Na
nossa área das Letras, e em particular nas letras luso-brasileiras, as efetivas
manifestações de gratidão aos grandes mestres também rareiam e cada vez menos surgem
gestos de homenagem, ou publicações do tipo Festschrift. Em Portugal, o reconhecimento aos “lusitanistas”
que, mundo afora, se empenham na difusão da cultura que gerou Camões e Pessoa está
longe de ser copioso. Exemplo claro é a série “Figuras da Lusofonia”, inaugurada
nos anos 90 pelo então Instituto Camões, que não ultrapassou dois volumes: um dedicado
à brasileira Cleonice Berardinelli, outro à italiana Luciana Stegagno-Picchio. Embora
scholars brilhantes e devotadas, que cativaram e formaram gerações de estudiosos,
não constituem casos únicos. E os demais?
Portanto,
diante de tal quadro lacunar, há que aplaudir com entusiasmo este No Ardor dos
Livros. Estudos sobre Maria Lúcia Dal Farra (Ana Luísa Vilela, Fábio Mário da Silva, Inês Pedrosa, Rosa Fina [Org.], Fortaleza/Natal:
ARC Edições/Sol Negro Edições, 2021), que resulta do “Congresso Internacional
100 anos de Florbela Espanca, Homenagem a Maria Lúcia Dal Farra”, transcorrido nos
dias 5 e 6 de dezembro de 2019 na Universidade de Lisboa e no dia 7 de dezembro
na Câmara Municipal de Vila Viçosa. E, além de ser o registro impresso das sessões
que enlaçaram as duas homenageadas, mas que o tempo naturalmente esbate, ainda mais
louvor merece a iniciativa por já constituir “edição revista e aumentada” de
A Crítica e a Poetisa. Estudos sobre Maria Lúcia Dal Farra (Recife: Libertas
Ed., 2021), dos mesmos organizadores: Ana Luísa Vilela, Fábio Mario da Silva, Inês
Pedrosa e Rosa Fina.
Transposta
a enigmática capa e uma sucinta “Apresentação”, o volume, ao longo das quatro seções
em que se divide, busca apreender várias das múltiplas facetas desta carismática
mulher brasileira, professora, pesquisadora, ensaísta, pianista, poetisa e ficcionista
que, entre outros dons, há mais de 50 anos, generosa e prazerosamente, partilha
seu saber com todos quantos dela se aproximam, seja presencialmente, seja pela letra
impressa.
Na
entrevista que constitui o primeiro capítulo, sobriamente conduzida por Ana Luísa
Vilela, ficamos a saber dos intensos anos infantis e juvenis de Maria Lúcia, em
Botucatu, repletos de portas abertas para variadas experiências, que cedo a estimularam
ao gosto pela leitura e pela escrita e aguçaram seu apetite pelos horizontes sem
fim que a cultura descortina. Conhecemos também quais os grandes mestres que marcaram
sua trajetória de estudante; seguimos suas andanças nacionais e internacionais voltadas
para o estudo, a pesquisa e a docência; descobrimos como adentrou o vasto mundo
da poesia e como se aproximou das figuras mais priorizadas em seus ensaios.
Ampliando
os aportes biográficos, agora em voz alheia, passamos ao campo do afeto e do tributo,
pois, no segundo capítulo, lemos depoimentos de ex-alunos, colegas e amigos, que
nos pintam um retrato de MLDF envolto em boas lembranças, do início dos anos 70
até a atualidade.
Assim,
Ana Maria Domingues de Oliveira, em “Roxo é a cor mais quente”, recua a 1978, quando
iniciava a sua graduação em Letras na Unicamp e conhece a professora “tão decisiva
na [sua] formação”, a “mestra querida” que – apesar do afastamento desta para o
estágio pós-doutoral em Paris e a posterior mudança para o Sergipe – não cessa de
lhe ensinar heteróclitas “coisas”, parte das quais, num esforço de síntese, recupera
em quase vinte parágrafos anafóricos (“Aprendi que...”), escritos com matizes do
puro lirismo. Deste aprendizado levado para a vida profissional sobressai o ler
o poema e suas veredas, o valor da pesquisa e da documentação, o “ouvir as vozes
das mulheres que escrevem e a pensar e escrever sobre essas vozes”.
No
texto coletivo “Homenagem a Maria Lúcia”, composto por participantes do Grupo “Figurações
do Feminino: Florbela et alii”, registrado no Diretório de Pesquisas do CNPq,
é sublinhado o inestimável contributo dalfarriano aos estudos sobre a poetisa de
Vila Viçosa, em perspectivas inovadoras e alargadas a uma dimensão multinacional.
A par do relevo ao pendor investigativo inigualável, não faltam menções às qualidades
humanas da líder da equipe.
A
escritora portuguesa Inês Pedrosa, em nova homenagem, rememora o encontro pessoal
com MLDF na Universidade de Berkeley e, sem deixar de enaltecer sua “poesia relampejante
e cirúrgica”, traça a trajetória da homenageada pelos veios da Literatura Portuguesa,
sublinhando seus pioneiros e substanciais aportes aos estudos sobre Vergílio Ferreira,
Herberto Helder e Florbela Espanca.
O
testemunho de outro ex-aluno-hoje-colega encerra esta seção. Paulo Motta Oliveira
assina o texto “Por corredores que não dão para dentro: Maria Lúcia e alguns mais”,
no qual, entre evocações de fotos, músicas, aulas, livros, autógrafos, encontros,
descobertas e congressos, nos apresenta mais ângulos que distinguem a homenageada,
sendo o fulgor de seu talento, a generosidade intelectual e a imensa disponibilidade
para o diálogo talvez as mais marcantes.
O
terceiro capítulo é dedicado à tradução da poesia de MLDF, num tríptico notável.
Chris Gerry, em “To Maria Lúcia and Florbela. With Love”, verte para o inglês os
oito poemas sob o título “De Florbela para Pessoa. Com amor”, primeiramente publicados
na revista Pessoa Plural, em 2015, nos quais versos florbelianos e pessoanos
se entrelaçam com os da signatária, num poético triângulo amoroso, a partir da originalíssima
ideia de uma mensagem-poema dirigida ao criador de heterônimos pela autora de Charneca
em Flor. Em notas minuciosas, que enriquecem o seu não menos minucioso trabalho,
Gerry oferta ao leitor as chaves para uma apreensão segura do denso tecido intertextual
que constitui essa espantosa sequência poética.
“Maria
Lúcia Dal Farra em italiano: entre traição e tradução” é o ensaio de Matteo Pupillo
calcado nos poemas “Definição imprópria”, “Manga” e “Povoamento” agora na língua
de Dante, sem deixar de debater várias questões que a arte/ciência de traduzir suscita,
nem de apontar pertinentes linhas de leitura quer para os versos traduzidos, quer
para a própria poética da autora.
Já
Mercedes Gomez Almeida, em “Un violeta iridiscente”, transpõe para o castelhano,
com elucidativas e abundantes notas, os poemas “João e Joan” (seguido da tradução
do aí aludido poema de João Cabral de Melo Neto), “Quiromancia” e “Manga” – os quais
permitem à tradutora, e aos leitores de Maria Lúcia, “escuchar el canto de una mujer
plena, preñada de plurales”.
Por
fim, o quarto e mais longo capítulo compõe-se de 16 textos críticos que focalizam
alguma da produção de MLDF, com largo privilégio dado à sua poesia, seguido dos
seus contributos ensaísticos sobre Florbela e outras vozes femininas. Contudo, a
ficcionista não é esquecida.
Optando
pelo minimalismo, alguns ensaístas elegeram poemas dalfarrianos para análise mais
minuciosa. Destarte, Catherine Dumas, em “A herança segundo Maria Lúcia Dal Farra”,
rastreia o substrato da morte no poema “Herança”, um dos dez publicados pela revista
Agulha, em maio de 2018. A dupla Fabio Mario da Silva e Paulo Geovane e Silva,
que assina “Os significados do ‘fruto proibido’ em dois poemas de Maria Lúcia Dal
Farra”, debruça-se precisamente sobre “Fruto Proibido”, do Livro de Auras
(1994) e “Maçã”, do Livro dos Possuídos (2002), deles fazendo emergir, a
partir da matriz bíblica, “o mundo do desejo e das figurações do erotismo, do canibalismo
amoroso”. Kalina Naro Guimarães, autora de “Coisas de mulher em dois poemas de Maria
Lúcia Dal Farra” (um recorte de sua tese de doutorado sobre a lírica da homenageada),
também retoma o Livro de Auras e destaca “Segredos culinários” e “Receita
de parmeggiana”, como claves de questionamentos e ambiguidades em torno do cotidiano
feminino e do fazer doméstico. E Rafael Campos Quevedo, no translúcido “Metáfora
náutica na lírica amorosa de Maria Lúcia Dal Farra: leitura do poema ‘Amor’, do
livro Alumbramentos (2012)”, oferece-nos precioso rastreio das fontes clássicas
que enriquecem o topos naval e desaguam no poema.
Noutra
vertente, Edson Santos Silva incumbiu-se de resenhar a antologia Alguns
poemas, de Maria Lúcia Dal Farra, com organização, seleção e estudos
introdutórios de Fabio Mario da Silva e Ana Luisa Vilela, vinda à luz em 2019, numa
edição portuguesa que contempla os cinco livros de poesia da autora, na qual são
enfatizados “dois veios temáticos: o da memória e da casa e o do diálogo com outros
artistas (poetas e pintores) em perfeito casamento com um universo vegetal e hortícola”.
No campo da ficção, Helder Garmes reflete, em “Urdidura narrativa e memória em Inquilina
do Intervalo de Maria Lúcia Dal Farra”, sobre o “ciclo de contos” publicado
em 2005, que, até o momento, constitui o único volume da autora dedicado à prosa
ficcional. Dos 25 que compõem a coletânea, Garmes destaca cerca de uma dezena para
observar recorrências de personagens, de espaços domésticos e familiares, de flashes
biográficos, de alusões datadas (como a da imigração italiana e alemã no interior
paulista), a fim de sublinhar o contínuo “embaralhar de ficção e realidade” que
leva à reflexão metaliterária e solicita a cumplicidade do leitor.
Traçada
essa extensa cartografia da poliédrica MLDF, muito ainda haveria a referir. Se,
como todos desejamos, logo vier à luz uma terceira edição da coletânea (talvez com
uma capa em tons de lilás...), fica aqui consignada a proposta de que inclua uma
breve cronologia biobibliográfica da homenageada, agrupando o que encontramos pulverizado
por estas quase 300 páginas, as quais, inegavelmente,
disponibilizam ricos subsídios a quantos desejem ler ou reler sua obra e a dos escritores
de sua constelação.
A
palavra “obrigado/a” ecoa loudly and clearly ou implicitamente por todos os textos. Porém, o título
“De Florbela para Maria Lúcia, com gratidão” como que sintetiza o quanto os autores
estudados por MLDF devem à sua amorosa agudeza, ao seu luminoso pensar. E o quanto,
todos os que leem o que ela escreve, na palavra escrita, sentem bem o quanto também
lhe devem. Enfim, estamos diante de um volume que recupera o sentido pleno da palavra
gratidão.
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SÉRIE PARTITURA DO MARAVILHOSO
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Agulha Revista de Cultura
UMA AGULHA NA MESA O MUNDO NO PRATO
Número 180 | setembro de 2021
Artista convidada: Virginia Tentindo (Argentina, 1931)
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