quarta-feira, 8 de setembro de 2021

GILDA SANTOS | Boas-vindas a um livro sobre Maria Lúcia Dal Farra

 


Gratidão, nos últimos tempos, tornou-se substantivo dos mais repetidos nas redes sociais, e, em decorrência, nas várias modalidades de discurso, falado ou escrito, sem diferenciação etária, cultural ou socioeconômica. Substituindo as flexões do verbo agradecer e seus sinônimos, ou a portuguesíssima fórmula obrigado/a, a palavra impôs-se como modismo. E, repetida a propósito de tudo e de nada, do mais sublime ao mais ínfimo, por vezes sem objeto específico, caímos na sua banalização, no esvaziamento do seu significado. Esse uso indiscriminado de gratidão, de conotações ancestralmente tão positivas, parece soar como atenuante do egocentrismo exacerbado que hoje testemunhamos partout. Muito invocada, vivencia-se pouco a sua semântica: o excesso como que disfarça a escassez. É certo que o descompasso entre o dizer e o praticar não é novidade, mas ocorrências como esta o tornam mais perceptível.

Na nossa área das Letras, e em particular nas letras luso-brasileiras, as efetivas manifestações de gratidão aos grandes mestres também rareiam e cada vez menos surgem gestos de homenagem, ou publicações do tipo Festschrift. Em Portugal, o reconhecimento aos “lusitanistas” que, mundo afora, se empenham na difusão da cultura que gerou Camões e Pessoa está longe de ser copioso. Exemplo claro é a série “Figuras da Lusofonia”, inaugurada nos anos 90 pelo então Instituto Camões, que não ultrapassou dois volumes: um dedicado à brasileira Cleonice Berardinelli, outro à italiana Luciana Stegagno-Picchio. Embora scholars brilhantes e devotadas, que cativaram e formaram gerações de estudiosos, não constituem casos únicos. E os demais?

Portanto, diante de tal quadro lacunar, há que aplaudir com entusiasmo este No Ardor dos Livros. Estudos sobre Maria Lúcia Dal Farra (Ana Luísa Vilela, Fábio Mário da Silva, Inês Pedrosa, Rosa Fina [Org.], Fortaleza/Natal: ARC Edições/Sol Negro Edições, 2021), que resulta do “Congresso Internacional 100 anos de Florbela Espanca, Homenagem a Maria Lúcia Dal Farra”, transcorrido nos dias 5 e 6 de dezembro de 2019 na Universidade de Lisboa e no dia 7 de dezembro na Câmara Municipal de Vila Viçosa. E, além de ser o registro impresso das sessões que enlaçaram as duas homenageadas, mas que o tempo naturalmente esbate, ainda mais louvor merece a iniciativa por já constituir “edição revista e aumentada” de A Crítica e a Poetisa. Estudos sobre Maria Lúcia Dal Farra (Recife: Libertas Ed., 2021), dos mesmos organizadores: Ana Luísa Vilela, Fábio Mario da Silva, Inês Pedrosa e Rosa Fina.

Transposta a enigmática capa e uma sucinta “Apresentação”, o volume, ao longo das quatro seções em que se divide, busca apreender várias das múltiplas facetas desta carismática mulher brasileira, professora, pesquisadora, ensaísta, pianista, poetisa e ficcionista que, entre outros dons, há mais de 50 anos, generosa e prazerosamente, partilha seu saber com todos quantos dela se aproximam, seja presencialmente, seja pela letra impressa.

Na entrevista que constitui o primeiro capítulo, sobriamente conduzida por Ana Luísa Vilela, ficamos a saber dos intensos anos infantis e juvenis de Maria Lúcia, em Botucatu, repletos de portas abertas para variadas experiências, que cedo a estimularam ao gosto pela leitura e pela escrita e aguçaram seu apetite pelos horizontes sem fim que a cultura descortina. Conhecemos também quais os grandes mestres que marcaram sua trajetória de estudante; seguimos suas andanças nacionais e internacionais voltadas para o estudo, a pesquisa e a docência; descobrimos como adentrou o vasto mundo da poesia e como se aproximou das figuras mais priorizadas em seus ensaios.

Ampliando os aportes biográficos, agora em voz alheia, passamos ao campo do afeto e do tributo, pois, no segundo capítulo, lemos depoimentos de ex-alunos, colegas e amigos, que nos pintam um retrato de MLDF envolto em boas lembranças, do início dos anos 70 até a atualidade.

Assim, Ana Maria Domingues de Oliveira, em “Roxo é a cor mais quente”, recua a 1978, quando iniciava a sua graduação em Letras na Unicamp e conhece a professora “tão decisiva na [sua] formação”, a “mestra querida” que – apesar do afastamento desta para o estágio pós-doutoral em Paris e a posterior mudança para o Sergipe – não cessa de lhe ensinar heteróclitas “coisas”, parte das quais, num esforço de síntese, recupera em quase vinte parágrafos anafóricos (“Aprendi que...”), escritos com matizes do puro lirismo. Deste aprendizado levado para a vida profissional sobressai o ler o poema e suas veredas, o valor da pesquisa e da documentação, o “ouvir as vozes das mulheres que escrevem e a pensar e escrever sobre essas vozes”.


Por seu turno, Marlise Vaz Bridi, em “É tudo verdade”, começa por recordar a USP de 1971, “no rescaldo do AI5”, que foi o cenário do encontro entre “a jovem e brilhante professora de Literatura Portuguesa” e a pouco mais jovem aluna. Pelas mãos da mestra, descobre o escritor contemporâneo, e “vivo”, que seria objeto da dissertação de Mestrado de MLDF, publicada em livro como O Narrador ensimesmado – o foco narrativo em Vergílio Ferreira, ainda obra de referência incontornável sobre o autor. As diretrizes e o exemplo de rigor da mestra sobrepuseram-se aos sobressaltos do momento político brasileiro, repleto de cenas de desmando e violência, e alicerçaram a carreira acadêmica da signatária.

No texto coletivo “Homenagem a Maria Lúcia”, composto por participantes do Grupo “Figurações do Feminino: Florbela et alii”, registrado no Diretório de Pesquisas do CNPq, é sublinhado o inestimável contributo dalfarriano aos estudos sobre a poetisa de Vila Viçosa, em perspectivas inovadoras e alargadas a uma dimensão multinacional. A par do relevo ao pendor investigativo inigualável, não faltam menções às qualidades humanas da líder da equipe.

A escritora portuguesa Inês Pedrosa, em nova homenagem, rememora o encontro pessoal com MLDF na Universidade de Berkeley e, sem deixar de enaltecer sua “poesia relampejante e cirúrgica”, traça a trajetória da homenageada pelos veios da Literatura Portuguesa, sublinhando seus pioneiros e substanciais aportes aos estudos sobre Vergílio Ferreira, Herberto Helder e Florbela Espanca.

O testemunho de outro ex-aluno-hoje-colega encerra esta seção. Paulo Motta Oliveira assina o texto “Por corredores que não dão para dentro: Maria Lúcia e alguns mais”, no qual, entre evocações de fotos, músicas, aulas, livros, autógrafos, encontros, descobertas e congressos, nos apresenta mais ângulos que distinguem a homenageada, sendo o fulgor de seu talento, a generosidade intelectual e a imensa disponibilidade para o diálogo talvez as mais marcantes.

O terceiro capítulo é dedicado à tradução da poesia de MLDF, num tríptico notável. Chris Gerry, em “To Maria Lúcia and Florbela. With Love”, verte para o inglês os oito poemas sob o título “De Florbela para Pessoa. Com amor”, primeiramente publicados na revista Pessoa Plural, em 2015, nos quais versos florbelianos e pessoanos se entrelaçam com os da signatária, num poético triângulo amoroso, a partir da originalíssima ideia de uma mensagem-poema dirigida ao criador de heterônimos pela autora de Charneca em Flor. Em notas minuciosas, que enriquecem o seu não menos minucioso trabalho, Gerry oferta ao leitor as chaves para uma apreensão segura do denso tecido intertextual que constitui essa espantosa sequência poética.

“Maria Lúcia Dal Farra em italiano: entre traição e tradução” é o ensaio de Matteo Pupillo calcado nos poemas “Definição imprópria”, “Manga” e “Povoamento” agora na língua de Dante, sem deixar de debater várias questões que a arte/ciência de traduzir suscita, nem de apontar pertinentes linhas de leitura quer para os versos traduzidos, quer para a própria poética da autora.

Já Mercedes Gomez Almeida, em “Un violeta iridiscente”, transpõe para o castelhano, com elucidativas e abundantes notas, os poemas “João e Joan” (seguido da tradução do aí aludido poema de João Cabral de Melo Neto), “Quiromancia” e “Manga” – os quais permitem à tradutora, e aos leitores de Maria Lúcia, “escuchar el canto de una mujer plena, preñada de plurales”.

Por fim, o quarto e mais longo capítulo compõe-se de 16 textos críticos que focalizam alguma da produção de MLDF, com largo privilégio dado à sua poesia, seguido dos seus contributos ensaísticos sobre Florbela e outras vozes femininas. Contudo, a ficcionista não é esquecida.


Terceto para o fim dos tempos, de 2017, emerge como o livro mais revisitado, merecendo a atenção de Adriana Sacramento, Iná Camargo Costa e da dupla Iracema Goor e Annita Costa Malufe. A primeira, no ensaio “Corpo político: espaço de arte, literatura e liberdade em Terceto para o fim dos tempos” percorre suas várias seções com base no substancial Eros e civilização, de Herbert Marcuse, para revelar a fala feminina alçada a ato político e libertário. A segunda, em “Sobre um Terceto”, modula sua leitura convocando o “Quarteto para o fim dos tempos”, composto pelo francês Olivier Messiaen quando se encontrava prisioneiro dos nazistas, como primeira das numerosas referências interartes e intertextuais que os poemas suscitam. Quanto às duas ensaístas de “Labirintos da memória em Terceto para o fim dos tempos”, tomam o Henri Bergson de Matéria e Memória e o T. S. Eliot de The Waste Land como fios de Ariadne para capturarem os superpostos tempos e espaços que a voz poética atravessa. Situada na segunda. seção do mesmo livro, a sequência “De Florbela para Pessoa. Com Amor”, a mesma traduzida e comentada por Chris Gerry, ganha atentas abordagens de Claudia Pazos Alonso, Jonas Leite e Isa Margarida Vitória Severino. A primeira, no ensaio “Maria Lúcia e Florbela, clarividências”, inspeciona a “teia de significados que acentua a paridade entre os dois poetas, mercê de um genial processo de montagem” e destaca “a justaposição combinatória [que] funciona para guiar a nossa percepção e abrir um leque de novos significados”. Nas páginas sob a variação “De Maria Lúcia Dal Farra para Florbela Espanca, com Amor”, o segundo discorre sobre a referida suite, mas, desta feita, só depois de resgatar as coincidências “pessoais” e contextuais entre Fernando Pessoa e Florbela, investigadas por MLDF e tornadas propulsoras dos entrecruzamentos alusivos que singularizam o continuum dos oito poemas. E a terceira toma do título o mote para uma original glosa epistolar, em “De Florbela para Maria Lúcia, com gratidão”: uma carta florbeliana endereçada a seus almejados leitores – consubstanciados na sua maior exegeta brasileira –, na qual, pelo entretecer de citações da “emissária”, encontramos muito do que hoje se sabe sobre Florbela graças MLDF.

Optando pelo minimalismo, alguns ensaístas elegeram poemas dalfarrianos para análise mais minuciosa. Destarte, Catherine Dumas, em “A herança segundo Maria Lúcia Dal Farra”, rastreia o substrato da morte no poema “Herança”, um dos dez publicados pela revista Agulha, em maio de 2018. A dupla Fabio Mario da Silva e Paulo Geovane e Silva, que assina “Os significados do ‘fruto proibido’ em dois poemas de Maria Lúcia Dal Farra”, debruça-se precisamente sobre “Fruto Proibido”, do Livro de Auras (1994) e “Maçã”, do Livro dos Possuídos (2002), deles fazendo emergir, a partir da matriz bíblica, “o mundo do desejo e das figurações do erotismo, do canibalismo amoroso”. Kalina Naro Guimarães, autora de “Coisas de mulher em dois poemas de Maria Lúcia Dal Farra” (um recorte de sua tese de doutorado sobre a lírica da homenageada), também retoma o Livro de Auras e destaca “Segredos culinários” e “Receita de parmeggiana”, como claves de questionamentos e ambiguidades em torno do cotidiano feminino e do fazer doméstico. E Rafael Campos Quevedo, no translúcido “Metáfora náutica na lírica amorosa de Maria Lúcia Dal Farra: leitura do poema ‘Amor’, do livro Alumbramentos (2012)”, oferece-nos precioso rastreio das fontes clássicas que enriquecem o topos naval e desaguam no poema.

Noutra vertente, Edson Santos Silva incumbiu-se de resenhar a antologia Alguns poemas, de Maria Lúcia Dal Farra, com organização, seleção e estudos introdutórios de Fabio Mario da Silva e Ana Luisa Vilela, vinda à luz em 2019, numa edição portuguesa que contempla os cinco livros de poesia da autora, na qual são enfatizados “dois veios temáticos: o da memória e da casa e o do diálogo com outros artistas (poetas e pintores) em perfeito casamento com um universo vegetal e hortícola”. No campo da ficção, Helder Garmes reflete, em “Urdidura narrativa e memória em Inquilina do Intervalo de Maria Lúcia Dal Farra”, sobre o “ciclo de contos” publicado em 2005, que, até o momento, constitui o único volume da autora dedicado à prosa ficcional. Dos 25 que compõem a coletânea, Garmes destaca cerca de uma dezena para observar recorrências de personagens, de espaços domésticos e familiares, de flashes biográficos, de alusões datadas (como a da imigração italiana e alemã no interior paulista), a fim de sublinhar o contínuo “embaralhar de ficção e realidade” que leva à reflexão metaliterária e solicita a cumplicidade do leitor.


Dos textos que aludem ao ensaísmo dalfarriano, sobressaem, como seria de prever pelo escopo do livro, os que recuperam Florbela Espanca e mais vozes femininas, nas quais se incluem a da própria homenageada. Nesse viés, o ensaio de Deolinda Adão, “Diálogos poéticos em tons de lilás e roxo”, depois de percorrer os traços definidores de “Soror Saudade”, corroborando reflexões críticas da brasileira, inclui esta última numa “panóplia poética de excelência” para afirmar que “Maria Lúcia Dal Farra magistralmente tece uma obra poética que, embora entre em diálogo com a da primeira, a completa”, como uma “alma gêmea”. Ampliando simbioses, Rogéria Alves Freire, em “A subversão do papel feminino em Florbela Espanca, Mariana Alcoforado e Maria Lúcia Dal Farra”, recupera uma cronologia que se estende dos tempos de D. Dinis ao atual, com ênfase nas “Três Marias” das emblemáticas Novas Cartas Portuguesas, para irmanar autoras na conquista de “um novo caminho ou uma outra releitura possível da voz feminina de resistência”. Também por essa trilha segue Ivo Falcão da Silva, no ensaio “A Florbela e a Gilka Machado de Maria Lúcia Dal Farra”, no qual, após largamente destacar a reflexão crítica dalfarriana sobre as duas nomeadas (com similitudes várias, apesar da distância temporal e espacial), chega à poesia da própria ensaísta, e, com base no “processo arqueológico” de análise que detecta em MLDF, exemplifica com alguns de seus poemas a “potência transmutacional de sua escrita”, simultaneamente única e comunitária face às demais dicções femininas examinadas. Finalmente, Patrícia da Silva Cardoso, em “As palavras e suas formas concretas. Uma poética de Fiama Hasse Paes Brandão”, relembra o ensaio de MLDF “O cisne e seu canto: leitura dos poemas de Fiama por Adília Lopes ou Fiama na letra de Adília”, como argumento para enveredar por uma ampla reflexão sobre a obra de Fiama, embasada sobretudo nos títulos Homenagem à literatura e Sob o olhar de Medeia.

Traçada essa extensa cartografia da poliédrica MLDF, muito ainda haveria a referir. Se, como todos desejamos, logo vier à luz uma terceira edição da coletânea (talvez com uma capa em tons de lilás...), fica aqui consignada a proposta de que inclua uma breve cronologia biobibliográfica da homenageada, agrupando o que encontramos pulverizado por estas quase 300 páginas, as quais, inegavelmente, disponibilizam ricos subsídios a quantos desejem ler ou reler sua obra e a dos escritores de sua constelação.

A palavra “obrigado/a” ecoa loudly and clearly ou implicitamente por todos os textos. Porém, o título “De Florbela para Maria Lúcia, com gratidão” como que sintetiza o quanto os autores estudados por MLDF devem à sua amorosa agudeza, ao seu luminoso pensar. E o quanto, todos os que leem o que ela escreve, na palavra escrita, sentem bem o quanto também lhe devem. Enfim, estamos diante de um volume que recupera o sentido pleno da palavra gratidão.

 


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Número 180 | setembro de 2021

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