FM | Esta nossa conversa tem por meta destacar
alguns aspectos pertinentes à montagem em curso deste novo espetáculo da
Taanteatro Companhia, Da Violência: Fanon, que deve estrear ainda este
ano de 2025. Comecemos pelas razões da escolha do tema, seja a recorrência
paradigmática a Frantz Fanon, o enfrentamento ao colonialismo – e o espectro da
violência dele decorrente –, assim como o que me parece o desafio principal, o
de evocar as ideias de alguém que, segundo Jean-Paul Sartre, era um
incentivador da violência em si. O que significa trazer para o palco a obra de
Fanon?
WP | A escolha do tema deve-se à atualidade do debate sobre o racismo e a
violência no Brasil onde uma série de publicações, em anos recentes, documenta
o interesse renovado pelo pensamento seminal de Frantz Fanon. O trabalho em
torno da obra fanoniana se insere numa investigação teatro-coreográfica do
poder iniciada pela Taanteatro Companhia desde a segunda metade dos anos 1990,
em ciclos de encenações em torno de autores como Artaud, Nietzsche, Deleuze,
entre outros.
Em anos mais recentes e em obras como Mensagens
de Moçambique (2018) e Chissano – Rito para Mabungulane (2020),
focamos no complexo colonial e na diáspora africana. Para a programação do
projeto [des]colonizações, em 2019, convidamos o performer guadalupense
Médrick Varieux com sua palestra-performance O preto bonito está cagando
para você madame! Essa performance baseada no ensaio Experiência vivida
do Negro – titulo que não por acaso remete à Histoire Vecue
d’Artaud-Momo – chamou nossa atenção para os temas e a intensidade oratória
de Fanon. Desde 2022, trabalhamos no projeto Da Violência: Fanon,
finalmente selecionado no ano passado pelo Programa Municipal de Fomento à
Dança para a Cidade de São Paulo, a ponto de coincidir com o centenário de
nascimento de Frantz Fanon em 20 de julho de 2025.
Não foi Jean-Paul Sartre mas Hanna Arendt que
localizou Fanon entre os autores de peso
a glorificar a violência por si mesma. [1] Em seu prefácio à primeira edição de Os
Condenados da Terra, Sartre afirma que o
Terceiro Mundo se descobre e se expressa por meio d[ess]a voz
[2] de
Fanon, uma voz dirigida não aos colonizadores mas às sociedades colonizadas e
movida pelo dever de expulsar o
colonialismo por todos os meios [3] e propor a união dos países africanos, não em
torno da volta a uma mítica cultura africana ancestral, mas rumo a um
socialismo revolucionário. Sartre entendeu que Fanon analisa a violência, ao
mesmo tempo, como aspecto intrínseco à colonização ocidental e como meio
justificado da decolonização para alcançar a autodeterminação nacional dos
povos colonizados.
Para compreender Os Condenados da Terra
e situar o prefácio de Sartre, que contribuiu bastante ao êxito desse conjunto
de ensaios militantes, é preciso considerar o contexto colonial daquela época,
especialmente, o processo de colonização francesa da Argélia desde 1830. Fanon
chegou na Argélia Colonial em 1953, um ano antes da eclosão da Guerra de
Independência que terminou com a vitória argelina, em 1962, um ano depois da
publicação do livro e da morte de Fanon. A Guerra da Argélia, marcada por
massacres de civis, destruições de milhares de aldeias e deslocamentos de dois
milhões de argelinos para campos de concentração, causou, em dez anos, a morte
de centenas de milhares de argelinos. A última década da vida de Fanon
coincidiu com seu envolvimento militante nessa luta contra o poder colonial francês.
Sartre escreve que a violência colonial visa
desumanizar e aniquilar os colonizados e só chega contra sua própria vontade à
descolonização, por não poder levar o
massacre até o genocídio. [4] Considera a violência revolucionária argelina como reversão da
violência colonial. Como tal proporciona – através da expulsão armada do colono
e da restauração da relação do colonizado com sua terra, nação e liberdade – a
recomposição do sujeito colonizado e leva, por consequência, à cura da neurose colonial. [5]
 |
Médrick Varieux |
De acordo com Sartre, a reversão da violência
implica, por parte do europeu, que se tornou ser humano graças à escravização,
na necessidade de um examen interior. Um exame que revela um humanismo racista
e uma cumplicidade genocida, ainda que passiva, com um regime de opressão
milenar. O que resta ao europeu, face à decolonização, é extirpar o colono que habita dentro de cada um de nos.
[6]
Nove anos depois de seu lançamento, Hanna
Arendt analisa Os Condenados da Terra por causa de sua grande influência na atual geração de estudantes.
[7] Do
acordo com Arendt, essa Nova Esquerda herdou uma intromissão maciça da violência criminosa na política [8] e passa a considerar
o uso da violência como cura universal dos males sociais. Arendt critica os excessos retóricos de Fanon como irresponsáveis,
mas concede ao autor martiniquense ter muito
mais dúvidas sobre a violência [9] e manter-se mais próximo da
realidade do que a maioria [10] de seus admiradores.
Em Sartre, Arendt enxerga uma apropriação que
excede o argumento da re-humanização do colonizado por meio da violência
proposta por Fanon. A teórica política considera o existencialista francês inconsciente de sua discordância básica com
relação a Marx sobre a questão da violência, [11] tendo em vista que o materialismo de Marx
atribuía ao trabalho a capacidade de auto-recriação humana enquanto o idealismo
de Hegel a reservava ao pensamento.
De acordo com Arendt, o louvor do valor
terapêutico da violência pertence a uma tradição filosófica, exemplificada por
Nietzsche e Bergson, que concebe a vida como eterno combate e a violência como força criadora de vida. [12] O perigo teórico
dessa justificação da violência em termos
biológicos reside em seu caráter
anti-político e sua inadequação à solução de conflitos no contexto
constitucional de comunidades civilizadas,
levando não à cura e transformação do
mundo, mas ao pesadelo coletivo.
O estudo e a reflexão crítica sobre os ensaios
de Fanon devem se conscientizar de seu contexto histórico, cultural e
geopolítico bem como suas intenções estratégicas. Temos de levar em
consideração que sensibilidades, ideias, valores e prioridades, incluindo nossa
visão da violência, estão sujeitos ao câmbio perspectivista de tais contextos.
 |
Deivison Nkosi Faustino |
A meu ver, Fanon defendeu o uso da violência como
direito e meio de autodefesa dos povos colonizados contra séculos de ocupação,
exploração e violência colonial. O
Code Noir,
emitido por Luis
XIV, em 1865, regulou o estatuto jurídico dos escravos nas colônias francesas
declarando-os
bens móveis. Esse código privou os escravos da agência
própria e de seus direitos civis, inclusive, sob ameaça da pena de morte, do
direito de agredir seus senhores. Em vista a história colonial, considero
válido afirmar que Fanon restituiu à
coisa colonizada o direito romano
de
repelir força com força ou, nas palavras de Lutero, o direito à
resistência
justificada.
Formulado por John Locke, como direito à
autodefesa, o direito natural de um povo
oprimido se levantar para quebrar
aquele odioso jugo de opressão ingressou, em 1859, na Declaração de Liberdade – Pelos Representantes da População Escrava dos
Estados Unidos da América e fez seu caminho até o artigo 51 da Carta das
Nações Unidas como direito inerente
de legítima defesa individual ou coletiva no caso de ocorrer um ataque armado.
[13]
A colonização europeia na África, Ásia e nas
América foi um violento processo de ocupação genocida. Pensar que o autor de um
livro em defesa dos colonizados, publicado dezesseis anos depois da assinatura
da Carta das Nações Unidas, em 1945, seja desqualificado como
mero apologista da violência em si, equivale a uma denúncia de terrorismo,
ainda que literário, e diz mais sobre seus detratores do que sobre Fanon.
Historicamente, foi a luta armada que levou, entre 1950 e 1975, à decolonização
e resistiu a soberania política aos países africanos.
O significado de nossa encenação em torno de
Fanon é de uma tentativa tripla: uma homenagem ao pensador e militante
anti-racista e anti-colonial, uma revisitação de seu pensamento à luz das
manifestações de violência na atualidade e uma investigação das possibilidades
de transposição de suas ideias para campo teatro-coreográfico.
FM | Por ocasião da circulação internacional do
vídeo-documentário Sobre a violência: nove cenas de autodefesa
anti-imperialista, de Göran Hugo Olsson, em 2014, que tinha por base o
livro Os condenados da terra (1961), de Frantz Fanon, uma crítica
indiana, Gayatri Chakravorty Spivak, observou que não apenas Fanon, mas também
outros porta-vozes da causa anticolonial, negligenciaram a violência contra a
mulher, vendo-a parcialmente como existente apenas entre colonizadores. Esta
estudiosa recorda ainda que pobreza, racismo, ausência de exercício pleno de
liberdade e mesmo a indiferença às questões de gênero, são aspectos que as
lutas anticoloniais não conseguiram eliminar ou mesmo reduzir.
No caso da montagem
em que trabalha agora a Taanteatro Companhia, me parece que se toma em conta
mais prioritariamente um outro livro, Pele Negra, Máscaras Brancas
(1952). Há alguma distinção, no que toca ao plano de adaptação cênica, entre os
dois livros? E como exatamente vocês levarão para o palco uma linguagem
ensaística tão complexa como esta?
WP | Desconheço o comentário de Gayatri Spivak, mas concordo que o
desenvolvimento sociopolítico dos países africanos e asiáticos que se
libertaram do domínio colonial europeu evidenciou a existência e persistência
dos males por ela apontados. Por outro lado, seria equivocado esperar que o
encerramento de meio milênio de colonialismo resulte, rapidamente, na cura
afetiva dos ex-colonizados e em condições sociopolíticas e econômicas
paradisíacas. Cabe analisar as causas de tais evoluções sem cair na tentação
simplificadora e tendenciosa de invalidar a luta anticolonial em função de seus
fracassos. O oprimido não se torna virtuoso simplesmente por ser vítima. Mas a
ausência desse automatismo não justifica sua opressão. Pelo contrário, a
restituição do direito humano à autodeterminação inclui, necessariamente, a
possibilidade da falha ética e do crime, não como direito, mas como
possibilidade de agência. De todo modo, o insucesso na promoção da ideia de
igualdade e justiça a modo europeu não é defeito exclusivo de países antigamente
colonizados, mas uma caraterística perniciosa universal, inclusive nas supostas
democracias ocidentais onde a concentração de renda, o surgimento de nova
oligarquias e movimentos supremacistas estão cada vez mais acentuados.
Na crítica feminista da obra de Fanon a observação da invisibilidade da
mulher é recorrente. A escritora Grada Kilomba ressalta em seu prefácio a Pele
Negra, Máscaras Brancas o impacto valioso desse livro sobre sua vida. Ao
mesmo tempo, atesta a Fanon que cometeu
um erro fatal por escolher o homem negro como sujeito do seu livro [14] e por falar do homem como a condição humana [15] e, dessa maneira, invisibilizar a mulher
negra [16] sob o perigo de tornar o status
ontológico das mulheres negras
[17] inexistente. Ainda assim. Kilomba concede, em 2020, que este livro talvez seja a obra que o Brasil mais precisa
neste momento (…) para desobedecer à ausência e para viver na existência. [18]
 |
Jorge Ndlozy |
Vemos que um
livro publicado em 1952 deve ser apreciado em perspectiva histórica. As diferenças de percepção de gerações atuais agregam novos
valores à recepção da obra sem, necessariamente, aniquilar suas virtudes no
passado e sua fecundidade para o futuro.
Fanon nasceu em
1925 e passou seus anos de formação diante do
horizonte cultural, epistêmico e linguístico da cultura franco-martiniquensa
dos anos 1930 e 1940. Durante a Segunda Guerra Mundial, quando foi combatente
na Europa, ocorreu uma intensificação sem precedentes da atuação de mulheres
tanto na indústria de guerra quanto nas forças armadas onde operaram como
atiradoras, guerrilheiras, artilheiras antiaéreas, pilotos de combate e
oficiais. Logo depois da guerra, Simone de Beauvoir, com quem Fanon dialogava,
publicou O Segundo Sexo (1949) e somente em 1963, A Mística Feminina
de Betty Friedan impulsionou, gradativamente, a chamada Segunda Onda do
feminismo. Um argumento para a libertação das mulheres negras como uma força
revolucionária, [19] de Mary Ann Weathers, foi
lançado em 1969 e o movimento queer que critica os escritos de Fanon sobre a
sexualidade e homossexualidade negras ganharam relevo nos anos 1980.
Em outras palavras,
a escrita revolucionária e anticolonial de Fanon, publicada entre 1952 e 1961,
coincide com um período de grandes transformações no plano de geopolítica, mas
precede o boom das políticas feministas dos anos 1960/70. É verdade que sua escrita
privilegia as expressões homem (homme) ou homem negro, no
entanto, vale lembrar que, diferente, por exemplo do alemão, onde Mann designa
o ser humano masculino e Mensch o gênero humano, as línguas latinas,
geralmente atentas às diferenças de gênero, não fazem essa distinção
linguística. A declaração universal dos direitos humanos (La Déclaration
universelle des droits de l’homme), assinada em 1948, em Paris, pelos então 58
estados-membros da Assembleia Geral das Nações Unidas, afirma em seu primeiro artigo
que todos os seres humanos nascem livres
e iguais em dignidade e direitos (Tous les êtres humains naissent libres et
égaux en dignité et en droits.) [20]
Penso que Frantz
Fanon usou o termo l’homme na linha de raciocínio que orientava a
declaração dos direitos humanos. No primeiro parágrafo de Os Condenados da
Terra, Fanon carateriza a decolonização como a substituição de uma espécie
de homens [os colonos] por outra espécie
de homens [os colonizados] e ressalta a
necessidade dessa transformação (…) na consciência e na vida das mulheres e dos
homens colonizados. [21] A meu ver, o novo homem
ou homem total vislumbrado por Fanon passou pelo processo que Nietzsche
chamou de transvaloração de todos os valores porém, aplicado ao complexo
colonial. Por consequência, diz respeito a um tipo de ser humano que superou a
negatividade não só das dicotomias raciais, mas também de gênero. Quando Fanon
fala em novo humanismo e novo homem, refere-se a uma outra espécie de homens e de mulheres e à libertação do ser humano – seja negro, seja branco [22] – do círculo vicioso do racismo.
Se, do ponto de
vista do feminismo atual, o vocabulário empregado por Fanon
invisibiliza as mulheres (negras e brancas), as causas desse erro não
são imputáveis primeiramente ao autor de Pele Negra, Máscaras Brancas, mas às problemáticas tradições
socioculturais e linguísticas que até hoje não encontraram soluções
satisfatórias. Cabe a nós e às gerações futuras enfrentar a tarefa de criar
formas de interação e comunicação que levem em conta a diversidade de
necessidades e desejos de todos os seres vivos, humanos e não humanos, e é
provável que nossos descendentes nos acusem de termos falhado nessa missão.
Sabemos que
nossa encenação será capaz de abarcar a complexidade e
profundidade temática dos ensaios de Fanon. A Taanteatro Companhia trabalhará
com referências de Pele Negra, Máscaras Brancas, Os Condenados da
Terra e com alguns de seus artigos políticos. O ideia subjacente à
encenação é abordar formas de violência
racial contemporânea na perspectiva de uma dança decolonial e impulsionado pela
crítica político-filosófica visceral e revolucionária de Frantz Fanon. [23]
O pré-roteiro que
guia nosso trabalho na fase atual é composto por 7 cenas – 5 movimentos
emoldurados por um prelúdio e um poslúdio – e aponta para os complexos
temáticos entrelaçados: racismo – colonialismo – violência – linguagem –
psiquiatria – combate anti-colonial – autonomia política. Faz referência ao já
mencionado Code Noir; salta para a violência policial e as palavras
finais de George Floyd, prefiguradas nas linhas sobre o sufoco do colonizado em
Pele Negra, Máscaras Brancas; aborda o poder da linguagem colonial sobre o
corpo colonizado; investiga, a partir da psiquiatria fanoniana, os efeitos do
racismo e da colonização sobre a saúde mental; invoca o protesto popular
antirracista e a ideia de libertação e de uma África por vir; e problematiza o
assassinato de líderes revolucionários africanos por intervenção de países
coloniais e em decorrências de disputas internas de facções pós-coloniais.
De que maneira
essas intenções artísticas se concretizarão em termos cênicos e coreográficos
veremos mais adiante.
FM | Como estão integrados os trabalhos de Thiago
Consp (curadoria visual), Anderson Kaltner (música), Otis Selimane Remane
(percussão) e Gabriele Souza (iluminação)? De que modo Mabalane Jorge Ndlozy
(coreografia) tem adequado a equipe em torno de uma compreensão do fenômeno da
dança e do transe? E de que modo se pretende questionar o veredito fanoniano
negativo acerca das capacidades revolucionárias da dança?
WP | As condições de integração criativa desses artistas da cena paulista
estarão mais claras por volta de julho, quando iniciaremos os ensaios e
conheceremos os locais de apresentação do espetáculo. O equipamento técnico
desses espaços em combinação com os modestos recursos disponíveis determinará o
escopo e as qualidades de nossa cooperação.
O projeto conta ainda com a consultoria de
Deivison Nkosi Faustino, professor da USP e autor de Frantz Fanon e as encruzilhadas (Ubu, 2022) e Frantz Fanon: um revolucionário, particularmente negro (Ciclo
Contínuo, 2018), e de Médrick Varieux, performer de Guadalupe e doutorando no departamento
de filosofia da USP.
O dançarino moçambicano Mabalane Jorge Ndlozy é
integrante da Taanteatro Companhia desde 2017. Nos solos que Ndlozy e eu
realizamos desde então – Mensagens de Moçambique (2018), Chissano –
Rito para Mabungulane (2020) e Código Negro (2024) – exploramos
danças tradicionais e dimensões performativas da cultura curandeira
moçambicana. Vamos retomar e coletivizar essa investigação em Da Violência:
Fanon, apesar ou justamente por causa da avaliação cética das tradicionais
práticas dançantes e extáticas feita por Fanon.
 |
Gabriele Souza |
Em
Sobre a Violência, Fanon escreve que
é preciso
compreender o fenômeno da dança
e do transe porque
veremos a
afetividade do colonizado esgotar-se em danças que podem levar ao êxtase. [
24] Nesse ensaio, Fanon
caracteriza o corpo negro como campo de combate entre as forças antagônicas da
colonização e da descolonização. Ele diagnostica nos corpos dos colonizados um
estado de tensão permanente imposto por valores e políticas coloniais e
expressas em sintomas – hipertensão muscular incessante, pressão sanguíneo elevada,
batida cardíaca acelerada – frequentemente liberados em atos autodestrutivos.
Do ponto de vista político de sua análise libidinal, o potencial revolucionário
desses estados de hipertensão é neutralizado nos cultos de danças que, segundo
Fanon, colaboram com uma função econômica
primordial na estabilidade do mundo colonizador por dissolverem
periodicamente, a agressão sedimentada
nos (…) músculos [25] dos corpos colonizados. Em função do aspecto supostamente
antirrevolucionário do êxtase, Fanon se opõe à orgia muscular da dança.
De perspectiva do teatro coreográfica de
tensões (taanteatro), essas considerações de Fanon constituem, em pelo
menos dois sentidos, um desafio instigante: por um lado, nos permitem abordar o
problema colonial a partir da investigação das intra- e inter-tensões
corporais; por outro lado, nos convidam a questionar sua visão reducionista da
dança.
Tradicionalmente, em todas as culturas, a dança
exerce funções sociais fundamentais e a proibição de danças indígenas integra,
habitualmente, os protocolos de colonização. Sabemos, através das biografias,
que Fanon gostava das danças populares da Martinica, mas seus escritos limitam
a dança ao catártico esgotamento energético. Talvez por adotar uma lente
psico-analítica demasiado europeia, Fanon perde de vista a ativação e
autoafirmação comunitárias proporcionadas pela dança sem, fatalmente, levar ao
esvaimento da pulsão agressiva e do posicionamento político.
Na encenação, exploraremos vocabulários
cinéticos ancestrais, mas iremos também em busca de danças por vir, danças
decoloniais, como que criadas pelo novo ser humano profetizado por Fanon.
FM | Acaso vocês encontraram algum obstáculo da
produção de um espetáculo como este que, afinal, toca em questões tão incômodas
na (de)formação permanente da sociedade brasileira que, a rigor, é dispersa,
desinformada e consequentemente demasiado ingênua em relação aos mecanismos
violentos em torno do tema?
WP | Iniciamos o projeto no começo de março, com o Núcleo Taanteatro:
Formação, Pesquisa, Criação formado por doze artistas da dança que serão
introduzidos à metodologia do teatro coreográfico de tensões e criarão, até o
início de julho, sob orientação de integrantes da Taanteatro Companhia, um
conjunto de solos inspirados pelos escritos de Fanon. Esses trabalhos serão
apresentados no Complexo Cultural Funarte São Paulo, em torno do aniversário de
Fanon, em 20 de julho de 2025. A seguir, iniciaremos os ensaios do espetáculo
previsto para estrear e entrar em temporada no mês de novembro.
 |
Thiago Consp |
Os maiores obstáculos enfrentados até agora
foram a demora de quase três anos para encontrar um financiamento, os limites
estreitos dos recursos obtidos e as dificuldades na cessão de salas adequadas
de ensaio e apresentação. Essas dificuldades devem-se menos ao rechaço a temas
incômodos do que à saturação populacional e cultural de São Paulo. Há um
desequilíbrio acentuado entre o número imenso de artistas em busca de
realização, o volume de verba disponível e a quantidade e qualidade dos espaços
cênicos. Essa disparidade, frequentemente em detrimento das condições de
trabalho, leva a uma atomização dos recursos materiais e espaciais.
NOTAS
Entrevista realizada
especialmente para esta edição, em março de 2025. As imagens que acompanham esta página integram o acervo da Taanteatro
Companhia e foram gentilmente cedidas por Wolfgang Pannek.
1. Arendt, Hanna. Da
Violência. Coletivo Sabotagem. 2004. P. 41.
2. FANON, Frantz.
Os condenados da terra. Zahar. Rio de Janeiro, 2020. P. 335
3. Ibid. P. 346
4. FANON, Frantz.
Os condenados da terra. Zahar. Rio de Janeiro, 2020. P. 341
5. Ibid. P. 346
6. Ibid. P. 349
7. Arendt, Hanna. Da
violência. Coletivo
Sabotagem. 2004. P. 69
8. Ibid. P. 11
9. Ibid. P. 65
10. Ibid. P. 15
11. Ibid. P. 10
12. Ibid. P. 47
13. www.oas.org/dil/port/1945%20Carta%20das%20Nações%20Unidas.pdf.
14. KILOMBA, Grada. Prefácio.
Fanon, Existência, Ausência em FANON, Frantz. Pele Negra,
Máscaras Brancas. Ubu, São Paulo, P. 15
15. Ibid.
16. Ibid.
17. Ibid.
18. Idem. P. 16
19. WEATHERS, Mary Ann. An Argument For Black Women's Liberation As a
Revolutionary Force. https://web.archive.org/web/20200116075843/https://library.duke.edu/specialcollections/scriptorium/wlm/fun-games2/argument.html
20. www.un.org/fr/universal-declaration-human-rights/.
21. FANON, Frantz. Os
Condenados da Terra.
P. 31
22. FANON, Frantz. Pele Negra, Máscaras Brancas. Ubu, São Paulo, p.
26
23. Trecho do projeto da Taanteatro Companhia Da Violência: Fanon,contemplado
pelo Programa Municipal de Fomento à Dança para Cidade de São Paulo.
24. FANON, Frantz. Os Condenados Terra. P. 53.
25. Ibid. P. 48.
 |
Frantz Fanon |
FLORIANO MARTINS (Brasil, 1957). Poeta, editor, dramaturgo, ensaísta, artista plástico e
tradutor. Criou em 1999 a Agulha Revista
de Cultura. Coordenou (2005-2010) a coleção “Ponte Velha” de autores
portugueses da Escrituras Editora (São Paulo). Curador do projeto “Atlas Lírico
da América Hispânica”, da revista Acrobata.
Esteve presente em festivais de poesia realizados em países como Bolívia,
Chile, Colômbia, Costa Rica, República Dominicana, El Salvador, Equador,
Espanha, México, Nicarágua, Panamá, Portugal e Venezuela. Curador da Bienal
Internacional do Livro do Ceará (Brasil, 2008), e membro do júri do Prêmio Casa
das Américas (Cuba, 2009), foi professor convidado da Universidade de
Cincinnati (Ohio, Estados Unidos, 2010). Tradutor de livros de César Moro,
Federico García Lorca, Guillermo Cabrera Infante, Vicente Huidobro, Hans Arp,
Juan Calzadilla, Enrique Molina, Jorge Luis Borges, Aldo Pellegrini e Pablo
Antonio Cuadra.
Agulha Revista de Cultura
CODINOME ABRAXAS # 02 – TAANTEATRO COMPANHIA (BRASIL)
Imagens: Acervo Taanteatro
Editores:
Floriano Martins | floriano.agulha@gmail.com
Elys Regina Zils | elysre@gmail.com
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