que lhe fez abrir caminho: o irrespeito
1. Preâmbulo
Ultimamente,
devido a circunstâncias precisas que o desenvolvimento das análises históricas e
sociológicas tornou compreensíveis, novos olhares têm sido lançados sobre as antigas
nações índias e o denominado Oeste bravio.
Tem existido mesmo uma clara vontade de compreensão por parte de sectores frequentemente
muito afastados do que foram e do que representaram, no seu tempo e no seu espaço
próprios, figuras no entanto tão divulgadas como Tecumseh, Sitting-Bull, Geronimo
ou Quanah Parker. Multiplicam-se, nos Estados-Unidos mas também fora deles, os estudos
e os ensaios sobre este e aquele aspecto da vida dos americanos autóctones, os tais
que durante muito tempo foram estrangeiros no seu imenso país e que hoje, acantonados
em reservas, ainda são objecto de marginalização por parte de especialistas em malabarismos
sociais: se o ouro das Black Hills é hoje memória histórica e um pouco folclórica,
não o são seguramente – por exemplo – determinados empreendimentos turísticos e
residenciais no território Lakota, bem como a exploração petrolífera e mineira nas
terras dos Navajos que sobraram.
Passam agora 365 anos sobre o envio, ao rei Afonso de Portugal, da “Carta sobre a condição dos índios do Brasil”,
do padre António Vieira; cinquenta, sobre a criação do “American Indian Mouvement”, entidade que contra ventos e marés tem procurado
defender os índios norte-americanos da espoliação e da calúnia; e vinte cinco sobre
o pedido de perdão, em nome do ocidente cristão agressor, endereçado aos Índios
pelo Papa Karol Woytila.
Pela permanência no tempo, da primeira; pela constância e firmeza, da segunda;
e pela sensatez (ou deveria dizer pela atitude melíflua?) da terceira – dedico a
estas três entidades a minha intervenção, agradecendo desde já aos presentes o facto
de terem vindo gastar um pouco do seu tempo nesta sessão. E, antes de continuar,
gostaria de deixar-vos um momento – à guisa de honesta reflexão – com as breves
palavras do chefe Lakota, dos oglalas, Luther Standing Bear, que nos diz numa tirada
digna de Jean Giono: “As vastas e abertas
planicies, as belas colinas e as águas que em meandros serpenteiam, não eram aos
nossos olhos, “selvagens”. Só o homem branco via a natureza como selvagem e para
ele a terra estava infestada de animais “selvagens” e de gentes “selvagens”. Para
nós ela era mansa, caritativa e nós sentíamo-nos rodeados pelas bênçãos do Grande
Mistério. Só se tornou para nós hostil com a chegada do homem peludo vindo do Leste,
o qual nos oprime, bem como às nossas famílias que tanto amamos, com injustiças
insanas e brutais. Foi quando os animais da floresta se puseram em fuga, à medida
que ele se aproximava, que para nós começou o Oeste Selvagem”.
Finalmente e uma vez que a etnografia dos índios norte-americanos é hoje
uma ciência puramente histórica, talvez faça sentido reter uma frase de Jean Jaurès
que reza:” Do passado, apoderemo-nos do fogo
e não das cinzas”.
2. Breve apresentação
do índio norte-americano e seu espaço específico
Mais ou menos
a partir de 1891, passado cerca de um ano sobre o massacre de Wounded Knee perpetrado
pelo exército americano sobre os sioux oglalas liderados pelo chefe Big Foot, começou
a falar-se em certos círculos de Leste sobre o “problema índio” remanescente. Alguns americanos mais sensíveis às condições
em que as outrora poderosas nações índias eram obrigadas a viver, as contínuas tentativas
de retirarem aos autóctones o resto dos territórios, transformados em reservas,
que ainda estavam na sua posse sem contudo na prática serem por eles controlados,
tinham despertado em alguns – escritores, publicistas ou simples particulares –
uma espécie de remorso misturado com uma boa dose de má consciência. A seu ver,
haveria um triste problema índio, que
consistiria em factos existentes a partir da tentativa de genocídio e no claro etnocídio
praticado contra a nação índia no seu todo. Esta denominação, nação índia, era sem
dúvida reflexo – atravessado por um certo humor negro involuntário, a despeito das
eventuais boas intenções – dos ecos que lhes chegavam, com meio século de atraso,
da aliança formada pelos cherokees, choctaws, seminoles, creeks e chikasaws e que
funcionou durante algum tempo, antes dos seus membros serem definitivamente enviados
para lá do Mississipi, como uma “nação doméstica”
no interior da outra.
Com diversas variantes, sulcado por diferentes contradições, este estado
de espírito tem-se mantido até aos nossos dias.
Num lúcido ensaio publicado no início dos anos setenta, o escritor francês
Claude Roy escreveu com a sua agudeza proverbial que, a seu ver, havia não um problema índio mas sim um problema branco, ou seja: um problema ocidental que através do tempo se
comunicara às etnias das diferentes latitudes. E isto porque, como o sublinhou noutro
texto o escritor de ascendência Lakota (Sioux) Vine Deloria, o que se passou com
os índios norte-americanos revela na perfeição o deficiente sistema societário engendrado
pelo homem ocidental, cuja mentalidade cúpida foi um facto infelizmente indesmentível,
ainda que camuflado sob o pretexto da evangelização ou da vontade de civilizar.
Estas opiniões são, parece-me, equilibradas e defensáveis. Contudo, é evidente
que existe na prática um problema índio,
assim como houve um claro choque de mentalidades resolvido de forma expeditiva pelos
que, chegados ao Novo Mundo, resolveram tomar conta de tudo como se os índios fizessem
apenas parte da paisagem ou das chamadas riquezas
naturais.
Choque de mentalidades, repare-se. Ou seja, choque conceptual – para além do choque físico que deu origem a conflitos
sangrentos, depredações e, finalmente, claro genocídio.
Mas antes de abordarmos a maneira de viver e conceber o mundo do Índio,
convirá termos uma ideia, ainda que algo sucinta e esquemática, sobre o universo
em que este se movia, além dum leve voo sobre eventos históricos.
Será de considerar, desde logo, que os colonos que a partir de 1628 iniciaram
de forma marcada a sistemática invasão dos territórios índios, a partir do posto
avançado de Charlestown, eram membros de seitas religiosas, nomeadamente da dos
puritanos, cuja existência nos seus países
de origem, devido a perseguições e marginalizações, se tornara problemática. Desapossados
dos seus haveres, chegados em petição de miséria, o que muito confrangia os índios,
transportavam consigo, contudo, um terrível vírus – hábitos, preconceitos e filosofias
de vida e ainda uma vontade sistemática de reconstruírem nessa América desejada
o que não tinham podido conservar na terra de origem. Em vez de aproveitarem a oportunidade
que se lhes deparava de erguerem um outro modo de viver, sem constrangimentos (como
muitos trappeurs franceses fizeram) reproduziram
os hábitos e os tiques comunitários do Velho Mundo que tão mal os estimara e aonde
os índios eram, naturalmente, corpos estranhos perfeitamente sem lugar a não ser
que renunciassem ao seu tradicional tipo de vida para se converterem aos usos e
costumes dos brancos, com sua soma de incongruências. Além do mais, como foi logo
percebido desde que Colombo pôs pé em terra, não era possível serem domesticados
e só muito poucos – e mesmo esses geralmente em desespero de causa – abraçavam a
religião que lhes chegava da Europa desconhecida. Assim, após terem-se dado conta
da irredutibilidade índia, os colonos introduziram de pronto em 1619, em Jamestown,
a escravatura negra. Quanto aos índios, que recusavam acerbamente os trabalhos forçados
– e tivera-se, meridionalmente, um bom exemplo com os pueblos, a contas com os espanhóis – a resposta era-lhes dada na ponta
das espingardas.
Uma das características com que deparamos ao contactarmos com a Nação Índia,
é a diversidade e complexidade desse mundo, num acervo poderoso e multifacetado
que chega a comover-nos dado que é mester apelar para a memória. Apesar de serem
relativamente poucos se atentarmos na imensidade do território que ocupavam – segundo
os estudos de ponta de Horst Hartmann, dois milhões e oitocentos mil no espaço que
vai da região sonoriana até ao território subártico – os índios estavam divididos
em cerca de seiscentas nações principais, subdivididas por sua vez em milhares de
tribos. Hoje tem-se como certo que teriam atravessado o Estreito de Bering em diversas
vagas constituídas por grupos de escassas centenas há cerca de vinte cinco mil anos,
multiplicando-se depois por todo o continente. Especialistas há que os classificam
por famílias linguísticas, nada menos que 21, além de 32 línguas isoladas que desafiam
a classificação em qualquer daquelas 21; outros, devido a problemas que não caberá
aqui invocar, mas que são efectivamente de considerar, preferem classificá-los por
nações (algonquinos, mississipianos, cadoanos, ute-aztecas, etc.) ou por regiões
específicas (pacífidas, centrálidas, sílvidas, márgidas…). Seja como for, assentemos
em que, tal como é dito por Frank Schoell, “os
índios que os colonos foram encontrar no século dezasseis e nos que se seguiram eram mais ou menos agricultores,
mais ou menos caçadores, mais ou menos pescadores consoante os diversos imperativos
do seu meio geográfico”. Podemos pois distribuí-los, de acordo com estes imperativos,
por cinco zonas relativamente distintas: a zona
do milho, da costa atlântica ao Mississipi e no sul entre o Mississipi e as
Montanhas Rochosas; a zona do bisonte,
norte e centro da região entre o Mississipi e as Montanhas Rochosas; a zona do caribu, norte do actual Minnesota,
Dakota setentrional e actual Canadá; a zona
das gramíneas, Califórnia, Nevada e parte oeste do Utah; e a zona do salmão, costas da Califórnia do norte,
do Oregon, de Washington e do Alasca. Cada conjunto de nações, divididas em tribos,
exprimia de maneira própria as concepções religiosas e mágicas – e de alguma maneira
filosóficas – formadas a partir de tipos de vida específicos; no entanto, havia
uma constante comum: o relacionamento muito profundo com a natureza, com as realidades
e os fenómenos que os rodeavam e aos quais emprestavam frequentemente significados
originais. Recordemos, a talhe de foice, a rica cosmogonia dos Denes e dos Delawares,
entre muitas outras possíveis. O imaginário do índio, manifestado em conceitos e
objectos artísticos que tocam o surreal, tinha muito a ver com aquilo que no ocidente,
principalmente a partir de meados do século dezoito, se convencionou chamar poesia.
Há – e chamo a vossa atenção para
este facto – dois períodos perfeitamente definidos na vida índia: o antes e o depois da chegada do homem branco. Com a colonização, além de tribos
inteiras terem sido exterminadas (chesapeaks, powhatans, tainos, mohicanos e outros,
tantos outros) outras alteraram radicalmente o seu way of life: por exemplo, a introdução do cavalo – que estranhamente
se extinguira no continente – efectuada pelos espanhóis, determinou a passagem da
vida sedentária para o nomadismo e semi-nomadismo, com o consequente estabelecimento
de novos territórios de caça e alianças precárias ou firmemente cimentadas, principalmente
dos chamados índios da pradaria (Plains):
lakotas (sioux) teton, oglalas e yanktonai, pawnees, cheyennes do norte e do sul,
kiowas apache, comanches, arapahos, apaches do norte, etc.
Convirá referir, igualmente, que a implantação europeia se deu através de
cinco nacionalidades: a implantação espanhola
(primeiro na Florida, depois avançando para o norte até à Carolina, Mississipi,
Oklahoma, Colorado, Novo México, Kansas; mais tarde, 1602-1603, até à costa da Califórnia);
a implantação francesa (curso do rio S.Lourenço,
depois até ao Canadá – Nova França); a implantação
holandesa (Delaware, Hudson, Long Island e ilha de Manhattan); a implantação sueca (estuário do Delaware,
Trenton e o cabo Henlopen); a implantação
inglesa (Virgínia, Massachussets, Rhode Island, etc.).
Há sensível diferença na forma como foram tratados os índios das diversas
zonas de influência, apesar de a partir da formação dos Estados-Unidos e da Constituição
de 1787 a palavra de ordem fosse retirar das mãos dos índios, mediante todos os
meios possíveis, a terra que habitavam, afastando-os paulatinamente para oeste –
o que descambaria no tristemente célebre conceito do destino manifesto, expressão cunhada pelo jornalista mercenário Horace
Greely com as consequências funestas que se adivinham. No espaço controlado pela
França e durante o tempo em que os “flentchi”,
nome pelo qual as tribos índias conheciam os franceses, foram o principal contacto
com os autóctones na extensão territorial à época denominada Louisiana, vasta zona
entre o Mississipi e as Montanhas Rochosas, para norte até ao Oregon e às regiões
meridionais do Canadá – Alberta e Colúmbia – depois vendida por tuta e meia (15
milhões de dólares…) em 1803, pelo empenhado Napoleão aos EUA, houve um clima de
boa vizinhança. Conforme escreve Herbert Wendt, “embora houvesse brigas e desentendimentos, o período francês foi, de modo
geral, intermezzo romântico na história da colonização da América, no seu todo rude
e sanguinário(…) Os caçadores franceses, desde o início, estabeleceram relações
de amizade com os índios. E eis que descobriram, maravilhados, que os homens descritos
nas crónicas espanholas e inglesas como sendo peles-vermelhas sanguinários, eram
na realidade homens hospitaleiros, comerciantes honestos e amigos fiéis. Os franceses
percorriam campos e florestas em companhia dos indígenas, sentavam-se com eles em
torno das fogueiras e, muitas vezes, tornavam-se índios. Muitos caçadores franceses
procuraram ser integrados como membros das tribos índias, dançavam as suas danças
guerreiras, usavam os seus mocassins, pintavam o rosto à maneira índia e casavam
com squaws. Os índios, por sua vez, como disse um dia um cacique chippewa, ‘com
os franceses sentimo-nos como se fôssemos uma só família’. A capacidade de adaptação
dos pioneiros franceses chegava, por exemplo, ao ponto do general Frontenac não
ter dúvidas em dançar em torno dos totens e das fogueiras usando o uniforme de gala
cheio de condecorações, o que muito encantava a assistência”.
Tal devia-se,
manifestamente, ao facto de os franceses possuírem maior abertura filosófica e social,
ao próprio carácter gaulês alegre e algo rabelaisiano – leiam-se as “Mémoires d’un
trappeur” do pinturesco Jean de Raimond , dito o “Cauda-de-Lontra” e ficará feita a verificação – e, por outro lado, ao
especial cuidado posto por estes no seu relacionamento com os autóctones, tendo
em vista os seus conflitos com a Inglaterra. No entanto, isso não os impediu de
atraiçoarem, faltando à palavra dada, os guerreiros hurons aquando do cerco de Detroit,
o que determinou uma inflexão decisiva na sua guerra com os iroqueses. Os índios,
aliás, não tinham papas na língua, quando se tratava de responder a quem tentava
arteiramente evangelizá-los. Certo dia, eis como alguns hurons responderam a um
missionário francês que procurava convertê-los:”Queres discutir connosco sobre a alma e, no entanto, nem sequer sabes como
capturar um castor!”.
A dominação espanhola e inglesa assumiu foros de maior crueldade e violência
não só porque os seus interesses eram mais agudos (num caso a febre do ouro, noutro
a febre de estabelecerem enclaves) mas também porque a mentalidade índia diferia
absolutamente do fanatismo castelhano e da frieza anglo-saxónica. Panfilo de Nervaez,
depois seguido por Vasquez de Coronado, que no primeiro quartel do século dezasseis
atravessaram a Carolina, o Arkansas e o Arizona, perseguiam e abatiam índios inofensivos
que vinham contemplar a passagem das tropas, apenas para “hacer la gracia”, ou seja, para se adestrarem em jogos marciais. A dominação
inglesa foi perita em explorar e estimular as rivalidades tribais, compelindo os
seus circunstanciais aliados a exterminar os rivais – o que teve pleno êxito na
guerra anglo-francesa, na qual os iroqueses deram cabo de praticamente todos os
hurons.
Já referímos que mohicanos mas também eries, pequots, miamis, mohawks, etc.,
foram dizimados através das armas convencionais e de epidemias, rapidamente disseminadas
porquanto o sistema imunológico do índio não estava activado para lhes responder.
E era o homem branco, com uma estranha caridade de cepa cristã, quem lhe fornecia
mantas infectadas que – repare-se na requintada qualidade do cinismo – trocava frequentemente
por boa quantidade de peles ou de belos produtos do solo.
Concretizando o que atrás disse: a diferença de métodos na colonização assenta
no facto de que os espanhóis eram movidos pela caça ao ouro, efectuada em tons pomposos
(note-se que tinham tido uma gratificante experiência com os incas e os aztecas)
dado que a corte espanhola e os seus áulicos e apoiantes, imersos em complicados
jogos de interesses internacionais, necessitavam desesperadamente do metal amarelo
para a sua política imediata e de curto prazo. Não podendo atingir o mítico El Dorado
e as Sete Cidades de Cíbola, miragem fabulosa criada por um relato propagado pela
imaginação desenfreada de um frade empreendedor e um pouco mitómano, frei Marcos de la Renta, que interpretara
à sua maneira boatos que circulavam entre os aventureiros - e que haviamsido postos
a correr pelos índiospara lhes dispersarem aatençãoeos
confundirem – os espanhóis foram compelidos pelas condições hostis da região
e das tribos, muito aguerridas (nas quais se destacavam os apaches) a acolher-se
aos seus primeiros domínios; seriam mais tarde os mexicanos (mestiços descendentes
dos invasores castelhanos) quem retomaria o afrontamento de pimas, yaquis, apaches
e navajos (assim crismados pelos espanhóis), isto numa primeira fase antes da anexação
americana.
No que se refere à Inglaterra, interessava-lhe efectivamente o estabelecimento
de feitorias, à guisa de testas-de-ponte donde partiriam para a conquista de outros
territórios visando um estacionamento perene. A consequência inevitável era o extermínio
ou a férrea sujeição dos autóctones, assim que se sentiam bem escorados nos postos
que proliferavam.
Quanto à França, manteve sempre uma certa distanciação em relação à América
– fosse na Nova França fosse, mais tarde, na Louisiana – imensidão territorial que
o senhor de La Salle vistoriara. É bem conhecida a opinião de Voltaire, por exemplo,
que considerava o Canadá uma espécie de frigorífico onde os concidadãos iam perder
o seu tempo. A verdade é que, à França, interessava fundamentalmente a implantação
de feitorias onde pudessem dedicar-se ao comércio das peles: quem dominava a colonização
eram as “societés”, controladas por nobres
negociantes astutos. Além disso, à coroa francesa – que na altura lançava olhares
cobiçosos noutras direcções – não interessava imobilizar contingentes militares
consideráveis a milhares de quilómetros de casa, policiando terras que a seu ver
nenhuma falta lhe faziam. E foi este atraso mental dos monarcas gauleses que permitiu
uma melhor respiração aos territórios sob o seu domínio. É também isso que explica
– para além de casos decorrentes da estratégia político-militar – as cedências finais
durante o violento confronto posterior com os britânicos para controle dos territórios
de nordeste.
Em 1825, 1831, 1841 e 1848 iriam
ocorrer certos acontecimentos-chave que definitivamente afastariam a possibilidade
das nações índias do oeste próximo e, mais tarde, longínquo sobreviverem, tanto
mais que os índios – com uma única excepção, como já se aludiu anteriormente – nunca
haviam encarado a formação de um Estado, cuja concepção moderna lhes era aliás alheia
e desconhecida (hoje é manifesto que os chefes das denominadas cinco nações civilizadas tinham uma concepção
de nação inteiramente diferente dos ocidentais).
E essa “organização” de tipo libertário, assinale-se, foi uma das causas – senão
a principal! – da fragilidade da Nação Índia frente aos hierarquizados, normalizados
e metódicos invasores.
Esses acontecimentos foram: l. A
abertura do canal Erie, que escancarou sem retorno as comunicações entre o Leste
e o Middlewest, estimulando ainda o desenvolvimento comercial e industrial da região
dos Grandes Lagos, ou seja Buffalo, Cleveland e Chicago; 2. A invenção, por Cyrus
McCormick, da ceifeira-debulhadora, de que resultou que em poucos anos centenas
de milhares de hectares, onde então pastavam milhões de bisontes, fossem transformados
em campos cultivados; 3. A construção da Erie Railroad, que permitiu o desbloqueamento
das passagens para Oeste; 4. Finalmente, a descoberta do ouro da Califórnia na herdade de Johannes Sutter, o que causou uma devastadora
corrida às minas, com milhares de desenraizados e aventureiros a atravessarem as
pradarias e as Montanhas Rochosas em caravanas ou em simples bandos, depredando
a flora e a fauna – abatendo indiscriminadamente bisontes, que constituíam a base
da alimentação dos Plains – com os consequentes levantamentos e as guerras índias protagonizadas pelos arapahos,
kiowas, cheyennes, crows, lakotas, shoshonis, flatheads, etc.; mas o ouro era então
fundamental, tanto mais que em 1836 o secretário do Tesouro Richard B. Tanney, com
a pronta anuência do Presidente Jackson, emitira a Circular das Espécies nos termos da qual, para a aquisição de terras,
o governo só aceitava pagamento em ouro e não em notas de banco.
Era o princípio do fim – do fim sórdido, inútil, lamentável. Mas, neste
relance em torno da História, fiquemo-nos por aqui.
3. O Índio
norte-americano e o seu relacionamento com o Imaginário
Se não maltratardes
o povo vermelho, mas o tratardes com justiça, podereis ganhar a sua amizade; pois
ele possui profundos conhecimentos do que é bom e do que é mau”
WILLIAM PENN
Nesta conformidade, a “religião” índia deve ver-se como aquilo que
de facto era: prática efectiva de ligação
a um universo onde as coisas aconteciam por razões porventura misteriosas mas repletas
de sentido – ao contrário da ocidental, que assenta na re-ligação; com efeito, não possuindo mitos de queda e de culpa, para
que necessitaria o índio de se re-ligar ao que quer que fosse? – devido a uma dialética
e a uma dinâmica que tinha a ver com uma existência não-precária e frequentemente
atingida pelo senso da plenitude. Assim, é perfeitamente descabido, quando não pura
impostura ou sonoro desajuste falar-se em deuses
a propósito do índio norte-americano (norte-americano, sublinho) – ou, como o fizeram
durante muitos anos os melífluos missionários que o ocidente lhes punha à disposição,
amparados pelo cacete papal, manobra que caucionava a repressão. O índio cria num
grande mistério, o que se poderia traduzir
por a coisa sagrada em termos ocidentais
e exprimia o sentido do sagrado, em termos poéticos, que eles sentiam existir em
tudo e que a seu ver envolvia a existência e era, por seu turno, permeabilizado
por ela, estabelecendo uma ponte directa e bem prática entre o mundo e o transmundo
das coisas e dos seres – vistos, pensados e sonhados. Esse grande mistério ou grande medicina,
encarnava se assim podemos dizer de nação para nação – como o wakanda dos Lakotas
(yanktonais, santees, oglalas, tetons e yanktons) e Cheyennes ou o manitu dos povos
do nordeste - em entidades diversas, palpitando de actividade no quotidiano da tribo
e que atravessavam a realidade circundante. Os animais tutelares ou totens eram assim como uma estima do coração e não deuses benevolentes
ou maléficos e muito menos presenças metafísicas que se intrometiam na sua vida,
como sucede no ocidente, onde o poético, o espiritual e o físico estão inapelavelmente
compartimentados da triste maneira que se sabe e se sente. O índio tinha um comportamento
epicurista ou estóico conforme as circunstâncias da vida quotidiana: era grave mas
não taciturno; alegre mas não descabelado. E isto porque não era perseguido pela
descontinuidade característica da circunstância
judaico-cristã, agravada pelos ritmos instaurados pela revolução industrial. Apesar
da sensível e por vezes rude discriminação que sobre os índios de agora ainda incide,
estimulada pela política económica das Companhias – o que pudemos constatar tanto
na região plain (Dakotas e Nebraska) como
no Canadá da tolerância e da polidez (grande península georgiana, ou seja na região
huron-iroquesa dos lagos Huron e Ontário) - as reservas índias, mau grado os problemas
instilados pelos “white-eyes” são comparativamente
locais onde pulsa a luz do espírito que só raramente se sente entre as populações
urbanas da América not coloured. Pode
dizer-se com ironia deliberadamente cruel que o cuspo que os colonos atiraram para
o ar, nos tempos da sujeição dos índios, recai-lhes agora na face como um aguaceiro
mefítico.
Não sendo um ser amedrontado,
o índio nenhuma necessidade tinha de procurar
aplacar espíritos bons ou perversos, como sucede noutras civilizações. Claro que
se alegrava ou inquietava, mas a exemplo do que sucede no acto poético - em que
os terrores são terrores pela sua própria condição bem assim como os contentamentos
- consoante os sinais que distinguia no decorrer da existência. Os mortos inquietavam-no
porque ele sentia que o reino da morte era doutra quotideaneidade, mas podiam também
alegrá-lo: não era invulgar um índio chegar ao lar e manifestar a sua alegria por
ter, numa jornada de meditação (em geral apoiada em jejuns) sido contemplado com
o aparecimento dum parente, dum animal
doméstico muito estimado, etc; note-se ainda como exemplo que entre os Plains eram
ciclicamente efectuadas danças rituais para facilitar
ou possibilitar a vinda das manadas
de bisontes e não para comunicar a um
determinado deus (animal ou de tipo humanóide…) que já era tempo de se pôr ao trabalho
e encaminhar os rebanhos para junto dos territórios de caça (sempre bem estabelecidos
por consenso milenar). O totem possuía portanto um valor de ligação e não de adoração.
O índio não possuía ritmos de adoração, encarando esta palavra como bajulação a
uma entidade supostamente superior ou desencarnada. No que respeita aos denominados
homens-medicina (e não feiticeiros, designação
que apenas faz parte do vocabulário branco veiculado pelas fitas de Hollywood) que
noutras comunidades tomam em geral a designação de sacerdotes ou orientadores espirituais
conforme a latitude ou a civilização, eram curandeiros
um pouco à maneira dos homens-de-virtude da região ibérica, ou aconselhadores qualificados
que, em certas ocasiões determinadas por condições muito próprias, tomavam o cargo
(espontâneo e circunstancial e sempre amovível) de chefes específicos que emergiam
do quotidiano da tribo e não se empenhavam em ter mais ou menos influência, o que
seria impensável pela lógica da organização do tecido social. Para aclarar melhor
a questão: o justamente famoso – pela ponderação e a coragem - Sitting Bull, era
homem-medicina e a consideração de que
gozava no seio da tribo era tanta que assumiu o cargo de sachem (chefe geral) dos lakotas, que tinham como chefe-de-guerra o
não menos célebre Cavalo Louco, que era evidentemente tudo menos louco – o nome
vinha-lhe de ter capturado bravamente um garanhão enfurecido em condições peculiares.
Os nomes, entre os índios, eram não só um indicativo
mas também um qualificativo. Fazendo um
pouco de humor, digamos que se calhar o nosso “bochechas”(Mário Soares), se índio
fosse, teria talvez o nome de Urso Aldrabão ou, quiçá, Castor Vaidoso ou Arganaz
Sedutor... Mas passemos adiante!
Os homens-medicina, fossem chefes ou não, acompanhavam o dia-a-dia,
orientavam as festas e os rituais (de colheita, de caça, de mudança de estação ou
de localização da tribo) eram de certa forma o garante dos grandes ritmos que presidiam
à relação entre o conhecido e o desconhecido. Por vezes funcionavam como diplomatas
inter-tribos e, nalgumas que em ocasiões sacrais utilizavam alucinogénios (como
entre os pimas e os yaquis) interpretavam as visões daí decorrentes. Note-se que
os índios usavam de preferência jejuns e períodos de isolamento em lugares específicos:
montanhas, bosques e recantos junto a rios, no caso dos índios do sudoeste orlas
de desertos (jamais se adentravampelo deserto,comofizeramno últimoperíododaromanidadeas
comunidades de cenobitas cristãos do norte de África), onde buscavam ser contemplados
com revelações em ordem a compreenderem
o mundo e o seu Eu profundo.
Quanto aos chefes, que como já se aflorou podiam ser chefes-de-guerra
ou civis, estavam rigorosamente dependentes dos conselhos tribais e, se eram sempre
acatados e respeitados, uma vez que emergiam naturalmente da comunidade, funcionavam
mais como consciência da nação do que
como líderes cuja palavra não era passível de discussão. Só numa circunstância tinham
de ser rigorosamente seguidos: quando em estado de batalha – e os próprios conflitos,
como a palavra batalha deixa perceber,
eram de âmbito limitado, sendo fundamentalmente sustentados por grupos. Mesmo quando uma nação era tradicionalmente
inimiga de outra, como os sioux e os pawnees por exemplo, não se buscava a extinção
do adversário e o feito guerreiro tinha
fundamentalmente a ver com a qualidade e não com a quantidade. Lutava-se pela honra,
pela coragem, pela vingança de injúrias ou pelo abuso da entrada em territórios
de caça ou utilização. A posse destes últimos estava dependente do uso que lhes
era dado pelo colectivo e, portanto, não era encarada como exaustiva e total. Nunca
passaria pela cabeça de um índio dizer este
sítio é meu, pois entendia-se que apenas aprouvera ao grande mistério possibilitar que a tribo dispusesse dele a seu efectivo
bel-prazer. Em geral, os índios norte-americanos eram anarco-comunistas, ou melhor:
socialistas libertários, o que os distinguia das monarquias totalitárias ou de claro
enfoque do que depois se chamaria nazismo (por exemplo os aztecas) das nações da
América central.
Assim sendo, é fácil tirar a conclusão maior destas linhas e a única para que chamo vivamente a vossa atenção:
sempre que uma civilização baseada na tradição
secular livremente engendrada se confronta com outra baseada na evolução acelerada e na acumulação, a primeira
desaparece ou é gravemente transformada pela segunda.
Significa isto que, ao cabo, a sorte da Nação Índia estava traçada
no momento em que Colombo pôs o pé nas praias do Novo Mundo. O índio, que vivia
no neolítico mas que apesar de tudo mostrou uma espantosa capacidade de adaptação
interior – e mesmo exterior, convenhamos - a ritmos que lhe eram totalmente alheios,
conceptualmente estava mergulhado no chamado estado segundo ou seja, o mundo mental em que realidade e sonho se interpenetram,
estado esse que é profundamente odiado pelos próceres da civilização ocidental,
que apenas respeitam ou a Razão ou o instinto de posse camuflado de necessidade espiritual (vulgo religião, que
é apenas e tão-só, se nos despirmos de preconceitos ou receios, um polo agregador
de interesses psico-sociais). É esse estado
segundo que explica a curiosidade que os autóctones americanos sentiram pelo
álcool, o que foi de imediato explorado pelos colonizadores. Como o álcool lhes
permitia/facultava atingir um estado de euforia – que, diga-se, excelsos poetas
gregos e árabes epigrafaram com volúpia (será necessário nomear o justamente célebre
“Rubayat” de Omar Khayam?) – que eles pensavam ser um ritmo dos brancos, deixaram-se
defraudar pelos colonizadores, que estimulavam cinicamente o alcoolismo. Chegou-se
a um ponto tal que em certas tribos do Middlewest e do Oeste houve a necessidade
de os conselhos tribais interditarem rigorosamente o seu consumo, chegando-se a
estabelecer (e é um dos poucos casos em que tal ordálio se aplicava) a pena de morte,
punição raríssima entre os índios visto que em geral era substituída por obrigações de doação. Entre os Plains, o
álcool era mesmo considerado como mais uma arma
de guerra por parte dos brancos.
A nação índia, no seu todo, desapareceu para sempre. Nobre e orgulhoso
gavião planando sobre montanhas e florestas, viu o seu voo destroçado pela gente
que a princípio auxiliara. Espoliada, caluniada, utilizada em divertimentos de pacotilha
– mas também respeitada, compreendida e amada por ocidentais que sabem ser índios na selva urbana – é hoje
não mais que recordação, uma vez que se desfizeram as raízes que a sustentavam:
o território onde se estabelecera o equilíbrio harmonioso entre a natureza e o homem.
Hoje em dia, habitantes que
somos de universos alternativos e, ultimamente, até interactivos, resta-nos somente
uma certa nostalgia – mas igualmente, afinal, a arma de sabermos que é possível
viver-se, mais que não seja por dentro, de maneira menos precária do que a vida
(?) que foi criada, consentida e consolidada pelos europeus filhos do Método e da
Mística da navegação entre Cila e Caríbdis ou, o que ainda é pior, das correrias
entre Zeus e Mamón...
ALGUNS POEMAS ÍNDIOS
(tradução de
Nicolau Saião)
Todo
o sudoeste é uma casa
Feita
de penumbra. Foi feita de pólen
E
de chuva. A terra é antiga e durará
Para
sempre. Há muitas cores nas colinas
E
na pradaria e uma vegetação sombria
Cobre
a montanha ao longe. A terra é fértil e forte
E
a beleza enche tudo à nossa volta.
(Pueblos)
Saiu
a lua, branca como a folha do machado
E
o meu machado é uma lua pequena
O
sangue do alce brotará sob a lua
Unirá
a lua grande e a lua pequena
E
o fogo da vida será como um sol
No
coração dos caçadores.
Machado,
agradeço-te o fogo da vida
Alce,
agradeço-te o fogo da lua
Da
grande e da pequena lua
Vê
que vais viver para sempre no nosso coração
E
serás o sol e as pequenas luas
Grandes
como o fogo que circula
No
interior da floresta.
(Ojibway/Chipewa)
Somos
as estrelas, entoando
Um
canto com a nossa luz.
Somos
os pássaros de fogo
Voando
pelos espaços.
O
nosso brilho é uma voz
Que
traça o caminho aos espíritos
Para
que eles possam passar.
Entre
nós três caçadores
Procuram
caçar um urso.
Nunca
houve tempo algum
Em
que eles o não caçassem.
Do
alto olhamos os montes
E
é esta a canção das estrelas.
(Algonquins)
No
tempo da morte
Quando
eu vi que a morte me procurava
Fiquei
espantado. Tudo se destroçava.
A
minha casa
Tristemente
tive de a deixar. Olhei para longe
Enviei
o meu espírito para norte
Para
sul, leste e oeste, tentando escapar à morte.
Mas
nenhum lugar encontrei
Já
não havia caminho de fuga.
(Luiseño)
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