Os jogos do surrealismo
A origem do surrealismo
se mescla às práticas dadaístas, até atingir sua autonomia em 1924, quando André
Breton (1896-1966) escreve o primeiro Manifesto Surrealista. De modo diferente ao
que postulava o dadaísmo, este movimento “aceita a existência da arte e recupera
a realidade figurada” (CORREDOR-MATHEOS & MIRACLE, 1979), desse modo, “devolve
ao artista a sua razão de ser sem impor, ao mesmo tempo, um novo conjunto de regras
estéticas” (ADES, 1991).
Para atingir seus objetivos, utilizaram, como principais ferramentas de trabalho,
o automatismo e o registro dos sonhos, sem preocupação moral e na profunda busca
em eliminar todo e qualquer controle exercido pela razão. Apesar de todos os esforços
empregados para burlar qualquer tipo de preocupação estética ou moral, as obras
não eram somente resultados do acaso, mas esse tinha um papel relevante e pode ser
entendido como o passo inicial para a produção surrealista, como aponta David Batchelor
(1999) sob um comentário
de Max Ernst, “un primer momento en el que se generaba al azar un conjunto de
líneas o formas, seguido por una segunda fase en la que el artista debía “extraer”
las imágenes sugeridas por ese material producido al azar”.
Durante a década de vinte, os surrealistas desenvolveram uma variedade de
técnicas para excitar a imaginação e desvelar o inconsciente. Dentre essas técnicas,
criaram ou adaptaram jogos infantis com o objetivo de exercitar o automatismo, bem
como para descobrir elementos comuns da imaginação dos seus participantes. Além
disso, essas atividades proporcionavam o afloramento das profundidades oníricas
mais secretas que se refletiam também na obra individual de cada um deles. Os jogos
mais comuns eram o “jeu du “si c’etait...” (variant do “portrait”),
jeu de la verité (que servit de prètext à d’innombrables discussions et broullies),
jeu de la phrase orale, jeu de l’assassin [...], jeu du cadavre exquis” (JEAN, 1983).
Além desses,
havia ainda o jogo das condições, o jogo de perguntas e respostas e vários jogos
eróticos.
Apesar de aparentarem mera diversão, os surrealistas levavam esses jogos
a sério, de modo que, como afirma Passerou (1983), “ponían en
tales “distracciones” una curiosidad casi experimental, ávida de averiguar que podía
salir del ámbito psicológico”. Esses jogos eram um modo de
fazer produtivo e ao mesmo tempo divertido. Um momento de autoexploração e autoconhecimento
através do qual esperavam aumentar seu repertório de idéias e imagens a partir da
ativação do inconsciente. Colocavam tanta seriedade nos resultados que ao se analisar
o dicionário compilado por André Breton e Paul Éluard (1987), não só há a definição
do que se caracteriza o cadavre exquis, como também há vários verbetes (caranguejo,
dormitório, envilecido, pomba, sexo) em que o “responsável” é o cadavre exquis,
como se fossem assinados por ele, assumindo-se assim como mais uma personalidade
do grupo dos surrealistas, uma personalidade coletiva que refletia o que o grupo
idealizava, como afirma Sorane Alexandrian (1969): “l’idéal du
groupe était de mettre le génie en commun, sans que personne n’ait à abdiquer son
individualité”.
Cadavre exquis: passando e produzindo o tempo
Entre todos os
jogos experimentados pelos surrealistas, o que resultou em uma significativa produção
tanto verbal como visual foi justamente o jogo do cadavre exquis, que, como
afirma Breton (citado por MATTHEWS, 1986), se portava como “an infallible
means of sending de critical mind on vacation and of fully liberating the mind’s
metaphoric activity”. Além disso, segundo Bradley (1999), o jogo do cadavre exquis é
um bom exemplo de uma das principais características dos primórdios do surrealismo:
o contínuo intercâmbio entre o poético e o pictórico. Mais que
isso, os cadavres exquis funcionavam como um instrumento para facilitar a
busca central do surrealismo: a evolução do conhecido para o desconhecido. Era o
exercício do automatismo psíquico puro: “le cose vengono alla mente (e alla mano)
per associazioni imprevedibili: “per un alto grado de assudità immediata”” (DELL’ARCO , 1990).
Esse jogo surgiu, segundo o próprio Breton (1948), por volta de 1925, na
velha casa do aficionado por jazz e cinema, Marcel Duhamel, localizada no número
54 da rua do Chatêau, onde reuniam-se juntamente com o pintor Yves Tanguy (1900-1955)
e com os poetas Jacques Prévert (1900-1977) e Benjamin Péret (1899-1959). Segundo Simone
Collinet (1948), a esposa de Breton na época:
C’est au cours
d’une de ces soirées de désceuvrement et dénnui qui furent nombreuses au temps du
surréalisme – contrariament à ce quóm se représent rétropecivement – que le Cadavre
exquis fut inventé. L’un de noi dit: “Si on jouait aux “petits papiers”, c’est très
amusant”. [...] Au tour suivant, le Cadavre exquis était né. Sous la plume de Prévert,
précisément, qu en écrivit es premiers vocables, si bien complétés par les suivants,
l’un: boira le vin; l’autre: nouveau.
De acordo com a declaração de Collinet (op. cit.), o nome surgiu do acaso, por coincidentemente serem as primeiras
palavras escritas no primeiro resultado do jogo. André Masson (1975), recorda que
foi Breton quem batizou o jogo. Mas na enorme quantidade de possibilidades, surgiria
realmente esse termo – “cadáver” – como fruto do acaso? Essa é a pergunta que se
faz Mario Spinella (1991: 194), ao relembrar que um pouco tempo antes havia sido
redatado – por André Breton, Louis Aragon, Joseph Delteil, Phillipe Soulpalt, Paul
Éluard e Pierre Drieu La Rochelle – o violento e polêmico panfleto “Un cadavre”
para a morte de Anatole France que teve uma grande repercussão não só entre os intelectuais.
Além disso, Spinella questiona também a casualidade do aparecimento da palavra
“vinho”, uma vez que o próprio Breton (1948: 6) ao recordar o surgimento do jogo
cadavre exquis afirma que “chaque soir ou presque nous réunissait autour
d’une table où le Chateau-Yquem ne dédaignait pas de mêler sa note suave à celle,
autrement tonique, de toutes sorte d’autres crus”. Sob essa perspectiva, portanto,
não parece tão casual que logo após a publicação de “Un cadavre” e rodeados
de vinho apareça esse termo para designar o jogo surrealista mais produtivo. E mais,
se pensarmos o cadavre exquis na sua forma visual, na qual a maioria dos
resultados está intimamente relacionada com formas antropomórficas, menos casualidade
ainda encontramos no termo... Mas, a telepatia e a intuição eram tão valorizadas
e desenvolvidas no grupo surrealista, que se pode justificar esse nome como uma
obra do acaso intimamente vinculada ao desejo do inconsciente coletivo de seus membros.
Inicialmente, praticado na forma verbal, “le cadavre exquis boira le vin nouveau”, transformou-se no clássico exemplo do jogo e o batizou. O procedimento para se jogar era muito simples, segundo Tristan Tzara (1948), a receita para o cadavre exquis escrito era: pegar uma folha de papel dobrada
Rapidamente, o cadavre exquis adquiriu também uma forma visual além
da verbal, através do uso das técnicas, inicialmente, de desenho e, posteriormente,
de colagem. Esse tipo, apesar de apresentar o mesmo funcionamento do verbal de dobrar
o papel várias vezes e das participações ocorrerem na ignorância das contribuições
anteriores, tem particularidades acentuadas por Tzara (1948): o número ideal de
participantes é três e a seqüência a ser seguida é: “cabeça-tronco-pernas”; além
disso, há a questão das cores que podem ser utilizadas, mas que devem ser restringidas
no transcurso do jogo ao número de cores usado pelo primeiro jogador e de que o
desenho deve se prolongar por duas ou três linhas para que o próximo participante
possa continuá-lo. De acordo com essas regras, os cadavres exquis visuais acabam ficando
mais limitados que os verbais, pois nesses últimos não há esse controle preestabelecido
para realizar a escolha do substantivo, adjetivo, verbo ou advérbio, como ocorre
com as cores e com as “linhas-guia”. Por outro lado, enquanto há uma ordem prescrita
– estrutura gramatical – para que os resultados verbais tenham coerência, o visual,
não precisa seguir rigidamente a sequência predeterminada de “cabeça-corpo-pernas”
para garantir a comunicação.
Cabe salientar que, mesmo com todas essas regras, a intervenção do acaso
pela ignorância dos participantes em relação ao que foi escrito ou desenhado anteriormente
é a principal responsável pelo sucesso dos cadavres exquis tanto verbais
como visuais, afinal com a existência desses fatores não há como prever de que modo
os participantes integrarão as suas contribuições, uma vez que eles limitam o controle
exercido pela razão.
No caso específico da técnica da colagem [1] a estrutura do jogo se baseia, de acordo com Mary Ann Caws (1997),
no recorte de imagens de um dicionário, enciclopédia ou revista por cada um dos
jogadores. As contribuições são, portanto, imagens predeterminadas e serão escolhidas
por cada um dos participantes na medida em que se desenrola o jogo. Assim, se constrói
o cadavre exquis através da justaposição de imagens pré-existentes e generosamente
disponibilizadas.
Os cadavres exquis visuais resultam em “image des pus
cocasses – monstre grotesque comme sorti d’un rêve chaotique – et qui ressorti à
la surprise, à l’humour” (BEAUMELLE, 1995).
Apresentam-se
como uma imagem plural, caótica e convulsiva e ao mesmo tempo enigmática, única
e coesa, que tem na sensação do inesperado toda a sua magia. como diz Collinet
(1948) ao relembrar-se dos primeiros cadavres: “la suprise violent provoquait
l’admiration, les rires, soulevait une envie inextinguible de nouvelles images –
des images inimaginables par un seul cerveau, – issues de l’amalgame involontaire,
inconscient, imprévisible de trois ou quatre esprits hétérogènes”. E essa surpresa
violenta, o inesperado – que Masson (1975) coloca como essencial – não é uma sensação
restrita ao público que vê essas imagens muito tempo depois, como nós, por exemplo;
mas também é a sensação dos próprios produtores ao visualizarem no final do jogo
a imagem única e íntegra obtida através da contribuição de cada um deles e que reflete,
na maioria das vezes, uma perfeita “telepatia”. A unidade que essas imagens possuem
constituem-se, segundo Breton (citado por
MATTHEWS, 1986), em um verdadeiro
enigma.
A proposta comum de buscar liberdade poética através de uma ação coletiva
é a responsável pela harmonia, pela extraordinária correspondência que as imagens
possuem e que, por sua vez, sempre causam mais surpresa que os equivalentes verbais
por ter a capacidade de criar sua própria forma de maneira particularmente única.
Como salienta Ágnes de Beaumelle (1995):
[...] les ruptures
de crayon, les differénces d’echelle, les modalités variables d’expression graphique,
les champs disparates de l’imaginaire. Tout cela s’impose comme autant de donnéss
faites pour déstabilisier toute cohérence plastique, pour alarmer celui qui regarde.
Enquanto os cadavres exquis desenhados são a cada vez construído por
imagens que até então não existiam no mundo real/racional, os verbais funcionam
mais como assemblages, ou seja, como um agrupamento de objetos encontrados
e, portanto, a surpresa passa a ser menor porque, mal ou bem, eles individualmente
já eram conhecidos pelo espectador, em especial pelo produtor-espectador. Isso também,
de certa maneira, ocorreria com o uso da técnica da colagem, mas não se pode esquecer
que nesse caso tem que se levar em conta não só o fato de se estar, do mesmo modo
que nos desenhados, tratando-se de imagens, como também da capacidade associativa
de fazer algo “visualmente funcional” com objetos tão díspares e que, como dito
anteriormente, não necessitam coerência para poder comunicar algo, ao contrário,
quanto mais paradoxais mais instigantes.
A temática que Tzara coloca em sua
receita através da sequência de “cabeça-tronco-pernas” para os cadavres exquis
desenhados é a de um corpo ou de atributos que o possam substituir. Assim, a maioria
dessas imagens vai ter formas antropomórficas, mesmo quando algumas partes são substituídas
por elementos extraordinários. Breton (1975) afirma que os desenhos que
obedecem a essa técnica, por definição, acarretam no antropomorfismo, mas – mais
do que pelas regras estabelecidas – ele atribui esse motivo ao fato da técnica acentuar
extraordinariamente as relações que unem o mundo exterior e o interior. De todos
os modos, está claro que essas figuras não pretendem imitar os aspectos físicos
reais, porém, seu antropomorfismo não pode ser considerado totalmente casual pela
própria forma em que se estrutura o jogo. Além disso, o corpo tem um significado
vital dentro do próprio movimento surrealista, uma vez que a maioria das obras remetem
de alguma forma ao corpo humano, pois o ser humano com seu inconsciente, sonhos
e desejos é a grande temática que move a produção de seus artistas.
Apesar dos primeiros cadavres exquis terem sido produzidos em 1925,
os mesmos só serão publicados pela primeira vez em 1927 na revista La Révolution
Surréaliste (nº 9-10, outubro). Nessa revista, alguns exemplos tanto visuais
como verbais – sem identificação de seus criadores, somente com a legenda: cadavre
exquis – são postos junto aos textos e comentários ou justapostos com narrativas
de sonhos e outros materiais visuais. A colocação dos exemplos de cadavres exquis
ao longo da revista se dá de maneira aleatória, como salienta Dawn Ades (1997):
“the placing of cadavres exquis throughout this issue of the journal is neither
exactly random, nor intended to illustrate the texts. They are rather
part of a continuous fabric of juxtaposition, which yields unexpected contrasts
and analogies”. Outros exemplos de cadavre exquis também foram reproduzidos no número
especial da revista Variétés intitulado “Le surréalisme en 1929” (RUBIN, 1969), mas aqui os autores das
imagens foram nomeados: Joan Miró, Max Morise, Man Ray e Yves Tanguy e os autores
das frases tiveram suas iniciais indicadas (MARCEL, 1983).
A primeira exposição específica, que contava com imagens produzidas de 1925
a 1934, organizada por André Breton, ocorreu em outubro de 1948, na Galeria Nina
Dausset – La Dragone, em Paris, e denominava-se “Le cadavres exquis son exaltation”,
os artistas que participaram foram, segundo o catálogo da exposição (que não
possui imagens): Louis Aragon, André Breton, Robert Desnos, Victor Brauner, Paul
Eluard, Marx Ernst, Jacques Hérold, Valentine Hugo, Greta Knuston, André Masson,
Joan Miró, Max Morise, Benjamin Péret, Jacque Prévert, Man Ray, Yves Tanguy, Tristan
Tzara, entre outros. A grande maioria das imagens – senão todas – foram exibidas
numa exposição de mesmo nome sob curadoria de Arturo Schwartz, realizada em 1975
em Milão (BRETON, 1975). Essa última tornou-se uma referência no tema pela edição
de um catálogo no qual não só se reproduz as imagens expostas como também se republicam
todos os textos produzidos para a exposição de 1948, de autoria de André Breton,
André Masson, Tristan Tzara, Simone Collinet, Marcel Duhamel e Jindrich Chalvpëcky.
Pelo menos três outras exposições [2]
como essa foram realizadas na Itália em épocas posteriores, utilizando o mesmo material.
Na busca por mais referências, tanto visuais como teóricas, foi possível
encontrar vários outros exemplos de cadavres exquis publicados em catálogos
de exposições temáticas sobre surrealismo de modo geral, sendo que especificamente
sobre esse jogo surrealista foi encontrado apenas o catálogo da exposição itinerante
“Cadavre exquis”, promovida pelo (1981) e que teve passagem pela Fundació
Miró em Barcelona, no ano de 1983. Cabe ressaltar a existência do catálogo da exposição
“Dessins Surréalistes”, também promovida pelo Centre Georges Pompidou, que
nesse caso não se trata de uma mostra específica sobre cadavres exquis, mas
que é relevante por conter um significativo número de imagens publicadas, além de
um importante texto teórico de referência, escrito por Agnés de Beumelle.
Os dados apresentados acima demonstram que, apesar da enorme relevância dos
cadavres exquis no contexto surrealista de experimentações para eliminar
o pensamento crítico e liberar o pensamento metafórico, eles são poucos conhecidos
pelo público em geral, pelo modo esparso em que se apresentam. Sendo que, até o
dia de hoje, não houve esforço em apresentar uma exposição ou publicação na qual
se reunissem o maior número possível de exemplares, juntando as coleções existentes.
Cadavres exquis: tipos e símbolos
Os cadavres exquis coletados nessa pesquisa, cem
no total, foram classificados sob duas linhas gerais, a saber, “antropomórficos”
e “aleatórios” ou “não-antropomórficos”.
Os de tipo “aleatório” ou “não-antropomórfico”
foram os mais escassos, correspondendo a aproximadamente vinte por cento do total.
Cabe salientar, que como no próprio surrealismo, nessa categoria as imagens são
figurativas, não tendo encontrado nenhuma de caráter abstrato, por mais difícil
que seja a sua leitura. Portanto, o resultado do jogo é uma imagem figurativa, que
não remete especificamente a um corpo humano, mas a algo semelhante a monstros ou
a estruturas/máquinas fantásticas. Os elementos mais recorrentes dentro dessa categoria
foram objetos e estruturas orgânicas, muitas sem forma definida e remetendo as garatujas
dos desenhos infantis.
Na grande categoria “antropomórfica”
(fig.4), na qual a maior parte dos cadavres exquis se enquadram, há uma tendência
na composição de apresentar o corpo como um todo, indicando uma certa obediência
a seqüência lógica “cabeça-tronco-pernas”, estabelecida nas regras do jogo. Nessa
categoria foram encontradas imagens formadas com elementos da anatomia humana, animais,
vegetais e objetos.
Essa rápida classificação teve
o objetivo de ordenar as imagens, facilitando assim a visualização dos símbolos
que aparecem nas imagens. As cem imagens coletadas foram construídas a partir de
um repertório imagético enorme, porém é possível salientar alguns símbolos que,
com freqüência, se repetem. Com o objetivo de conhecer um pouco mais sobre o significado
desses símbolos foram utilizados dicionários de símbolos e de iconografia e suas
definições são expostas a seguir.
O símbolo que dominou nessas cem
imagens foi, seguramente, a mulher, que apareceu em aproximadamente em cinqüenta
por cento delas. Isso se dá tanto através de fragmentos do corpo como a cabeça,
lábios, seios, órgão sexual, cintura, como pelos objetos femininos como saias, espartilhos
ou sapatos. Isso não ocorre por acaso, porque, depois do romantismo, o surrealismo
será o movimento artístico que mais significado dará a imagem feminina (CHADWICK,
2002). Como salienta Victoria Dexeus (2005):
El tema del surrealismo y la mujer ha sido objeto de múltiples
interpretaciones. A modo de ejemplo: los surrealistas tuvieran una visión romántica
de la mujer como maga, musa y mujer-niña, visión que las feministas consideran que
responde a una actitud misógina y que Simone de Beauvoir declaró cercana a la tradición
de Fourier. La mujer encarnaba la belleza, la poesía, era la indispensable mediadora
con la naturaleza. Autores como Hal Foster afirman que los abruptos cortes de los
desnudos femeninos de los surrealistas convierten a alas mujeres en fetiches, una
respuesta al miedo de castración.
Juan Eduardo Cirlot (1997), em
seu Dicionário de símbolos, coloca que a mulher na esfera antropológica – e não
esqueçamos a relação dos surrealistas com a arte primitiva – corresponde ao princípio
passivo da natureza. Esta questão pode ser confirmada no fato de que, apesar de
Breton (citado por DEXEUS, 2005) declarar em Arcane 17 (1945) “sólo veo
una solución: ya es hora de que las ideas de la mujer prevalezcan sobre la des del
hombre, cuya ruina está suficientemente clara en el tumulto de hoy en día”,
as várias mulheres que participaram como artistas do movimento só foram ser reconhecidas
muitos anos depois.
Mesmo assim, a mulher como símbolo
estará presente na maioria das produções surrealistas. No caso dos cadavres exquis
encontrados, ela aparece sob dois, dos três aspectos apontados por Cirlot (op. cit.): como mãe (pátria, cidade ou natureza),
relacionando-se também com o aspecto informe das águas e do inconsciente e como
donzela desconhecida, amada ou alma, na psicologia junguiana. De todos os modos,
a figura da mulher sempre significou o que os surrealistas buscavam, ou seja, a
intuição, a emergência dos sentimentos mais profundos e desconhecidos.
Alguns fragmentos do corpo humano
também se destacam nas imagens encontradas, como olhos, mãos, pés e o coração, valorizados
pelo tamanho ou forma em que estão representados. Entre eles a simbologia do olho
se destaca nesse contexto porque, de acordo com Cirlot (op. cit.), o ato de ver tem uma correspondência com a ação espiritual,
simbolizando a compreensão, além disso aparece algumas vezes nas imagens encontradas
de modo heterotópico, ou seja, deslocados de seu lugar anatômico e transladados
a diversas partes do corpo em figurações fantásticas tomando significados diversos
conforme o lugar em que se encontra, por exemplo se colocado na mão significa clarividência.
As mãos, por sua vez, significam
de modo geral a manifestação corporal do estado interior do ser humano e a distinção
entre mão direita e esquerda enriquece o símbolo com o sentido adicional derivado
do simbolismo espacial: o lado direito corresponde ao racional, consciente, lógico
e viril e o esquerdo todo o contrário. Se atentarmos para as imagens, veremos como
há uma predominância dessa última, o que corrobora com os ideais surrealistas. Além
disso, muitas vezes as mãos aparecem como garras que podem ser interpretadas como
uma referência ao instintivo. (CIRLOT, op.cit.)
Em relação aos pés, esses estão
de maneira geral relacionados com o suporte da pessoa, o que pode estar relacionado
segundo alguns estudiosos com o símbolo da alma, por significar o suporte do corpo,
o que sustenta o homem em sua posição ereta (CIRLOT, op.cit.). Além disso, aparecem também nas imagens muitos sapatos, que
como a pegada, tem um significado funerário. Para os surrealistas, “esta presencia de los muertos
entre los vivos sugiere ya lo que el surrealismo siempre tuvo de práctica médiumnica,
un entrar en comunicación con cierto “más allá” (SOLANA, 2002).
Quanto à presença do coração, esta
pode ser entendida pelo significado desse símbolo como o verdadeiro lugar da inteligência,
sendo o cérebro somente um instrumento de realização, além disso, pode significar
também o amor como centro de iluminação e felicidade. (CIRLOT, op.cit.)
Entre os animais, destacam-se os
pássaros representados das mais variadas formas, bem como outros seres alados, em
especial com asas tanto de pássaros como de borboletas. Para Cirlot (op. cit.),
todos os seres alados são símbolos de espiritualização, sendo que os pássaros em
muitas tradições representam estados superiores do ser, a alma. Além disso, simbolizam
colaboradores inteligentes do homem, atuando como mensageiros de um outro mundo.
As borboletas, do mesmo modo que os pássaros, são emblemas da alma significando
também uma atração inconsciente ao iluminado (op. cit.). Os peixes também são freqüentemente utilizados e, de acordo
com Cirlot (op. cit.), em termos gerais o peixe é um ser psíquico, um “movimento
penetrante” dotado de poder ascensional no inferior, quer dizer, o inconsciente.
Este símbolo pode ter também, do mesmo modo que os pássaros, o significado fálico
dotado de poder ascendente (sublimação e espiritualização).
Finalmente, entre os objetos que
aparecem de modo mais frequente pode-se destacar: âncora, relógio, roda, objetos
cortantes (facas e serras), guarda-chuva, cadeira, mesa e garrafa.
A âncora pode ser entendida como
símbolo de salvação e esperança e quando na posição invertida faz alusão a sua condição
mística (CIRLOT, op. cit.).
Os objetos cortantes, ao contrário
de significar vingança ou sacrifício, tem provavelmente relação com o conceito budista
do termo de que o corte com uma faca representa a liberação ao cortar os laços da
ignorância e do orgulho (COOPER, 2000). Cabe salientar que na maioria das imagens
esses objetos aparecerem relacionados com a figura feminina.
O relógio, no imaginário surrealista, está relacionado
com o conceito de máquina, utilizado de forma contundente por seus representantes:
movimento perpétuo, automatismo, mecanismo, criação mágica de seres com autonomia
existencial (CIRLOT, op. cit.).
A roda é um símbolo bastante complexo
e que possui inúmeros significados, mas um deles que se adapta a situação surrealista
é o conceito de roda como um símbolo privilegiado do deslocamento, da superação
das condições de lugar e do estado mental que lhe é correspondente (REVILLA, 1990),
portanto, que pode ser lido nesse caso como a passagem do consciente ao inconsciente,
do racional ao intuitivo.
Os guarda-chuvas além de significarem
proteção também têm sentido fálico. Segundo Cirlot (op.cit.), o guarda-chuva é um símbolo paternal, por incluir acentuada
nota de sexualismo viril e a idéia de proteção, como também de luto. As mesas são
bastante diversas tanto em forma, tamanho ou colocação, esse símbolo significa lugar
de encontro tanto físico como espiritual (REVILLA, op. cit.), ou seja, um espaço de comunhão. Dentro do contexto surrealista,
o aparecimento de guarda-chuvas e de mesas nos cadavres exquis também encontra
relação na fórmula famosa de Lautréamont: “belo como o encontro de uma máquina de
costura e um guarda-chuva sobre uma mesa de dissecção”.
Do mesmo modo que as mesas, as
cadeiras aparecem em várias posições e em distintos tamanhos, e podem ter seu significado
relacionado com a dignidade de um personagem enquanto vivo e com o suporte da alma
depois de morto, como acreditam alguns povos da África negra (REVILLA, op. cit.).
Finalmente, as garrafas que de forma geral significam o
saber, conhecimentos secretos ou revelações vindouras (CHEVALLIER & GHEERBRANT,
2003). Cabe salientar que esses três últimos elementos – mesa, cadeira e garrafa
– estão intrinsecamente relacionados com o ambiente onde os cadavres exquis
eram produzidos e que é descrito com precisão por seus participantes – como já visto
anteriormente – demonstrando assim sua relevância nesse contexto.
Como se pode observar não foi realizada
uma análise iconográfica profunda dos símbolos e das imagens em que esses aparecem.
Na verdade, realizou-se uma pesquisa dos significados atribuídos aos símbolos mais
freqüentes a fim de propiciar um primeiro passo para uma leitura rápida dos cadavres
exquis apresentados. Cabe salientar, porém, que uma interpretação mais aprofundada
das imagens e seus símbolos se coloca de maneira instigante e necessária para pesquisas
futuras.
Considerações Finais
A maioria dos
símbolos encontrados tratam de elementos que eram considerados muito importantes
para os surrealistas na sua busca pela libertação da mente das amarras da razão.
Esses símbolos não têm seu aparecimento limitado aos cadavres exquis, ao
contrário, são encontrados em toda a produção surrealista. Isso demonstra que realmente
a prática desse jogo, não só resultava em uma produção coletiva significativa, como
também iria influenciar as produções individuais de cada um, na medida em que exercitava
a imaginação dos seus participantes aumentando assim seu repertório imagético e
simbólico.
Sob essa perspectiva, os cadavres exquis assumem uma importância,
em especial na primeira fase do movimento, que até então não foi estudada e pode
render uma excelente pesquisa, no sentido de buscar essas influências nas obras
individuais dos principais participantes do jogo. Sendo que analisar o processo
inverso, das obras individuais ao cadavres exquis, também seria bastante
produtivo, a fim de descobrir se os símbolos que aparecem são mesmo frutos do acaso
ou na verdade frutos de mentes impregnadas pelo labor diário. Muito provavelmente
se encontrará um feedback entre a produção coletiva e a individual. Averiguar
justamente quais são os pontos desse intercâmbio é um tema interessante para investigações
mais profundas sobre os cadavres exquis, seus antecedentes e suas influências
na produção surrealista.
NOTAS
1. Foram
encontrados poucos cadavres exquis realizados com a técnica de colagem.
2. Le
cadavre exquis: 1925-1936 – Galleria
d’arte Niccoli (Parma, 1984); Cadavre exquis – Galleria d’arte moderna Farsetti
(Prato,1990) e Il sogno rivela la natura delle cose – Fondazione Antonio
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FABIANE PIANOWSKI.
Professora adjunta do Instituto de Letras e Artes da Universidade Federal do Rio
Grande (FURG). Contato: fabiane.pianowski@gmail.com.
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SÉRIE PARTITURA DO MARAVILHOSO
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Agulha Revista de Cultura
UMA AGULHA NA MESA O MUNDO NO PRATO
Número 180 | setembro de 2021
Artista convidada: Virginia Tentindo (Argentina, 1931)
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