1. Corra! Direção: Jordan Peele. Estados
Unidos, 2017.
Um homem negro fala ao celular em um bairro suburbano
estadunidense, perdido na confusão dos nomes que batizam as ruas. De repente, um
automóvel passa por ele, faz retorno e o segue devagar. O homem percebe, desconfia
da situação, intui o perigo iminente. Quando se acredita livre do horror que estava
à espreita, é capturado. Essa é a primeira cena de Corra! (Get out). No imaginário,
o subúrbio é o lar dos conservadores brancos e dos libertários de fachada. A imagem
é um momento de tensão e uma mostra dos símbolos, da desconstrução (que subverte
os clichês-sustentáculos de vários gêneros cinematográficos) e da caracterização
do racismo institucional, que se faz de invisível, que o longa-metragem de Jordan
Peele percorre em seus 104 minutos.
A abertura nos remete
à personagem negra descartada logo no início de um filme de terror B ou de medo
para adolescentes pós-Pânico (1996) e ainda alude à vulnerabilidade de se andar
sozinho, sem ter para onde correr, que é típico do gênero – no caso, em bairro consagrado
pela dinâmica do capitalismo dos bem-sucedidos,
da gente de bem (será o mascarado em um
carro branco algum tipo de justiceiro?). No lugar da floresta e do rapaz/moça branca
em território desconhecido, temos um negro, o suspeito por excelência. A cena seguinte apresenta Chris (Daniel Kaluuya) – fotógrafo
de sucesso – e sua namorada Rose, interpretada por Allison Williams, que discutem
uma viagem a casa dos pais dela. Cris interpela se os progenitores da amada sabem
que ela está em um relacionamento interracial. A jovem responde: O meu pai teria votado em Obama pela terceira
vez se pudesse. Ele não é racista. A sentença, misto de convicção e resposta
adequada, tranquiliza Cris, no entanto, não afasta a sombra da desconfiança.
Após o momento romântico
do casal protagonista, enfrentar os subúrbios da América, suas casas que esbanjam
tradição e liberalismo, já traz uma primeira tensão, a primeira fagulha de um racismo
naturalizado. Enquanto Rose se indigna por um policial pedir os documentos de Cris,
logo após ela atropelar um cervo, o rapaz reage com diplomacia, segue a cartilha,
pois conhece as consequências de se contestar a autoridade. Se a revolta de Rose não gera uma reação exaltada do policial,
caso fosse Cris, o que sucederia?
Na casa vivem os
pais de Rose, o casal Armitage – Dean e Missy – (Bradley Whitford e Catherine Keener),
o irmão, Jeremy (Caleb Landry Jones), uma criada (Betty Gabriel) e um jardineiro
(Marcus Henderson), ambos afro-americanos. Cris é bem-recebido. Porém, há uma alta
dose de esforço para agradar ao jovem namorado da filha adorada. Uma predominância
do exagero. Quando Jeremy entra em cena, suas observações sobre o vigor do corpo
negro lançam o incômodo ao status de tensão.
A liberdade política,
a consagração de uma harmonia racial e a felicidade que estabelece uma ordem cultivada
pelo respeito às diferenças ganham contornos sinistros e se impõem como mistérios
a partir do estranho comportamento dos empregados (que apresentam um olhar vazio,
destituído de emoção, e um cumprimento inautêntico do dever), e da cura pela hipnose,
que Missy usa como método em sua terapia. Há um enigma na residência e sua plástica
harmonia vai cedendo aos poucos, revelando o que há de aterrador e cruel neste mundo
em que o Outro transita entre o indesejado e o descartável.
Peele constrói sua
obra fílmica de estreia usando como suportes o terror psicológico e o terror satírico,
sabendo dosá-los e aplicá-los a cada momento. Quando Cris é hipnotizado, supostamente
para pôr fim ao seu vício em cigarro, o horror começa a surgir nos detalhes (mas
não antes de uma surreal queda em uma cova), equilibrando comentários estampados
em um racismo que não se reconhece como tal e a construção de uma sensação de claustrofobia
que cerca Cris por todos os lados, aumentando a angústia da personagem e a agonia
do espectador.
Para a edificação
do pesadelo escondido por trás de sorrisos generosos e atitudes solícitas, contribuem
a fotografia, com planos abertos que trabalham o espaço, aumentando o suspense e
closes que afinam o que o filme tem de perturbador, os efeitos sonoros que sinalizam
o pesadelo que está por vir, a trilha sonora e um elenco nada menos que espetacular
(Kaluuya e Keener, principalmente). LilRel Howery, interpretando Rod Williams, guarda
e melhor amigo, é responsável pelo alívio cômico, contudo, a comédia promovida por
ele, com comentários sobre brancos capturando negros para fazê-los de escravos sexuais,
não destoa da ansiedade que petrifica Cris e a audiência, pois baseia-se em incertezas
e desconfortos que compõem a tensão subjacente de ser minoria em territórios da
classe dominante.
Corra! Guarda semelhanças com a estrutura de muitos filmes de terror e suspense:
De As Esposas de Stepford (1975, de Bryan Forbes) a A Chave Mestra
(de 2005, com Kate Winslet) entre outros. Mas os usa para subverter clichês, expondo-os
para dar uma direção inesperada a eles. Frustrar as expectativas das convenções
do horror serve para desmontar o racismo existente nas relações interpessoais, em
que o negro é objeto de culto, por sua cultura e sua força, mas acusado de promover
separações quando suas reivindicações ecoam mais fortemente.
Corra! trata de corpos negros (de minorias) expostos como mercadoria. A sua velocidade,
a sua beleza, o seu olhar artístico, que podem se diferenciar da compreensão padrão
que satura ao máximo fórmulas já desgastadas, são artigos desejados, porém desde
que venham sem a pele. A relação com o Outro é intermediada, ou tem valor, a partir
do que ele tem para oferecer. Não há uma troca, um entendimento, mas uma prestação
de serviço ou usurpação.
Se, em Quero Ser
John Malkovich (1999, de Spike Jonze), outro filme carnavalizado pelo roteiro
de Jordan Peele, a aspiração é depositada na vida eterna, em Corra!, a apropriação
de uma qualidade, seja física ou intelectual, e a manipulação de um capital cultural
ou de um atributo da genética, controlando a mente de seu agente, são o que está
em jogo.
A obra inaugural
de Peele é um filme de terror psicológico, no qual aparência e símbolo estão em
confronto constante para revelar um subtexto social que entrega o racismo como a
fratura exposta que ele ainda é. Na verdade, o quanto a aceitação que parece ignorar
a existência dos conflitos varre para debaixo dos panos as discriminações e preconceitos
diários, enquanto enaltece as qualidades que deseja ressaltar no Outro. Corra!:
uma brincadeira cinematográfica, uma crítica social.
2. A Separação.
Direção: Asghar Farhadi. Irã, 2011.
Do dilema inicial que movimenta A Separação,
o divórcio do bancário Naader (Peyman Moaadi) e da professora Simin (Leila Hatami)
– ela quer viajar com a filha, de 11 anos, para os Estados Unidos, em busca de melhores
oportunidades, e ele insiste em permanecer em Teerã, para cuidar do pai idoso, que
sofre de Alzheimer –, podemos depreender que se trata de um casal que ainda se ama,
de situação financeira abastada, que coloca no centro de seu rompimento a justificativa
de crescimento intelectual (Simin) e de garantia da saúde física/mental (Naader)
dos seres dependentes dele – a criança e o idoso – e a apresentação dos costumes
e das leis iranianas ainda como entraves ao progresso sociocultural (envolvendo
também política e sistema judiciário). Já na primeira cena, Naader e Simin estão
no tribunal, o homem se recusa a conceder o divórcio, estabelecendo aí o fervilhar
do drama familiar que ausculta o Irã contemporâneo.

E da altercação entre
os cônjuges, tradição e modernidade conflitam no que as posições de Naader e Simin
traduzem em relação àqueles que não legislam sobre si mesmos. A menina Termeh (Sarina
Farhadi), filha do casal, é uma espectadora do imbróglio, mas alguém que assiste
plena de sua possibilidade, e seus limites, de resistência à situação. A ela, Simin
intenciona o reconhecimento intelectual e a liberdade que são interditas às mulheres
no país. Enquanto o idoso, pai de Naader, tem seus lampejos de sanidade, no entanto,
seu estado já aponta a avançada deterioração de sua capacidade mental. Naader defende
os cuidados requeridos pelo patriarca. Criança e idoso estão no olho da furação,
distantes do palco em que as decisões são tomadas. A encenação desse Irã rigoroso,
em seu impasse de conciliação entre a manutenção dos costumes e os avanços sociais
(e culturais) para propulsionar à economia, revela o microcosmo dessas tensões que,
se não estão na superfície, irrompem em seu subterrâneo (A Separação não
é propriamente um filme político), já que não há regime que consiga esconder suas
contradições e opressões sem lidar com revoltas internas, sejam políticas, sejam
comportamentais.
O cineasta Asghar
Farhadi amplia o alcance de seu filme do micro, da disputa no cerne da família nuclear,
para o macro ao introduzir na trama Razieh (uma excelente Sareh Bayat), que, contratada
para cuidar do pai Naader, carrega as tensões sociais do país e suas contradições
(e, evidentemente, da condição da mulher). Razieh esconde que está grávida e tem
dificuldades de exercer o trabalho, já que precisa dar banho no idoso e trocá-lo
e o temor de estar cometendo algum pecado em relação aos gestos de cuidado, atormentam-na.
A certa altura, Razieh age de maneira imprudente no serviço – ocorrência que provoca
a sua demissão –, o que conduz a um incidente envolvendo a ela e Naadar. As consequências
da indignação do bancário colocam em cena Hojjat (Shahab Hosseini), marido de Razieh,
um homem agressivo que cobra justiça para o fato. Naadar, que, apesar de pai amoroso
e filho dedicado, mostra-se um homem arrogante, negando-se a qualquer acordo a respeito
do episódio.
Da contenda entre
os homens, do dilema de uma falsa acusação ou da prática de uma lei que desfavorece
aqueles que não têm poder aquisitivo, Farhadi investiga o quanto a verdade é relativa.
E quando observa a devoração dessa verdade pelo desejo de convencimento e pela persuasão,
o que significa extrapolar o âmbito da ética e fazer de tudo para ganhar uma causa,
A Separação revela-se como um registro de equívocos que expõe não somente
as falhas do ser humano, mas também do sistema, seja judiciário, econômico ou religioso.
Aos poucos, cada
personagem apela para um procedimento questionável na tentativa de demonstrar e
confirmar a sua razão. Mesmo Termeh perde a inocência, pressionada a cometer perjúrio.
As situações-limite
são bem apresentadas e exploradas pelo roteiro, que, com a direção segura de Farhadi,
aborda com espírito crítico preciso questões controversas e a ambiguidade e impulsividade
de suas personagens.
Asghar Farhadi ultrapassa
as fronteiras do Irã construindo uma obra que toca em temas universais, enfrentando,
sem dirimir sua complexidade, como dignidade e responsabilidade são reféns de propósitos
egoístas que se impõem para tornar tênue a linha divisória entre o chamado certo
ou errado – como dívida de ordem financeira e preservação do orgulho.
Em suas várias camadas,
que se desenrolam com potência, A Separação evoca que, em uma disputa belicosa
de argumentos e brutalidade, quem perde é o lado mais frágil, aqueles que não podem
reivindicar sua vontade sem qualquer restrição (ainda mais em um sistema burocrático
e religioso). Termeh e Somayeh, filha do casal Hojjat e Razieh, são as maiores vítimas
da teia de mentiras e da ferocidade que toma os contendores. A culpa dos pais desnorteia
suas crias.
A revelação do Irã
moderno com suas divisões – e subdivisões – em gênero, classe e religião, mas com
um apelo emocional que se comunica com muitas realidades sociais fez de A Separação
uma obra que amealhou diversos prêmios: o Urso de Ouro em Berlim, o Globo de Ouro
e o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, além do Bafta, na mesma categoria.
3. Respire.
Direção: Mélanie Laurent. França, 2014.
Mélanie Laurent é uma excelente atriz. A judia francesa
Shoshana, proprietária de cinema, que interpreta em Bastardos Inglórios (2009),
de Quentin Tarantino, atesta essa afirmação. E, desde 2011, com seu filme de estreia
Les Adoptés, Melánie vem dando sinais de ser uma cineasta que não tem receio
de se arriscar (em seu currículo ainda há o documentário Demain, codirigido
por Cyril Dion, premiado no César 2016, e o drama Plonger, de 2017). Em Respire
(2014), ela se ampara em um roteiro denso e nas interpretações soberbas de duas
jovens atrizes (Joséphine Japy e Lou De Laage, concorrentes no César 2015 na categoria
Atriz Revelação). Adaptação do romance homônimo de Anne-Sophie Brasme, publicado
em 2001 (que rendeu a Brasme, aos 18 anos, o Prix Contrepoint, em 2002, concedido a jovens talentos da literatura francesa), Respire trata da relação
de duas amigas de colégio – e fora dele –, que vão da afinidade instantânea à intimidação
e maltrato implacáveis.
Com belos planos
gerais e abertos, Mélanie constrói um poema visual permissivo e perverso, no qual
Charlie, diminutivo de Charlène (Joséphine Japy), uma adolescente introvertida –
mas que cultiva boas amizades –, afetuosa – porém mortificada pelo casamento conflituoso
dos pais – e ainda assim deslocada, fascina-se pela nova aluna, Sarah (Lou De Laage),
que é encantadora, exótica, impulsiva e misteriosa. As personalidades díspares das
garotas se atraem e elas passam a ser grandes amigas. Sarah frequenta a casa de
Charlie, sabe do tenso convívio dos seus pais, do colapso do casamento. Elas compartilham
aspirações e segredos. No entanto, aos poucos, a partir do inebriamento dos sentidos,
da confissão física do afeto, da interdição que surge com força – como recusa, repúdio
inexplicado e incompreensível (talvez resida no fato de Charlie apresentar Sarah
como colega de escola e não amiga, um curto-circuito em um vínculo que nasce e evolui
rapidamente) –, a cumplicidade se transforma em estranhamento, dissintonia e manipulação,
que conduzem ao afastamento, ao bullying, ao desequilíbrio emocional e plantam
os indícios de uma tragédia.
O que poderia ser
um thriller de suspense psicológico, na linha dos duelos de caracteres dúbios
e/ou complementares, como em Jogo Mortal (1972), no qual Laurence Olivier
e Michael Caine protagonizam um jogo de gato e rato irrepreensível, torna-se um
exame de comportamento, com várias leituras possíveis, para dar conta das escolhas
e ações das jovens. Neste sentido, está mais próximo de Persona (1966), de
Ingmar Bergman, em que Liv Ullmann e Bibi Anderson praticamente se fundem para depois
se separarem com extrema violência, e de Três Mulheres (1977), de Robert
Altman, filme no qual Shelly Duvall e Sissy Spacek vivem uma relação de amizade
em que fragilidade e narcisismo são quase espelhos. Optando por assumir uma postura
quase voyeur, Laurent coloca a câmera como testemunha dessas agressões. Daí
surge a pergunta: como uma relação destrutiva se constitui? Essa codependência emocional
tem como consequência a abolição de territórios intocáveis, onde a moral e a expectativa
pela retribuição da amizade vigiavam as desmedidas/desmesuras das paixões.
Na aula de Filosofia,
no início da película, o professor de Charlie cita Nietzsche, dizendo que as paixões são nocivas quando se tornam excessivas.
E pergunta, A paixão é um caminho ou um obstáculo
à liberdade? Platão fala sobre as paixões como um perigo a ser evitado, defende
a temperança, a frugalidade e a parcimônia. O apego em demasia representa um embaraço
ao exercício da liberdade. Em Respire, há excessos: de luz, que irradia a
iluminação da vida de Charlie com o aparecimento de Sarah, de cores vibrantes, de
planos abertos que revelam a solidão e o distanciamento e dos ataques de asma de
Charlie – sintoma de uma claustrofobia que lhe invade a vida. Neste sentido, a fotografia
de Arnaud Potier realiza um notável trabalho na apresentação dessas emoções (em
uma bela fusão entre visual e narrativa).

E há também uma simbolização
explícita (e eficaz) a uma relação tóxica na figura de uma planta danosa para o
vegetal que está mais próximo. Alimentar-se do outro para sobreviver, para prosseguir
com a fantasia e se encaixar no novo ambiente. Se a paixão cega a ponto de transformar
admiração em obsessão, Charlène se enreda nesse sentimento que a direciona a Sarah.
A sua vida ganha significação ou se ressignifica a partir desse encontro com aquela
que se mostra tão cativante. E é justamente nesse ponto que enlevo e frustração
se digladiam, culminando na queda do paraíso,
mas insistindo em sua recuperação. A espera requer sacrifícios e aceitação da tortura
psicológica que surge durante essa jornada de paciência. Charlie é a representação
de uma resignação doentia e Sarah é uma mitomaníaca perversa que tenta controlar
um jogo em que impõe a sua presa uma única saída: a da autoflagelação emocional.
Será Charlie reflexo
da submissão de sua mãe, que se conforma com um marido abusivo, no que concerne
ao domínio psicológico da relação? E Sarah é fruto do seu lar desfeito, cuja mãe
alcoólatra se especializou em oprimi-la e envergonhá-la? Espécies de herança e condicionamento
cultural que as limitam e fazem-nas reproduzir o que há de frágil e cruel no mundo.
O antagonismo entre
as adolescentes é também similaridade, já que ambas se rendem àquilo que acreditam
ser. Há certo conformismo na aceitação de como processam o modo de percepção do
mundo (e dos afetos) e na maneira de retroalimentar seus desejos. E esse comportamento
gera uma simbiose, na qual cada uma delas contribui para ser vítima e algoz de seu
pesadelo juvenil. Cada uma delas têm o seu jeito de tentar exercer o domínio na
relação (a espera de Charlie também pode ser traduzida como uma forma de busca do
controle). De todo modo, o silêncio de Charlie e a malícia de Sarah se encontram
e refletem um tempo de paradoxos vigorosos.
Então, em certa altura,
Charlie, depois das consecutivas manifestações de desprezo por parte de Sarah e
o acúmulo de perdões, percebe que sua resignação apenas afasta e torna seu objeto
de paixão mais brutal em sua mordacidade. Desse modo, a tênue linha entre indiferença
e escárnio é rompida. E a paixão excessiva, desde o prelúdio tenso na residência
de Charlie (no amor e ódio dos pais, presenças lesivas e ausências prejudiciais),
enfim, toca a tragédia anunciada.
Em um dos grandes
momentos da direção concisa de Laurent, um travelling lateral revela a vida
devastada de Sarah e como Charlie se encarrega de transformar a descoberta de uma
mentira em compaixão. E é uma combinação de talentos que faz de Respire,
apesar do ponto de partida corriqueiro, uma produção instigante, que lida com as
máscaras que usamos cotidianamente (até por sobrevivência) e com a complexidade
que envolve as relações humanas (a construção da identidade de jovens mulheres em
um contexto social em que o desamparo é uma regra).
Assim, com o conhecimento técnico, criatividade artística e a sensibilidade de Laurent,
a fotografia de Potier, a entrega incondicional, de uma naturalidade impressionante,
das jovens Japy e De Laage às suas personagens e a originalidade narrativa (mérito
de uma conjuntura), ainda mais por navegar em águas conhecidas nas telas do cinema,
Respire consegue fugir de clichês e trazer como elemento decisivo a imprevisibilidade.
4. O Som
ao Redor. Direção: Kleber Mendonça Filho. Brasil, 2012.
Certa vez, um proeminente intelectual brasileiro afirmou
que, para se compreender o momento pelo qual um país atravessa, deve-se observar
sua classe média. Assim, favorecendo um entendimento de que a classe média é o termômetro
para se perceber os ganhos e as perdas econômicas e sociais durante um determinado
período histórico. O cineasta Kleber Mendonça Filho direciona seu foco em O Som
ao Redor justamente para um grupo de moradores de um bairro em Recife, próximo
da praia de Boa Viagem, pertencente à classe em questão. E, ao adotar essa perspectiva,
extrapola a mera intenção de uma radiografia de comportamentos e pensamentos do
atual cenário social brasileiro, articulando – a partir dos sons que a cidade e
a vida íntima produzem e das imagens de angústia, exclusão, monotonia, prepotência
e sonhos que o cotidiano e o próprio cinema fabricam – um estudo de classe, gerando
um mosaico de figuras que expõe algumas das fraturas entre felicidade e ascensão
social, justiça e poder, liberdade e segurança.
George Orwell, em
seu famoso romance 1984 (1949), apresenta a composição social como uma pirâmide:
a classe alta ou dominante na parte superior, a classe média no meio do monumento e a classe baixa alojada na parte
inferior. Uma revolução, tendo como forças motrizes a insatisfação da classe média
e a revolta dos pobres, causa apenas uma leve inversão na configuração social representada
pela pirâmide, já que a ideologia vigente se mantém e o êxito em desestruturá-la,
descobre-se, não é o real motivo da sublevação: a classe média alcança o topo, a
elite cede espaço, mas reafirma seu status de poder e os pobres continuam a sofrer,
no mesmo lugar, as intempéries da miséria. O arranjo entre quem está na base do
monumento e quem comanda a escala vertiginosa
do centro até a extremidade equaciona o descontentamento e reforça as posições das
castas, as mesmas de outrora, de agora e vindoura, após uma nova insurreição. Em
O Som ao Redor, esse equilíbrio ocorre através de um deslocamento desse poder.
Se antes agrícola, na mão de ferro de um senhor de terras, na cidade, por intermédio
da aquisição de imóveis, o mando é do empresário que acumula riquezas.
Começando sua história
por fotografias em preto e branco, tiradas em um engenho, Mendonça mostra vidas
de um tempo remoto (ainda tão presentes). Imagens de trabalhadores indo para lida,
participando de uma celebração, de uma manifestação e a Casa Grande vista à distância.
Após os fragmentos da vida rural, somos atingidos por imagens detalhistas e barulhos
ensurdecedores. A vida urbana toma a tela e acompanhamos crianças que correm e brincam
em uma área de recreação de um condomínio. Vigiando-as bem de perto estão suas babás,
desenhando a primeira reminiscência da Casa Grande e da Senzala, primeira demarcação,
que busca referência na obra de Gilberto Freyre. E o trajeto de um poder que, antes
de ser atávico, é o prolongamento de privilégios do coronelismo e da aceitação dos
iguais pelos iguais (desde que comprovem os recursos para sua estada). A partir
disso, no mosaico engendrado por Kleber Mendonça, acompanhamos João, corretor de
imóveis no negócio de família; Bia, dona de casa e mãe de dois filhos, que se incomoda
com os latidos do cachorro do vizinho e tenta afastar a solidão que toma conta dela;
Francisco, proprietário dos imóveis e avó de João, antigo dono de engenho e que
mantém a postura de coronel do passado; Clodoaldo (Irandhir Santos, para variar,
em excelente atuação), chefe de segurança, que chega ao bairro oferecendo os serviços
de sua firma; entre outros personagens que cruzam a história fechando o painel montado,
tendo como suportes fundamentais a imagem e o som.
E o som é realmente
essencial para estabelecer a arquitetura
das inquietações que sufocam ao ponto de irradiar a nostalgia e a segurança pelos
aparatos tecnológicos. Os sons transmitem o medo exterior que ressoa internamente
como incapacidade de vencer o vazio existencial. Latidos de cães, batida de automóveis,
elevadores, ruídos vários engendram a dissonância entre as expectativas de classe
e o medo emanado pela possível presença dos de
fora, da eclosão da violência. A falsa ideia de harmonia comunitária conforta,
mas não rompe a insegurança. O surgimento dos vigilantes é o ponto em que se desmascara
que as grades e a tecnologia trazem a sensação de segurança, porém, revelam novas
prisões, aumentando o desconforto interior. E esse perigo, essa tensão, está estampado
no desenho de som, que captura e revela as vibrações de Recife. Esse diálogo com
a cidade é um grande trunfo da obra. A cidade e tudo que está a nossa volta causam
ensurdecimento, mesmo que as ruas convivam com o vazio, perdendo seu valor de local
de contato e lazer, pois que vivemos entre grades e a nossa relação com o cenário
urbano esmorece cada vez mais.

E a relação entre
nostalgia e a gangorra social (que mantém a elite sempre no alto) pode ser vista
na única cena onírica, em um filme pujante e realista, quando visitam o engenho,
João, a namorada Sofia e Francisco. Um local abandonado, perdido no tempo, reminiscência
de uma época de felicidade. Não à toa aparece como sonho, um Eldorado deixado para
trás, o qual até uma sala de cinema continha. Ou seja, trabalhava-se, comprava-se,
divertia-se sob a proteção e vigilância do patrão. O momento em que as três personagens
embaixo da cachoeira recebem uma cascata de sangue simboliza a não possibilidade
de fuga da tirania do passado.
Esse sentimento de
nostalgia também acomete Sofia, quando ela toma conhecimento que sua antiga casa
será demolida. E a relação entre infância e nossa ausência de preservação desse
estado de criação, necessário para o desenvolvimento das crianças, é visto na abolição
entre materialidade e memória (no caso dos adultos que perdem a referência física
de suas lembranças) e no abandono diante da presença de pais, mães e moradores,
que mesmo ali diante da infância que demarca a ruptura com a reminiscência, que,
afinal, não as pertencem, não percebem que o medo do perigo que os ronda, muito
mais como espectro, reverbera nas crianças. Duas cenas são sintomáticas, o pesadelo
da filha de Bia, que vê de sua janela a invasão do condomínio por habitantes da
periferia, e o som dos saltos pelo muro ressoam como horríveis pancadas. O ruído
aumenta o terror. Ou quando um menino atravessa as fronteiras do bairro e é descoberto
pelos vigilantes, que o agridem, expressando quem é bem-vindo ou não aos limites
estipulados como seguro. Em ambas as situações, a pirâmide mostra sua faceta: para
a classe emergente, o pesadelo está em dividir o espaço geográfico com aqueles a
quem acredita ter deixado para trás. E o menino, representando o perigo iminente,
é joguete na disputa pela manutenção da paz comunitária, deixando longe quem está
logo abaixo nessa escalada pelo reconhecimento dos chamados esforços pela ascensão social. A Casa Grande
ainda regula quem pode ou não ultrapassar as linhas de demarcação.
Em três capítulos,
O Som ao Redor disseca a agonia do espaço: um espaço fechado, onde a proteção
é atributo dos que podem pagar, mas que, apesar disso, não mantém a incerteza afastada.
E Recife, contudo, é um retrato do Ocidente que vê no diferente, no estrangeiro,
um estranho, um Outro que deve ser mantido à distância. Como nos postula Zygmunt
Bauman, em Modernidade Líquida, O mundo
comunitário está completo porque toda o resto é irrelevante; mais exatamente, hostil
– um ermo repleto de emboscadas e conspirações e fervilhante de inimigos que brandem
o caos como sua arma principal. E essa comunidade, frágil e erigida sobre pressupostos
que desunem e não integram, está carregada da melancolia e da falsa aparência de
felicidade da contemporaneidade. E esses espaços, que fogem da hostilidade do mundo
e de seus sons constrangedores, tentam preencher seus vazios, seja com sexo, procurando
prazer junto a uma máquina de lavar, ou com maconha comprada junto a um prestador
de serviço do bairro, como no caso de Bia; ou exibindo boa camaradagem e preocupação
social como João, sem, no entanto, defender até as últimas consequências um trabalhador
que pode perder o emprego ou ser capaz de romper com a fortuna do avô.
Kleber Mendonça traz
à tona a herança verde-amarela cuja reminiscência surge nos pequenos impérios urbanos e são dimensionados pelas
nossas prisões tecnológicas, grades e câmeras a favor da liberdade vigiada, e pelos
ruídos que a cidade emite, como se fossem uma espécie de “invasão bárbara”. São,
na verdade, resquícios de um fosso social, que cedo ou tarde brotam para prestar
contas ou para tentar reconciliar o que a história
determinou como irreconciliável. De qualquer modo, o ciclo recomeçará na infância
que festeja a vida que pulsa nas explosões sonoras da cidade.
5. Ida.
Direção: Paweł Pawlikowski. Polônia, 2013.
A fotografia em preto e branco de Ida, filme
polonês laureado com a estatueta de Melhor Filme Estrangeiro na edição de número
87 do Oscar, é arrebatadora, de uma plasticidade quase sufocante. Isso porque nos
dá a dimensão da importância da história que conta e da História. Os espaços vazios,
os close-ups e os planos abertos se alternam para revelar um road movie em
que a existência é confrontada constantemente pelos lastros do passado e pelas expectativas
de futuro. Os fotógrafos Lukasz Zal e Ryszard Lenczewski são minuciosos, não obstante,
a câmera estática revela o necessário, contrabalanceando luz natural e sombras.
E a fotografia é
essencial na apresentação das duas mulheres que movem a trama de Ida. Os
enquadramentos provocam a sensação de claustrofobia, cingindo um limite a elas.
A jovem noviça Anna (Agata Trzebuchowska) está prestes a completar 18 anos e fazer
seus votos de castidade. Antes do aguardado dia, a madre superior ordena a ela que
deixe o convento e visite uma tia, Wanda Gruz (Agata Kulesza), que até então Anna
nem sabia existir. Wanda é uma juíza que nos tempos de caça aos inimigos do Estado,
do partido comunista polonês, no pós-Guerra, era conhecida por ser implacável.
A reunião de família,
inicialmente, é de estranhamento e deboche de Wanda à fé cristã de Anna. Menos crueldade
gratuita que assinalação da ironia da situação, pois, em seguida, Wanda revela a
sobrinha (filha de sua irmã, vítima do Holocausto) que a sua origem é judia, o seu
verdadeiro nome é Ida e que os pais foram mortos durante à invasão alemã a Polônia
na Segunda Guerra. À presença de Ida, não passam impunes os dissabores pretéritos
que atormentam Wanda. Tanto ela quanto a sobrinha decidem descobrir a verdade sobre
o destino dos parentes. E é na fronteira entre passado (reminiscências e horror
histórico, com a guerra a berrar suas atrocidades) e presente (de incertezas em
um país comandado por um regime austero) que se dará a viagem dessas mulheres ao
interior da Polônia, no início dos anos 1960, em busca dos restos mortais dos pais
de Ida e de seu suposto irmão (a localização do túmulo deles).
É na estrada e seus
acontecimentos que Ida revela o seu valor, a de ser uma obra simples e profunda
em que a alma humana é atravessada por um senso existencial e um sentido histórico.
As vilas pelas quais
passam carregam a marca do abandono, são lugares vazios, praticamente perdidos no
tempo, com pessoas desconfiadas, em que a arte – o vitral feito pela mãe de Ida
para um celeiro se deteriora sem testemunhas, ignorado – parece não mais capaz de
brotar. O complexo passado político da Polônia arruína esses locais, abate sua vivacidade.
O colaboracionismo polaco – um dos maiores paradoxos do Holocausto – e os atos do
Partido surgem como tormentos a esconder (contraditoriamente, à vista) as feridas
que sangram, recusando-se a cicatrizar.
E é no silêncio e
no não dito que a narrativa ganha força. A elegância cruel de Wanda e a convicção
inexorável de Ida começam a ceder a essa ligação (ao mesmo tempo que se intensificam
os conflitos internos) e as diferenças se amenizam, elas começam a se conhecer e
a relação toma à direção do reconhecimento. Wanda é um rio represado, de dores sufocadas
pelo álcool e pelo sexo (que guarda um segredo, o peso de uma escolha), e Ida, por
baixo de toda camada e fachada, tem curiosidades que a concentração consegue afastar.

Autodestruição e
legado. Ida é um filme sobre a História e uma obra sobre vidas e suas vivências.
E esse é um dos principais méritos do longa-metragem de Paweł Pawlikowski, os efeitos
do campo de extermínio na alma de familiares (ou de quem sobreviveu) e como reconstruir
o que resta. O tom seco e sincero nos aproxima de Wanda e Ida na busca pelo que
perderam. E Agata Kulesza e Agata Trzebuchowska são extraordinárias. Kulesza revela
a tristeza de Wanda, mas conectada a fortaleza de quem ocupou seu lugar no mundo
apesar dos pesares. Mesmo o gesto derradeiro de Wanda (que terá um efeito determinante
sobre Ida), ao som de Mozart, fruto das respostas encontradas, carrega a marca de
quem precisa usar uma armadura para não ser engolida pelo abismo. Wanda chega ao
seu limite. Já a Ida de Agata Trzebuchowska é expressiva, olhos e corpo respondendo
às descobertas com as quais a jovem noviça se depara. Há inocência, há maturidade,
eles caminham lado a lado, afastando a fragilidade desesperadora que geralmente
invade personagens que precisam lidar com o peso de uma verdade insustentável. São
atuações agudas, brilhantes.
Ida é um filme que não traz respostas aos assombros da História. Os fantasmas
que nos acompanham, devorando, interrogando, implacáveis, presentes. Avançar é preciso.
Mas como avançar, eis a questão. No fim, o rosto de Ida (a câmera, enfim, em movimento),
retornando ao convento ou partindo em definitivo, é uma incógnita, com uma estrada
à frente.
6. Na Flor
da Idade (In Bloom). Direção: Nana Ekvtimishvili e Simon Gross. Geórgia, 2013.
Nos últimos anos, o cinema da Geórgia vem ganhando projeção
internacional e amealhando prêmios ao redor do mundo. A Ilha dos Milharais
(2014) é um bom exemplo dessa realidade. O filme de George Ovashvili recebeu uma
menção honrosa no São Paulo International Film Festival, edição 2014, e também o
troféu máximo do Karlovy Vary International Film Festival, na República Tcheca.
Outra película notável é Hostages (2017) de Rezo Gigineishvili, que conquistou
reconhecimento ao seu diretor em festivais realizados na Rússia e participou de
importantes eventos cinematográficos como o de Edimburgo (Reino Unido) e Haifa (Israel).
Antes do sucesso
das obras de Ovashvili e Gigineishvili, Na Flor da Idade (em inglês In
Bloom e no original Grzeli Nateli Dgeebi), de 2013, viveu idêntica jornada
de glória e distinções em festivais e premiações para além das fronteiras da Geórgia,
como nos festivais de Berlin, Milão e de Saravejo, sendo que nesse último foi laureado
como melhor filme.
Galardões à parte,
Na Flor da Idade é um retrato cruel da crise vivida pelo país no início dos
anos 90, durante o conflito étnico entre a Geórgia e a região da Abecásia, e como
esse transe afetou às famílias e, principalmente, roubou o processo natural de crescimento
de muitas meninas, destituindo-as de sua infância e atirando-as no olho do furacão, obrigando-as a viver entre
um sonhado protagonismo que não lhes pertenciam, por estarem em uma sociedade patriarcal,
e a sobrevivência de seu universo interior.
A realização cinematográfica
de Nana Ekvtimishvili e Simon Gross centra-se na amizade entre Eka (Lika Babluani)
e Natia (Mariam Bokeria), adolescentes de 14 anos que residem em Tbilisi, capital
de uma Geórgia recém-independente do poder político, econômico e ideológico da União
Soviética. E a crise não tem relação tão somente com as incertezas políticas criadas
pelas circunstâncias históricas, há uma falência de valores, não por suscitar mudanças
extremas que culminam em amoralidade e negação das tradições, mas por agravar comportamentos
hostis, diferenças regionais e o machismo que dão forma a homens levados à guerra,
pelo mesmo sistema que os despoja de sua fortaleza
residencial e que, em nome de um poder que se fragmenta cada vez mais, bestializa-os
com a violência própria dos soldados que não conseguem se livrar do combate.
Na flor da idade,
as amigas têm que lidar com situações-limite que as forçam ao amadurecimento precoce.
A cineasta Ekvtimishvili e o codiretor Gross mostram essa passagem a partir dos
efeitos cotidianos do recrudescimento social gerado pela guerra e da opressão sofrida
pelas mulheres, em uma sociedade que exige a prevalência de um tipo agressivo para
estabelecer-se em um cenário árido de alcoolismo, assassinatos, racionamento de
alimentos e violência doméstica.
Esse ambiente de
insegurança, de instabilidade social e de conservadorismo ganha linhas significativas
quando Natia recebe, de um apaixonado – rapaz pelo qual a garota claramente nutre
afeição –, um revólver de presente. O gesto amplia o círculo de perigos expostos.
Em tese, a pistola deve protegê-la desses perigos. Apesar de não saber o que fazer
com o revólver, Natia se encanta pela arma de fogo. A partir de então, escola, família
e costumes, além das adversidades promovidas pelas ruas, contribuem para dimensionar
essa possibilidade de tragédia iminente, já que nenhum lugar parece seguro.
Sobre as amigas,
Eka é uma menina tímida e séria, que se equilibra entre duas ausências, da mãe,
que trabalha em demasia, e do pai, que está preso por assassinato – ela reluta em
visitá-lo. Natia é uma jovem cuja beleza se faz notar, que, em casa, conhece o inferno
das relações conturbadas, pois o pai alcoólatra desconta as frustrações de um tempo
sombrio na própria família. Assim, a casa é reflexo da desestruturação do país.
Na Flor da Idade investe em uma fotografia sépia na qual detalhes da ruína em que se transforma
Tbilisi ganham destaque para enfatizar as marcas que a guerra crava não apenas na
arquitetura da cidade, mas no ânimo de seus residentes, que convivem com a ameaça
de uma explosão de violência e com a fome.
Sendo uma obra sobre
o amadurecimento forçado, o vínculo dessas amigas inseparáveis é apresentado sob
a égide do que pode vir a romper essa ligação profunda, podendo ser a presença de
um admirador de Nati, rapaz que faz parte de uma gangue e que a persegue insistentemente,
a pistola, que engendra um clima de tensão e também de solução para as tiranias
diárias, ou os produtos da guerra, que acossam e têm o poder de desumanizar. Neste
sentido, a produção georgiana enfrenta o machismo reinante na sociedade de Tbilisi,
se não com rompantes de indignação e superação, mas ao revelar como exerce seu domínio
ao privar jovens de seu direito de escolha. As regras que as mulheres são obrigadas
a seguir e o comportamento viril dos homens em busca de autonomia e autoridade compõem
o cenário que leva uma adolescente sequestrada a um dilema: o de se casar com seu
raptor, já que a justificativa é o amor deste pela moça. A tradição institucionaliza
a violação do corpo da mulher. E a revolta viva e incompreendida de Eka mostra o
absurdo (e o crime) contido na situação.
Episódico, construído
por gestos, olhares e silêncios, Na Flor da Idade investe, ainda que seja
marcado por uma narrativa lenta, em alguns pontos de intensidade que marcam, de
certo modo, o ritmo da vida, como nas passagens em que Eka baila ao som de uma tradicional
música georgiana – em uma cena primorosa – e o motivo que faz o revólver que Natia
ganha do seu primeiro amor voltar ao foco, deixando clara que a semiótica do objeto
deslinda a emergência da calamidade que é (sobre)viver sob tensão, preenchendo a
tela e nos atingindo para completar a abertura insidiosa da película.
Com um par de atrizes
talentosas e uma direção que aposta em tratar a guerra como um espectro, reforçando
sua presença pelos seus efeitos, em vez de exibir combates e bombardeios, o filme
de Ekvtimishvili e Gross traz à tona a destruição física e moral em que crise econômica,
tradição patriarcal e infâncias roubadas entram em colisão e afirmam o modus operandi
de uma violência naturalizada. Na secura e no imediatismo que sufocam uma população
e oprimem meninas, convocando-as a se moldar a um mundo que desejam rechaçar com
todas suas forças, Eka desperta Natia para a resistência, ao não permitir que ela
se manche de sangue em mundo masculino hostil e vingativo.

Ao se manifestar
com toda sua brutalidade, a virilidade nefasta, abençoada pelo machismo incrustado
na sociedade, sofre uma queda graças à recusa das jovens amigas em se conduzirem
conforme a lei de quem tem o poder. A
vida adulta as recebe diante do sexismo e das barbaridades da guerra, mas ambas
não são mais garotas indefesas, são o retrato de uma sabedoria, de uma percepção
que estava sendo dirimida desde o colapso soviético, e da possibilidade de uma nova
sociedade.
Baseado nas memórias
de Nana Ekvtimishvili, Na Flor da Idade é indispensável para quem prefere
um cinema realista, com um ritmo que aposta em um efeito progressivo, que parte
da asfixia social para alcançar a possibilidade de iluminar existências que parecem
não encontrar refúgios.
7. Elena.
Direção: Petra Costa. Brasil, 2012.
O documentário Elena, de Petra Costa, é um memorial
visual, ou, ainda, um mergulho nos insondáveis recônditos da mente e emoções humanas.
Petra, por intermédio da obra fílmica, esquadrinha os sonhos e as frustrações de
sua irmã Elena, e, ao mesmo tempo, revela as nuances de seu relacionamento com a
jovem que desejava ser atriz, mas que em sua viagem para Nova York, no início dos
anos 90, com o intuito de realizar esse objetivo, depara-se com estranhamentos,
medos e a depressão, que a levam a cometer suicídio.
Reunindo gravações
caseiras, fotos e o testemunho da mãe (que partiria para a guerrilha do Araguaia,
durante as sublevações contra o regime militar, caso não estivesse grávida de Elena),
Petra costura uma memória que, pela narração da própria cineasta, procura ser a
reconciliação com o passado, a compreensão do presente e um olhar para o futuro.
Desse modo, Elena, a irmã, é a instigadora da busca de Petra por si mesma. Se a
memória é um desejo de reconhecer, como fala-nos Nietzsche, em Sobre a Verdade
e a Mentira no Sentido Extra-moral, Petra, ao propor seguir os vestígios deixados
por Elena, constrói uma elegia que sanciona as lembranças como marcas inextinguíveis
daquilo que somos.
E ao não esquecer
Elena é que Petra pode reconstituir o seu passado, trazendo de volta momentos, paisagens
e sombras. Nietzsche postula que a dosagem entre esquecimento e memória é o cerne
da criação artística. Assim, o que Petra realiza é a documentação poética de uma
interrogação: o que há de Elena em mim, que não me permite esquecê-la? (Lembrando
que esquecer assume um sentido de figurar e não de abandono da rememoração). Sendo
a memória uma ferramenta do conhecimento para superar perdas, temores, dúvidas,
Elena é a confirmação artística de Petra, e a sua mais pessoal recordação.
Esse jogo entre memória e esquecimento encontra na poesia, e na atuação e na dança,
seu ponto de irradiação, que permite fazer o itinerário da dor e da saudade que
a mise-en-scène elaborada por Petra Costa executa.
Se Elena, a jovem
aspirante à atriz, quer seguir os sonhos que a mãe não realizou, Petra, que tinha
sete anos quando a irmã se suicidou e guarda assombrosa semelhança física com a
mana, consolida o desejo de gerações de mulheres de sua família. E esse é um dos
aspectos mais delicado do documentário e o que confere sua notável qualidade: a
de tornar a memória um processo de reinvenção artística. E a constituição formal
da documentarista traça linhas tênues entre a objetividade contida em um fato que
gera desdobramentos, que fomentam um inquérito e/ou pesquisa, e a subjetividade
própria dos desnudamentos interiores (ainda mais em um caso em que a cineasta se
torna personagem, que constantemente se confunde com o objeto documentado), que
expõe de modo aberto dores em processo de cicatrização.
E é essa condição
de dupla experiência, documental e íntima, que atribui a Elena autenticidade
e o separa de tantos outros filmes-investigação sobre dramas familiares. Petra,
como atriz, performa em um documentário sobre os motivos que levam uma jovem e promissora
estudante de artes cênicas ao suicídio, e nessa rota, à procura de respostas, interroga-se
se seus passos não são idênticos ao de Elena, e, assim, os seus destinos.
O retrato poético
no qual se transforma o documentário de Petra tem em sua mãe um ponto chave, pois
aceitação, responsabilidade e a persistente dúvida, “se eu tivesse percebido”, acompanham
cada depoimento, está na busca em Nova York da antiga residência de Elena e no dia
fatídico de seu suicídio. É a dor entranhada em uma mulher – suportável no limite
do silêncio que contém uma tristeza em demasia – exposta com coragem e explorada
em nome de uma espécie de expurgação artística.
A Petra narradora,
a certa altura, diz sobre o percurso de uma vida que conflita incessantemente memória
e esquecimento, E pouco a pouco as dores viram
água. Viram memórias. As memórias vão com o tempo, se desfazem. Mas algumas memórias
não encontram consolo, só algum alívio nas pequenas brechas da poesia. Você é a
minha memória inconsolável, feita de pedra e sombras. E é dela que tudo nasce e
dança. O documentário construído por fragmentos, depoimentos, imersão em dores
e afetos, na busca pelas desilusões de Elena e consagração da relação entre a cineasta
e a irmã tem nas imagens, em sua elaboração, a exposição de um arquivo de memórias
que surge, foge, reaparece e potencializa essas lembranças em variações de foco
que favorecem o tom poético da produção.
De uma protagonista
ausente à uma documentarista/narradora/irmã, Elena não é uma obra fílmica
que necessita de antemão das referências de seus observadores, armadilhas para a
obra artística e para a fruição que a arte pode proporcionar, a saber, a identificação
e/ou projeção. Elena é o relato poético, e em muitos momentos sentimental,
da jornada do sonho à frustração de uma talentosa aspirante à atriz e a busca pelo
porquê de seu desfecho trágico pela irmã. Porém é, na mesma medida, o enfrentamento
do jogo que torna a vida um processo de dor e superação recorrente, a de equilibrar
esquecimento e memória, e pela via que, invariavelmente, flerta com a eternidade,
a da arte. E é essa arte que proporciona a Elena a realização de seu sonho: a de
fazer cinema. Petra Costa ao confeccionar como documentário seu mais doce fantasma,
engendra a esse espectro um corpo e ao filme sua alma indelével.
8. Neste
Canto do Mundo. Direção: Sunao Katabuchi. Japão, 2016.
2016 foi um grande ano para a indústria da animação
japonesa. Além da coprodução com a França em A Tartaruga Vermelha, do holandês
Michael Dudok de Wit, que rendeu uma indicação ao Oscar na categoria, chegaram aos
cinemas Koe no Katachi, de Naoko Yamada, Kimi no na wa (mais conhecido
pelo seu título em inglês, Your Name), de Makoto Shinkai, e Kono Sekai
no Katasumi ni, de Sunao Katabuchi, que no Brasil se chama Neste Canto do
Mundo.
Entre essas produções,
o drama de guerra dirigido por Sunao Katabuchi foi distinguido como melhor animação
no Awards of the Japanese Academy. Prêmios são considerações abertas às anuências
e às discordâncias, mas Neste Canto do Mundo possui méritos superlativos
que justificam a escolha e o seu reconhecimento mundo afora.
Baseado no mangá
de Fumiyo Kouno (3 volumes, de 2006 a 2009), adaptado por Katabuchi e Chie Uratani,
o filme, em suas 2 horas e 9 minutos, acompanha a vida da menina Suzu de 1933 até
1945, ano em que se chegou ao fim a Segunda Grande Guerra Mundial, logo após as
bombas atômicas lançadas em Hiroshima e Nagasaki (a maior parte do filme se passa
nos anos de 1944 e 1945). Neste Canto do Mundo ao focar em Suzu, portanto
nos sonhos desfeitos e na luta para manter a esperança de uma jovem mulher, constrói
uma investigação dos efeitos da guerra sobre o coletivo e seu espírito de comunhão
e resistência no abandono e na incerteza do futuro.
O filme começa com
um ritmo de slice of life, uma história de formação contemplativa, com pequenos
grandes acontecimentos na vida de Suzu e sua família, em Hiroshima. Ela nos é apresentada
com pouco menos de dez anos, em 1933, fazendo uma travessia de barco para outra
cidade a fim de realizar uma entrega, em substituição ao irmão. Suzu é uma menina
criativa para desenhar e inventar histórias (e tem poéticos diálogos interiores),
o que confere à obra o imaginário e a ludicidade presentes na infância. Esse é um
fato importante, pois a fantasia será mais tarde reintegrada à narrativa, como sinal
tanto de apaziguamento quanto de maturidade.
Do tempo de infante
na zona rural de Hiroshima, passando por um amor nunca declarado até o casamento
arranjado e mudança para o porto de Kure, a existência de Suzu preenche-se pelas
atividades domésticas e a tentativa de torná-la menos cinza por intermédio da pintura.
Deste modo, a condição da mulher em uma sociedade tradicionalista é vislumbrada
na ideia de substituição da sogra, já doente, por Suzu como responsável pelo cuidado
da casa. Tarefas do lar que a jovem deve assumir, ainda que sua pouca experiência
dificulte a execução de algumas delas com destreza. A adaptação de Suzu a sua nova
vida ocorre no tempo em que a guerra se intensifica e deixa de ser o indício da
superioridade nipônica diante de seus inimigos. A guerra é brutal e atinge Kure
com pesados bombardeios com o objetivo de destruir navios e porta-aviões da marinha
japonesa.
A partir daí Neste
Canto do Mundo se transforma em um drama voraz, sombrio e melancólico, que não
poupa o espectador dos horrores e mazelas da guerra. Suzu sofre com mudanças e separações,
e o seu próprio corpo se torna um despojo do conflito armado.
Assim como Túmulo
dos Vagalumes (1988), a obra-prima de Isao Takahata, a crueldade e o absurdo
da guerra são pungentes na obra (ainda que não alcance as devastações do flagelo
engendrado por Takahata). Sunao Katabuchi sabe chocar sem ser apelativo. A ruína
surge como uma das heranças inevitáveis da guerra, tocando os limites de nossa desumanização:
o Outro é visto como um efeito colateral, vítima inegociável de um planejamento
que objetiva a rendição como ponto culminante.
Do soldado vítima
da bomba atômica em Hiroshima que morre em Kure, deixando uma mancha preta na parede
do centro comunitário, à menina que fica ao lado do corpo da mãe morta até a sua
putrefação, vestígios do poder de destruição que o ser humano carrega, nos são apresentados
em momentos em que a crueza se sobrepõe terrivelmente a poesia de um cotidiano já
despedaçado.
Neste sentido, Neste
Canto do Mundo é um filme sobre sobrevivência, esperança e laços afetivos (de
Suzu com sua família – principalmente com a irmã –, e com a família do marido),
que tem na determinação e na resiliência suas virtudes essenciais para manter viva
a perspectiva de um futuro que não se esqueça do passado, um fantasma que ensina
quais os desacertos cometidos.
Os aspectos visuais
da obra de Katabuchi merecem menção já que seu trabalho artístico é muito rico ao
acompanhar o olhar artístico que Suzu lança ao seu redor e entregando cores e luzes
arrebatadoras. A beleza da animação encontra seu auge em um dos ataques aéreos ao
porto de Kuru, em que as explosões no céu se transmutem em imagens pictóricas como
se fossem pinceladas (há até uma referência a Uma Noite Estrelada de Van
Gogh). A reconstituição de época é impressionante, recriando as cidades e o modo
de vida à perfeição.
O cotidiano realista
mostrado em um ritmo parcimonioso, que é interrompido por um fato histórico de marcas
indeléveis, é algo a se superar em sua primeira hora de metragem, mas a vida de
Suzu e os pormenores que nos revelam como se davam a organização interna das famílias
são preparativos para o impacto das tragédias vindouras (para quem quer saber mais
a respeito do período, vale conferir o longa-metragem de Shohei Imamura, Black
Rain – A Coragem de um Povo, de 1989, que é uma das mais angustiantes produções
sobre os efeitos da radiação das bombas atômicas lançadas em Hiroshima e Nagasaki).
O filme expõe a brutalidade
da guerra e consegue ser terno com as suas personagens, o que dá um tom esperançoso
à animação – com a reconstrução da vida em família, que, mesmo sob os escombros
de perdas dolorosas, recebe de braços abertos uma menina sem lar. Neste Canto
do Mundo nos lembra o que os descompassos políticos e os afãs de domínio e expansão
territorial quando tornados guerra fazem a alma humana. E na figura de Suzu recorda-nos
que sonhar é um direito irrevogável e que temos o nosso lugar no mundo, mesmo que
esse canto seja alcançado pelo amor fati, ao tornarmos o destino algo precioso.
9. Judas
e o Messias Negro. Direção: Shaka King. Estados Unidos, 2021.
1969. Um roubo de carro por um jovem negro em um bairro
negro, fingindo-se policial federal, dá início a um plano do FBI para implodir por
dentro o movimento social e partido político Panteras Negras. William O’Neal, de
17 anos, é obrigado pela agência estadunidense a se infiltrar na organização sob
a ameaça de ser levado a cumprir pena por roubo e falsidade ideológica. A missão
de O’Neal, que se torna informante, é se aproximar e se integrar aos Panteras Negras
de Chicago, então presidida pelo igualmente jovem Fred Hampton, um fenomenal orador,
socialista, que pregava a união do povo. A obra de Shaka King, em sua duas horas
e cinco minutos, ocupa-se da militância de Fred e dos Panteras Negras e do dilema
de William.
Hampton era um líder
carismático, de retórica impecável e atento às carências da comunidade negra de
Chicago. Seu ideal marxista, potencial revolucionário e discurso da autodefesa armada
ecoavam entre jovens e demais grupos organizados, tanto negros quanto de outras
etnias, em pleno período de conflitos raciais e recrudescência da luta pelos direitos
civis dos negros, com Martin Luther King e Malcolm X assassinados, mas seus ideais
vivos e impulsionando novas lideranças, reforçando o sentido de liberdade. O racismo
institucional, a violência e crimes da polícia, a pobreza e o capitalismo formavam
os algozes a serem combatidos. Problemas sistêmicos que nos acossam até hoje.
O ativismo de Hampton
era a perfeita ilustração da práxis. Inteligente, colocava a favor da atividade
concreta o seu conhecimento, gerando engajamento no que tange às ações culturais,
sociais e políticas e influenciando positivamente as relações entre indivíduos e
grupos. Para tal empenho prático e domínio discursivo, Daniel Kaluuya investe a
figura humana de segurança, destemor, revolta e amor. É uma atuação soberba, colossal,
que lhe rendeu o Oscar de Melhor Ator Coadjuvante no Oscar de 2021 e inúmeras outras
láureas. As suas conversas com a companheira Deborah Johnson (interpretada por Dominique
Fishback, que insufla, de modo admirável, delicadeza e coragem a personagem) é repleta
de respeito, carinho e nos dá a total dimensão de um homem que sabe que está marcado
para morrer, mas percebe que é um elemento em uma causa maior, portanto, preparado
para o sacrifício.

Por sua vez, LaKeith
Stanfield trabalha o oposto em William O’Neal. Não conhecemos o seu passado, então
não sabemos como e nem porque domina a arte da mentira e do disfarce. O que pode
ser apontado como uma falha do roteiro de Will Berson e Shaka King, na verdade,
propícia a Stanfield nutrir O’Neal de mistério, um enigma a ser desvendado pelo
espectador. Sem informações prévias que nos auxilie a entender o caráter do homem,
resta-nos suas ações como informante. O ator, que já havia mostrado a sua capacidade
em Temporário 12 (de Destin Daniel Cretton [2013]) e Desculpe te Incomodar (de Boots
Riley [2018]), revela um homem dividido entre o medo e o fascínio – um duplo fascínio,
pela vida confortável do agente federal Roy Mitchell (Jesse Plemons), epítome do
neoliberalismo, e do senso de comunhão, integridade e irmandade dos Panteras Negras.
Subserviente ao agente federal? Capaz de se entusiasmar pelo trabalho do partido?
Gestos e expressões são primordiais para manter a sua situação uma incógnita: é
duplicidade ou dubiedade que representa melhor O’Neal? Sabemos que sente o pavor
de ser desmascarado, mas age por estar sem saída ou por dinheiro? É óbvio que tem
respeito pelo que Hampton é, porém não temos ideia se chega em algum momento passar
pela sua mente a contraespionagem.
O passado desconhecido
obriga LaKeith Stanfield a construir uma lógica para a personagem que o mantém em
alerta, atraente, incerto, mas seguindo o que lhe é ordenado pelo agente do FBI,
em um estado de perturbação constante. É um desempenho digno de prêmios e estranhamente
indicado ao Oscar de melhor ator coadjuvante no Oscar 2021 pelo entendimento de
que o filme não tem um protagonista definido.
Judas e o Messias
Negro joga luz sobre o uso da violência como suporte político defendido pelo partido,
quando as vias diplomáticas e pacíficas já não são mais suficientes ou fracassam.
Contra a opressão do poder e o terrorismo de Estado somente instrumentos que igualam
a força entre os oponentes podem tornar a disputa justa e gerar temor a quem é guiado
pela brutalidade e por um sentimento de proteção ao establishment, isto é, ao seu
modo de vida e privilégios, que são ao mesmo tempo considerados naturais e passíveis
de contínua defesa.
Deste modo, há subjacente
um embate de mundos: um neoliberal, no qual o racismo é intrínseco ao sistema, e
um coletivista, em que o povo deve buscar a autossuficiência para vencer os desmandos
e os obstáculos engendrados pelo poder do capital.
Para isso, temos
um roteiro em que os discursos têm muito peso, porém sem panfletarismo, com as cenas
de tiroteio sendo bem conduzidas e as imagens de arquivos nos mostrando os fatos
que proporcionaram a existência da ficção poderosa de Shaka King.
Hampton estava com
21 anos quando foi assassinado em uma operação secreta de inteligência doméstica
do FBI. Segundo a agência, para pôr fim às atividades de movimentos políticos que
colocavam em risco a ordem política e social
existente. De alguma forma, por ser uma história baseada em acontecimentos reais,
o fatalismo já está presente na primeira vez que Kaluuya surge como Hampton, pois
sabemos de seu destino trágico e final violento. Desde quanto Roy Mitchell compara
o Partido dos Panteras Negras à Ku Klux Klan, já temos a percepção de que a destruição
é o modus operandi principal de um estado democrático
que joga com a ameaça, a inverdade e a manipulação para conter supostos inimigos,
isto é, a revolução, a insurreição popular.
A fotografia equilibra,
de forma certeira, luminosidade e sequências sombrias, com luz mais baixa, e closes
e planos abertos, dando significado a cada enquadramento. Já a direção de arte e
figurinos retratam com fidelidade à época e realiza um trabalho de caracterização
excelente das personagens, conseguindo o feito de destacá-los ao mesmo tempo que
lhes confere a marca de um grupo, de um coletivo.
A montagem é ágil,
levando em sintonia a tensão e os momentos mais amenos, o que favorece as atuações,
captando os silêncios que precedem a tempestade.
Tudo isso embalado por uma trilha sonora crucial – que se torna mais intensa conforme
o filme avança – para o entendimento político do maior país em extensão territorial
da América do Norte em 1969. Momento de contracultura, de luta pelos direitos humanos
e contra os fascismos internos e externos, de reação às práticas racistas do Estado.
O título Judas e
o Messias Negro vêm de um memorando publicado pelo FBI, em 1968, que objetivava
determinar as metas do COINTELPRO, um programa de contraespionagem da agência, que
mencionava a importância de Prevenir a ascensão
de um Messias que poderia unificar o movimento nacionalista negro militante.
O filme é uma produção
de Hollywood, da Warner Bros., portanto, carrega a contradição de seu discurso explosivo sair da indústria que, ainda hoje,
reflete estereótipos racistas e vende o ideal farsesco de igualdade, democracia
e liberdade do país que mais fomenta guerras no mundo supostamente para promover
esses conceitos, libertar povos oprimidos.
Mesmo lidando com
o contrassenso, Judas e o Messias Negro expõe de forma densa o debate sobre
a luta de classes, as questões raciais e de direitos humanos, que permanecem atuais,
com a discussão sendo reatualizada a cada morte de uma contestadora, de um libertário,
de uma militante.
De todas as qualidades
verificáveis ao final da obra de Shaka King, salta aos olhos o talento de seus atores,
que entregam a complexidade de um homem comum em conflito (Stanfield) e a confiança
e vulnerabilidade de uma figura pública carismática, íntegra, de ações humanitárias,
quase maior que a vida (Kaluuya).
Um filme preciso
e precioso. Mas um pequeno manual de revolução? Talvez um daqueles casos que evidenciam
um tema, e por serem hollywoodianos são compreendidos como uma bomba desarmada, porém conseguem traficar
para película denúncias contra o capitalismo e reacendem a importância da militância
política e da consciência racial.
Não acreditamos que a melhor
forma de combater o fogo seja com fogo; a melhor forma de combater o fogo é com
água. Vamos combater o racismo não com racismo, mas com solidariedade. Dizemos que
não vamos combater o capitalismo com o capitalismo negro, mas com o socialismo. Fred Hampton (Summit, 30 de agosto de 1948 – Chicago, 4 de dezembro de
1969).
10. O Homem
que Vendeu Sua Pele. Direção: Kaouther Ben Hania. Tunísia/França/Bélgica/Suécia/Alemanha,
2020.
Indicado ao Oscar 2021 de Filme Internacional pela Tunísia
(e primeiro da história do país a chegar entre os cinco finalistas), O Homem
que Vendeu Sua Pele é inspirado em uma história real. Um tatuador de Zurique,
Tim Steiner, em 2006, aceitou a proposta de ser uma tela humana e ter as suas costas tatuadas pelo artista belga Wim Delvoye,
que fez fama ao tatuar a pele de porcos. A obra TIM é exibida em museus, galerias ao redor do mundo. Em 2008, a tela
em movimento foi vendida para o colecionador de arte alemão Rik Reinking pela bagatela
de 150 mil euros.
A diretora Kaouther
Ben Hania, uma documentarista de sucesso, em seu segundo longa-metragem de ficção
– o seu filme de estreia A Bela e os Cães é uma intrigante e ousada crítica
à burocracia e à misoginia que ainda imperam na Tunísia pós-revolução de Jasmin
(2010-2011), manifestações insurrecionais que abriram caminho para a Primavera Árabe
–, conta a história de um refugiado sírio que vende suas costas para um artista
europeu, no intuito de obter um passaporte e viajar para Bruxelas, na Bélgica, a
fim de encontrar a ex-namorada, agora casada com um diplomata.
Ao tratar da mercantilização
de um ser humano, Ben Hania tem como pano de fundo uma história de amor. Sam (Yahya
Mahayni) topa se tornar uma obra de arte viva por desespero, pela falta de escolha,
pela necessidade premente de estar diante da amada Abeer (Dea Liane).
O artista conceitual
Jeffrey Godefroi (Koen De Bouw), que é um misto de cinismo, presunção e desapontamento,
tatua na pele de Sam um visto Schengen, que é necessário para estrangeiros ingressar
na Europa. Um símbolo de liberdade para um refugiado, mas que cria para o sírio
um contrato de restrição a sua liberdade individual, sendo obrigado a estar em exposições
e mostras determinadas pelo documento que assina na negociação. Deste modo, Sam
é arte e é mercadoria, podendo ir a leilão e ser observado em galerias, para a curiosidade
e deslumbre do público.
Antes de ter o consumismo
e o elitismo como um dos focos para a análise da cultura contemporânea, o filme
se inicia com Sam e Abeer em um trem e o que se desencadeia nesta sequência traz
o tema e a estética que sustentam a película de Kaouther Ben Hania. Tomado pelo
entusiasmo do amor, o homem fala em revolução e liberdade, reivindicando o direito
de declarar sua paixão sem medo, porém se referindo às proibições sociais ditadas
pelos costumes. Isso basta para que Sam seja implicado politicamente e detido pelas
autoridades do governo de Bashar al-Assad. A liberdade é um bem frágil em regimes
ditatoriais. O jovem cruza a fronteira para o Líbano e chega a Beirute, capital
do país.
Em relação à estética,
a cena do trem antecipa a visualidade da película, pois tem enquadramentos que aludem
a pinturas e o filme todo é repleto de espaços delimitados, apertados que dialogam
com o formato de obras pictóricas – mesmo telas de computador ou espelhos. O
Homem que Vendeu Sua Pele é de uma plasticidade impecável.
Em Beirute, Sam tem
um trabalho mecanizado em um frigorifico de aves, selecionando pintinhos adequados provavelmente para a produção de
ração. À noite, invade vernissages com um amigo para comer o que é servido
pelos buffets. Em uma dessas aventuras como penetra que Sam é interpelado
por Soraya (Monica Bellucci), que gerencia a carreira de Jeffrey. A partir daí,
começam o dilema e a via-crúcis de Sam.
Jeffrey é uma sensação
no mundo da arte por tornar objetos comuns e banalidades em obras de arte. Suas
criações são vendidas por milhares de euros. E transformar o corpo, uma parte do
corpo do Outro em uma tela, parece fazer
parte do desafio do artista. Situação que enseja o debate ético sobre os limites
da arte, principalmente por envolver um homem refugiado. Exploração e oportunismo
ou poder de decisão e liberdade?
Sam passa a ser um
corpo vigiado, sempre seguido por seguranças e conduzido por funcionários dos museus.
Tempo para pausas e interação com o público também estão no bojo das interdições.
Afinal, Sam Ali é uma mercadoria. A liberdade também é um bem frágil em países capitalistas
se você não é um dos privilegiados.
Jeffrey diz que se
sente mais como Mefistófeles no acordo com Sam do que um gênio da lâmpada no que
tange a conceder desejos. É o pleno exercício da liberdade ou é tão somente vender
a alma para aceitar grilhões em um mundo exclusivo, de suposta sensibilidade e lucrativo?
O mundo que Jeffrey critica com sua arte-mercadoria é a mesma que o geógrafo Milton
Santos aponta em sua tese, a de que há uma livre circulação de mercadorias e informações
que está em contraste com o impedimento da circulação dos indivíduos, especialmente
imigrantes, que buscam emprego e direitos básicos, enfim, uma vida melhor.
Conforme Milton Santos,
o consumismo é o maior dos fundamentalismos. E o mundo da arte ilustra a crítica
de Kaouther Ben Hania ao capitalismo. Dizem que as maiores loucuras se fazem por
amor ou por dinheiro, e ambos são ausência ou excesso no circuito que se percorre
pelas galerias de arte e leilões da diretora tunisiana. Nesse ambiente elitizado,
temos o estar ali e o ter como responsáveis pelo contato com as
obras e a apreciação artística ficando em segundo plano. Há uma ausência de paixão
e um excesso de valoração, que distorcem e inflacionam o mercado – ou o valor artístico
das obras?
A situação leva a
reflexão sobre a identidade humana. Sam é um fugitivo das autoridades sírias – o
drama da guerra na Síria é apresentado em momentos pontuais – o que o torna um imigrante,
um refugiado. Ao aceitar a proposta de Jeffrey, Sam inicia um processo de desumanização,
de perda da dignidade. No entanto, nunca completo pela resistência da própria mercadoria, que é um homem sensível, impulsivo,
de personalidade forte. Ele quer sua liberdade de volta, resolver o paradoxo em
que está metido, que é, retomando Milton Santos, a valorização do objeto sobre a
pessoa. Sam é muito mais que um corpo-tela.
Se tratando de corpo,
a atuação de Yahya Mahayni traz muitos significados, revelando sentimentos como
angústia e paixão, além do peso do tratamento que recebe pela sua reificação. Nele,
em sua linguagem corporal – seus gestos, movimentos e silêncios –, a proposta do
paralelo entre a crise dos refugiados e a crise da arte contemporânea ganha dimensões
surpreendentes. Não à toa, Mahayni foi laureado em Veneza pelo seu desempenho emocionante
e profundo.
Vale destacar a cinematografia
de Christopher Aoun, que, muita atenciosa às cores, é elegante e confere o apuro
estético a atmosfera da obra. E a trilha sonora de Amin Bouhafa, com sintetizadores
e cordas, contribui de maneira significativa para as situações e relacionando-se
com os espaços.
Kaouther Ben Hania
se arrisca em seu conteúdo, como A bela e os cães é um desafio à forma. Sua
sátira é profundamente humana, conduzindo a uma reflexão de como liberdade é um
termo ampliado e restringido conforme os interesses do capital (e de regimes ditatoriais),
restando-nos o desejo de ser livre e um senso de dignidade como resistência.
WULDSON MARCELO. Mestre em Estudos de Cultura Contemporânea (UFMT) e graduado
em Filosofia (UFMT). Escritor, cineasta, roteirista e continuísta. Curador e organizador
das edições 2017, 2018, 2019, 2020, 2022 e 2024 da Mostra de Cinema Negro de Mato
Grosso, idealizada e organizada pelo Coletivo Audiovisual Negro Quariterê, do qual
é membro desde a sua fundação, em 2016. Integrante do Coletivo Audiovisual Miraluz
Films, que lançou, desde 2014, sete curtas-metragens, entre documentários e ficções.
É um dos editores da revista virtual de arte e cultura Ruído Manifesto.
RAQUEL
GAIO (Brasil, 1981). Poeta e fotógrafa. Licenciada em Letras pela UFRJ, é poeta,
artista-cuidadora e pesquisadora independente. Escreveu os livros de poesia Das chagas que você não consegue deter ou a manada
de rinocerontes que te atravessam pela manhã (2018), Manchar a memória do fogo (2019) e Com as patas no grande hematoma (2023). Artista convidada desta edição
de Agulha Revista de Cultura.
Agulha Revista de Cultura
CODINOME ABRAXAS # 03 – REVISTA RUÍDO MANIFESTO (BRASIL)
Artista convidada: Raquel Gaio (Brasil, 1981)
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