que precisa de descrição. É o da alternativa ao capitalismo industrial.
Também ele é lugar físico, concreto, com acidentes de superfície, que podem ser
representados. Ao invés do que nos queiram fazer crer, esse lugar existe e tem a
realidade dos relevos físicos que podem ser descritos. Uma tal topografia fê-la
Júlio Henriques no seu livro de histórias satírico-bucólicas, Alucinar o estrume, em que nos dá a ver pelos
olhos dum contemplativo em acção, Estêvão Vau, todo um mundo novo a nascer na retaguarda
do velho. O “assobio criador” – eis pois a melhor tradução para esta revista que
procura também ela dar notícia da nova realidade a nascer ao mesmo tempo que traça
os limites estreitos da antiga. E assobio
porque flauta e criador porque luz.
Uma última palavra para os antecedentes da revista.
Júlio Henriques antes de Flauta de Luz
fez outras publicações que podemos encarar como os seus ascendentes. À medida que
caminhamos para trás torna-se todavia difícil reconhecer o sucessor no antecedente.
É isso que a nosso ver acontece com o jornal Combate, de que saíram em Lisboa 51 números, entre Junho de 1974 e Fevereiro
de 1978. Júlio Henriques participou no colectivo que deu vida a este jornal, que
tinha por subtítulo “a libertação dos trabalhadores é obra dos próprios trabalhadores”,
divisa atribuída a Marx e que teve alguma importância programática na primeira AIT.
Folheando hoje a colecção do jornal não custa reconhecer que ele se insere dentro
duma corrente marxista metapartidária, e por isso pouco ou nada leninista, que tinha
como objectivo divulgar e unificar, e desse modo intensificar, as lutas do trabalho
contra a exploração e a opressão. A crítica do capitalismo é o ponto comum que se
encontra entre esta publicação e Flauta de
Luz. No resto tudo é diferente e irreconhecível, a começar pelo papel instrumental
que no jornal Combate se atribuía aos
redactores – “a caneta das massas trabalhadoras e das suas vanguardas em luta”.
Em situação distinta estão as publicações que Júlio
Henriques fez a seguir – as revistas Subversão
Internacional (Lisboa, 1977-1981) e Pravda
– Revista de Malasartes (Coimbra, 1982-1992). A primeira mostra talvez pela
primeira vez o influxo da Internacional Situacionista e das ideias de Debord e de
Vaneigem junto de Júlio Henriques, com a consequente crítica do trabalho. “Ne travaillez
jamais” parece que foi a chave abolicionista que Debord inscreveu nas paredes em
Maio de 1968. Variadas são as capas da nova revista, onde se adopta posição crítica
ante o trabalho e a condição do trabalhador e que teria sido impensável num jornal
como Combate. A capa do número 3 de Subversão Internacional, saída no ano mesmo
em que o jornal das lutas operárias chegava ao fim, é explícita: “Proletários de
todos os países deixemos de o ser”. O mesmo para a capa do número 5, de 1979, onde
se casa trabalho e capital: “Trabalhando, nós operários produzimos capital”. Ou
ainda a do número 4, em que se pede mais do que uma crítica do trabalho: “[…] os
operários desde sempre criticaram o trabalho – o que agora importa é suprimi-lo”.
Esta exigência de supressão do trabalho não mais deixou
de se fazer sentir no ideário de Júlio Henriques, bem assim como o interesse pelas
ideias situacionistas e pelas figuras de Debord e Vaneigem, interesse que vem até
aos dias de hoje e que prossegue na Flauta
de Luz. Uma colaboradora da revista, a arqueóloga Maria de Magalhães Ramalho,
dedicou no terceiro número da revista (2015) uma longa investigação sobre a presença
dos situacionistas na revolução de Abril, “Realizar a Poesia: Guy Debord e a revolução
de Abril”, que é uma peça de monta para a história das ideias na região portuguesa.
Isto é tanto mais assim quanto entre nós, mas não em França, antes deste texto,
pouco ou nada se conhecia da relação de Debord com portugueses e com o embrião do
levantamento social que se seguiu ao 25 de Abril. Também o número de 2020 tem logo
de entrada um texto de Vaneigem, “Coronavírus”, e uma entrevista com ele, “Ousar
o impossível ou viver de rastos” – versão integral da conversa surgida truncada
no jornal francês Le Monde (30-8-2019).
A pista situacionista nunca desapareceu do percurso de Júlio Henriques. O situacionismo
viajou muito entre o final da década de 70 e as duas primeiras décadas do século
XXI – basta ler a entrevista do autor de Banalidades
de base – e as belas metamorfoses do seu rosto não deixam de ter correspondência
com o que mudou entre a revista do final da década de 70 e esta do século XXI.
Na revista Pravda
– Revista de Malasartes, feita em Coimbra com Vasco Santos, manifestou-se em
plenitude o trickster que decidiu carnavalizar
a literatura empresarial – ele talvez lhe chame imperial – restituindo-a à sua elementar,
anónima e festiva função criadora. Operação mágica de grande porte que levará à
elaboração dum livro como Deus tem caspa,
não mais será abandonada por Júlio Henriques, que prossegue neste número de 2020 de Flauta de Luz, depois de ter tido muitos e hilariantes momentos ao longo
da sua história. Logo no segundo número da revista, de 2014, quando um primeiro-ministro
convidava os portugueses a trocarem de território, o editorial chamava-se com ironia
“Novos Descobrimentos Portugueses”. Muitos outros exemplos se podiam dar – o texto
“Triunfo da neoparolice” ainda em 2014 sobre o significado das praxes académicas
é exemplo – até chegarmos ao presente número de 2020 onde temos a intervalar as
peças principais uma nova secção chamada “Falta de Luz – suprimento literário avulso”,
paródia dos antigos suplementos literários e que atinge um alto grau de delírio
verbal em textos de Júlio Henriques, como “Amar um robô” e “Mas o que é que nós
queremos?”, e de Joëlle Ghazarian, “Ligam-se os surdos”. A violência dum texto como
“Mas o que é que nós queremos?”, a intensidade do seu delírio, só tem paralelo com
as imprecações de sangue e fezes de Artaud ou a abjecção moralmente chocante dalguns
soltos de Luiz Pacheco.
Na procura dum estema para Flauta de Luz não basta porém referir as revistas que Júlio Henriques
fez directamente. É preciso também trazer à luz do dia incursões noutras revistas,
antes de mais Utopia e Coice de Mula. Esta última, com sete números
entre 1999 e 2006 e grafismo de Alex Gaspar, constitui um elo que não pode cair
no esquecimento. O derradeiro número, com subtítulo para a desindustrialização da arte contemporânea, foi coordenado por
Alice Corinde e Olinda Celeste, e pode passar por um ensaio preparatório daquilo
que veio a ser sete anos depois Flauta de
Luz – uma espécie de número zero desta publicação.
Não é só a coordenação do número que é significativa
para o que depois sucedeu. É toda a sua substância que mostra um efeito precursor
iniludível. Abre com um longo editorial de Alice Corinde, “Técnica, política, canibalismo”,
cujo título é por si só expressivo, continua com várias peças dedicadas à agricultura
biológica, talvez das primeiras que se consagraram entre nós ao assunto, pelo menos
com esta largueza e enquadramento, para dar lugar depois a uma demorada reflexão
de David Watson, “Contra a megamáquina”, em tradução de Júlio Henriques e Reis Maria
e que é porventura a primeira apresentação em português deste autor cujas ideias
se confundem em parte ao projecto da Flauta.
Destaque depois para o estudo de José Tavares, fundador da publicação e seu coordenador
ao longo de vários números, dedicado aos anarquistas naturianistas anticientíficos,
que deu origem ao opúsculo Anarquistas naturianistas
e anticientíficos (2007), que lemos e comentámos com grata adesão nas páginas
desta revista (n.os 84/85/86, 2018) e que pode ser considerada a peça
estratégica deste número e não apenas por ocupar as páginas centrais mas por tudo
o que nele faz convergir. Destaque ainda para trechos duma entrevista de Zeca Afonso
a José Amaro Dionísio, uma sátira paleontológica de Raul Corujeira de Ventosa aos
aviários, um texto de António Pocinho sobre as famílias portuguesas, uma deliciosa
banda desenhada de Frank Sinatra (Alex Gaspar?), um testemunho sobre o aborto clandestino
– só despenalizado em 2007 – e outro sobre a universidade, e por fim na contracapa
as actividades do Instituto Muliano em torno do I Ciclo Anual de Uârquechopes –
o I CAU. O conjunto é uma peça reflexiva e crítica notável, cujo aspecto paródico
denuncia já aquela “Falta de Luz – suprimento literário avulso” que vamos encontrar
no número de 2020 da novel Flauta de Luz.
A presença da agricultura biológica
nesta publicação de 2006, obriga-nos a lembrar que Júlio Henriques foi e é associado
duma associação de agricultores, Colher para Semear, e que já na segunda década
deste século e durante alguns anos coordenou o seu boletim, O Gorgulho – boletim informativo sobre a biodiversidade
agrícola. Fez aí um trabalho gigantesco de recolha de notas e de informações,
articulando as acções dos associados, mas estabeleceu também as linhas de orientação
do boletim, com a crítica do agro-negócio, a constatação do fracasso da industrialização
da agricultura, a apologia das sociedades rurais tradicionais, a valorização dos
meios técnicos simples, a defesa do mundo camponês, do regresso à terra e do êxodo
urbano. Embora reconhecível à luz de muito do que Flauta de Luz tem publicado e que encontra continuidade numa memória
documental do fotógrafo José Reis, “Portugal rural, um regresso”, publicado no número
de 2020 da revista, o resultado é impressionante. Não há sombra de sátira e corrosão
neste aspecto da actividade de Júlio Henriques mas apenas aquele deslumbramento
infantil que dele faz um criador de cavalos, um hortelão, um mestre na arte do nó
e do cordel literário, um pescador de sons que vai buscar às ondas altas do ar as
sinfonias do assobio planado. Júlio Henriques é um poeta sem Jerónimos – mas é poeta
sem Jerónimos porque em vez da clausura da megacidade tem dentro dele um campo aberto,
com sobreiros, pedras grandes, riachos, cavalos e muito outro bicho amado.
]
Temos neste momento um retrato de cada
uma das três publicações que nos propusemos observar e comentar. Todas elas se situam
fora do campo da cultura como negócio e indústria – todas elas cultivam comportamentos,
palavras, imagens, isto é, meios de expressão que possam ser por si só uma crítica
do espírito de concorrência, dos valores do mérito e do lucro, e uma manifestação
concreta dum espírito desinteressado, gratuito e livre.
Embora este denominador seja comum
às três revistas, há diferenças entre elas, até porventura substanciais. Com o seu
itinerário particular, cada uma delas é única e inconfundível e por isso todas três
têm um lugar próprio. Foi por isso possível a Júlio Henriques perceber na sua recensão
diferenças entre A Ideia e Salamandra. O espectro crítico daquela, a
sua natureza de síntese de correntes diversas dentro da mesma família de ideias,
tem uma abrangência maior e toca autores que não entram nesta. Justifica-se por
aí a fraterna cumplicidade das duas revistas – são revistas irmãs como bem viu Júlio
Henriques – mas também a impressão de que a revista de Madrid é “declaradamente”
mais crítica do que a de Évora.
O mesmo se poderá dizer para as diferenças
entre A Ideia e Flauta de Luz. Também elas existem e são perceptíveis. A Flauta de Luz escolheu um campo de actuação
dentro do espírito libertário que muito deve ao itinerário da revista americana
Fifth Estate e ao trabalho dos seus redactores.
Coordena este espírito com outras referências – Corsino Vela, Anselm Jappe e outras
– mas na fidelidade às suas orientações – crítica da técnica e do capitalismo industrial
e defesa da autonomia e do modo de vida dos camponeses e dos índios. A Ideia tem os mesmos princípios – é impossível
para nós fazer a defesa de qualquer das particularidades sociais que a Flauta critica – mas num espírito latitudinário
que a leva por exemplo a integrar as ideias de Murray Bookchin na sua genética –
o que seria mais difícil, se não impossível, de suceder na Flauta. Bookchin surgiu logo no primeiro número d’ A Ideia, em Abril de 1974 com um texto sobre
o grupo de afinidade anarquista, que é com certeza o primeiro texto que dele apareceu
em Portugal. Acompanhou depois disso o itinerário da revista até aos dias de hoje,
com um ponto alto na Conferência de Lisboa de 1998, em que Janet Biehl, companheira
e colaboradora de Bookchin, veio a Lisboa para estar connosco e debater e divulgar
as ideias do autor estadunidense.
Dito isto, conhecemos a polémica
que opôs Bookchin a David Watson (Georges Bradford), a John Clark e a John Zerzan,
outro redactor da Fifth Estate, e que
levou ao violento panfleto, Social anarchism
or lifestyle anarchism: an unbridgeable chasm [Anarquismo social ou modo de
vida anarquista: um fosso insuperável] (1995), em que escrutina as ideias e os escritos
de Susan Brown, Hakim Bey, David Watson e John Zerzan com uma crítica acerada sobre
a revista Fifth Estate. Este texto, que joga com aspectos cruciais
do anarquismo contemporâneo, embora em contraponto, não está à disposição do leitor
português. Watson respondeu de seguida com o livro Beyond Bookchin (1996), também por traduzir em português e que é hoje
uma peça indispensável na recepção de Bookchin, como o são, embora noutro registo,
os trabalhos de Janet Biehl e de Colin Ward.
Não vou aqui pormenorizar os argumentos
dos dois lados, mas apenas notar que o fosso que Bookchin apurou entre as duas formas
de anarquismo – acção social e modo de vida –, e que o levou a dizer que se podia
mudar de vida sem mudar o mundo e que tal mudança não lhe interessava, nunca fez
sentido fora da necessidade que o autor teve de se demarcar dos seus contemporâneos.
Bookchin deu passos decisivos no início da década de 60 – os seus ensaios ligando
a ecologia ao pensamento revolucionário são de 1962 e 1964 e a sua questionação
social da técnica é de 1965, Toward a liberatory
technology – para aquilo que viriam a ser as principais linhas duma publicação
como Fifth Estate, que só anos mais tarde,
em 1967, foi criada. Essa parte da sua obra, a da ecologia social, culminou num
ponto alto e de superação difícil, o longo estudo The ecology of freedom – the emergence and dissolution of hierarchy
(1982), que continua a ser uma súmula indispensável da crítica da dominação e da
hierarquia.
Aquilo que se passou depois e que
deu origem ao panfleto de 1995 tem mais de pessoal em nosso entender do que de conflito
de ideias. Bookchin teve necessidade de se demarcar de Watson e Zerzan e para isso
radicalizou posições, como a defesa da racionalidade, da civilização, da cidade
e da democracia, mas da pequena cidade grega e da democracia directa, que são circunstanciais.
O seu pensamento político evoluiu porém no mesmo sentido dos seus primeiros escritos,
sempre capaz de antecipar as pistas do futuro. Complemento da ecologia social, o
seu comunalismo final é um instrumento poderoso ao serviço da transformação da ordem
mundo e que nenhuma mudança social que pretenda abandonar a forma do Estado-Nação
poderá deixar de lado – isto se tem visto e provado no Curdistão. Há que distinguir
neste caso as dissensões pessoais que o levaram a posições reactivas e por isso
descaracterizadas, que com a distância perdem qualquer pertinência, do miolo do
seu pensamento político que ele pretendeu com seriedade desenvolver e completar
na linha das duas ou três grandes revoluções sociais do passado – França, México,
Rússia e Espanha – e que deu os tomos de The
third revolution (1996, 1998, 2004, 2005).
Nada disto afasta A Ideia e a Flauta, duas revistas em diálogo,
que fazem parte da mesma corrente de ideais e que vivem ambas fora do sufoco da
indústria cultural, lutando por divulgar ideias e práticas de mudança de vida e
de sociedade. Outras diferenças se podiam assinalar entre as duas publicações –
como a posição ante a independência da Catalunha, que não motiva a Flauta de Luz mas entusiasma A Ideia. São justamente essas diferenças
que justificam a edição de duas publicações tão vizinhas, tão próximas e tão fraternas.
ALGUMA BIBLIOGRAFIA
Biehl, Janet, Ecology
or catastrophe – the life of Murray Bookchin, Nova Iorque, Oxford University
Press, 2015.
Breton, André e Benjamin Péret, Correspondance – 1920-1959, ed. Gérard Roche, Paris, Gallimard, 2017.
– L’affaire Pastoureau et Cie (tenants et aboutissants), em Ouevres Complètes, André Breton, ed. Margueritte
Bonnet, vol. III, Paris, Gallimard, 1999.
Cesariny,
Mário, Um rio à beira do rio – cartas para
Frida e Laurens Vancrevel, Lisboa/Famalicão, Documenta/Fundação Cupertino de
Miranda, 2017, pp. 512.
Corrales, José Miguel Pérez, “Eugenio Castro: El Gran Boscoso”,
em Surrealismo: el oro del tiempo, Tenerife/Madrid,
La Página, 2014, pp. 191-198.
Grupo Surrealista de Chicago, que hay de nuevo viejo? – textos y declaraciones del Movimiento Surrealista
de los Estados Unidos (1967-1999), edição, tradução e notas do Grupo Surrealista
de Madrid, Logroño, Pepitas de Calabaza, 2008.
Henriques,
Júlio, “os povos autóctones no ciclo da resistência”, em Coice da Mula – para a beatificação da arte contemporânea, n.º 6, Lisboa,
2003/2004.
Rojo,
Jose Manuel, “Vida e Milagres do Grupo Surrealista de Madrid”, entrevista a J. Manuel
Rojo, revista A Ideia (2018, n.º 84/85/86),
Évora.
REVISTAS
Vários,
A Ideia, colecção 89 n.os,
Paris, Lisboa, Ourém, Évora, 1974-2019.
Vários,
Coice de Mula, colecção 8 n.os,
Lisboa, 1999-2006.
Vários,
Combate, colecção 51 n.os,
Lisboa, 1974-1978.
Vários,
Flauta de Luz, colecção 7 n.os,
Portalegre, 2013-2020.
Vários,
Salamandra, colecção 21 n.os,
Madrid, 1987-2015.
Vários,
Subversão Internacional, 6 n.os,
Lisboa, 1978-1981.
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