quinta-feira, 20 de março de 2025

CODINOME ABRAXAS | Homenagens

 

Agulha Revista de Cultura

CODINOME ABRAXAS | Homenagens

Editor | Floriano Martins | floriano.agulha@gmail.com

Editora | Elys Regina Zils | elysre@gmail.com

ARC Edições © 2025





CODINOME ABRAXAS # 01 – REVISTA ALTAZOR (CHILE)

https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2025/02/nossa-estima-01-revista-altazor-chile.html

Artista convidado: Manoel d’Almeida e Sousa (Portugal, 1947)

Agradecimentos a Mario Meléndez

Colaboradores: Carmen Nozal, Emilio Coco, Esteban Moore, Floriano Martins, Giovanna Benedetti, Guillermo García Domingo, Harold Bloom, Javier Alvarado, Miguel Ángel Zapata, Remedios Sánchez García

MANOEL D’ALMEIDA E SOUSA (Portugal, 1947). Poeta e artista visual. Sua obra possui um acento valioso na esfera do humor. Fazedor de coisas (simples) e criador de canídeos. Passou por vários sítios incluindo a Escola Superior de Teatro e Cinema. É fundador do projeto associativo Mandrágora onde encenou e atuou como figurante. Já pintou, desenhou e fez revistas – entre elas a Bicicleta. A seu respeito escreveu Nicolau Saião: Almeida e Sousa acentua mais ou menos conscientemente o contraste entre a reposição parcial da antiga legibilidade e o exterior atmosférico a que usa chamar-se passado. É, obviamente, um exilado da tal pintura de tradição. Os seus quadros assemelham-se a violentas sacudidelas na sua vida de pessoa que intervém mediante os materiais, os traços, a cor ou a ausência de cor, na sequência do quotidiano. É o acaso que o motiva ou, pelo contrário, é uma deliberada atenção a tudo o que o rodeia? Que possui bons olhos de pintor e independência de espírito – e de razão conceptual – não sofre dúvida. Ele subverte – e nas suas colagens isso é muito perceptível – muito do tempo presente. Mas isso é evidentemente uma busca lúcida do futuro. Manoel d’Almeida e Sousa é o artista convidado da presente edição de Agulha Revista de Cultura. 

 


CODINOME ABRAXAS # 02 – TAANTEATRO COMPANHIA
(BRASIL)

https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2025/03/codinome-abraxas-02-taanteatro.html

Imagens: Arquivo Taanteatro

Agradecimentos a Maura Baiocchi e Wolfgang Pannek

Colaboradores: Alberto Ligaluppi, Alexandre Ribondi, Beth Nêspoli, Cassia Navas, Célia Musilli, Celso Araujo, Florence de Mèredieu, Floriano Martins, Francisco Wasilewski, Guillaume D’Azemar de Fabregues, Lenise Pinheiro, Luisa Heredia, Miguel Passarini, Nelson de Sá, Nidia Burgos, Oswaldo Faustino, Peter Pál Pelbart, Philippe Person, Renato Mendonça, Sérgio Maggio, Valmir Santos, Victor Mazin, Wolfgang Pannek

 

 


 


Agulha Revista de Cultura

Editores:

Floriano Martins | floriano.agulha@gmail.com

Elys Regina Zils | elysre@gmail.com

ARC Edições © 2025


∞ contatos

https://www.instagram.com/agulharevistadecultura/

http://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/

FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com

ELYS REGINA ZILS | elysre@gmail.com

 





 

CODINOME ABRAXAS # 02 – TAANTEATRO COMPANHIA (BRASIL)

 

∞ editorial | As tensões renovadoras da amizade

 


01 | Dando curso a essa sessão de homenagens de Agulha Revista de Cultura, destacamos a presença em palco da Taanteatro Companhia, alquímica experiência de tensões, como tão bem observa sua criadora, a bailarina e coreógrafa Maura Baiocchi, ao lado de Wolfgang Pannek, ator, tradutor e cineasta. Ambos são autores, diretores e inconfundíveis criadores de eventos culturais, entre os quais se encontram o Cinefestival Internacional de Ecoperformance. O palco é a casa de suas discussões metafísicas, seja na abordagem das inúmeras formas de flagelação das sociedades humanas ou na fertilidade ascética de jogos e cerimônias míticas. A Taanteatro Companhia representa o despojamento do mistério, o transbordamento do ilusório nas artes da dança e do teatro, o corpo que serve à geração de todas as formas e expressões. Edificação catártica de sentimentos, iniciação do desejo e da imaginação, indutor da espontaneidade oculta nas profundezas do inconsciente, o teatro é a cada desse corpo que só existe na medida de sua libertação, um gesto de risco ambientado na criação artística de embriagadora comoção como a que vemos surgir nessa entranhável caixa do mundo que desenvolveu a Taanteatro Companhia. Nesta nossa homenagem, recolhemos uma boa e substanciosa seleção de textos críticos, que acompanharam na imprensa a agenda internacional da Taanteatro, assim como duas entrevistas realizadas para a presente edição, onde Maura Baiocchi e Wolfgang Pannek refletem sobre a fonte inesgotável de sua criação. Também optamos, contrariando pela primeira vez, uma característica da Agulha Revista de Cultura de sempre, a cada número, expor a obra de um artista convidado, por um mostruário fotográfico diverso de várias peças levadas a palco, assim como as capas dos principais livros que a Companhia publicou até o momento. Nosso agradecimento a todos que participam, em especial a Wolfgang Pannek e Maura Baiocchi.

 

02 | Continuando esta sesión de homenajes de Agulha Revista de Cultura, destacamos la presencia en escena de Taanteatro Companhia, una experiencia alquímica de tensiones, como tan acertadamente observa su creadora, la bailarina y coreógrafa Maura Baiocchi, junto a Wolfgang Pannek, actor, traductor y cineasta. Ambos son autores, directores y creadores inconfundibles de eventos culturales, entre ellos el Cinefestival Internacional de Ecoperformance. El cuerpo es el escenario de sus discusiones metafísicas, ya sea en el acercamiento a las innumerables formas de flagelación de las sociedades humanas o en la fertilidad ascética de los juegos y ceremonias míticas. Taanteatro Companhia representa el despojamiento del misterio, el desbordamiento de lo ilusorio en las artes de la danza y el teatro, el cuerpo que sirve a la generación de todas las formas y expresiones. Edificación catártica de los sentimientos, iniciación del deseo y de la imaginación, inductor de la espontaneidad escondida en las profundidades del inconsciente, el teatro es la casa de este cuerpo que sólo existe en la medida de su liberación, un gesto arriesgado enmarcado en la creación artística de una emoción embriagadora como la que vemos emerger en esta caja íntima del mundo que desarrolló Taanteatro Companhia. En este homenaje hemos recogido una buena y sustancial selección de textos críticos, que acompañaron la agenda internacional de Taanteatro en la prensa, así como dos entrevistas realizadas para esta edición, en las que Maura Baiocchi y Wolfgang Pannek reflexionan sobre la fuente inagotable de su creación. También optamos, por primera vez, por contradecir la característica de Agulha Revista de Cultura, que en cada número exhibe el trabajo de un artista invitado, optamos por una muestra fotográfica diversificada de varias obras llevadas al escenario, así como las portadas de los principales libros que la Compañía ha publicado hasta la fecha. Nuestro agradecimiento a todos los que participaron, especialmente a Wolfgang Pannek y Maura Baiocchi.

 



03 | Continuing this tribute session from Agulha Revista de Cultura, we highlight the on-stage presence of Taanteatro Companhia, an alchemical experience of tension, as its creator, dancer and choreographer Maura Baiocchi, so aptly observes, alongside Wolfgang Pannek, actor, translator, and filmmaker. Both are unmistakable authors, directors, and creators of cultural events, including the International Ecoperformance Film Festival. The body is the stage for their metaphysical discussions, whether in their approach to the countless forms of flagellation of human societies or in the ascetic fertility of mythical games and ceremonies. Taanteatro Companhia represents the unveiling of mystery, the overflow of the illusory in the arts of dance and theater, the body that serves the generation of all forms and expressions. A cathartic edification of feelings, initiation of desire and imagination, inducer of spontaneity hidden in the depths of the unconscious, the theater is the home of this body that only exists to the extent of its liberation, a risky gesture framed within the artistic creation of an intoxicating emotion like the one we see emerge in this intimate box of the world developed by Taanteatro Companhia. In this tribute, we have compiled a substantial and well-chosen selection of critical texts belonging to Taanteatro’s international press resonance, as well as two interviews conducted for this edition, in which Maura Baiocchi and Wolfgang Pannek reflect on the inexhaustible source of their creativity. We have also chosen, for the first time, to contradict the characteristic of Agulha Revista de Cultura, which showcases the work of a guest artist in each issue, opting for a diversified photographic exhibition of several works brought to the stage, as well as the covers of the main books the Company has published to date. Our thanks to all who participated, especially Wolfgang Pannek and Maura Baiocchi. 

Os Editores

 

 

∞ índice

 

ALBERTO LIGALUPPI, LUISA HEREDIA, MIGUEL PASSARINI | De passagem por Córdoba: Subtração de Ofelia & Submerge

https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2025/03/alberto-ligaluppi-luisa-heredia-miguel.html

 

ALEXANDRE RIBONDI, OSWALDO FAUSTINO | Dança Du-Elo

https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2025/03/alexandre-ribondi-oswaldo-faustino.html

 

CASSIA NAVAS, CELSO ARAUJO, CÉLIA MUSILLI, NELSON DE SÁ, FRANCISCO WASILEWSKI, RENATO MENDONÇA | Taanteatro vezes quatro: Androgyne & Dan & Rit.U & Homem branca e cara vermelha

https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2025/03/cassia-navas-celso-araujo-celia-musilli.html

 

CÉLIA MUSILLI | Três vezes conversando com Wolfgang Pannek

https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2025/03/celia-musilli-tres-vezes-conversando.html

 

CÉLIA MUSILLI, VICTOR MAZIN | Trans

https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2025/03/celia-musilli-victor-mazin-trans.html

 

FLORENCE DE MÈREDIEU, PHILIPPE PERSON, GUILLAUME D'AZEMAR DE FABREGUES, LENISE PINHEIRO | Artaud, le momo

https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2025/03/florence-de-meredieu-philippe-person.html

 

FLORIANO MARTINS | O universo em sintonia com Maura Baiocchi

https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2025/03/floriano-martins-o-universo-em-sintonia.html

 

VALMIR SANTOS, BETH NÊSPOLI, SÉRGIO MAGGIO, PETER PÁL PELBART, NIDIA BURGOS | Biblioteca Taanteatro

https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2025/03/valmir-santos-beth-nespoli-sergio.html

 

WOLFGANG PANNEK | Frida Kahlo: uma mulher de pedra dá luz à noite

https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2025/03/wolfgang-pannek-frida-kahlo-uma-mulher.html

 

FLORIANO MARTINS | Conversa com Wolfgang Pannek – Da violência: Fanon

https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2025/03/floriano-martins-uma-conversa-com.html 

 

Maura Baiocchi


Wolfgang Pannek


  

Agulha Revista de Cultura

CODINOME ABRAXAS # 02 – TAANTEATRO COMPANHIA (BRASIL)

Imagens: Acervo Taanteatro

Editores:

Floriano Martins | floriano.agulha@gmail.com

Elys Regina Zils | elysre@gmail.com

ARC Edições © 2025




∞ contatos

https://www.instagram.com/agulharevistadecultura/

http://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/

FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com

ELYS REGINA ZILS | elysre@gmail.com

 




FLORIANO MARTINS | Uma conversa com Wolfgang Pannek

 


FM | Esta nossa conversa tem por meta destacar alguns aspectos pertinentes à montagem em curso deste novo espetáculo da Taanteatro Companhia, Da Violência: Fanon, que deve estrear ainda este ano de 2025. Comecemos pelas razões da escolha do tema, seja a recorrência paradigmática a Frantz Fanon, o enfrentamento ao colonialismo – e o espectro da violência dele decorrente –, assim como o que me parece o desafio principal, o de evocar as ideias de alguém que, segundo Jean-Paul Sartre, era um incentivador da violência em si. O que significa trazer para o palco a obra de Fanon?

 

WP | A escolha do tema deve-se à atualidade do debate sobre o racismo e a violência no Brasil onde uma série de publicações, em anos recentes, documenta o interesse renovado pelo pensamento seminal de Frantz Fanon. O trabalho em torno da obra fanoniana se insere numa investigação teatro-coreográfica do poder iniciada pela Taanteatro Companhia desde a segunda metade dos anos 1990, em ciclos de encenações em torno de autores como Artaud, Nietzsche, Deleuze, entre outros.

Em anos mais recentes e em obras como Mensagens de Moçambique (2018) e Chissano – Rito para Mabungulane (2020), focamos no complexo colonial e na diáspora africana. Para a programação do projeto [des]colonizações, em 2019, convidamos o performer guadalupense Médrick Varieux com sua palestra-performance O preto bonito está cagando para você madame! Essa performance baseada no ensaio Experiência vivida do Negro – titulo que não por acaso remete à Histoire Vecue d’Artaud-Momo – chamou nossa atenção para os temas e a intensidade oratória de Fanon. Desde 2022, trabalhamos no projeto Da Violência: Fanon, finalmente selecionado no ano passado pelo Programa Municipal de Fomento à Dança para a Cidade de São Paulo, a ponto de coincidir com o centenário de nascimento de Frantz Fanon em 20 de julho de 2025.

Não foi Jean-Paul Sartre mas Hanna Arendt que localizou Fanon entre os autores de peso a glorificar a violência por si mesma. [1] Em seu prefácio à primeira edição de Os Condenados da Terra, Sartre afirma que o Terceiro Mundo se descobre e se expressa por meio d[ess]a voz [2] de Fanon, uma voz dirigida não aos colonizadores mas às sociedades colonizadas e movida pelo dever de expulsar o colonialismo por todos os meios [3] e propor a união dos países africanos, não em torno da volta a uma mítica cultura africana ancestral, mas rumo a um socialismo revolucionário. Sartre entendeu que Fanon analisa a violência, ao mesmo tempo, como aspecto intrínseco à colonização ocidental e como meio justificado da decolonização para alcançar a autodeterminação nacional dos povos colonizados.

Para compreender Os Condenados da Terra e situar o prefácio de Sartre, que contribuiu bastante ao êxito desse conjunto de ensaios militantes, é preciso considerar o contexto colonial daquela época, especialmente, o processo de colonização francesa da Argélia desde 1830. Fanon chegou na Argélia Colonial em 1953, um ano antes da eclosão da Guerra de Independência que terminou com a vitória argelina, em 1962, um ano depois da publicação do livro e da morte de Fanon. A Guerra da Argélia, marcada por massacres de civis, destruições de milhares de aldeias e deslocamentos de dois milhões de argelinos para campos de concentração, causou, em dez anos, a morte de centenas de milhares de argelinos. A última década da vida de Fanon coincidiu com seu envolvimento militante nessa luta contra o poder colonial francês.

Sartre escreve que a violência colonial visa desumanizar e aniquilar os colonizados e só chega contra sua própria vontade à descolonização, por não poder levar o massacre até o genocídio. [4] Considera a violência revolucionária argelina como reversão da violência colonial. Como tal proporciona – através da expulsão armada do colono e da restauração da relação do colonizado com sua terra, nação e liberdade – a recomposição do sujeito colonizado e leva, por consequência, à cura da neurose colonial. [5]

Médrick Varieux

De acordo com Sartre, a reversão da violência implica, por parte do europeu, que se tornou ser humano graças à escravização, na necessidade de um examen interior. Um exame que revela um humanismo racista e uma cumplicidade genocida, ainda que passiva, com um regime de opressão milenar. O que resta ao europeu, face à decolonização, é extirpar o colono que habita dentro de cada um de nos. [6]

Nove anos depois de seu lançamento, Hanna Arendt analisa Os Condenados da Terra por causa de sua grande influência na atual geração de estudantes. [7] Do acordo com Arendt, essa Nova Esquerda herdou uma intromissão maciça da violência criminosa na política [8] e passa a considerar o uso da violência como cura universal dos males sociais. Arendt critica os excessos retóricos de Fanon como irresponsáveis, mas concede ao autor martiniquense ter muito mais dúvidas sobre a violência [9] e manter-se mais próximo da realidade do que a maioria [10] de seus admiradores.

Em Sartre, Arendt enxerga uma apropriação que excede o argumento da re-humanização do colonizado por meio da violência proposta por Fanon. A teórica política considera o existencialista francês inconsciente de sua discordância básica com relação a Marx sobre a questão da violência, [11] tendo em vista que o materialismo de Marx atribuía ao trabalho a capacidade de auto-recriação humana enquanto o idealismo de Hegel a reservava ao pensamento.

De acordo com Arendt, o louvor do valor terapêutico da violência pertence a uma tradição filosófica, exemplificada por Nietzsche e Bergson, que concebe a vida como eterno combate e a violência como força criadora de vida. [12] O perigo teórico dessa justificação da violência em termos biológicos reside em seu caráter anti-político e sua inadequação à solução de conflitos no contexto constitucional de comunidades civilizadas, levando não à cura e transformação do mundo, mas ao pesadelo coletivo.

O estudo e a reflexão crítica sobre os ensaios de Fanon devem se conscientizar de seu contexto histórico, cultural e geopolítico bem como suas intenções estratégicas. Temos de levar em consideração que sensibilidades, ideias, valores e prioridades, incluindo nossa visão da violência, estão sujeitos ao câmbio perspectivista de tais contextos.


Deivison Nkosi Faustino

A meu ver, Fanon defendeu o uso da violência como direito e meio de autodefesa dos povos colonizados contra séculos de ocupação, exploração e violência colonial. O Code Noir, emitido por Luis XIV, em 1865, regulou o estatuto jurídico dos escravos nas colônias francesas declarando-os bens móveis. Esse código privou os escravos da agência própria e de seus direitos civis, inclusive, sob ameaça da pena de morte, do direito de agredir seus senhores. Em vista a história colonial, considero válido afirmar que Fanon restituiu à coisa colonizada o direito romano de repelir força com força ou, nas palavras de Lutero, o direito à resistência justificada.

Formulado por John Locke, como direito à autodefesa, o direito natural de um povo oprimido se levantar para quebrar aquele odioso jugo de opressão ingressou, em 1859, na Declaração de Liberdade – Pelos Representantes da População Escrava dos Estados Unidos da América e fez seu caminho até o artigo 51 da Carta das Nações Unidas como direito inerente de legítima defesa individual ou coletiva no caso de ocorrer um ataque armado. [13]

A colonização europeia na África, Ásia e nas América foi um violento processo de ocupação genocida. Pensar que o autor de um livro em defesa dos colonizados, publicado dezesseis anos depois da assinatura da Carta das Nações Unidas, em 1945, seja desqualificado como mero apologista da violência em si, equivale a uma denúncia de terrorismo, ainda que literário, e diz mais sobre seus detratores do que sobre Fanon. Historicamente, foi a luta armada que levou, entre 1950 e 1975, à decolonização e resistiu a soberania política aos países africanos.

O significado de nossa encenação em torno de Fanon é de uma tentativa tripla: uma homenagem ao pensador e militante anti-racista e anti-colonial, uma revisitação de seu pensamento à luz das manifestações de violência na atualidade e uma investigação das possibilidades de transposição de suas ideias para campo teatro-coreográfico.

 

FM | Por ocasião da circulação internacional do vídeo-documentário Sobre a violência: nove cenas de autodefesa anti-imperialista, de Göran Hugo Olsson, em 2014, que tinha por base o livro Os condenados da terra (1961), de Frantz Fanon, uma crítica indiana, Gayatri Chakravorty Spivak, observou que não apenas Fanon, mas também outros porta-vozes da causa anticolonial, negligenciaram a violência contra a mulher, vendo-a parcialmente como existente apenas entre colonizadores. Esta estudiosa recorda ainda que pobreza, racismo, ausência de exercício pleno de liberdade e mesmo a indiferença às questões de gênero, são aspectos que as lutas anticoloniais não conseguiram eliminar ou mesmo reduzir.

No caso da montagem em que trabalha agora a Taanteatro Companhia, me parece que se toma em conta mais prioritariamente um outro livro, Pele Negra, Máscaras Brancas (1952). Há alguma distinção, no que toca ao plano de adaptação cênica, entre os dois livros? E como exatamente vocês levarão para o palco uma linguagem ensaística tão complexa como esta?

 

WP | Desconheço o comentário de Gayatri Spivak, mas concordo que o desenvolvimento sociopolítico dos países africanos e asiáticos que se libertaram do domínio colonial europeu evidenciou a existência e persistência dos males por ela apontados. Por outro lado, seria equivocado esperar que o encerramento de meio milênio de colonialismo resulte, rapidamente, na cura afetiva dos ex-colonizados e em condições sociopolíticas e econômicas paradisíacas. Cabe analisar as causas de tais evoluções sem cair na tentação simplificadora e tendenciosa de invalidar a luta anticolonial em função de seus fracassos. O oprimido não se torna virtuoso simplesmente por ser vítima. Mas a ausência desse automatismo não justifica sua opressão. Pelo contrário, a restituição do direito humano à autodeterminação inclui, necessariamente, a possibilidade da falha ética e do crime, não como direito, mas como possibilidade de agência. De todo modo, o insucesso na promoção da ideia de igualdade e justiça a modo europeu não é defeito exclusivo de países antigamente colonizados, mas uma caraterística perniciosa universal, inclusive nas supostas democracias ocidentais onde a concentração de renda, o surgimento de nova oligarquias e movimentos supremacistas estão cada vez mais acentuados.

Na crítica feminista da obra de Fanon a observação da invisibilidade da mulher é recorrente. A escritora Grada Kilomba ressalta em seu prefácio a Pele Negra, Máscaras Brancas o impacto valioso desse livro sobre sua vida. Ao mesmo tempo, atesta a Fanon que cometeu um erro fatal por escolher o homem negro como sujeito do seu livro [14] e por falar do homem como a condição humana [15] e, dessa maneira, invisibilizar a mulher negra [16] sob o perigo de tornar o status ontológico das mulheres negras [17] inexistente. Ainda assim. Kilomba concede, em 2020, que este livro talvez seja a obra que o Brasil mais precisa neste momento (…) para desobedecer à ausência e para viver na existência. [18]


Jorge Ndlozy

Vemos que um livro publicado em 1952 deve ser apreciado em perspectiva histórica. As diferenças de percepção de gerações atuais agregam novos valores à recepção da obra sem, necessariamente, aniquilar suas virtudes no passado e sua fecundidade para o futuro.

Fanon nasceu em 1925 e passou seus anos de formação diante do horizonte cultural, epistêmico e linguístico da cultura franco-martiniquensa dos anos 1930 e 1940. Durante a Segunda Guerra Mundial, quando foi combatente na Europa, ocorreu uma intensificação sem precedentes da atuação de mulheres tanto na indústria de guerra quanto nas forças armadas onde operaram como atiradoras, guerrilheiras, artilheiras antiaéreas, pilotos de combate e oficiais. Logo depois da guerra, Simone de Beauvoir, com quem Fanon dialogava, publicou O Segundo Sexo (1949) e somente em 1963, A Mística Feminina de Betty Friedan impulsionou, gradativamente, a chamada Segunda Onda do feminismo. Um argumento para a libertação das mulheres negras como uma força revolucionária, [19] de Mary Ann Weathers, foi lançado em 1969 e o movimento queer que critica os escritos de Fanon sobre a sexualidade e homossexualidade negras ganharam relevo nos anos 1980.

Em outras palavras, a escrita revolucionária e anticolonial de Fanon, publicada entre 1952 e 1961, coincide com um período de grandes transformações no plano de geopolítica, mas precede o boom das políticas feministas dos anos 1960/70. É verdade que sua escrita privilegia as expressões homem (homme) ou homem negro, no entanto, vale lembrar que, diferente, por exemplo do alemão, onde Mann designa o ser humano masculino e Mensch o gênero humano, as línguas latinas, geralmente atentas às diferenças de gênero, não fazem essa distinção linguística. A declaração universal dos direitos humanos (La Déclaration universelle des droits de l’homme), assinada em 1948, em Paris, pelos então 58 estados-membros da Assembleia Geral das Nações Unidas, afirma em seu primeiro artigo que todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos (Tous les êtres humains naissent libres et égaux en dignité et en droits.) [20]

Penso que Frantz Fanon usou o termo l’homme na linha de raciocínio que orientava a declaração dos direitos humanos. No primeiro parágrafo de Os Condenados da Terra, Fanon carateriza a decolonização como a substituição de uma espécie de homens [os colonos] por outra espécie de homens [os colonizados] e ressalta a necessidade dessa transformação (…) na consciência e na vida das mulheres e dos homens colonizados. [21] A meu ver, o novo homem ou homem total vislumbrado por Fanon passou pelo processo que Nietzsche chamou de transvaloração de todos os valores porém, aplicado ao complexo colonial. Por consequência, diz respeito a um tipo de ser humano que superou a negatividade não só das dicotomias raciais, mas também de gênero. Quando Fanon fala em novo humanismo e novo homem, refere-se a uma outra espécie de homens e de mulheres e à libertação do ser humano – seja negro, seja branco [22] – do círculo vicioso do racismo.

Se, do ponto de vista do feminismo atual, o vocabulário empregado por Fanon invisibiliza as mulheres (negras e brancas), as causas desse erro não são imputáveis primeiramente ao autor de Pele Negra, Máscaras Brancas, mas às problemáticas tradições socioculturais e linguísticas que até hoje não encontraram soluções satisfatórias. Cabe a nós e às gerações futuras enfrentar a tarefa de criar formas de interação e comunicação que levem em conta a diversidade de necessidades e desejos de todos os seres vivos, humanos e não humanos, e é provável que nossos descendentes nos acusem de termos falhado nessa missão.

Sabemos que nossa encenação será capaz de abarcar a complexidade e profundidade temática dos ensaios de Fanon. A Taanteatro Companhia trabalhará com referências de Pele Negra, Máscaras Brancas, Os Condenados da Terra e com alguns de seus artigos políticos. O ideia subjacente à encenação é abordar formas de violência racial contemporânea na perspectiva de uma dança decolonial e impulsionado pela crítica político-filosófica visceral e revolucionária de Frantz Fanon. [23]

O pré-roteiro que guia nosso trabalho na fase atual é composto por 7 cenas – 5 movimentos emoldurados por um prelúdio e um poslúdio – e aponta para os complexos temáticos entrelaçados: racismo – colonialismo – violência – linguagem – psiquiatria – combate anti-colonial – autonomia política. Faz referência ao já mencionado Code Noir; salta para a violência policial e as palavras finais de George Floyd, prefiguradas nas linhas sobre o sufoco do colonizado em Pele Negra, Máscaras Brancas; aborda o poder da linguagem colonial sobre o corpo colonizado; investiga, a partir da psiquiatria fanoniana, os efeitos do racismo e da colonização sobre a saúde mental; invoca o protesto popular antirracista e a ideia de libertação e de uma África por vir; e problematiza o assassinato de líderes revolucionários africanos por intervenção de países coloniais e em decorrências de disputas internas de facções pós-coloniais.

De que maneira essas intenções artísticas se concretizarão em termos cênicos e coreográficos veremos mais adiante.

 

FM | Como estão integrados os trabalhos de Thiago Consp (curadoria visual), Anderson Kaltner (música), Otis Selimane Remane (percussão) e Gabriele Souza (iluminação)? De que modo Mabalane Jorge Ndlozy (coreografia) tem adequado a equipe em torno de uma compreensão do fenômeno da dança e do transe? E de que modo se pretende questionar o veredito fanoniano negativo acerca das capacidades revolucionárias da dança?

 

WP | As condições de integração criativa desses artistas da cena paulista estarão mais claras por volta de julho, quando iniciaremos os ensaios e conheceremos os locais de apresentação do espetáculo. O equipamento técnico desses espaços em combinação com os modestos recursos disponíveis determinará o escopo e as qualidades de nossa cooperação.

O projeto conta ainda com a consultoria de Deivison Nkosi Faustino, professor da USP e autor de Frantz Fanon e as encruzilhadas (Ubu, 2022) e Frantz Fanon: um revolucionário, particularmente negro (Ciclo Contínuo, 2018), e de Médrick Varieux, performer de Guadalupe e doutorando no departamento de filosofia da USP.

O dançarino moçambicano Mabalane Jorge Ndlozy é integrante da Taanteatro Companhia desde 2017. Nos solos que Ndlozy e eu realizamos desde então – Mensagens de Moçambique (2018), Chissano – Rito para Mabungulane (2020) e Código Negro (2024) – exploramos danças tradicionais e dimensões performativas da cultura curandeira moçambicana. Vamos retomar e coletivizar essa investigação em Da Violência: Fanon, apesar ou justamente por causa da avaliação cética das tradicionais práticas dançantes e extáticas feita por Fanon.


Gabriele Souza

Em Sobre a Violência, Fanon escreve que é preciso compreender o fenômeno da dança e do transe porque veremos a afetividade do colonizado esgotar-se em danças que podem levar ao êxtase. [24] Nesse ensaio, Fanon caracteriza o corpo negro como campo de combate entre as forças antagônicas da colonização e da descolonização. Ele diagnostica nos corpos dos colonizados um estado de tensão permanente imposto por valores e políticas coloniais e expressas em sintomas – hipertensão muscular incessante, pressão sanguíneo elevada, batida cardíaca acelerada – frequentemente liberados em atos autodestrutivos. Do ponto de vista político de sua análise libidinal, o potencial revolucionário desses estados de hipertensão é neutralizado nos cultos de danças que, segundo Fanon, colaboram com uma função econômica primordial na estabilidade do mundo colonizador por dissolverem periodicamente, a agressão sedimentada nos (…) músculos [25] dos corpos colonizados. Em função do aspecto supostamente antirrevolucionário do êxtase, Fanon se opõe à orgia muscular da dança.

De perspectiva do teatro coreográfica de tensões (taanteatro), essas considerações de Fanon constituem, em pelo menos dois sentidos, um desafio instigante: por um lado, nos permitem abordar o problema colonial a partir da investigação das intra- e inter-tensões corporais; por outro lado, nos convidam a questionar sua visão reducionista da dança.

Tradicionalmente, em todas as culturas, a dança exerce funções sociais fundamentais e a proibição de danças indígenas integra, habitualmente, os protocolos de colonização. Sabemos, através das biografias, que Fanon gostava das danças populares da Martinica, mas seus escritos limitam a dança ao catártico esgotamento energético. Talvez por adotar uma lente psico-analítica demasiado europeia, Fanon perde de vista a ativação e autoafirmação comunitárias proporcionadas pela dança sem, fatalmente, levar ao esvaimento da pulsão agressiva e do posicionamento político. 

Na encenação, exploraremos vocabulários cinéticos ancestrais, mas iremos também em busca de danças por vir, danças decoloniais, como que criadas pelo novo ser humano profetizado por Fanon.

 

FM | Acaso vocês encontraram algum obstáculo da produção de um espetáculo como este que, afinal, toca em questões tão incômodas na (de)formação permanente da sociedade brasileira que, a rigor, é dispersa, desinformada e consequentemente demasiado ingênua em relação aos mecanismos violentos em torno do tema?

 

WP | Iniciamos o projeto no começo de março, com o Núcleo Taanteatro: Formação, Pesquisa, Criação formado por doze artistas da dança que serão introduzidos à metodologia do teatro coreográfico de tensões e criarão, até o início de julho, sob orientação de integrantes da Taanteatro Companhia, um conjunto de solos inspirados pelos escritos de Fanon. Esses trabalhos serão apresentados no Complexo Cultural Funarte São Paulo, em torno do aniversário de Fanon, em 20 de julho de 2025. A seguir, iniciaremos os ensaios do espetáculo previsto para estrear e entrar em temporada no mês de novembro.

Thiago Consp

Os maiores obstáculos enfrentados até agora foram a demora de quase três anos para encontrar um financiamento, os limites estreitos dos recursos obtidos e as dificuldades na cessão de salas adequadas de ensaio e apresentação. Essas dificuldades devem-se menos ao rechaço a temas incômodos do que à saturação populacional e cultural de São Paulo. Há um desequilíbrio acentuado entre o número imenso de artistas em busca de realização, o volume de verba disponível e a quantidade e qualidade dos espaços cênicos. Essa disparidade, frequentemente em detrimento das condições de trabalho, leva a uma atomização dos recursos materiais e espaciais.




NOTAS

Entrevista realizada especialmente para esta edição, em março de 2025. As imagens que acompanham esta página integram o acervo da Taanteatro Companhia e foram gentilmente cedidas por Wolfgang Pannek.

1. Arendt, Hanna. Da Violência. Coletivo Sabotagem. 2004. P. 41.

2. FANON, Frantz. Os condenados da terra. Zahar. Rio de Janeiro, 2020. P. 335

3. Ibid. P. 346

4. FANON, Frantz. Os condenados da terra. Zahar. Rio de Janeiro, 2020. P. 341

5. Ibid. P. 346

6. Ibid. P. 349

7. Arendt, Hanna. Da violência. Coletivo Sabotagem. 2004. P. 69

8. Ibid. P. 11

9. Ibid. P. 65

10. Ibid. P. 15

11. Ibid. P. 10

12. Ibid. P. 47

13. www.oas.org/dil/port/1945%20Carta%20das%20Nações%20Unidas.pdf.

14. KILOMBA, Grada. Prefácio. Fanon, Existência, Ausência em FANON, Frantz. Pele Negra, Máscaras Brancas. Ubu, São Paulo, P. 15

15. Ibid.

16. Ibid.

17. Ibid.

18. Idem. P. 16

19. WEATHERS, Mary Ann. An Argument For Black Women's Liberation As a Revolutionary Force. https://web.archive.org/web/20200116075843/https://library.duke.edu/specialcollections/scriptorium/wlm/fun-games2/argument.html

20. www.un.org/fr/universal-declaration-human-rights/.

21. FANON, Frantz. Os Condenados da Terra. P. 31

22. FANON, Frantz. Pele Negra, Máscaras Brancas. Ubu, São Paulo, p. 26

23. Trecho do projeto da Taanteatro Companhia Da Violência: Fanon,contemplado pelo Programa Municipal de Fomento à Dança para Cidade de São Paulo.

24. FANON, Frantz. Os Condenados Terra. P. 53.

25. Ibid. P. 48.


Frantz Fanon




FLORIANO MARTINS
(Brasil, 1957). Poeta, editor, dramaturgo, ensaísta, artista plástico e tradutor. Criou em 1999 a Agulha Revista de Cultura. Coordenou (2005-2010) a coleção “Ponte Velha” de autores portugueses da Escrituras Editora (São Paulo). Curador do projeto “Atlas Lírico da América Hispânica”, da revista Acrobata. Esteve presente em festivais de poesia realizados em países como Bolívia, Chile, Colômbia, Costa Rica, República Dominicana, El Salvador, Equador, Espanha, México, Nicarágua, Panamá, Portugal e Venezuela. Curador da Bienal Internacional do Livro do Ceará (Brasil, 2008), e membro do júri do Prêmio Casa das Américas (Cuba, 2009), foi professor convidado da Universidade de Cincinnati (Ohio, Estados Unidos, 2010). Tradutor de livros de César Moro, Federico García Lorca, Guillermo Cabrera Infante, Vicente Huidobro, Hans Arp, Juan Calzadilla, Enrique Molina, Jorge Luis Borges, Aldo Pellegrini e Pablo Antonio Cuadra.

 

Agulha Revista de Cultura

CODINOME ABRAXAS # 02 – TAANTEATRO COMPANHIA (BRASIL)

Imagens: Acervo Taanteatro

Editores:

Floriano Martins | floriano.agulha@gmail.com

Elys Regina Zils | elysre@gmail.com

ARC Edições © 2025




∞ contatos

https://www.instagram.com/agulharevistadecultura/

http://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/

FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com

ELYS REGINA ZILS | elysre@gmail.com