quinta-feira, 22 de julho de 2021

ANTÓNIO LAGINHA | Antidança

 


O fenômeno da Antidança, que poderá ser visto como uma espécie de paradoxo na própria recente do História do Bailado – tal como o conhecemos no ínicio do século XXI – data dos últimos dez ou cinco anos do século passado.

Todavia, ao longo dos tempos, sempre apareceu (quase sempre isoladamente) uma ou outra proposta, mais ou menos inusitada, provavelmente com o fim de “desvirtuar” aquilo que durante milênios se concebeu como a própria “arte de dançar”. Ainda assim, quando se fala de “não-dança”, no universo terpsicoreano em geral, ou no contexto contemporâneo das artes teatrais em particular, nem sempre os artistas, críticos e acadêmicos se estão a referir a uma corrente ou movimento que seja, estritamente, anti-dança.

Poder-se-á dizer que, na sua gênese, se trata de uma contradição, pois ao definir-se, genericamente, dança como “uma série de movimentos cadenciados, geral[1]mente ao som de música” – e no imaginário da grande maioria dos indivíduos dançar traduzir-se num “acto eminente[1]mente físico em que o movimento está presente, é acompanhado por música e, sobretudo, de prazer corporal, emocional e intelectual” (LAGINHA, 2008) –, no momento em que o intérprete se remete para uma situação de imobilidade, teoricamente, a dança deixa de existir. Devido não só à sua pouca longevidade e a uma reduzida abrangência – esta designação foi adoptada por um número mais ou menos circunscrito de criadores em alguns países – e por ser protagonizado por indivíduos que, em geral, se autodenominam “artistas visuais” e “performers” utilizando metodologias muito particulares, não é óbvio chegar a uma definição rigorosa e abrangente do conceito em causa, não só variada, mas também algo heterodoxa, que sirva os objetivos dos coreógrafos em termos de diversidade etária, social, cultural e econômica. E até no que respeita a um certo estado da chamada “normalidade” física. O movimento coreográfico denomina[1]do “não-dança” – ou submovimento de um universo amplo em que cabem pro[1]postas que vão do puramente intelectual ao alegremente recreativo – nasceu com alguns coreógrafos gauleses quando, por meados dos anos 90, começaram a restringir movimentos dinâmicos substituindo-os por uma deliberada imobilidade ou apenas por atividade gestual básica. As suas “criações cênicas” apostam mais em conceitos racionais do que nos corpos em movimento, tendo por filosofia (como atrás se afirmou) as mais diversas formas de transdisciplinaridade. Por tal, não é estranho que numa mesma peça se cruzem o teatro, a música, o vídeo, a literatura, a antropologia e as artes plásticas e que os coreógrafos, quase sempre, apresentem formação académica (ou não) em outras artes que não a dança. Não sendo pedido aos artistas qualquer tipo de treino sofisticado, nem se esperando deles interpretações virtuosas – o que não significa que sejam desprovidos de carisma – as obras conotadas com a “não-dança” acabam assentando, em grande parte, em conceitos mais ou menos explícitos que os seus criadores levam a cena e cuja inspiração poder vir das mais variadas fontes. Em alguns casos poder-se-ão relacionar com a chamada “dança conceitual” norte-americana dos anos 60 e com algumas “performances” dos artistas do Judson Dance Theatre (fundado em 1962) e do colectivo Grand Union (1970- 1976) (BANES, 1987), ambos nascidos na cidade de Nova Iorque (EUA). De um modo geral, a sua matriz comum era rejeitar o movimento teatral, técnico, sofisticado e espectacular em espaços convencionais para recuperar a pu[1]reza do movimento prístino e a beleza das ações do quotidiano. Segundo Dominique Frétard (2004) este “fenómeno estético recorrente, que ganha formas diferentes em função das épocas” é “uma parte, um desenvolvi[1]mento e uma definição, vista como uma categoria da dança contemporânea”. Embora, a rigor, não se trate de uma “linha” de espectáculos que se oponham ferozmente à dança – coreografada e executada por


artistas treinados em códigos acadêmicos e em que a gestão de movimento prevalece na sua base e o espaço vai para além das suas mentes – os seus praticantes acabam por recusar em palco qualquer tipo de movimento “expressivo”, ancorado em trabalho físico e, muito menos, com caráter virtuoso. Por vezes, as suas “performances” – reduzindo as coisas a um plano algo simplista – resultam numa espécie de sequência de “encenações” teatrais que tentam plasmar um certo estado das Artes, em que elas se interpenetram e se confundem, recusando qualquer espécie de individualidade e, mesmo, alguma hierarquia na sua gestão. Frequentemente esses “atos performativos” primam por uma acintosa imobilidade, ou, em alguns casos, por movimentos minimalistas e gestos do quotidiano, ilustrados (ou não) por música, imagens em movimento e voz. Mas em que, deliberadamente, o espectador deve manter na consciência que a base da “não-dança” se situa sempre na tentativa e nunca na certeza. Não ocultando o “esqueleto” das obras – antes, pelo contrário – a “não- -dança”, supostamente, exibe uma certa componente do foro “artístico”, mas em que o processo e o resultado performativo se confundem na hora do acto teatral. Para atingir esse objetivo é, algumas vezes, necessário que os seus intérpretes sejam tão improváveis quanto possível, rejeitando qualquer laivo de treino nos corpos que se apre[1]sentam em púbico. E, com frequência, também de profissionalização na contribuição desses mais ou menos improvisados artistas de cena, com o fim de criar em palco uma paleta humana.

 O percursor da “não-dança” na Europa terá sido o artista multidisciplinar siciliano Orazio Massaro, cineasta, encena[1]dor, ator, pintor e designer, diplomado pelo Instituto de Arte de Catânia e bai[1]larino na Companhia de Dominique Bagouet no Centro Coreográfico Nacional do Languedoc-Roussillon, entre 1987 e 1990. Justamente com o espectáculo “Volare”, criado para o Festival de Montpellier, em 1990, em que seis bailarinos se apresentaram em cena sem coreografia, na pele de actores com um olhar crítico e autobiográfico sobre a dança. Os principais artistas associados a este movimento em França foram intérpretes saídos da chamada Nova Dança France[1]sa, dos anos 80. Entre eles encontram-se Jérôme Bel, Boris Charmatz, Chris[1]tian Rizzo, Hervé Robbe, Xavier Le Roy, Alain Buffard, Benoît Lachambre, Marco Berrettini, Fanny de Chaillé, Myriam Gourfink, Emmanuelle Huynh, Jennifer Lacey, Rachid Ouramdane, Loïc Touzé e Claudia Triozzi, entre outros. Do pri[1]meiro, cuja peça mais conhecida é “The show must go on” (estreada em 2001 e apresentada nesse mesmo ano no Teatro Nacional de São João, no Porto) vimos também, em Lisboa, “ Isabel Torres” e “Pichet Klunchun & Myself” (2006), no Teatro Municipal São Luiz, “Cédric Andrieux” (2016) no Teatro Maria Matos – do ciclo “peças autobiográficas” – “Gala” (2016), no mesmo teatro e o filme “Rétrosepctive” (2019), na Culturgest. Em Portugal, esta corrente poderá ter alguma ligação com os primeiros trabalhos de Madalena Victorino (Lisboa, 1956), uma professora de dança “para a comunidade” que com o seu Atelier de dança para não-profissionais, concebeu em 1989 o “Projecto Tojeira”, num meio rural, “Torrefação”, no ano seguinte, numa antiga fábrica e “O terceiro quarto”, em 1990, numa casa abandonada. Curiosamente, por ter, a pouco e pouco, começado a associar-se a bailarinos e coreógrafos profissionais os seus trabalhos ganharam uma vertente mais formal, beneficiando da presença de artistas com alguma formação acadêmica, lado a lado, por exemplo, com crianças e “animais reais e oníricos”. Assim sendo, o seu percurso – que incluiu em simultaneamente o trabalho de programadora - convergiu numa di[1]recção oposta a João Fiadeiro que, vindo da Companhia de Dança de Lisboa (fundada em 1985) e de uma fugaz passagem pelo Ballet Gulbenkian, foi progressivamente abandonando uma ver[1]tente mais física nas suas composições balizando e reduzindo drasticamente o seu léxico corporal. Talvez por isso, tanto Fiadeiro (Paris, 1965) como Cláudia Dias (Lisboa, 1972), uma sua “discípula” que fez peças como “One Woman Show”, “Visita Guiada” (2011), “Nem tudo o que fazemos tem que ser dito. Nem tudo o que dizemos tem que ser feito” (2013), “Segunda-feira: Atenção à direita” (2016), “Terça-feira: Tudo o que é sólido dissolve-se no ar” (2017) e Quarta-feira: o tempo das cerejas” (2018), têm uma expressão algo residual no mundo da dança portuguesa. Fiadeiro, com o seu método de “composição em tempo real”, iniciado em 1995, procurou exprimir-se através da fabricação de imagens mais ou menos triviais e da utilização da palavra e de outras opções cênicas, revelando um crescente gosto pela imobilidade. Em 2008 sus[1]pendeu a sua actividade enquanto coreógrafo e encenador, “desviando o seu foco de interesse para iniciativas onde o processo – em oposição ao produto – passou a ser o seu objecto central”. Entre 2011 e 2014 co-dirigiu, com a antropóloga brasileira Fernanda Eugénio, o centro de investigação AND Lab em Lisboa, uma plataforma de formação e pesquisa na interface entre criatividade, sustentabilidade e quotidiano em que os investigadores pretendiam questionar e experimentar modalidades do “como viver juntos”. Um dos resultados desta colaboração, foi a performance “Secalharidade”, estreada em 2012 no Pequeno Auditório da Culturgest, que marcou um regresso ao trabalho autoral, depois continuado com a revisitação da peça dedicada ao trabalho de Helena Almeida em novo formato conferência – “I am (not) here” (2014) – e uma peça de grupo: “O que fazer daqui para trás” (2015). Para além dos citados há que referir o nome de Miguel Pereira (Maputo, 1963) o primeiro intérprete em Portugal de uma peça de Jérôme Bel, “Shirtologia” (1997), criada de colaboração entre ambos. E também o de Sónia Baptista (Lisboa, 1973) que, durante alguns anos, desenvolveu trabalho a solo tendo, mesmo, levado à XI Bienal de Lyon (2004) uma peça em que exibia pequenos bonecos da cadeia de “fast food” MacDonald’s, inti[1]tulada “Haikus” (2001). Outro “performer” cujas apresentações são multifacetadas e poderão


inserir-se também numa lógica da “não-dança” é João Galante (Luanda, 1968), que fez par com Teresa Prima (Porto, 1975) entre 96 e 98 e com Ana Borralho (Lagos, 1972) a partir de 2002. Em França com Bel: “(…) Em resumo, a peça de Bel, “The show must go on”, ao contrário de uma coreografia que deixa lastro na memória, quer pela qualidade interpretativa e invenção do movimen[1]to, quer pela sua intrínseca dramaturgia – poderá, com alguma propriedade, reclamar o estatuto de “ocorrência” coreográfica. Mas, provavelmente, não muito mais que isso! Para pessoas que se divertem a representar o papel de artistas, porque não fazê-lo uma vez na vida em busca de uns momentos de brincadeira e de auto-satisfação?” (LAGINHA, 2008). Ou em Portugal com Batista: “(…) Em ridículo e ‘non-sense’, a ‘geixa da lata de sardinhas’ que [Sónia Baptista] deixou para trás, era bem mais atrevida que a desajeitada ‘pin-up’ que canta a cappella em três línguas, mia e suspira ‘dengosa’ em ‘Royale’. Para não se sentir muito sozinha – e porque o palco da Culturgest parece ser demasiado amplo para tanto talento – Sónia trouxe um rapaz em roupa interior para ler uns textos com ar sério e distante, Rogério Nuno Cos[1]ta. De vez em quando até parece que a criadora – que assenta o seu ‘trabalho no território das artes performativas se[1]guindo uma linha de criação alicerçada em pressupostos performativos e filosóficos’ – se não leva muito a sério, o que ainda consegue ter um pouco de graça, mas as filmagens no Palácio de Queluz e o seu ar de ‘vamp’ roubado a um velho filme de Ernst Lubitsch, não pare[1]cem muito convincentes no que toca aos seus dotes de ‘stripper’, actriz, cantora e, muito menos, de bailarina. De pose em pose e de canção em canção, Sónia Batista foi, assim, enchendo de vazio ‘Vice-Royale. Vain-Royale. Vile-Royale’” (LAGINHA, 2009). Entre a provocação e a indiferença, a não-dança continua a ser vista por uma maioria expressiva dos amantes da “Arte de Terpsícore” como um fenómeno de moda que, na realidade, nem sempre tem sido levado muito a sério. Já fora da Europa, no caso do imenso país que é geograficamente o Brasil, com o seu multi-cultural panorama artístico, também a anti-dança tem os seus seguidores. Jérôme Bel deixou a sua marca na América do Sul, em 2005, ao passar para o corpo da bailarina clássica, Isabel Torres, do Theatro Municipal do Rio de Janeiro, um solo autobiográfico originalmente concebido um ano antes para a francesa do Ballet da Ópera de Paris, Véronique Doisneau. Engendrado com a cumplicidade das intérpretes, o supra[1]citado solo de cerca de meia hora, era mais uma conversa franca, humorada, crítica e directa (de uma bailarina saída do anonimato do corpo-de-baile), com o público. O mesmo que raramente distingue umas intérpretes das outras nas linhas e conjuntos das obras clássicas. O trabalho que foi apresentado no festival carioca Panorama Dança – e em certames como a VI Bienal Internacional de Dança do Ceará – narra aspectos muito particulares das vivências artísticas e pessoais de uma bailarina clássica. Bel, cuja “peça-surpresa” surgiu original[1]mente na Ópera de Paris espartilhada entre duas de coreógrafos famosos, in[1]titulava-se no programa do espectáculo, não como um coreógrafo mas como um “homem de ideias” (2004).


Curiosamente, é no estado de Minas Gerais e na cidade de Belo Horizonte, que se regista um grupo muito significativo de artistas que apresentam um histórico de obras multi-discilinares e, quantas vezes, divorciadas de movimento expressivo, muito díspar e diversificado. Desde Marcelo Gabriel (Belo Horizonte, MG, 1971) a Wagner Schwartz (Volta Redonda, RJ, 1972) que trabalha entre o Brasil, a Alemanha e a França, passando por Adriana Banana, o nome artístico de Adriana Matos (Belo Hori[1]zonte, MG, 1973), Margô Assis (Capitólio, MG, 1962), Tuca Pinheiro (Belo Horizonte, MG, 1960), Ana Pi (Belo Horizonte, MG, 1986) e Luis Abreu ( Ara[1]guari, MG, 1963). Na grande São Paulo, uma metrópole com forte tradição em dança moderna e contemporânea, encontramos nomes como Letícia Sekito (São Paulo, SP, 1975), Marcos Moraes (São Paulo, SP, 1967) e Marta Soares (Piedade, SP, 1962), entre muitos outros. No estado da Bahia podem referenciar-se Neto Machado (Curitiba, PR,1985) ou Jorge Alencar (Salvador, BA, 1079) e no de Tocantins, Marcelo Evelin (Teresina, PI, 1962). Já a cidade do Rio de Janeiro, a antiga capital do país com larga tradição no mundo da dança académico-clássica, conta com nomes como Cristina Moura (Niterói, RJ, 1969), Gustavo Ciríaco (Rio de Janeiro, RJ, 1969), Laura Samy (Rio de Janeiro, RJ, 1971) e Marcela Levi (Rio de Janeiro, RJ, 1973). Por fim, um estrangeiro, Alejandro Ahmed (Montevideu, Uruguai, 1971), radicado em Florianópolis no estado de Santa Catarina, coreógrafo, bailarino e director da Cena 11 Cia. de Dança, apresenta um trabalho que ele próprio enquadra na categoria de “dança degenerativa”, difícil de mapear e, por vezes, baseado numa técnica pessoal intitulada “percepção física”. E, certa[1]mente, muitos outros artistas mais ou menos conhecidos e dignos de menção contribuem para o universo da não- -dança num país tão envolvido com a dança teatral e a folclórica e cuja população demonstra um amor e entusiasmo ímpares por essa arte. Talvez por isso, poder-se-ia levar a crer que as experiências anti-dança não encontrassem particular receptividade da parte do público brasileiro. Porém, a generosidade e abertura para toda e qualquer “linha” ou “estilo” de movi[1]mento, a sua curiosidade e energia e a própria necessidade de, mais que questionar a tradição, ampliar o escopo e a intercolaboração entre as artes numa deliberada acção de transgredir, fazem dos povos brasileiros produtores empolgados e consumidores ávidos até das for[1]mas mais ortodoxas da dança com raiz na Europa.

 



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Número 176 | julho de 2021

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