Todavia, ao longo dos tempos, sempre
apareceu (quase sempre isoladamente) uma ou outra proposta, mais ou menos
inusitada, provavelmente com o fim de “desvirtuar” aquilo que durante milênios
se concebeu como a própria “arte de dançar”. Ainda assim, quando se fala de
“não-dança”, no universo terpsicoreano em geral, ou no contexto contemporâneo
das artes teatrais em particular, nem sempre os artistas, críticos e acadêmicos
se estão a referir a uma corrente ou movimento que seja, estritamente,
anti-dança.
Poder-se-á dizer que, na sua gênese, se trata de uma contradição, pois ao definir-se, genericamente, dança como “uma série de movimentos cadenciados, geral[1]mente ao som de música” – e no imaginário da grande maioria dos indivíduos dançar traduzir-se num “acto eminente[1]mente físico em que o movimento está presente, é acompanhado por música e, sobretudo, de prazer corporal, emocional e intelectual” (LAGINHA, 2008) –, no momento em que o intérprete se remete para uma situação de imobilidade, teoricamente, a dança deixa de existir. Devido não só à sua pouca longevidade e a uma reduzida abrangência – esta designação foi adoptada por um número mais ou menos circunscrito de criadores em alguns países – e por ser protagonizado por indivíduos que, em geral, se autodenominam “artistas visuais” e “performers” utilizando metodologias muito particulares, não é óbvio chegar a uma definição rigorosa e abrangente do conceito em causa, não só variada, mas também algo heterodoxa, que sirva os objetivos dos coreógrafos em termos de diversidade etária, social, cultural e econômica. E até no que respeita a um certo estado da chamada “normalidade” física. O movimento coreográfico denomina[1]do “não-dança” – ou submovimento de um universo amplo em que cabem pro[1]postas que vão do puramente intelectual ao alegremente recreativo – nasceu com alguns coreógrafos gauleses quando, por meados dos anos 90, começaram a restringir movimentos dinâmicos substituindo-os por uma deliberada imobilidade ou apenas por atividade gestual básica. As suas “criações cênicas” apostam mais em conceitos racionais do que nos corpos em movimento, tendo por filosofia (como atrás se afirmou) as mais diversas formas de transdisciplinaridade. Por tal, não é estranho que numa mesma peça se cruzem o teatro, a música, o vídeo, a literatura, a antropologia e as artes plásticas e que os coreógrafos, quase sempre, apresentem formação académica (ou não) em outras artes que não a dança. Não sendo pedido aos artistas qualquer tipo de treino sofisticado, nem se esperando deles interpretações virtuosas – o que não significa que sejam desprovidos de carisma – as obras conotadas com a “não-dança” acabam assentando, em grande parte, em conceitos mais ou menos explícitos que os seus criadores levam a cena e cuja inspiração poder vir das mais variadas fontes. Em alguns casos poder-se-ão relacionar com a chamada “dança conceitual” norte-americana dos anos 60 e com algumas “performances” dos artistas do Judson Dance Theatre (fundado em 1962) e do colectivo Grand Union (1970- 1976) (BANES, 1987), ambos nascidos na cidade de Nova Iorque (EUA). De um modo geral, a sua matriz comum era rejeitar o movimento teatral, técnico, sofisticado e espectacular em espaços convencionais para recuperar a pu[1]reza do movimento prístino e a beleza das ações do quotidiano. Segundo Dominique Frétard (2004) este “fenómeno estético recorrente, que ganha formas diferentes em função das épocas” é “uma parte, um desenvolvi[1]mento e uma definição, vista como uma categoria da dança contemporânea”. Embora, a rigor, não se trate de uma “linha” de espectáculos que se oponham ferozmente à dança – coreografada e executada por
O percursor da “não-dança” na Europa terá sido o artista multidisciplinar siciliano Orazio Massaro, cineasta, encena[1]dor, ator, pintor e designer, diplomado pelo Instituto de Arte de Catânia e bai[1]larino na Companhia de Dominique Bagouet no Centro Coreográfico Nacional do Languedoc-Roussillon, entre 1987 e 1990. Justamente com o espectáculo “Volare”, criado para o Festival de Montpellier, em 1990, em que seis bailarinos se apresentaram em cena sem coreografia, na pele de actores com um olhar crítico e autobiográfico sobre a dança. Os principais artistas associados a este movimento em França foram intérpretes saídos da chamada Nova Dança France[1]sa, dos anos 80. Entre eles encontram-se Jérôme Bel, Boris Charmatz, Chris[1]tian Rizzo, Hervé Robbe, Xavier Le Roy, Alain Buffard, Benoît Lachambre, Marco Berrettini, Fanny de Chaillé, Myriam Gourfink, Emmanuelle Huynh, Jennifer Lacey, Rachid Ouramdane, Loïc Touzé e Claudia Triozzi, entre outros. Do pri[1]meiro, cuja peça mais conhecida é “The show must go on” (estreada em 2001 e apresentada nesse mesmo ano no Teatro Nacional de São João, no Porto) vimos também, em Lisboa, “ Isabel Torres” e “Pichet Klunchun & Myself” (2006), no Teatro Municipal São Luiz, “Cédric Andrieux” (2016) no Teatro Maria Matos – do ciclo “peças autobiográficas” – “Gala” (2016), no mesmo teatro e o filme “Rétrosepctive” (2019), na Culturgest. Em Portugal, esta corrente poderá ter alguma ligação com os primeiros trabalhos de Madalena Victorino (Lisboa, 1956), uma professora de dança “para a comunidade” que com o seu Atelier de dança para não-profissionais, concebeu em 1989 o “Projecto Tojeira”, num meio rural, “Torrefação”, no ano seguinte, numa antiga fábrica e “O terceiro quarto”, em 1990, numa casa abandonada. Curiosamente, por ter, a pouco e pouco, começado a associar-se a bailarinos e coreógrafos profissionais os seus trabalhos ganharam uma vertente mais formal, beneficiando da presença de artistas com alguma formação acadêmica, lado a lado, por exemplo, com crianças e “animais reais e oníricos”. Assim sendo, o seu percurso – que incluiu em simultaneamente o trabalho de programadora - convergiu numa di[1]recção oposta a João Fiadeiro que, vindo da Companhia de Dança de Lisboa (fundada em 1985) e de uma fugaz passagem pelo Ballet Gulbenkian, foi progressivamente abandonando uma ver[1]tente mais física nas suas composições balizando e reduzindo drasticamente o seu léxico corporal. Talvez por isso, tanto Fiadeiro (Paris, 1965) como Cláudia Dias (Lisboa, 1972), uma sua “discípula” que fez peças como “One Woman Show”, “Visita Guiada” (2011), “Nem tudo o que fazemos tem que ser dito. Nem tudo o que dizemos tem que ser feito” (2013), “Segunda-feira: Atenção à direita” (2016), “Terça-feira: Tudo o que é sólido dissolve-se no ar” (2017) e Quarta-feira: o tempo das cerejas” (2018), têm uma expressão algo residual no mundo da dança portuguesa. Fiadeiro, com o seu método de “composição em tempo real”, iniciado em 1995, procurou exprimir-se através da fabricação de imagens mais ou menos triviais e da utilização da palavra e de outras opções cênicas, revelando um crescente gosto pela imobilidade. Em 2008 sus[1]pendeu a sua actividade enquanto coreógrafo e encenador, “desviando o seu foco de interesse para iniciativas onde o processo – em oposição ao produto – passou a ser o seu objecto central”. Entre 2011 e 2014 co-dirigiu, com a antropóloga brasileira Fernanda Eugénio, o centro de investigação AND Lab em Lisboa, uma plataforma de formação e pesquisa na interface entre criatividade, sustentabilidade e quotidiano em que os investigadores pretendiam questionar e experimentar modalidades do “como viver juntos”. Um dos resultados desta colaboração, foi a performance “Secalharidade”, estreada em 2012 no Pequeno Auditório da Culturgest, que marcou um regresso ao trabalho autoral, depois continuado com a revisitação da peça dedicada ao trabalho de Helena Almeida em novo formato conferência – “I am (not) here” (2014) – e uma peça de grupo: “O que fazer daqui para trás” (2015). Para além dos citados há que referir o nome de Miguel Pereira (Maputo, 1963) o primeiro intérprete em Portugal de uma peça de Jérôme Bel, “Shirtologia” (1997), criada de colaboração entre ambos. E também o de Sónia Baptista (Lisboa, 1973) que, durante alguns anos, desenvolveu trabalho a solo tendo, mesmo, levado à XI Bienal de Lyon (2004) uma peça em que exibia pequenos bonecos da cadeia de “fast food” MacDonald’s, inti[1]tulada “Haikus” (2001). Outro “performer” cujas apresentações são multifacetadas e poderão
*****
SÉRIE PARTITURA DO MARAVILHOSO
ARGENTINA | BRASIL | ||
COLOMBIA | CUBA | ECUADOR | |
EL SALVADOR | GUATEMALA | HONDURAS | MÉXICO |
NICARAGUA | PANAMÁ | PERÚ | |
REP. DOMINICANA | URUGUAY | VENEZUELA |
*****
Agulha Revista de Cultura
UMA AGULHA NA MESA O MUNDO NO PRATO
Número 176 | julho de 2021
Artista convidada: Susana Wald (Hungria, 1937)
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo & design | FLORIANO MARTINS
revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
ARC Edições © 2021
Visitem também:
Atlas Lírico da América Hispânica
Nenhum comentário:
Postar um comentário