sexta-feira, 11 de junho de 2021

FLORIANO MARTINS | Língua de infinitos mundos – Jovens poetas brasileiros

 


“Uma coisa é certa…” – eis uma expressão à qual não se pode recorrer no campo da criação. Tudo nele é incerto e a relação entre plantio e cultivo em muitos casos equivale a outra expressão, aquela que remete ao tiro que saiu pela culatra. A criação a frio, como almejam alguns criadores, remete ao mito do domínio, que não ultrapassa o território da linguagem, onde, aí sim, lhe é imperativo. Criar envolve outra esfera, a do perder-se nos meandros onde se ocultam ou desgastam o ser e os inúmeros conceitos que vai acumulando em sua vida. A linguagem é um sistema de símbolos que nos servem de veículo para a manifestação da criação artística. Naturalmente exige domínio, o que inclui também a abertura sensorial que nos permite ver a mesma coisa de incontáveis modos e ângulos. Floresta de gestos e demais signos, dela melhor sairemos quanto mais entregues à doação de nuances e vertigens.

Criar é perder-se, experiência cuja resultante, o objeto que lhe é decorrente, é que se traduz em ganho. Aqui não importa a qualidade desse ganho, pois em primeiro plano se verifica a voltagem do ato em si, de perder-se. No entanto, seja experimento científico ou criação artística, de imediato após a celebração de alguma conquista desentranhada de um emaranhado de símbolos, o que se exige passa a ser orientado pelas leis da funcionalidade ou da harmonia de formas e sentidos que constitui o domínio da estética. Convém, no entanto, separar Arte e Ciência, pela recorrente intromissão desta no cosmos da outra.

O modo como a arte celebra sua relação com tempo e espaço, por vezes, gera incompreensão, marcada por uma equívoca exigência, a de preestabelecer objetos de culto, seja o mito da subjetividade excessiva ou o serpentário de pensamento alheio à própria, portanto, peculiar, voragem da existência humana. Por vezes o poema se torna submisso à crônica ou devoto dos relatórios científicos. Em outras tantas parece saído das páginas de um diário de pequenas angústias inconsequentes ou dos exercícios pueris das oficinas literárias. Sua vida, a despeito dessa morfologia de engodos, possui outra voltagem e requer outra configuração. O poema cria seu próprio tempo, seu próprio espaço, conectados por um cruzamento de sensações oriundas dos diversos mecanismos que definem a experiência individual e coletivo – tais dimensões não se separam na criação artística.

Escrito o poema, advém atenção à sua ressonância, ao modo como é degustado pelo criador. Nova suspeita em curso: a quem atende o poema? A ninguém mais além do poeta que o criou. Sua leitura por outros abre uma porta outra, não a da determinação técnica, mas sim a da afinidade anímica. Também ao leitor caberá encontrar, no poema lido, o que ele lhe expressa e o modo como o faz. Pouco adianta escavar esse território como quem demarca especificações de áreas de acesso. Também a leitura é incerta e, em muitos casos, traduz o tiro pela culatra aludido.

A presente antologia tem intencionalmente a aparência de uma tapeçaria cujos recortes e pontos são dados pela secreta singularidade de suas vozes. Vista de longe, está possuída por um aspecto sinfônico, cuja partitura se define por uma diversidade de estilos e vivências. 55 poetas de várias partes do país, abrangendo idades que vão dos 40 aos 20 anos. Aos poemas resolvi somar um capítulo com o pensamento desses poetas acerca do poema e da poesia. Nova tapeçaria, repleta de luminosidades sobre o mergulho de cada um no abismo da criação. É bonito lê-los, observar como vêm encontrando modos de se livrar dos lugares comuns de uma tradição lírica em grande parte devastada pelos excessos, tanto de formalismo quanto de subjetivismo raquítico. Neles as influências – que atuam, como devido, como uma rede secreta de afinidades – se dão de modo múltiplo, sem submissão a modelos de culto.

Como em uma orquestra com 55 músicos, tudo o que o regente deve fazer é criar um paradoxo. Um composto de estilos que, dentro da mesma língua, possa nos levar a diferentes mundos. Lê-los – partitura entrelaçada com suas notações cobiçadas – nos desafia a afinar a sensibilidade pelo diapasão de nossa contemporaneidade. Estes poetas são o presente gratificante e através deles é que demarcaremos mar e sertão dos símbolos que elucidarão nossa presença na terra.

Então vamos lê-los.

 

SALÃO DE INQUIETUDES

Em conversas com Andréia Carvalho Gavita me despertou atenção a referência dela à criação do poema como ato de recuperar um corpo fragmentado. Certamente é o que fazemos a todo instante em nossa existência, o que confirma a ideia de que criar é um modo de existir. Estamos sempre recuperando corpos fragmentados. A partir dessa imagem tão fascinante e real, preparei uma pergunta para todos os poetas que estão conosco nesta aventura, a ver como eles se movem dentro do poema e dentro de si mesmo. Eis a pergunta: O que a criação de um poema representa em tua vida e como o percebes em relação a outras formas de expressão artística?

 

AIRTON SOUZA | O poema sempre foi e é em minha vida a elaboração direta de meus dias. Da escrita e da escuta das palavras em seus estados simbólicos e de plurissignificações é que costumo olhar a mim mesmo, como num espelho que sempre parece renovar a minha própria imagem e a do mundo. Verdadeiramente, a criação de um poema representa hoje entre tantas coisas significativas, a continuação do direito de ter o meu próprio nome, pois, foi a poesia que devolveu a mim o nome com o qual fui batizado. Fora isso, a escritura do poema é a parte que me cabe no mundo como forma de compreender a vida. Eu só consigo olhar para a linguagem pondo ela lado a lado com a vida. Por isso, a representatividade da escrita de um poema é a simbologia de continuar vivo. Em relação às demais formas de manifestações artísticas a poesia tem uma serventia importante, porque é a partir do poético que consigo entender-me com as demais formas artísticas. Sem poética tudo fica mais opaco que o normal.

 

ALEX SIMÕES | A criação de um poema é uma forma que encontrei de dizer que estou vivo e que resisto à morte. Nem sempre estou criando poemas e quando não o estou, tenho a sensação de estar faltando com a verdade, com a minha verdade, haja visto que faz um tempo que me apresento como poeta e poeta é uma pessoa que escreve e de preferência que torna públicos os seus poemas (se bons ou ruins, se muito ou pouco conhecidos, aí são outros quinhentos). Para mim, ler, reler e traduzir poemas alheios são práticas mais importantes para a minha vida que escrever poemas, pois escrevo como consequência do ato de cotidianamente ler poemas e fruir obras de artes das mais distintas linguagens, que me ensinam um modo radical de ver e de viver o mundo, e, desse modo, de viver a minha vida. O contato com a poesia, com as artes em geral, e com artistas, me faz sentir vivo e minimamente esperançoso em relação ao mundo, por mais inacessível e desesperançoso que seja o poema que estou lendo, a obra de arte que estou fruindo.

O que segue é continuação da primeira parte da resposta e que se mescla com a segunda parte: a poesia é a menos culpada de todas as ocupações, como disse o poeta Waly Salomão. Essa culpa menor em relação a outras ocupações e, portanto, em relação a outras linguagens artísticas, tem a ver, creio, com o fato de que provavelmente o poeta é o artista com menos chances de ser percebido como alguém produtivo numa sociedade calcada em um sistema complexo de produção e exploração do tempo das pessoas. Somos menos culpados porque somos menos produtivos. Escrever no campo de “ocupação” a palavra “poeta” é por si só um gesto de insubordinação nos lugares menos insuspeitados. Tenho experimentado esse estranhamento nas recepções de hotel e também quando me perguntam o que ando “fazendo”, onde “estou” (quando estar em algum lugar significa sintomaticamente ter uma função social reconhecida como produtiva e regularmente remunerada).

Músicos podem ser empregados como músicos, alguns artistas visuais e até alguns performers podem ganhar uns trocados se derem a sorte de um curador recomendar a aquisição de sua obra para compor o acervo de um museu, de uma galeria. Poetas? Os que conheço e que vivem razoavelmente bem são professores, oficineiros, revisores, tradutores, produtores culturais e pagam as contas do poeta com as outras ocupações, não tendo nenhuma ilusão de que seus poemas vão lhe render alguma estabilidade financeira. Prosadores podem ter essa ilusão. Umberto Eco comprou um castelo com os rendimentos de livros. Poetas? Talvez virando cantores populares consigam alguns trocados. Lembro o episódio de Laurie Anderson que, convidada a fazer uma residência artística muito bem paga pela NASA, que lhe pediu como contrapartida uma obra de arte que tivesse relação com a residência artística e o fez, apresentando um poema. E o fez sabendo se tratar de um ato subversivo porque um poema não era o esperado como obra de arte para uma residência artística para ao qual ela foi bem remunerada. Ela ouviu reclamações de seus contratantes, evidentemente. Eu me sinto atuando como a Laurie Anderson desse episódio, mas sem nenhuma chance de ser convocado pela NASA. Me sinto um desoculpado.

 

AMANDA VITAL | Ao criar um poema, estou transpondo um fragmento de uma visão, uma memória escrita de cenas da minha vida – daquilo que foi visto, lido e, principalmente, experimentado – para o mundo. Lanço ao leitor uma das inúmeras possibilidades, uma maneira outra de percepção, um modo de enxergar as coisas através do meu próprio trabalho com a linguagem. Percebo o poema como a forma de expressão artística que me é possível, que me é alcançável. Utilizo o texto como suporte para essa tradução e é assim como vejo o poema na ampla gama de possibilidades artísticas: aquilo que consigo alcançar e que consigo fazer com que outras pessoas alcancem.

 

ANDRÉIA CARVALHO GAVITA | Aprendi a colar ossos de animais, mortos pelo atropelamento em estradas urbanas, quando iniciava estudos no curso de Ciências Biológicas. Os esqueletos recuperados eram enviados ao museu para exposições didáticas. Com a tarefa, que exige muita paciência, estômago e atenção, entendi a composição intrincada da estrutura que nos permite caminhar pelo solo, sempre desafiando a gravidade do coração de um planeta. Ossos são materiais duros, alavancas com cerne gerador de precioso líquido, o sangue. Quando crio um poema penso na preparação dos esqueletos, verbos-falanges, substantivos-rótulas, advérbios projetados para ligaduras que permitirão dobrar os joelhos, alcançar frutos, envolver outros seres em um abraço ou repelir espécies ameaçadoras. Nenhum poema, por mais simples que seja em sua constituição, furta-se do ato de recuperar um corpo fragmentado. Tudo que lemos, aprendemos, projetamos em sonhos ou planos reais, sintetiza-se em um conjunto de linhas, uma pequena parcela do todo que nos insufla e movimenta, como se colássemos um corpo esquartejado, restituindo sua característica de ente único e independente. Escrever um poema é como a arte da taxidermia, exige ataduras, olhos de vidro, lentes amplificadoras, agulhas extratoras, alicates, tesouras e etiquetas para identificação. Montar um poema tem poder reparador sobre minha existência, me devolve a sensação de unir aquilo que me separa. O mar de informações dispersas que captamos e que nos captura se aninha em uma mensagem minúscula, rica em fractais. A arte da escrita é mais uma forma de expressão artística, gêmea do artesanato, diferindo da música, da pintura ou da dança, apenas pelo veículo: a pauta do papel (ou tela de monitor). É possível dançar ao ler (e escrever) um poema, sentir cores, texturas, caminhar por paisagens e memórias, e ainda escutar o sopro apaziguador da brisa marinha junto a uma cantiga esfomeada de quasar – tudo nascido da sincronia dos neurônios com a ossatura dos versos.

 

ANA FARRAH | O poeta é um jogador. Brinca com as possibilidades de dizer e criar a imagem a ser recebida pelo leitor. Codifica e decodifica, mente bastante, ri de si mesmo e ama criaturas idealizadas. Escrever é como dançar para entrar no Bolshoi; um exercício intenso de aprimoramento e muitos tombos em poemas que se rasgam ou vão parar na lixeira virtual da área de trabalho do computador.

Um poeta só é plenamente feliz quando vomita uma ideia de uma vez e, sem polimentos, consegue montar o quebra-cabeça com aquilo que não seria mais bem dito caso fosse verbalizado. É um artista. E como todo artista, um ególatra solitário que necessita de aplausos.

 

ANNA APOLINÁRIO | Como já disse certa vez, criar um poema é tocar, lapidar um delírio, fazê-lo brilhar feito um diamante selvagem. O poeta é sempre o alquimista, aquele que maneja com audácia os afiados gumes da linguagem, raptando o pássaro palpitante que habita o Sonho. A escrita do poema representa o sagrado e delicioso ofício de mergulhar em abismos, vestir-se de tempestades, alçar voo rumo ao coração secreto, escavando fundo, para revelar o ouro de todas as coisas. Quando escrevo, eu acendo as chispas, alimento as febres, dedilho a poesia em estado bruto, transbordando das entranhas, devoro as formas do fogo, para traduzi-lo em sílabas, incendiando carne e espírito. Em relação a outras formas de expressão artística, percebo a linguagem poética como um elemento de força mística que une uma gama de possibilidades imagéticas, musicais e sensoriais. Concebo o poema como um animal mágico, nervos, sangue e magia, uma força da natureza, um lugar de poder, beleza e metamorfose.

 

AUGUSTO CÉSAR | Fazer literatura me vem como uma ânsia de vômito. Por meio de uma carga ansiogênica extenuante e elevada. À beira de um conluio comigo mesmo que visa à maquinação da minha própria morte. É como se cada sílaba fosse um mocambo que abriga a minha quintessência em um cômodo obscuro de sangue denso e insosso. A palavra – em mim – nasce no momento exato em que perpassa pelos fantasmas que me gritam do outro lado do muro. Dói. Sangra. Há em cada poema um litro e meio de sangue. A poesia me esgota, representando uma espécie de dessacralização na minha vida.

Vejo o poema como um ato falho e solitário, sem vigias. A minha palavra não precisa ser dita, encenada, cantada, pintada ou qualquer outra coisa que demande técnica ou treino. Sinto o poema como o mais visceral de mim. Em relação a outras expressões artísticas, li uma vez que deveria existir uma pintura totalmente livre da dependência da figura. E existe: o poema… uma confluência imagética de tudo o que penso e ajo.

 

BEATRIZ BAJO | A criação poética é a forma de a gente viver… porque vem de um olhar enviesado quando se dá um passo atrás. Acho até que Lispector, quando disse atrás-do-pensamento-sentimento, falava disso. É quando não nos deixamos levar, mas seguramos em algo inescapável que é esse olhar. Verso, sendo essa dobradura de palavras… essa envergadura que me exercita a humildade e a paciência, também me entusiasma a fazer escorrer humanidades do sagrado e raiar divinações e milagres das criaturas. Um jeito sublime de viver como se dançasse.

Como percebo o poema em relação a outras formas de expressão artística? “No princípio era o Verbo… E o Verbo se fez carne…”

 

BEATRIZ REGINA GUIMARÃES BARBOZA | Não consigo responder isso brevemente, mas também não quero escrever muito. Em minha vida, a criação de um poema representa o registro de algo significativo na forma e no conteúdo, assim como no processo. É político e místico. Por ser um exercício de nomeação disposto graficamente na página, é distinto das outras artes pela centralidade da linguagem em seu som e imagem, ainda que eu não acredite em expressão artística pura descolada de uma outra ou várias.

 

CARLOS ORFEU | O poema é outra respiração, magma-língua, morada semovente. Produzir a vida enquanto poema sempre inacabado, torna-Me mais que um Ser finito e agustiante. Faz-Me parte do movimento das coisas salivadas pelo Espanto. Em toda forma de arte vejo o acontecer do poema inseparável da Carne do Tempo. O poema engendra outro mundo possível.

 

CASÉ LONTRA MARQUES | Algo ainda turvo, mas, ao mesmo tempo, vivamente concreto me faz acreditar que a escrita de um poema não começa nem termina. Suas materializações textuais – provisórias mesmo quando inevitáveis – consagram uma persistência. E, no meu caso, ajudam a respirar, assim como a comer ou dormir… A criação com a linguagem move camadas incomensuráveis: atropela o cotidiano, é verdade. No entanto, nutre os dias. Outras possibilidades de arte (são tantas) talvez caminhem perto disso. Não por acaso vejo a criação verbal em estado permanente de atenção, para farejar – às vezes entre rombos, às vezes entre frestas – as peculiaridades dos outros fazeres simbólicos: uma vocação alimentar. E (a seu modo) medicinal.

 

CINTIA FARIA | Toda essa língua de presságios: o poema torna possível dizer sobre os crisântemos na neblina rompendo o vidro que separa o teu corpo da luz e todo o escândalo de deus e das flores de ouro tão frágeis e tão reais… letra à letra, a palavra sem âncora, somente o som, transmissão de espasmo, não de sentidos. Morar no invisível, tocar a noite e saber-se tão pequeno, alcançar essa infância eterna e padecer diante disso, todo o horror das estrelas e todas as mortes como uma grande morte… é possível alcançar isso em um poema. Na linguagem comum, diariamente nos referimos às coisas no mundo e carregamos todas as pretensões de comunicação e compreensão mútuas, compartilhamos ideias sobre o que é o amanhecer, um conceito, um fato a respeito do movimento da Terra em torno do sol… escrever um poema é sempre saber que nunca se trata somente disso. É sempre custoso uma palavra… vencer a tentação do silêncio, arrebentar a língua de si própria… a criação de um poema na minha vida é justamente essa travessia do desterro. Nunca saber-se escrito, mas sempre em chamas, digo, não é sobre como vou me representar como alguém que nasce e fala, o poema não diz respeito ao representável, mas a todas essas aparições tão reais, vivas, tão próximas, que se presentificam na escrita. Creio que o poema tenha sido o lugar onde encontrei esse litoral de fronteiras para o que em mim é incabível, certamente me expresso melhor com as letras, embora aprecie muito as artes visuais e a música, principalmente… Tem algo sobre a sonoridade, os sons das coisas, acho tudo muito vibrátil, o som é certamente uma escrita viva.

 


DANIELA DELIAS | Para mim, a criação de um poema representa, sobretudo, uma inquietação, uma espécie de amálgama entre o que está dentro e o meu olhar acerca do mundo. É algo da ordem do desejo: uma sensação, o registro de uma imagem ou memória que, com alguma sorte, associa-se às palavras, possibilitando um trabalho posterior de lapidação. Tem também uma relação muito estreita com o meu espanto diante das coisas. Eu sou uma pessoa muito introspectiva, mas com uma necessidade imensa de comunicação. A escrita tem me possibilitado comunicar algumas coisas, que, de outra forma, não seria possível.

Eu entendo a escrita de um poema como um registro muito semelhante à fotografia, uma vez que quase sempre tenho a sensação de estar partindo de uma imagem. Quando falo em “imagem”, refiro-me também a um afeto, uma representação que vai aos poucos se ligando a outra até formar um verso. Há também uma relação com a sonoridade, uma busca de um jeito de dizer que pudesse fazer com que as palavras dançassem, minimamente. Então, é um pouco isso: uma fotografia, uma música, uma dança.

 

DAVI ARAÚJO | Sendo poeta, pela etimologia, “aquele que faz”, e a pretender eu sê-lo em tudo o que faço, como recomendava “um verdadeiro deus”, faço poesia do que vivo, e o fazer me perfaz. De todo antes imperceptíveis, os poemas todos antes de tudo poéticas: certas direções para se fazer todos os poemas em via de serem “feitos” (ou seja, “realizações”, “poemas”) em todos os sentidos, ainda que contraditórios, e que não precisam sequer ser sempre, depois, escritos; pois podem ser desenhados, tocados, ou somente – ainda – sentidos. Segue-se com esses poemas tão só sentidos como aqueles que antes se guiam sem os mapas que a seguir faziam. Esse sentido extra, quintessencial, a que chamam (bis)sexto, é o que, em potência, tem-se de mais perfeito em feição: o que nomeio beleza. Coisa que, de formas incertas, façamos de referência para nos fazermos ao desconhecido; talvez reconhecível adiante, se inadiável, pois sempre imperfeito isto de todo ainda por se fazer o que, enfim, de si em face, refaz-se-nos. É para mim tudo aquilo que tem sentido tão realmente perfeito quanto perfeitamente real; a expressão não mais das formas artísticas enquanto artes formais, mas de todas as formas de arte como a arte das formas todas; creio ser o que representa a vida, reapresenta-nos o presente, faz-se presença – a poesia. De tudo, tudo cria.

 

DEMÉTRIOS GALVÃO | Pra mim, a criação poética é um desdobramento da vida e de suas potencialidades. Encaro a poesia como uma forma de ampliação daquilo que chamamos de realidade, busco, sobretudo, os possíveis que não estão dados. Por meio da linguagem, desdobro dimensões como quem desfaz um embrulho e ao mesmo tempo, invento o conteúdo, do tal embrulho. Nessa pulsação de vida-linguagem carrego nos bolsos palavras selvagens, cultivo imagens lisérgicas e busco formas não domesticadas. Ao passo que desenho um percurso poético, poema a poema, livro a livro, igualmente modelo a minha existência como uma obra que, também, é parte da outra.

Aprendi com os poetas surrealistas que o melhor vocabulário é aquele que não se dobra por completo. A poesia não precisa dar respostas, pois o seu papel é o de tirar as coisas do lugar e colocar em outro, de preferência, em lugares estranhos. Provocar o deslocamento no olhar, na percepção e no corpo. O impacto está em não representar a realidade, em não descrever nada. Mas, em buscar as fissuras entre o visível e o invisível, se colocar fora dos enquadramentos, não trabalhar com os jogos de classificação convencionais e nem usar palavras que se desgastaram com um uso burocrático.

A criação poética se coloca como parte constitutiva de minha prática de existência, do modo como observo o mundo, de como me relaciono com minha família, com os meus amigos e alunos. A poesia faz parte do meu universo artístico, pedagógico e espiritual.

 

DIOGO CARDOSO | Se acredito na linhagem poética explicitada principalmente por Huidobro, a de que “El poeta es un pequeño Dios”, tenho para mim que criar um poema é abrir uma brecha para uma nova realidade. Penso ainda, e com a cabeça suspensa nesses nossos dias, que o poema, se não resolve a crise… (sequer consigo achar qualificativo para essa crise, tantas elas são!) em que vivemos, é uma das poucas utopias possíveis para a pouca realidade que está aí. Creio que, ao criar um poema, consigo ser o outro que me mira a nuca enquanto vejo o mundo. Há uma tentativa de aprofundar o ver nesse sentido. E preocupa-me quando não escrevo poemas ou estou pouco em contato com a poesia, é como se eu estivesse com alguma enfermidade na visão – um “sofredor do ver”, Maura Lopes Cançado dixit. O poema, para mim, talvez seja uma das poucas possibilidades de eu poder ver além do que vejo, inclusive porque quando escrevo, na verdade, sou escrito: algo escreve-se em mim. Apenas tento o esforço de manter o ouvido aberto e correr em palavras o que me é dito. E o início dessa visão é sempre uma imagem. É sempre a partir dessa evocação que sei que minha atenção deve estar plena. Acredito no poema e, principalmente, na imagem porque sei que neles as realidades se abrem em prismas e daí tudo é possível e permitido. Burroughs dizia a Ginsberg, “Nada é verdade. Tudo é permitido.” –, citando o que ele diz serem as últimas palavras de Hassan Sabbah. E segue:

Vea             vea                  vea

E é o que estou tentando.

Talvez isso do poema conter em si todas as visões, faz também com que nele estejam contidos todas as artes. Inclusive parece-me que muitos dos poemas que li há mais das artes visuais do que propriamente da literatura – que, curiosamente, o poema/poesia é uma categoria fora. Digo isso quando penso na maneira com a qual um Herberto Helder conduz suas imagens. Cada imagem que se desdobra forma uma peça “plástica” totalmente tangível e autônoma. Nele, a oposição verbo/corpo se desfaz. E há ali uma música que pulsa no ritmo do coração: sístole, diástole. Lendo muitas escritas recentes, vejo que a crise que passamos acaba refletindo numa linhagem de poemas em que se faz fratura exposta a crise na linguagem: o poema se reduz a um conteúdo que se limita exatamente a uma “realidade” aparente. Tanto uma realidade social quanto emocional. Abrir mão da potência da poesia, reduzindo-a a um qualificativo para algo que não ela, é largar mão da possibilidade de ver e expandir outras realidades, inclusive as que são clamadas, mas reduzidas a meros conteúdos utilitários.

O poema é.

 

FERNANDA BOAVENTURA | Quando acontece de eu ser atravessada pelos louvores que eu murmuro e pelo assombro por tudo o que a vida e a morte estendem e já estenderam diante dos meus olhos, sinto muita dificuldade de perdoar o meu coração por ter dormido. E neste instante, eu tento trazer ao meu socorro palavras para me redimirem de ter fugido tanto do milagre das estrelas e das cinzas.

A segunda parte da pergunta eu não sei dizer. Não quero dizer nada à toa, e ultimamente parece que grande parte do que vou dizer desiste de ser dito antes mesmo de eu dizê-lo.

 

GERALDO LAVIGNE DE LEMOS | A criação de um poema representa a descrição de um sentimento em estado puro. A poesia é uma das formas de expor a poética, entre as muitas expressões artísticas.

 

GIULIANO FRATIN | A meu ver, criar um poema é um ato com o mesmo sentido etimológico do verbo criar. Crear o Novo. Criar o próprio universo mental com todos os seres que o habita. Todo autêntico poeta brinca de Deus. Visto também que o termo grego poiesis (poesia) designa “criação”. Dentre outras formas artísticas, parece-me que a arte da descrição através de uma série de recursos estilísticos, proporciona uma forma de expressão mais completa, estando nela inclusa como anexo a interpretação subjetiva ou não do próprio autor. Poetizar é o meio mais independente e imediato como forma de apreender e exteriorizar a experiência vivida no âmago do ser.

 

GLEDSON SOUSA | A pergunta é mais que instigante, nos leva a refletir sobre o próprio processo de criação, e mais que isso, sobre a vivência do poema.

Porque falo em vivência do poema? Porque o poema é um instantâneo do espírito na confluência das diversas forças que o movem. Não é uma experiência literária, a literatura é a forma em que o ser se move, mas o poema está além.

Creio que cada diferente etapa de minha própria existência foi marcada por diferentes fases poéticas, como se a língua se transfigurasse a cada vivência, como se procurasse a forma adequada, o veículo preciso, e esse veículo sempre foi a poesia e não a reflexão conceitual, porque o pensamento conceitual não dá conta das várias instâncias da vida, dos entrelaçamentos, da sua plurisignificação e manifestação.

O pensamento poético tem esse caráter de hélice espiralada quadrimensional onde letras, palavras e sentidos se intercalam, se comunicam, se alteram, se transformam, sem deixarem de ser, mas não uma individualidade estanque, e sim uma comunidade heterogênea, de pássaro, criança, andrógino, planta e cosmo.

Talvez a arte que mais se aproxime da poesia seja o cinema, com a diferença de que as imagens parecem se congelar no tempo e perderem às vezes sua eficácia, o que não ocorre com a verdadeira poesia, cuja força permanece in illo tempore e além.

Da Vinci, ao comparar a pintura e a poesia, em seus escritos, conferia uma primazia à pintura pelo poder da imagem plasmada pela pintura: mas é justamente a imagem plasmada que às vezes reduz o poder de sugestão do pensamento imagético, o que não ocorre no domínio poético: a poesia pensa por imagens, e por sua vez a imagem evoca sempre em si a totalidade, que o poema traz sempre em seu bojo a cada vez que é lido ou celebrado. A pintura condensa certa leitura da imagem, confinando o pensamento imagético, de alguma maneira. A poesia evita esse calabouço.

Tanto a poesia quanto o cinema são evocadoras da totalidade, mas o cinema está mais sujeito ao tempo do que a poesia.

A poesia não é um apêndice da minha vida, ela é a própria vida.

A poesia é o verdadeiro pensar. O conceito é uma falsificação da realidade. O conceito é uma expressão do medo. A poesia carrega em seu colo o abismo, sempre.

 


IAN VIANA | Segundo a linha interpretativa do Movimento Víbora (o movimento de um homem só, por mim criado e por mim seguido), o nascer de um poema é como o de uma cobra que irrompe no mundo da matéria. Vocês já se perguntaram de onde vêm as cobras?!

O poema, como um ovo-veneno, é incubado por cerca de 60 dias (ou o tempo que seja necessário) para a maturação do instinto víbora. A picada se dá no momento em que o poema é lido e ele deve ser a cristalização da picada da Cobra Coral: produzir um choque massivo no sistema nervoso central, provocando uma série de espasmos na presa.

Sendo assim, por se aproximar do Reino Animal, como nenhuma outra, a Poesia – e não o poema – é a suprema forma de manifestação artística. Ela permanecerá, após nossa extinção, nas presas das cobras, nos olhos das onças e nas asas dos gaviões.

 

ISADORA EGLER | Escrever um poema é sempre o contrário de ser pragmático. É praticamente não deixar com que nada siga o curso do passado, a ordem da história. Para mim, conceber o poema é uma forma de presentificar a memória, o ontem, e não tem nada de mais bonito que negar o tempo cronológico. No entanto, apesar de lindo, escrever um poema pode ser, sim, e particularmente acaba sendo na maior parte das vezes, algo bastante doloroso: é quase como acessar tudo o que se quer esquecer e fazer um esforço para que o contrário aconteça. O motivo eu ainda não sei, mas sei que tudo pede ao escritor criar a figura de algo que só se derramando se limpa. Isso, inclusive, me leva à segunda parte da pergunta: em relação a outras formas de expressão artística, o poema se diferencia por nascer de algo que sempre está ali. A linguagem, a fala, a necessidade da comunicação é basicamente o que nos diferencia do resto dos animais do mundo e criar graça em algo tão cotidiano, registrar as palavras de forma tão consciente, é sair do mundo real precisando de muito pouco. É o tipo de arte que para dar à luz basta ser gente, basta pensar, e tá ali. É bonito construir algo tão colossal com praticamente nenhum material, mas com aquilo que a gente carrega consigo até mesmo quando não tem mais nada físico e palpável. É falar da imagem sem precisar do retrato, da tinta, do vídeo, do barulho. Lembrar tudo com quase nada.

 

JEANINE WILL | Da criação até chegar ao poema pronto é um desvendar a poesia até se encontrar aquilo que não se esteve procurando o tempo todo ao redor daquelas palavras. Estou me distraindo de mim enquanto escrevo. É a única coisa que funciona. Não há nada de luta amorosa. O campo da poesia, pra mim, não é um campo de batalha. Há entrega, doação para, em troca, vir à tona, sair de dentro da pedra, o poema. Aproxima-se muito da escultura e da ouriversaria.

 

JOAQUIM BUHRER | O poema aparece – e me é aparecido – na sua forma crua… a da necessidade. Esta, como um hiato, como um algo não dito, um vão entre o trem e a plataforma ou um elevador não presente no andar ou como um pokémon escondido na relva do gameboy e talvez como a Força interdita que um Jedi suplica e utiliza sem saber e sem querer. Depois, lapidado, se se apresenta plausível e mostrável, é talvez publicável. Gosto de transformar a realidade e minha formação cultural mista neoneocolonial americana – a partir daquilo que me bombardeou na TV Globinho e no Bom Dia e Cia – no conjunto com o ser-eu artista e incompleto na busca por intermédio entre o eu e o infinito escrevendo e vocalizando poeminhas. O poema, então, é a linguagem que falo quando não sei mais o que dizer, e por isso, como linguagem e súplica do método, se conecta com outras formas de expressão artística diretamente na sua fonte, no seu cabo de fibra óptica, no seu fio de cobre, no seu shape talhado por shakes de boa forma e whey protein. Se conecta porque é a cama onde deita toda forma que encontro de compreensão artística, onde dorme a criação e onde acorda, onde almoça, onde janta, onde caga e onde brisa. Por ele passa tudo. É na academia do poema que eu malho esses bracinhos. É ali que eu interpreto e entendo um “O que é Golden Shower?” qualquer, um nariz de Pinóquio, todas essas metáforas imbecis sobre desenhos e séries e filmes… é onde eu embrulho a realidade para presente. Nem sempre é bom. Nem sempre serve. Algumas vezes o embrulho é mais bonito.

 

JULIA MOURA | Arte é ritmo, frequência, pulso, repetição, mimesis; isto não implica similitude, regularidade ou harmonia, entretanto, há um grau de semelhança entre todos os elementos que a envolvem, como se partissem da mesma fenda. Para mim, escrever um poema é explorar essa fenda; na medida em que leio e experimento do planeta, os instrumentos de que disponho ficam mais afiados, sedentos e lúcidos; é como se o instinto e a subjetividade fossem domados violentamente, a fim de esticar melhor as bordas da palavra e produzir imagens cada vez mais preenchidas. Cada poema irrompe à sua maneira, seja como um vômito cirúrgico e desavisado – aquele que é a única alternativa para cessar o enjoo –, seja como um parto normal comprido podendo durar meses, é quando a dilatação não acompanha a passagem do bebê.

O que esses processos representam na minha vida é muita coisa, é nada também; gosto da ideia de suspiro/centelha, da sensação de se ausentar do espaço-tempo, como diz Murilo Mendes. É o espaço entre a derrelição e o pertencimento.

Quanto à categoria de criação, acho delicada: quanto do novo há de fato na nova criatura? Estamos aprisionados nos signos que já possuímos e daí a importância de expandir o arcabouço incessantemente, para que mais partes integrem o que nós modernos gostamos de chamar de “processo de criação”. “Os limites da minha linguagem são os limites do meu mundo”, tenho a impressão de que todo o meu texto habita essa citação de Wittgenstein. É nesse sentido que as outras formas de expressão artística se relacionam com o que escrevo, o cinema de Godard é uma leitura, assim como a música de Jards Macalé e a pintura de Tarsila. Fazer da vida experimentação/expansão; ler a natureza e a violência, as crianças mudas telepáticas, uma receita de pão integral, a chuva e a falta dela… O poeta é sedento pelo mundo porque é sedento pela palavra. Ela, que é o começo, o meio e o fim.

 

JULIA RAIZ | Me parece que responder ao que representa a criação de um poema na minha vida é uma tarefa similar a escrever um poema. Escrever um poema pode ser, entre tantas outras coisas, responder a uma questão que na maioria das vezes não está tão claramente formulada, mas que intenta dar conta desse amontoado que é estar viva. Por isso pra mim responder questões num poema é uma batalha, mais contra mim mesma do que contra o que eu percebo como resto. Uma batalha contra a minha impossibilidade/incapacidade/inabilidade de viver sem escrever e, principalmente, contra o que eu escondo vivendo que se revela na escrita. Escrever um poema é revelar, tentando esconder, tanto o que eu não consigo responder quanto o que eu nem sei que está posto como pergunta. A criação de um poema representa, então, no meio desse sofrimento, a prova de que estou em operação por causa de e apesar de tudo o que acontece e existe. Justamente por isso, um poema não representa nada na minha vida, mas seja a própria vida escapando e se transformando em escrita, uma matéria impalpável. Talvez por estar tão profundamente afetada pela vontade de escrever poemas, tento enxergar poema em todas as outras formas de expressão artística e não sei bem quais são os limites entre essas materializações ou não quero dar atenção a eles. Música, cinema, ímã de geladeira, picho no muro: os gatilhos pra escrita são infinitos. No fundo parece ser uma questão de tradução, me relaciono com essas diversas formas e fico querendo traduzi-las para poemas porque eu acho que é isso o que eu sei fazer ou é isso, escrever poema, o que eu quero saber fazer.

 

LAÍS ARARUNA DE AQUINO | Sobre a minha criação poética, eu poderia começar por dizer o que disse Clyfford Still a respeito de seus quadros: “Quando eu exponho uma pintura, eu gostaria que dissesse: aqui estou eu: esta é minha presença, meus sentimentos, eu mesmo”. Assim, a criação (como objeto) viria a ser um prolongamento do artista ou, no caso, do poeta, no mundo e responderia a uma necessidade de exposição, de auto-expressão. Aliás, foi Mark Rothko quem afirmou que há uma “necessidade biológica de se exprimir”. De modo que a criação (como um fazer) corresponderia a essa necessidade.

Noutras palavras, a criação viria desde uma necessidade, como tal, geral, mas desaguaria em algo muito particular, em formas pessoais do estar-no-mundo, marcadas pelo espaço de experiência do sujeito que escreve, mas em um horizonte tão amplo quanto suas expectativas.

Nos meus primeiros poemas, sinto que havia, de fato, uma vontade de reabilitar uma forma única de vida: profundamente individual – como as coisas e os lugares aparecem para o eu que escreve ou são por ele inventariados – e, ao mesmo tempo, demasiadamente humana, uma vez que todo e cada sujeito possui a sua geografia afetiva.

Nos meus poemas mais recentes, vejo que essa ideia a respeito da criação sofreu alguma mudança. É dizer, não se trata – tão-somente – de conferir às experiências recorridas – espaços, vivências, diálogos etc. – um sopro poético. Senão de desentranhar espaços da língua em que o eu do sujeito não teria tanta proeminência, mas questões mais abstratas, talvez, universais, como questões metalinguísticas, metafísicas etc.

Isto, para dizer que a própria ideia de criação, tal como todas as demais ideias, está sujeita a variações profundas, desde que o homem, como vejo, não coincide jamais consigo mesmo. Está sempre por vir, em travessia. De modo que tudo que o toca também sucumbe nesse fluir.

A propósito, Wislawa, em “Alguns gostam de poesia”, pergunta-se o que esta é e conclui: “Pois eu não sei e não sei e me agarro a isso/ como a uma tábua de salvação”. Fazendo um paralelo, eu diria que não sei o que a criação representa na minha vida, a não ser como necessidade, e, no entanto, é nela mesma que me agarro para me ter acima das necessidades da vida. Algo pressuposto pelo agir do homem, algo que corresponde à liberdade para iniciar algo novo, cujo resultado é imprevisível.

Não sei se estaria correto equiparar a criação com o agir, uma vez que aquela se assemelharia mais a um fazer, uma vez que deixa um objeto perdurável no mundo. No entanto, ao menos como vejo, diferentemente dos processos ordinários do fazer, não há, ao menos literalmente, molde prévio e garantia de resultado. De modo que criar é também, de certa forma, um agir livre e, pois, imprevisível.

A liberdade que a criação pressupõe, diferentemente, no entanto, é uma liberdade quanto à língua. E. T. A. Hoffman afirmou que a música começa quando se interrompe a fala. Eu diria, com Agamben, que a poesia começa quando a língua se suspende e pode contemplar a si mesma. Nisto, a língua se livra momentaneamente de seu uso comunicativo e presta-se ao dizer poético.

É a língua como expressão de um estranhamento em relação a si mesma que é a matéria da poesia e nisto ela se distingue das demais expressões artísticas. Uma vez que a pintura tem, por matéria, a cor; a escultura, a matéria mesma, seja qual for a sua forma; a fotografia, a imagem etc.

Tudo somado, poderia concluir dizendo que a poesia é essa potência da língua que se vira sobre si mesma e pode se estranhar e, quem sabe, resultar em verdadeira criação artística.

 

LAÍS PAIVA | Um poema é pra mim uma brincadeira. Reúno as palavras e me divirto com o ritmo que surge quando as leio em voz alta. Gosto da prática de escrever e declamar em seguida, assim porque às vezes o poema surge mentiroso e mascarado e na declamação ele se revela falso, então descarto ou o espremo até que diga a que veio e o que o fez se manifestar através de mim. Outros vêm urgentes. Emergência de escrever pra irromper o vazio, rasgar o corpo oco. Poema-revide, desobediente, quando o silêncio vibra como conivência, o poema é um grito necessário. Às vezes feitiço, rito de palavrear, consciente da magia do verbo. O poema é feito da matéria de nosso próprio corpo: a voz e a palavra. Como aranhas tecedeiras, criamos nossos poemas como desmembramentos de nós. Ainda que para registrá-los no Grande Tempo nos utilizemos de mediadores, ele mantém a qualidade de ser feito da matéria viva do acontecer humano, e caso esses recursos desaparecessem agora, um corpo habitado pela linguagem ainda seria capaz de poemar. Nisso, sinto que o poema conflui com a arte da performance: o corpo da palavra como ferramenta, sendo o próprio corpo da palavra o corpo humano em seu devir. Falamos e na sutileza de um ritmo orquestrado, surge a poesia. Além disso, a poesia é uma arte muito mais democratizada, pois não te restringe pelo material, um papel e uma caneta, ou você mesmo num repente de freestyle (ainda que possamos falar das questões que envolvem as publicações impressas e os espaços de exposição e de contato com a literatura).

Pensando no aspecto estético do poema, sua métrica, ritmo, seu corpo, há uma potência de criar imagens multissensoriais típicas do poema e que as outras modalidades artísticas têm dificuldade em abarcar. Há imagens que só são possíveis na amplitude do devaneio de um poema, poemas de palavras imaginárias, recombinações fonéticas, caminhos inúmeros que não se esgotam em nenhum dialeto.

 

LEONARDO CHAGAS | Quando escrevo, é como se tivessem soltado as rédeas de uma carruagem de lobos-guarás famélicos. Corremos todos desordenados rumo ao local que a fome nos encaminha. O ato de escrever é em si a força da poesia. Quando retiramos do nosso dia o tempo para escrever poesia, estamos mudando a vida. Transformando a realidade. Inutilizando o nosso tempo. Como é bom ser inútil. Como precisamos ser inúteis e improdutivos. Poesia pra mim é combater as expectativas. Vomitar a ansiedade.

 

LEONARDO CHIODA | Talvez seja impossível o poema de outra forma que não um ponto cintilante em meio ao breu e às brenhas do mundo, o ouro que alumia as coisas. É essa arquitetura que assume o peso de tudo e, ainda assim, brilha.

E talvez seja o poema esse rudimento da palavra que se sobrepõe a qualquer instância da expressão humana, secretamente. Que se alimenta do desdém, do silêncio em volta. Ainda que íngreme o ofício, como o poço que se desce para ver a luz no fundo, escrever vai sendo a condensação da vida e da morte em número auspicioso de palavras. Um filme, uma cena, um relance, um retrato que acende o leitor. E nesse ato, o todo.

O poema é o ouro da escrita. A subida escarpada do trajeto.

 

LETÍCIA LEAL | Criar um poema é como descrever um rosto que se apresenta em meio à névoa; não descrever simplesmente como mostrá-lo objetivamente a outros que não o estão vendo por vezes de distração, visto que está ali, e de forma que o vejam e entendam que também o conhecem, e lembrem com o espírito de seu nome inefável. Nenhum outro processo criativo me ocorre de forma tão paradoxalmente impessoal e desnudante.

 

LUCAS PERITO | Não considero a criação poética como algo divino. Acho que há muito de um componente anímico não em um sentido “sobrenatural”, mas sim no sentido de algo que se forma dentro do muito que me concerne, seja isso algo dentro da minha história e que se mescla com aquilo que estou em contato no presente, como um livro que estou lendo, uma música, um comentário que escutei, algo que senti etc. Acredito, sim, que a criação passa por certo adubo mental, pois, para mim, ela não vem sempre espontaneamente, é necessário que se traga as “musas” para perto, para que aquela ideia que faz parte do que há de mais profundo em mim se torne algum tipo de criação. Gosto de dizer que a criação poética, no meu caso, nunca vem de ocasião e sim, surge como um espelho em que descubro o “verdadeiro” sentido, enquanto o poema vai se formando, e percebo nesse reflexo algo de um dos ideais que sempre estão entre as minhas inquietações. Sendo mais claro, é um trabalho inverso, poucas (pouquíssimas!) vezes escrevo um poema em cima de uma ideia pré-concebida. O normal é um poema que se escreve e dele percebo a ideia contida ali.

Sobre a segunda parte da pergunta, acredito que a poesia, como criação artística, está mais próxima das artes plásticas, da dança e da música, pois tem como componente na criação a intuição, que não é simplesmente um “lance de gênio” ou uma “escrita automática” e sim algo que surge espontaneamente como continuação de um gesto (mental ou físico), sem ter sido calculado e pensado previamente, como ocorre no caso de uma tomada em uma filmagem, a criação matemática na arquitetura ou uma frase que dá continuidade em uma “trama” de um romance.

O que difere, talvez, a criação de um poema em relação às outras artes é o fato de ser uma vertente artística que, principalmente no século XXI, se intensificou no sentido de ter pouco (nenhum) valor de uso. Em uma sociedade cada vez mais automatizada, a poesia se mantém viva, sendo, simultaneamente, anacrônica e diacrônica.

 

LUCAS ROLIM | O fim de um ciclo. Ou de uma batalha, na maioria das vezes, que demora e demora e custa as forças de todo o corpo. Cada imagem, cada verso, o que dizem e como o dizem – a arquitetura do poema é um jogo de muitos pontos, retas e planos, de forma que tudo precisa achar o seu lugar no corpo. Criar um poema é, portanto, encontrar novas habitações em outros espaços, subverter os caminhos para achar novos caminhos. O poema é libertação. Ou o prenúncio dela. E ainda assim, o que realmente me intriga na poesia é que apesar de ser uma arte que exija menos recursos – recursos no sentido de instrumentos, ferramentas, maquinário – em relação às demais artes, ela me parece vir de forma mais penosa, exigir mais de quem a pratica e está fatalmente sozinho diante de todo o universo imaginativo.

 

LUÍS PERDIZ | Navegar pela Poesia é aceitar o desconhecido da Vida e amá-la como força universal, misteriosa. Pensando em sua manifestação textual e na minha existência na terra, encontro possibilidades de aventura, de autoconhecimento e diálogo com meus contemporâneos. As outras formas de expressão artística me trazem sensações e revelações semelhantes, mas mais num sentido de mergulho do que de criação.

 

MARCELO SILVA | Penso que o poema, parafraseando Vicente Huidobro, é um atentado, porém não celeste, mas do cotidiano, vindo do concreto para atingir a outra borda, para transbordar mesmo. O poema (des)domestica, com a licença do neologismo improvável, a linguagem, a palavra, desenraiza ela da função utilitária do mundo como está organizado. É um animal selvagem no mundo o poema.

O poema é visual também, é sonoro, absolutamente musical e não é, é performance, é imagem. Ele dialoga com toda expressão porque é do estar no mundo que retira também sua existência, criação. Mesmo quando o leio silenciosamente, sozinho num canto da casa, ele tem uma voz e eu posso ouvi-la, posso vê-la. O poema é um ato, uma entidade.

 

MÁRCIO SIMÕES | Pergunta espinhosa, pois aponta para o que devemos calar, para o indizível. Para o mistério da criação, de que os poemas são manifestações textuais (físicas e fônicas). Espinhosa também pelo que a criação artística e ainda mais especialmente poemas (objetos que se recusam a ser vendáveis) têm de “inútil” para o senso comum hodierno; ou de nada mais que joguinhos com palavras. Entre outras coisas, a criação artística representa uma forma eficaz (e bastante específica) de lidar com o mundo fora e dentro de mim. De encontrar um espaço e uma compreensão pessoal das coisas, mais livre das coerções e distorções sociais. E justamente uma maneira de se contrapor a uma visão utilitarista e reducionista da existência, participando na criação de algo diferente disso. O poema se comunica e pode absorver técnicas e métodos de qualquer outra expressão artística, seja o teatro, a música, as artes visuais, a arquitetura etc.; e essas também podem incitar naquele que as frui as energias, ideias e percepções necessárias à criação linguística. Mas não apenas o que se possa considerar “artístico” influi no poema; de preferência, absolutamente tudo na existência de um poeta deve influir no poema.

 

MARINA BASÍLIO | Criar um poema para mim não é exatamente uma representação, funciona mais como uma maneira de completude. O que em outra forma literária eu dificilmente descobriria sobre mim ou sobre a humanidade eu resgato na poesia, em seus avessos e rupturas. Versar é em mim uma espécie de transgressão e dualidade, quando adentro diferentes significados da palavra e dos momentos históricos em que estamos e fomos inseridos com os séculos.

Escrever prosa é um certo avesso dessa proposta. Sinto que quando escrevo prosa procuro mais refletir o que possuímos (ou imaginamos possuir) de conhecimento ou de experiências pessoal e coletiva, transmitindo em novos adendos que emolduram representações mais basilares, ao chão do raciocínio.

Mas penso que ambas, prosa e poesia, são extremamente necessárias ao nosso descobrimento interior e exterior, inclusive, em diálogo – como quando lemos formas mais aproximadas, como a nominada prosa poética.

Portanto, a criação, seja de prosa ou poesia, é o que me estabelece no que posso entender como minha alma, minha história na lida em que vivo.

Essencial, por não o ser.

 


MARIANA IANELLI | Para dizer da maneira mais honesta e sem grandes elaborações, um poema representa para mim tempo transfigurado, tempo não desperdiçado. Tudo pode alimentar esse poema, e aí incluo, além da vida, as outras artes (sobretudo as visuais).

 

MARIAYNE NANA | Os poemas são faces avulsas do mistério – crepitam como fogo por alguns instantes – e retornam sem o vestígio das mãos para dentro da noite de onde foram retirados. Iluminação fugidia: gosto de conservar neles uma pontualidade parecida com aquela que as estrelas fazem no escuro…

Eles continuamente revelam para mim a importância de significar autenticamente a vida a partir dos pequenos fragmentos de mistério (alma) que se deixam entrever. Um poema afirma a potência da observação, registro, cuidado e recriação de tudo que é abstrato, ele materializa o campo das emoções. Valorizo muito esse processo e hoje vejo que não é possível fazê-lo sem arte, de modo que essas duas instâncias, arte e vida, acabam se desterritorializando para fundar novos caminhos.

Geralmente gosto de elaborar os poemas como esculturas: vou talhando as palavras, sempre limpando as saturações de sentido (emoções), até que sua forma final se estabeleça da maneira mais mínima, contundente, íntegra e intensa possível. Também observo quase sempre a plasticidade das imagens criadas. Acredito que elas emitam, na verdade, a própria plasticidade dos afetos que a fundamentam. E, por fim, tangencio a musicalidade intrínseca ao poema, por meio da qual posso intuir aspectos como vibração, altura e correspondência sonora entre as percepções que me perpassam.

 

NIL KREMER | Penso que o poema está em tudo, portanto se manifesta em todas as linguagens artísticas, ou todas as linguagens o manifestam. A criação de um poema é um respiro, o pulsar no compasso que me apetece.

 

NINA RIZZI | A poesia está no centro de meus interesses, sejam meus próprios poemas, ou poemas que traduzo, levo pros laboratórios de escrita, leio nos saraus ou no silêncio de casa. A poema (sim, no transgressor e subverso feminino) é tudo: a flor sobre o corte profundo e o petardo na sala de jantar.

Amo todas as artes, adoraria fazer de tudo mais: mais música, mais artes visuais, mais teatro… mas é na palavra que está meu ABRACADABRA, a palavra é minha força.

 

NUNO GONÇALVES | A poesia é o túnel depois da luz. Criar poemas ou ser criado por eles é adentrar os subterrâneos, escavar a terra, remover os entulhos, burlar as fronteiras. Esses túneis se conectam a outros túneis e nos levam a uma autêntica aventura no reino do escuro. Tudo o que vivemos tudo o que pensamos tudo o que sentimos vai se sedimentando à revelia de nossa razão e termina por regressar à flor da pele: seja na forma de larva causando erupções geológicas ou na forma da possessão em que somos transformados em cavalos ou na forma de uma tempestade tão intensa que parece até que não seremos capazes de sobreviver à sua passagem. Existem pessoas que lidam com isso utilizando outros materiais que não a palavra e se tornam fotógrafos, artistas plásticos, pintores, cineastas etc. No meu caso, a escrita se impôs irremediavelmente enquanto meio e forma capazes de dar conta deste processo. Certa feita escrevi um poema que tentava se aproximar de alguma definição disso que você me pergunta e gostaria de concluir com ele:

 

BOULEVARD – BELLE ÉPOQUE

 

todo cambia – o inferno tem muitas faces

a poesia é uma broca de diamante perfurando

as camadas as camadas as camadas

entre a realidade e a realidade

 

todo cambia – infinitos são os sabores contidos numa só lágrima

a poesia é uma broca de diamante perfurando as espessas

camadas espessas camadas espessas camadas

entre a realidade e a realidade

 

todo cambia – a poesia é o túnel estreito e labiríntico que se segue à avenida iluminada.

 

PATRÍCIA CLAUDINE HOFFMANN | Como disse Roger Garaudy, o objetivo das artes é o de desenvolver o amor e a aptidão para a criatividade de expressão pessoal. A criação de um poema, penso, se parece muito com um ato de amor, ato de entrega absoluta, de cristalização da substância invisível, a qual chamamos de poesia. Poesia que está em todas as formas de expressão artística e está na natureza, e ainda que, por sua vez, quando se verte e se converte na palavra, nos filtra de fé a alma, num convívio interior preparatório, até que brotem as palavras, e de um mutirão delas, então, a poesia ganhe forma, numa metamorfose que é ponte para o poema. Escrever um poema me parece também como atirar-se num precipício, sem nenhum medo do que não virá. Tudo na criação, a meu ver, passa a ser simples se há entrega. Se acharmos o ponto de saltar. E essa procura é o que faz todo o sentido. É o que salva. Isso me fez lembrar agora o poeta Octavio Paz quando diz que a “poesia é salvação, poder, abandono…”

O fato é que antes de escrever qualquer poema, sem nem mesmo saber que um dia eu o faria, a poesia entrou-me pela tez da música e pelo corpo do desenho. Tão importante para mim se fez esse convívio com a poesia, assim, nesse estado de não-palavra, num profundo diálogo com a imagem, com os traços, sons e cores. O que não era música era cor, mas não era palavra ainda, e os sentidos sempre surgiam da observação voltada para o lado de dentro das coisas, dos acontecimentos… como tem sido até hoje. Naquele tempo – da infância à adolescência – o olhar reproduzia em traços e cores o que via e sentia, e essas cores sempre me sopraram como seres, indivíduos, cada uma com suas particularidades. Assim como as notas musicais, mais sentidas do que efetivamente estudadas por mim. Isso é quando a poesia passa a tomar conta de tudo, a dissecar com a alma. E cada coisa deixa de ser “coisa” e se personifica, vai ganhando ânimo através do olhar, um olhar que já não perdoa sem o consentimento de alguma beleza. E que já não escolhe sozinho. Assim fui apresentada à poesia, pelas mãos da música e do desenho, e acredito que, através desses dois, dessas conexões, passei a fazer uma espécie de exercícios de abstração, que me foram e são fundamentais para a recepção da poesia e, simultaneamente, para a concepção de poemas. Criar um poema representa em minha vida, além de um ato de amor, ter as mãos sempre melhoradas de vazio. E constantemente tem sido. De outro modo não se faria.

 

PEDRO BLANCO | Diversão. Poderia estar aqui evocando o dicionário dos clichês, mas é isso. Na vira-lata papo torto. Quando as crianças que me educam me perguntam: “Pedro, qual tua brincadeira preferida?”, respondo: poesia. Poesia é como significo o mundo, percebi faz pouco que nunca soube me separar dela, é minha primeira e quinta marchas, estacionado ou descendo a ladeira da preguiça na banguela. E se ela é meu ponto de partida para o próximo passo faz sentido se não for divertido? De tristeza o mundo tá cheio.

Para mim, o que difere o poema das outras formas de arte é a praticidade e a acessibilidade. Qualquer um pode fazer um poema, quem tem papel e caneta na mão, quem é doutor ou analfabeto, quem solta a voz ou solta a libras. Poesia é pra todos. Axé!

 

PEDRO DZIEDZINSKI | Levo o processo do poema como uma atividade simples. As coisas em minha vida têm acontecido tal um Exercício, fora de controle e sem qualquer pretensão se não a do experimento. É o mesmo para o texto. Ponho para fora o bruto e trabalho nele até a exaustão que não costuma tardar. Releio algumas vezes ao longo do dia e acabo esquecendo – e assim com os próximos, como aconteceu aos últimos. Escrevo sempre um de cada vez. Não tenho fôlego para mais do que isso.

 

ROBERTA TOSTES DANIEL | Um poema, a meu ver, é um instrumento potente, dono de uma funcionalidade diversa, fora da concepção utilitária acerca dos objetos do mundo. Ele parece coexistir na multiplicidade de interfaces e dimensões do ser e da natureza. Não o sacralizo, mas sei que ele se articula de forma originária com aquilo que o precede e sustenta, sei que ele dinamiza todo um estado de coisas, e que seu ponto é a ebulição. O poema carrega uma matéria capaz de ressonâncias que tendem a operar para além da discursividade, e que só a linguagem e a percepção cotidianas talvez não abarquem. Como se ele fosse, a priori, a própria metamorfose, com suas injunções e disjunções e essa fosse a propriedade máxima de um poema, a despeito de suas qualidades estéticas e de sua literariedade. Nesse sentido, é uma aposta alta na poesia, como aquilo que dá à existência um espelho partido, mas o melhor espelho, em que se adentra e do qual se sai cheio de cortes e profundidades. No sentido espinosista, vejo o poema como um plano de imanência que almeja interferir diretamente na realidade, pleno de atributos, de meios, capacidades infindas de variar, produzir, se relacionar. A criação de um poema, sendo o poema o que descrevo, almejaria a quebra da representação e a entrada no silêncio, na transparência e na turbidez da vida. O fato de ele habitar outras formas de expressão artística parece quase circunstancial, já que tais formas são, antes de mais nada, tensões da linguagem, rasgos na inteligibilidade ou na ordem operante, assim como um “golpe de asa” em Sá-Carneiro; o torvelinho das visões e das estrelas de Van Gogh; um lobo uivando para a lua; qualquer música que, intensamente abstrata e codificada, melhor comunica o universal, com suas fronteiras tão aquilatáveis. Em suma, sem as demais artes, o poema seria sim uma cópia malfeita da realidade. Sem a poesia, em contrapartida, não há como acender o gesto a partir do qual os sentidos se expandem.

 

RODRIGO BARBOSA | A criação de um poema para mim representa a materialização artística da inquietação, da insatisfação, do estranhamento e da incapacidade de adaptação ao mundo comum, assim como é também a materialização do desejo de dar voz a pensamentos e sentimentos que não têm suficiente espaço nos discursos “normais” do nosso cotidiano. Então, por que não há normas, programas ou planos que satisfaçam minha alma, escrevo como estratégia de fuga da vivência ordinária, ao mesmo tempo porque isso proporciona um discurso demarcador das minhas “zonas autônomas” – possibilidades de transformação da realidade ao meu entorno. Portanto, o poema é a materialização do estado poético que sinto ferver e borbulhar dentro de mim, e que urge emergir.

A realização do poema finaliza sempre com o trabalho manual da escrita, claro. Umas vezes exigindo certo apuro artesanal, outras surgindo no momento mesmo do pensamento, sem a necessidade de nada mais do que o que ali está, pois já nasce pronto. Há ocasiões em que surge para mim como ritmos que se impõem e que autonomamente sugerem as palavras, permitindo que a sonoridade seja portadora de significados profundos. Outros momentos, surge como expressão plástica de um pensamento, um sentimento, uma contemplação – ora apresentados como mosaicos ou colagens, ora como desenhos oníricos.

 

SAMANTHA ABREU | A criação de um poema me parece um inauguramento de linguagem, um modo único e intensamente subjetivo de me colocar em relação com o que a vida e o mundo representam. É como se eu, por meio da construção poética, conseguisse inventar um jeito novo de (sobre)viver e de me expressar; é como se criar um poema me permitisse inventar um mundo, inventar uma cura, um antídoto; é ter uma experiência que nem sempre o corpo vive, mas a sensação poética permite entender.

E eu percebo a criação de um poema sempre por meio de imagens. Minha construção linguística é muito imagética. Eu sempre peço na representação até que a poesia vá me dando palavras e me indicando a forma do poema. Neste sentido, me sinto muito próxima de outras artes que desenvolvem uma linguagem a partir de imagens. E reproduzem na arte o que as imagens indicam, materializando uma experiência e um fato poético.

 

THIAGO PONCE DE MORAES | O ato de criação poética para mim se irmana ao ato de respiração. Na obviedade da própria afirmação: ambos são atos que legam a vida, que viabilizam a vida. Se sigo a esteira da tradição do pensamento ocidental, percebo que o que gesta a luz, originalmente, é o verbo: o imperativo da voz, um sopro contra o escuro, e então a vida se abre pela primeira vez – a luz é feita; há.

No entanto, é ainda mais evidente nos darmos conta de que a respiração é aquilo que nos ancora à vida. E, sendo a poesia uma forma de vida ela mesma, não haveria como apartá-la da respiração. O ato de criação poética, pois, visa à manutenção da respiração da linguagem (ao interrompê-la, corrompê-la, falseá-la) – e por isso também visa à manutenção da própria possibilidade de vida, de haver outros modos de vida, na, com e a partir da linguagem.

Estendo a pergunta e passo do ato de criação para a coisa criada: o poema. Isso para dizer também: a respiração antecede a linguagem, antecede a própria possibilidade de voz. Eis o lugar da poesia: gênese à deriva, um estar a caminho, sem fim. O mesmo é dizer: estar no âmbito da linguagem (sobre a qual não há qualquer possibilidade de controle, sobre a qual não há qualquer possibilidade de decisão – características agravadas pelo poema, aliás).

É claro que a presente resposta é entregue como síntese de uma elaboração que não caberia nessas poucas linhas, podendo algumas conclusões soar excessivamente apressadas. No entanto, ouso avançar um pouco mais com breves comentários sobre essa relação entre poesia e respiração – que não é, diga-se de passagem, uma aproximação nova, senão desdobramento de uma afirmação do poeta romeno Paul Celan, no discurso O Meridiano: “Poesia: é qualquer coisa que pode significar uma mudança na respiração”.

O verso, para aportar em um parâmetro mais específico, é índice da impropriedade da poesia diante e dentro da linguagem em que o poema nasce. O poeta encontra, com as palavras que usamos cotidianamente, outras maneiras de encadear suas sonoridades, seus ruídos, suas faltas e falhas, suas dissonâncias. O poeta opera a linguagem e escreve o poema ciente de que todo som precede o sentido que o poema apresenta. Isso é dizer: o verso busca uma prosódia própria que é imprópria ao discurso cotidiano. Um novo fôlego, uma nova respiração.

Há um andamento próprio no ato de escrever poesia, como há também um ritmo para se manter vivo. O verso busca uma respiração, a sua respiração; e, ao seu fim, a leitura se encontra no precipício da página em branco: a “pausa que abre a cadência”, conforme as palavras de Jean-Luc Nancy – cesura, pois, interrupção: “a mão do baterista levantada longe da caixa clara, o arco de repente retido sobre a corda, a possibilidade da música”.

De maneira análoga às palavras e às coisas, a respiração também se delimita como tal na sua suspensão – ela existe quando é interrompida. Assim o poema atravessa a linguagem, atravessa a leitura: revelando o balbucio do pensamento e das imagens, a gagueira da forma, a precariedade de qualquer comunicação. E, por ser fruto do risco, por viver o risco e instar o risco de estar frente ao abismo da linguagem e do sentido, a poesia só pode ser senão um sobressalto, uma mudança na respiração daquele que a escreve, daquele que a lê.

Vida. Dizer a plenos pulmões aquilo que escapa e o poema dita: “pneuma, anima, animus, spiritus, Geist, em cada caso, trata-se sempre de ‘respiração’, ‘sopro’, ‘suspiro’” (Camilo Penna). Fôlego, hálito – alma. Sendo, portanto, aquilo que em seu ditar o poema move; aquilo que o poema promove. O mais primordial e o mais humano ritmo: a respiração. “Respirar, invisível dom: poesia! / Permutação entre o espaço infinito/ e o ser. Pura harmonia! Onde em ritmos me habito” (Rainer Maria Rilke).

Para responder muito brevemente à segunda parte da pergunta: vejo a poesia mais próxima às artes visuais e à música, por seu caráter extremamente plástico e sonoro, que à literatura, de que se assemelha, primordialmente, por ser uma obra feita de palavras.

 

TITO LEITE | A criação de um poema é a transcendência, em palavras, de todo o poder subversivo que emana dos sonhos e pesadelos. É a possibilidade de transfigurar a realidade e tornar mágico o dia, mesmo quando o amanhecer é pedra bruta. Para mim, a criação de um poema é a melhor maneira de surrar o real e aludir a uma existência rica em significados. No entanto, a criação de um poema não se reduz apenas aos elementos políticos e de rebeldia contra todo sistema que mata. É também canto do sagrado. Lembrando a última fase do pensador Martin Heidegger, viver autenticamente é viver poeticamente e viver poeticamente é se relacionar com os deuses. Nessa direção, a poesia é uma ponte entre os homens e os deuses, como acreditava Hölderlin. A criação poética é sempre multiplicadora e relaciona-se com outras manifestações artísticas, como por exemplo: o cinema. Lembro-me de que Manoel de Barros uma vez falou que Federico Fellini era o poeta das imagens. Recentemente, conhecemos Paterson, um filme repleto de metalinguagem em que o personagem é um jovem poeta entusiasta da obra de William Carlos Williams. Além do cinema, na música existem muitos artistas que trabalham com a poesia, e podemos perceber neles um grande domínio do verso. É o caso dos músicos Belchior, Caetano Veloso, Chico Buarque, e do Clube da Esquina. Sou apaixonado pela escultura São Pedro Arrependido feita pelo monge beneditino Frei Agostinho da Piedade. Sempre vejo tanta poesia naquela imagem que pergunto: como aquelas veias, aquela musculatura e aquele rosto revelam toda uma visão de mundo de um apóstolo perdido, em busca de redenção?

É assim o meu mundo. É assim que me relaciono com a poesia. É assim que enxergo qualquer forma de expressão artística.

 

VICTOR H AZEVEDO | Primeiro: não acredito na criação do poema. Criação no sentido de conceber, trazer a existência, esse sentido quase divino que certos poetas atribuem ao que é poesia. Esse é ainda um pensamento embrionário na minha cabeça, mas acredito que para se criar um poema, nesse sentido, seria preciso utilizar-se de uma linguagem completamente nova, usar de um idioma imaginário, com um alfabeto inédito, sem antecedentes com a realidade, porque o poema não se cria, se constrói. Não gosto do retrato de deidade que alguns atribuem ao poeta, retrato mais preciso seria o de uma criança que brinca de pedreiro.

Por conta disso a construção de um poema, em minha vida, é como colecionar carcaça de memórias (vivências, revivências, tumores, cicatrizes, ruínas…) e as erguer em vaga-lumes.

 

VINÍCIUS LIMA | A criação de um poema é um adentrar no mundo selvagem. Para isso faz-se necessário sair da trilha, da rota, do compasso da urbe e seu museu de sucatas. O poeta deve plantar seus pés e mãos no barro e fazer da argila sua morada. É o que busco na poesia. Um frêmito ao roçar uma planta com o braço. Um arrepio ao cruzar com o vulto da cascavel imóvel como galho seco. A poesia me reaproximou da terra. Fez-me cruzar a fronteira que separa o pasto da floresta. Curou minha fome ao inocular o pólen indígena nas veias ressecadas que percorrem meu corpo. O poema é uma árvore que mergulha em direção ao núcleo rochoso da Terra e se nutre de escuridão e fogo. Realizar um poema é molhar os pés em um rio caudaloso e violento até atingir o transe. Para isso o poeta deve estar aberto ao mundo e todas as expressões artísticas. Deve ser atravessado por todas as artes, como os raios de sol atravessam uma abelha que sobrevoa a chuva. Como um jaguar impregnado de sons e cheiros de tudo que o rodeia. Marcado por todas as coisas do mundo.

 

VIVIAN CAMPOS | O poema está em todas as coisas. Em todo momento no qual se permite observá-lo, ainda que seja na memória. É cor, cheiro, toque e fúria. É viés para dar, receber, perpetuar e esquecer. Através dele digo e através dele me calo. O poema e o mundo são inseparáveis. O poema é também complementar a todo tipo de arte. Ele mora no corpo, na tela, no muro, nas ondas sonoras e, eventualmente, acaba escrito.

 

WILSON ALVES-BEZERRA | O poema é portátil, cabe num papelzinho ou na tela do celular. Ele pode ser dito, sussurrado, cantado ou gritado. Isso confere ao gênero um enorme potencial. Assim, o poema é um recurso ao qual recorrer. Há poemas que nos socorrem na nossa fome de outra coisa. Ocasionalmente, posso também eu mesmo cometer poemas – translinguísticos, surrealistas, eróticos, políticos. Aí está: os poemas podem ser cometidos, não um romance, não um filme, não um documentário, não um quadro, não uma ópera. O repente cabe no poema, mesmo que ele leve dias ou anos para ser concluído. Um poema pode ser inspirado, um romance não. Poemas são subversivos – na linguagem, no sentido, no significante: os poemas podem ter a mostrar ou dizer e há um potencial de catarata nisso. Sempre que eu posso chegar a um poema – meu ou alheio – é uma espécie de inquietação, de tremor, de emoção profunda, por haver tocado algo, dito algo, feito imagem. Somos mais humanos porque há poesia.

 

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Número 173 | junho de 2021

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