quarta-feira, 30 de abril de 2025

CODINOME ABRAXAS # 03 – REVISTA RUÍDO MANIFESTO (BRASIL)

 

∞ editorial | Cipreste ou carvalho, a amizade é a árvore-mãe

 


01 | Ruído Manifesto é uma esplêndida aventura editorial que nos ajuda a descobrir o Brasil. O jornalista Wuldson Marcelo, um de seus editores, em uma reflexiva matéria que, ao lado de outros editores cúmplices, dedica a Rodivaldo Ribeiro, traz à luz esta recordação: Rod me convidou para participar como colunista do Diário de Cuiabá, para escrever sobre as mais diferentes expressões artísticas. Um convite que me envaideceu e causou temor. Ser lido é se abrir aos julgamentos, mas Rodivaldo me tranquilizou ao revelar que só chamava quem tinha algo a dizer. Isso foi no final de 2014, mesmo ano em que começaram as conversas para a criação da Ruído Manifesto. Nessa época, eu conhecia o Rod jornalista por encontrar o Rodivaldo músico no Cavernas Bar e nos arredores da UFMT. Na verdade, Rodivaldo estudou jornalismo na Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) com a minha irmã, Juliene Leite. Então, ele era alguém com quem esbarrava nas dependências da universidade, logo após a minha entrada, em 2001, um ano antes deles se formarem. Eis como surgiu a revista, com a particularidade de que seus editores residem em cidades distintas, cumprindo à risca o ritual cibernético da virtualidade. Eu a conheci através de um deles, Matheus Guménin Barreto, e logo estabelecemos relações entre Ruído Manifesto e Agulha Revista de Cultura, tanto através de Matheus e Wuldson, como também de Nina Maria, que reside na Bahia e é hoje uma de suas editoras. Não há melhor modo de conhecer a revista do que visitá-la, a começar por esta homenagem que aqui lhe prestamos. Ao nosso lado, também se encontra uma outra brasileira igualmente fascinante, por seu trabalho como poeta e fotógrafa: Raquel Gaio. O que ela nos diz em um poema poderia ser referência imperativa às imagens que escava e imprime em nossa memória, em sua perambulação fotográfica pelas ruas de sua cidade imaginária: Tenho em minha caixa torácica um canteiro de sóis antigos e fraturados / rego-os todos os dias para que suas fendas floresçam e que não devastem por completo aquilo que preservei como minha escuridão. Não é outro o modo como a trazemos para cá, como artista convidada desta nossa edição de Agulha Revista de Cultura.

 

02 | Ruído Manifesto es una espléndida aventura editorial que nos ayuda a descubrir Brasil. El periodista Wuldson Marcelo, uno de sus editores, en un artículo reflexivo que, junto a otros editores cómplices, dedicado a Rodivaldo Ribeiro, trae a la luz este recuerdo: Rod me invitó a participar como columnista del Diário de Cuiabá, para escribir sobre las más diversas expresiones artísticas. Una invitación que me hizo sentir orgulloso y temeroso. Ser leído significa exponerse al juicio, pero Rodivaldo me tranquilizó al revelarme que sólo invitó a quienes tenían algo que decir. Esto fue a finales de 2014, el mismo año en que comenzaron las conversaciones para crear Ruído Manifiesto. En esa época conocí a Rod, el periodista, porque conocí a Rodivaldo, el músico, en el Bar Cavernas y en los alrededores de la UFMT. De hecho, Rodivaldo estudió periodismo en la Universidad Federal de Mato Grosso (UFMT) con mi hermana, Juliene Leite. Entonces, él fue alguien con quien me encontré en la universidad, poco después de empezar, en 2001, un año antes de que se graduaran. Así surgió la revista, con la particularidad de que sus editores residen en diferentes ciudades, cumpliendo estrictamente el ritual cibernético de la virtualidad. Yo la conocí gracias a uno de ellos, Matheus Guménin Barreto, y pronto establecimos relaciones entre Ruído Manifesto y Agulha Revista de Cultura, tanto por medio de Matheus y Wuldson, como de Nina Maria, que vive en Bahía y hoy es una de sus editoras. No hay mejor manera de conocer la revista que visitándola, empezando por este homenaje que aquí le rendimos. Junto a nosotros, hay otra brasileña igualmente fascinante por su trabajo como poeta y fotógrafa: Raquel Gaio. Lo que nos cuenta en un poema podría ser una referencia imperativa a las imágenes que excava e imprime en nuestra memoria, en su deambular fotográfico por las calles de su ciudad imaginaria: Tengo en mi caja torácica un macizo de soles antiguos y fracturados / Los riego a diario para que sus grietas florezcan y no devasten por completo lo que he preservado como mi oscuridad. Así la traemos aquí, como artista invitada de esta edición de Agulha Revista de Cultura.

 


03 | Ruído Manifesto is a splendid editorial adventure that helps us discover Brazil. Journalist Wuldson Marcelo, one of its editors, in a thoughtful article dedicated to Rodivaldo Ribeiro, along with other accomplice editors, brings to light this memory: Rod invited me to participate as a columnist for the Diário de Cuiabá, to write about the most diverse artistic expressions. An invitation that made me feel both proud and fearful. Being read means exposing oneself to judgment, but Rodivaldo reassured me by revealing that he only invited those who had something to say. This was at the end of 2014, the same year that conversations began to create Ruído Manifesto. At that time, I met Rod, the journalist, because I met Rodivaldo, the musician, at Bar Cavernas and around UFMT. In fact, Rodivaldo studied journalism at the Federal University of Mato Grosso (UFMT) with my sister, Juliene Leite. So, he was someone I met at university, shortly after I started, in 2001, a year before they graduated. That’s how the magazine came to be, with the peculiarity that its editors live in different cities, strictly adhering to the cyber ritual of virtuality. I learned about it thanks to one of them, Matheus Guménin Barreto, and we soon established relations between Ruído Manifesto and Agulha Revista de Cultura, both through Matheus and Wuldson, and through Nina Maria, who lives in Bahia and is now one of its editors. There’s no better way to get to know the magazine than by visiting it, starting with this tribute we pay to her here. Joining us is another equally fascinating Brazilian for her work as a poet and photographer: Raquel Gaio. What she tells us in a poem could be an imperative reference to the images she excavates and imprints on our memory, in her photographic wanderings through the streets of her imaginary city: I have in my ribcage a mass of ancient, fractured suns / I water them daily so that their cracks may flourish and not completely devastate what I have preserved as my darkness. So we bring her here, as a guest artist for this issue of Agulha Revista de Cultura.

Os Editores

 


∞ índice


ALINE WENDPAP | Sala de cinema, cinco filmes

https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2025/04/aline-wendpap-sala-de-cinema-cinco.html

 

ANA KARLA FARIAS | O não-dito em Agnès Varda e Clarice Lispector

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ANDRI CARVÃO | Escambo literário & outras trocas

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CAIO AUGUSTO LEITE | As armas secretas: dez resenhas

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ELIETE BORGES LOPES | Horror e Contemporaneidade

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LUCAS GROSSO | O Subúrbio de Daniel Francoy

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LUIZ RENATO DE SOUZA PINTO | O ruído dos manifestos

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MATHEUS GUMÉNIN BARRETO, WULDSON MARCELO, NINA MARIA, SANTIAGO SANTOS E DIVANIZE CARBONIERI | Homenagem a Rodivaldo Ribeiro

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NINA MARIA | Dois ensaios: Quilombo e Artes plásticas

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WULDSON MARCELO | A vida passada dentro de um filme

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Raquel Gaio




Agulha Revista de Cultura

CODINOME ABRAXAS # 03 – REVISTA RUÍDO MANIFESTO (BRASIL)

Artista convidada: Raquel Gaio (Brasil, 1981)

Editores:

Floriano Martins | floriano.agulha@gmail.com

Elys Regina Zils | elysre@gmail.com

ARC Edições © 2025




∞ contatos

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FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com

ELYS REGINA ZILS | elysre@gmail.com

 




WULDSON MARCELO | A vida passada dentro de um filme

 


1. Corra!
Direção: Jordan Peele. Estados Unidos, 2017.

Um homem negro fala ao celular em um bairro suburbano estadunidense, perdido na confusão dos nomes que batizam as ruas. De repente, um automóvel passa por ele, faz retorno e o segue devagar. O homem percebe, desconfia da situação, intui o perigo iminente. Quando se acredita livre do horror que estava à espreita, é capturado. Essa é a primeira cena de Corra! (Get out). No imaginário, o subúrbio é o lar dos conservadores brancos e dos libertários de fachada. A imagem é um momento de tensão e uma mostra dos símbolos, da desconstrução (que subverte os clichês-sustentáculos de vários gêneros cinematográficos) e da caracterização do racismo institucional, que se faz de invisível, que o longa-metragem de Jordan Peele percorre em seus 104 minutos.

A abertura nos remete à personagem negra descartada logo no início de um filme de terror B ou de medo para adolescentes pós-Pânico (1996) e ainda alude à vulnerabilidade de se andar sozinho, sem ter para onde correr, que é típico do gênero – no caso, em bairro consagrado pela dinâmica do capitalismo dos bem-sucedidos, da gente de bem (será o mascarado em um carro branco algum tipo de justiceiro?). No lugar da floresta e do rapaz/moça branca em território desconhecido, temos um negro, o suspeito por excelência. A cena seguinte apresenta Chris (Daniel Kaluuya) – fotógrafo de sucesso – e sua namorada Rose, interpretada por Allison Williams, que discutem uma viagem a casa dos pais dela. Cris interpela se os progenitores da amada sabem que ela está em um relacionamento interracial. A jovem responde: O meu pai teria votado em Obama pela terceira vez se pudesse. Ele não é racista. A sentença, misto de convicção e resposta adequada, tranquiliza Cris, no entanto, não afasta a sombra da desconfiança.

Após o momento romântico do casal protagonista, enfrentar os subúrbios da América, suas casas que esbanjam tradição e liberalismo, já traz uma primeira tensão, a primeira fagulha de um racismo naturalizado. Enquanto Rose se indigna por um policial pedir os documentos de Cris, logo após ela atropelar um cervo, o rapaz reage com diplomacia, segue a cartilha, pois conhece as consequências de se contestar a autoridade. Se a revolta de Rose não gera uma reação exaltada do policial, caso fosse Cris, o que sucederia?

Na casa vivem os pais de Rose, o casal Armitage – Dean e Missy – (Bradley Whitford e Catherine Keener), o irmão, Jeremy (Caleb Landry Jones), uma criada (Betty Gabriel) e um jardineiro (Marcus Henderson), ambos afro-americanos. Cris é bem-recebido. Porém, há uma alta dose de esforço para agradar ao jovem namorado da filha adorada. Uma predominância do exagero. Quando Jeremy entra em cena, suas observações sobre o vigor do corpo negro lançam o incômodo ao status de tensão.

A liberdade política, a consagração de uma harmonia racial e a felicidade que estabelece uma ordem cultivada pelo respeito às diferenças ganham contornos sinistros e se impõem como mistérios a partir do estranho comportamento dos empregados (que apresentam um olhar vazio, destituído de emoção, e um cumprimento inautêntico do dever), e da cura pela hipnose, que Missy usa como método em sua terapia. Há um enigma na residência e sua plástica harmonia vai cedendo aos poucos, revelando o que há de aterrador e cruel neste mundo em que o Outro transita entre o indesejado e o descartável.

Peele constrói sua obra fílmica de estreia usando como suportes o terror psicológico e o terror satírico, sabendo dosá-los e aplicá-los a cada momento. Quando Cris é hipnotizado, supostamente para pôr fim ao seu vício em cigarro, o horror começa a surgir nos detalhes (mas não antes de uma surreal queda em uma cova), equilibrando comentários estampados em um racismo que não se reconhece como tal e a construção de uma sensação de claustrofobia que cerca Cris por todos os lados, aumentando a angústia da personagem e a agonia do espectador.

Para a edificação do pesadelo escondido por trás de sorrisos generosos e atitudes solícitas, contribuem a fotografia, com planos abertos que trabalham o espaço, aumentando o suspense e closes que afinam o que o filme tem de perturbador, os efeitos sonoros que sinalizam o pesadelo que está por vir, a trilha sonora e um elenco nada menos que espetacular (Kaluuya e Keener, principalmente). LilRel Howery, interpretando Rod Williams, guarda e melhor amigo, é responsável pelo alívio cômico, contudo, a comédia promovida por ele, com comentários sobre brancos capturando negros para fazê-los de escravos sexuais, não destoa da ansiedade que petrifica Cris e a audiência, pois baseia-se em incertezas e desconfortos que compõem a tensão subjacente de ser minoria em territórios da classe dominante.

Corra! Guarda semelhanças com a estrutura de muitos filmes de terror e suspense: De As Esposas de Stepford (1975, de Bryan Forbes) a A Chave Mestra (de 2005, com Kate Winslet) entre outros. Mas os usa para subverter clichês, expondo-os para dar uma direção inesperada a eles. Frustrar as expectativas das convenções do horror serve para desmontar o racismo existente nas relações interpessoais, em que o negro é objeto de culto, por sua cultura e sua força, mas acusado de promover separações quando suas reivindicações ecoam mais fortemente.

Corra! trata de corpos negros (de minorias) expostos como mercadoria. A sua velocidade, a sua beleza, o seu olhar artístico, que podem se diferenciar da compreensão padrão que satura ao máximo fórmulas já desgastadas, são artigos desejados, porém desde que venham sem a pele. A relação com o Outro é intermediada, ou tem valor, a partir do que ele tem para oferecer. Não há uma troca, um entendimento, mas uma prestação de serviço ou usurpação.

Se, em Quero Ser John Malkovich (1999, de Spike Jonze), outro filme carnavalizado pelo roteiro de Jordan Peele, a aspiração é depositada na vida eterna, em Corra!, a apropriação de uma qualidade, seja física ou intelectual, e a manipulação de um capital cultural ou de um atributo da genética, controlando a mente de seu agente, são o que está em jogo.

A obra inaugural de Peele é um filme de terror psicológico, no qual aparência e símbolo estão em confronto constante para revelar um subtexto social que entrega o racismo como a fratura exposta que ele ainda é. Na verdade, o quanto a aceitação que parece ignorar a existência dos conflitos varre para debaixo dos panos as discriminações e preconceitos diários, enquanto enaltece as qualidades que deseja ressaltar no Outro. Corra!: uma brincadeira cinematográfica, uma crítica social.

 

2. A Separação. Direção: Asghar Farhadi. Irã, 2011.

Do dilema inicial que movimenta A Separação, o divórcio do bancário Naader (Peyman Moaadi) e da professora Simin (Leila Hatami) – ela quer viajar com a filha, de 11 anos, para os Estados Unidos, em busca de melhores oportunidades, e ele insiste em permanecer em Teerã, para cuidar do pai idoso, que sofre de Alzheimer –, podemos depreender que se trata de um casal que ainda se ama, de situação financeira abastada, que coloca no centro de seu rompimento a justificativa de crescimento intelectual (Simin) e de garantia da saúde física/mental (Naader) dos seres dependentes dele – a criança e o idoso – e a apresentação dos costumes e das leis iranianas ainda como entraves ao progresso sociocultural (envolvendo também política e sistema judiciário). Já na primeira cena, Naader e Simin estão no tribunal, o homem se recusa a conceder o divórcio, estabelecendo aí o fervilhar do drama familiar que ausculta o Irã contemporâneo.


E da altercação entre os cônjuges, tradição e modernidade conflitam no que as posições de Naader e Simin traduzem em relação àqueles que não legislam sobre si mesmos. A menina Termeh (Sarina Farhadi), filha do casal, é uma espectadora do imbróglio, mas alguém que assiste plena de sua possibilidade, e seus limites, de resistência à situação. A ela, Simin intenciona o reconhecimento intelectual e a liberdade que são interditas às mulheres no país. Enquanto o idoso, pai de Naader, tem seus lampejos de sanidade, no entanto, seu estado já aponta a avançada deterioração de sua capacidade mental. Naader defende os cuidados requeridos pelo patriarca. Criança e idoso estão no olho da furação, distantes do palco em que as decisões são tomadas. A encenação desse Irã rigoroso, em seu impasse de conciliação entre a manutenção dos costumes e os avanços sociais (e culturais) para propulsionar à economia, revela o microcosmo dessas tensões que, se não estão na superfície, irrompem em seu subterrâneo (A Separação não é propriamente um filme político), já que não há regime que consiga esconder suas contradições e opressões sem lidar com revoltas internas, sejam políticas, sejam comportamentais.

O cineasta Asghar Farhadi amplia o alcance de seu filme do micro, da disputa no cerne da família nuclear, para o macro ao introduzir na trama Razieh (uma excelente Sareh Bayat), que, contratada para cuidar do pai Naader, carrega as tensões sociais do país e suas contradições (e, evidentemente, da condição da mulher). Razieh esconde que está grávida e tem dificuldades de exercer o trabalho, já que precisa dar banho no idoso e trocá-lo e o temor de estar cometendo algum pecado em relação aos gestos de cuidado, atormentam-na. A certa altura, Razieh age de maneira imprudente no serviço – ocorrência que provoca a sua demissão –, o que conduz a um incidente envolvendo a ela e Naadar. As consequências da indignação do bancário colocam em cena Hojjat (Shahab Hosseini), marido de Razieh, um homem agressivo que cobra justiça para o fato. Naadar, que, apesar de pai amoroso e filho dedicado, mostra-se um homem arrogante, negando-se a qualquer acordo a respeito do episódio.

Da contenda entre os homens, do dilema de uma falsa acusação ou da prática de uma lei que desfavorece aqueles que não têm poder aquisitivo, Farhadi investiga o quanto a verdade é relativa. E quando observa a devoração dessa verdade pelo desejo de convencimento e pela persuasão, o que significa extrapolar o âmbito da ética e fazer de tudo para ganhar uma causa, A Separação revela-se como um registro de equívocos que expõe não somente as falhas do ser humano, mas também do sistema, seja judiciário, econômico ou religioso.

Aos poucos, cada personagem apela para um procedimento questionável na tentativa de demonstrar e confirmar a sua razão. Mesmo Termeh perde a inocência, pressionada a cometer perjúrio.

As situações-limite são bem apresentadas e exploradas pelo roteiro, que, com a direção segura de Farhadi, aborda com espírito crítico preciso questões controversas e a ambiguidade e impulsividade de suas personagens.

Asghar Farhadi ultrapassa as fronteiras do Irã construindo uma obra que toca em temas universais, enfrentando, sem dirimir sua complexidade, como dignidade e responsabilidade são reféns de propósitos egoístas que se impõem para tornar tênue a linha divisória entre o chamado certo ou errado – como dívida de ordem financeira e preservação do orgulho.

Em suas várias camadas, que se desenrolam com potência, A Separação evoca que, em uma disputa belicosa de argumentos e brutalidade, quem perde é o lado mais frágil, aqueles que não podem reivindicar sua vontade sem qualquer restrição (ainda mais em um sistema burocrático e religioso). Termeh e Somayeh, filha do casal Hojjat e Razieh, são as maiores vítimas da teia de mentiras e da ferocidade que toma os contendores. A culpa dos pais desnorteia suas crias.

A revelação do Irã moderno com suas divisões – e subdivisões – em gênero, classe e religião, mas com um apelo emocional que se comunica com muitas realidades sociais fez de A Separação uma obra que amealhou diversos prêmios: o Urso de Ouro em Berlim, o Globo de Ouro e o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, além do Bafta, na mesma categoria.

 

3. Respire. Direção: Mélanie Laurent. França, 2014.

Mélanie Laurent é uma excelente atriz. A judia francesa Shoshana, proprietária de cinema, que interpreta em Bastardos Inglórios (2009), de Quentin Tarantino, atesta essa afirmação. E, desde 2011, com seu filme de estreia Les Adoptés, Melánie vem dando sinais de ser uma cineasta que não tem receio de se arriscar (em seu currículo ainda há o documentário Demain, codirigido por Cyril Dion, premiado no César 2016, e o drama Plonger, de 2017). Em Respire (2014), ela se ampara em um roteiro denso e nas interpretações soberbas de duas jovens atrizes (Joséphine Japy e Lou De Laage, concorrentes no César 2015 na categoria Atriz Revelação). Adaptação do romance homônimo de Anne-Sophie Brasme, publicado em 2001 (que rendeu a Brasme, aos 18 anos, o Prix ​​Contrepoint, em 2002, concedido a jovens talentos da literatura francesa), Respire trata da relação de duas amigas de colégio – e fora dele –, que vão da afinidade instantânea à intimidação e maltrato implacáveis.

Com belos planos gerais e abertos, Mélanie constrói um poema visual permissivo e perverso, no qual Charlie, diminutivo de Charlène (Joséphine Japy), uma adolescente introvertida – mas que cultiva boas amizades –, afetuosa – porém mortificada pelo casamento conflituoso dos pais – e ainda assim deslocada, fascina-se pela nova aluna, Sarah (Lou De Laage), que é encantadora, exótica, impulsiva e misteriosa. As personalidades díspares das garotas se atraem e elas passam a ser grandes amigas. Sarah frequenta a casa de Charlie, sabe do tenso convívio dos seus pais, do colapso do casamento. Elas compartilham aspirações e segredos. No entanto, aos poucos, a partir do inebriamento dos sentidos, da confissão física do afeto, da interdição que surge com força – como recusa, repúdio inexplicado e incompreensível (talvez resida no fato de Charlie apresentar Sarah como colega de escola e não amiga, um curto-circuito em um vínculo que nasce e evolui rapidamente) –, a cumplicidade se transforma em estranhamento, dissintonia e manipulação, que conduzem ao afastamento, ao bullying, ao desequilíbrio emocional e plantam os indícios de uma tragédia.

O que poderia ser um thriller de suspense psicológico, na linha dos duelos de caracteres dúbios e/ou complementares, como em Jogo Mortal (1972), no qual Laurence Olivier e Michael Caine protagonizam um jogo de gato e rato irrepreensível, torna-se um exame de comportamento, com várias leituras possíveis, para dar conta das escolhas e ações das jovens. Neste sentido, está mais próximo de Persona (1966), de Ingmar Bergman, em que Liv Ullmann e Bibi Anderson praticamente se fundem para depois se separarem com extrema violência, e de Três Mulheres (1977), de Robert Altman, filme no qual Shelly Duvall e Sissy Spacek vivem uma relação de amizade em que fragilidade e narcisismo são quase espelhos. Optando por assumir uma postura quase voyeur, Laurent coloca a câmera como testemunha dessas agressões. Daí surge a pergunta: como uma relação destrutiva se constitui? Essa codependência emocional tem como consequência a abolição de territórios intocáveis, onde a moral e a expectativa pela retribuição da amizade vigiavam as desmedidas/desmesuras das paixões.

Na aula de Filosofia, no início da película, o professor de Charlie cita Nietzsche, dizendo que as paixões são nocivas quando se tornam excessivas. E pergunta, A paixão é um caminho ou um obstáculo à liberdade? Platão fala sobre as paixões como um perigo a ser evitado, defende a temperança, a frugalidade e a parcimônia. O apego em demasia representa um embaraço ao exercício da liberdade. Em Respire, há excessos: de luz, que irradia a iluminação da vida de Charlie com o aparecimento de Sarah, de cores vibrantes, de planos abertos que revelam a solidão e o distanciamento e dos ataques de asma de Charlie – sintoma de uma claustrofobia que lhe invade a vida. Neste sentido, a fotografia de Arnaud Potier realiza um notável trabalho na apresentação dessas emoções (em uma bela fusão entre visual e narrativa).


E há também uma simbolização explícita (e eficaz) a uma relação tóxica na figura de uma planta danosa para o vegetal que está mais próximo. Alimentar-se do outro para sobreviver, para prosseguir com a fantasia e se encaixar no novo ambiente. Se a paixão cega a ponto de transformar admiração em obsessão, Charlène se enreda nesse sentimento que a direciona a Sarah. A sua vida ganha significação ou se ressignifica a partir desse encontro com aquela que se mostra tão cativante. E é justamente nesse ponto que enlevo e frustração se digladiam, culminando na queda do paraíso, mas insistindo em sua recuperação. A espera requer sacrifícios e aceitação da tortura psicológica que surge durante essa jornada de paciência. Charlie é a representação de uma resignação doentia e Sarah é uma mitomaníaca perversa que tenta controlar um jogo em que impõe a sua presa uma única saída: a da autoflagelação emocional.

Será Charlie reflexo da submissão de sua mãe, que se conforma com um marido abusivo, no que concerne ao domínio psicológico da relação? E Sarah é fruto do seu lar desfeito, cuja mãe alcoólatra se especializou em oprimi-la e envergonhá-la? Espécies de herança e condicionamento cultural que as limitam e fazem-nas reproduzir o que há de frágil e cruel no mundo.

O antagonismo entre as adolescentes é também similaridade, já que ambas se rendem àquilo que acreditam ser. Há certo conformismo na aceitação de como processam o modo de percepção do mundo (e dos afetos) e na maneira de retroalimentar seus desejos. E esse comportamento gera uma simbiose, na qual cada uma delas contribui para ser vítima e algoz de seu pesadelo juvenil. Cada uma delas têm o seu jeito de tentar exercer o domínio na relação (a espera de Charlie também pode ser traduzida como uma forma de busca do controle). De todo modo, o silêncio de Charlie e a malícia de Sarah se encontram e refletem um tempo de paradoxos vigorosos.

Então, em certa altura, Charlie, depois das consecutivas manifestações de desprezo por parte de Sarah e o acúmulo de perdões, percebe que sua resignação apenas afasta e torna seu objeto de paixão mais brutal em sua mordacidade. Desse modo, a tênue linha entre indiferença e escárnio é rompida. E a paixão excessiva, desde o prelúdio tenso na residência de Charlie (no amor e ódio dos pais, presenças lesivas e ausências prejudiciais), enfim, toca a tragédia anunciada.

Em um dos grandes momentos da direção concisa de Laurent, um travelling lateral revela a vida devastada de Sarah e como Charlie se encarrega de transformar a descoberta de uma mentira em compaixão. E é uma combinação de talentos que faz de Respire, apesar do ponto de partida corriqueiro, uma produção instigante, que lida com as máscaras que usamos cotidianamente (até por sobrevivência) e com a complexidade que envolve as relações humanas (a construção da identidade de jovens mulheres em um contexto social em que o desamparo é uma regra). Assim, com o conhecimento técnico, criatividade artística e a sensibilidade de Laurent, a fotografia de Potier, a entrega incondicional, de uma naturalidade impressionante, das jovens Japy e De Laage às suas personagens e a originalidade narrativa (mérito de uma conjuntura), ainda mais por navegar em águas conhecidas nas telas do cinema, Respire consegue fugir de clichês e trazer como elemento decisivo a imprevisibilidade.

 

4. O Som ao Redor. Direção: Kleber Mendonça Filho. Brasil, 2012.

Certa vez, um proeminente intelectual brasileiro afirmou que, para se compreender o momento pelo qual um país atravessa, deve-se observar sua classe média. Assim, favorecendo um entendimento de que a classe média é o termômetro para se perceber os ganhos e as perdas econômicas e sociais durante um determinado período histórico. O cineasta Kleber Mendonça Filho direciona seu foco em O Som ao Redor justamente para um grupo de moradores de um bairro em Recife, próximo da praia de Boa Viagem, pertencente à classe em questão. E, ao adotar essa perspectiva, extrapola a mera intenção de uma radiografia de comportamentos e pensamentos do atual cenário social brasileiro, articulando – a partir dos sons que a cidade e a vida íntima produzem e das imagens de angústia, exclusão, monotonia, prepotência e sonhos que o cotidiano e o próprio cinema fabricam – um estudo de classe, gerando um mosaico de figuras que expõe algumas das fraturas entre felicidade e ascensão social, justiça e poder, liberdade e segurança.

George Orwell, em seu famoso romance 1984 (1949), apresenta a composição social como uma pirâmide: a classe alta ou dominante na parte superior, a classe média no meio do monumento e a classe baixa alojada na parte inferior. Uma revolução, tendo como forças motrizes a insatisfação da classe média e a revolta dos pobres, causa apenas uma leve inversão na configuração social representada pela pirâmide, já que a ideologia vigente se mantém e o êxito em desestruturá-la, descobre-se, não é o real motivo da sublevação: a classe média alcança o topo, a elite cede espaço, mas reafirma seu status de poder e os pobres continuam a sofrer, no mesmo lugar, as intempéries da miséria. O arranjo entre quem está na base do monumento e quem comanda a escala vertiginosa do centro até a extremidade equaciona o descontentamento e reforça as posições das castas, as mesmas de outrora, de agora e vindoura, após uma nova insurreição. Em O Som ao Redor, esse equilíbrio ocorre através de um deslocamento desse poder. Se antes agrícola, na mão de ferro de um senhor de terras, na cidade, por intermédio da aquisição de imóveis, o mando é do empresário que acumula riquezas.

Começando sua história por fotografias em preto e branco, tiradas em um engenho, Mendonça mostra vidas de um tempo remoto (ainda tão presentes). Imagens de trabalhadores indo para lida, participando de uma celebração, de uma manifestação e a Casa Grande vista à distância. Após os fragmentos da vida rural, somos atingidos por imagens detalhistas e barulhos ensurdecedores. A vida urbana toma a tela e acompanhamos crianças que correm e brincam em uma área de recreação de um condomínio. Vigiando-as bem de perto estão suas babás, desenhando a primeira reminiscência da Casa Grande e da Senzala, primeira demarcação, que busca referência na obra de Gilberto Freyre. E o trajeto de um poder que, antes de ser atávico, é o prolongamento de privilégios do coronelismo e da aceitação dos iguais pelos iguais (desde que comprovem os recursos para sua estada). A partir disso, no mosaico engendrado por Kleber Mendonça, acompanhamos João, corretor de imóveis no negócio de família; Bia, dona de casa e mãe de dois filhos, que se incomoda com os latidos do cachorro do vizinho e tenta afastar a solidão que toma conta dela; Francisco, proprietário dos imóveis e avó de João, antigo dono de engenho e que mantém a postura de coronel do passado; Clodoaldo (Irandhir Santos, para variar, em excelente atuação), chefe de segurança, que chega ao bairro oferecendo os serviços de sua firma; entre outros personagens que cruzam a história fechando o painel montado, tendo como suportes fundamentais a imagem e o som.

E o som é realmente essencial para estabelecer a arquitetura das inquietações que sufocam ao ponto de irradiar a nostalgia e a segurança pelos aparatos tecnológicos. Os sons transmitem o medo exterior que ressoa internamente como incapacidade de vencer o vazio existencial. Latidos de cães, batida de automóveis, elevadores, ruídos vários engendram a dissonância entre as expectativas de classe e o medo emanado pela possível presença dos de fora, da eclosão da violência. A falsa ideia de harmonia comunitária conforta, mas não rompe a insegurança. O surgimento dos vigilantes é o ponto em que se desmascara que as grades e a tecnologia trazem a sensação de segurança, porém, revelam novas prisões, aumentando o desconforto interior. E esse perigo, essa tensão, está estampado no desenho de som, que captura e revela as vibrações de Recife. Esse diálogo com a cidade é um grande trunfo da obra. A cidade e tudo que está a nossa volta causam ensurdecimento, mesmo que as ruas convivam com o vazio, perdendo seu valor de local de contato e lazer, pois que vivemos entre grades e a nossa relação com o cenário urbano esmorece cada vez mais.


E a relação entre nostalgia e a gangorra social (que mantém a elite sempre no alto) pode ser vista na única cena onírica, em um filme pujante e realista, quando visitam o engenho, João, a namorada Sofia e Francisco. Um local abandonado, perdido no tempo, reminiscência de uma época de felicidade. Não à toa aparece como sonho, um Eldorado deixado para trás, o qual até uma sala de cinema continha. Ou seja, trabalhava-se, comprava-se, divertia-se sob a proteção e vigilância do patrão. O momento em que as três personagens embaixo da cachoeira recebem uma cascata de sangue simboliza a não possibilidade de fuga da tirania do passado.

Esse sentimento de nostalgia também acomete Sofia, quando ela toma conhecimento que sua antiga casa será demolida. E a relação entre infância e nossa ausência de preservação desse estado de criação, necessário para o desenvolvimento das crianças, é visto na abolição entre materialidade e memória (no caso dos adultos que perdem a referência física de suas lembranças) e no abandono diante da presença de pais, mães e moradores, que mesmo ali diante da infância que demarca a ruptura com a reminiscência, que, afinal, não as pertencem, não percebem que o medo do perigo que os ronda, muito mais como espectro, reverbera nas crianças. Duas cenas são sintomáticas, o pesadelo da filha de Bia, que vê de sua janela a invasão do condomínio por habitantes da periferia, e o som dos saltos pelo muro ressoam como horríveis pancadas. O ruído aumenta o terror. Ou quando um menino atravessa as fronteiras do bairro e é descoberto pelos vigilantes, que o agridem, expressando quem é bem-vindo ou não aos limites estipulados como seguro. Em ambas as situações, a pirâmide mostra sua faceta: para a classe emergente, o pesadelo está em dividir o espaço geográfico com aqueles a quem acredita ter deixado para trás. E o menino, representando o perigo iminente, é joguete na disputa pela manutenção da paz comunitária, deixando longe quem está logo abaixo nessa escalada pelo reconhecimento dos chamados esforços pela ascensão social. A Casa Grande ainda regula quem pode ou não ultrapassar as linhas de demarcação.

Em três capítulos, O Som ao Redor disseca a agonia do espaço: um espaço fechado, onde a proteção é atributo dos que podem pagar, mas que, apesar disso, não mantém a incerteza afastada. E Recife, contudo, é um retrato do Ocidente que vê no diferente, no estrangeiro, um estranho, um Outro que deve ser mantido à distância. Como nos postula Zygmunt Bauman, em Modernidade Líquida, O mundo comunitário está completo porque toda o resto é irrelevante; mais exatamente, hostil – um ermo repleto de emboscadas e conspirações e fervilhante de inimigos que brandem o caos como sua arma principal. E essa comunidade, frágil e erigida sobre pressupostos que desunem e não integram, está carregada da melancolia e da falsa aparência de felicidade da contemporaneidade. E esses espaços, que fogem da hostilidade do mundo e de seus sons constrangedores, tentam preencher seus vazios, seja com sexo, procurando prazer junto a uma máquina de lavar, ou com maconha comprada junto a um prestador de serviço do bairro, como no caso de Bia; ou exibindo boa camaradagem e preocupação social como João, sem, no entanto, defender até as últimas consequências um trabalhador que pode perder o emprego ou ser capaz de romper com a fortuna do avô.

Kleber Mendonça traz à tona a herança verde-amarela cuja reminiscência surge nos pequenos impérios urbanos e são dimensionados pelas nossas prisões tecnológicas, grades e câmeras a favor da liberdade vigiada, e pelos ruídos que a cidade emite, como se fossem uma espécie de “invasão bárbara”. São, na verdade, resquícios de um fosso social, que cedo ou tarde brotam para prestar contas ou para tentar reconciliar o que a história determinou como irreconciliável. De qualquer modo, o ciclo recomeçará na infância que festeja a vida que pulsa nas explosões sonoras da cidade.

 

5. Ida. Direção: Paweł Pawlikowski. Polônia, 2013.

A fotografia em preto e branco de Ida, filme polonês laureado com a estatueta de Melhor Filme Estrangeiro na edição de número 87 do Oscar, é arrebatadora, de uma plasticidade quase sufocante. Isso porque nos dá a dimensão da importância da história que conta e da História. Os espaços vazios, os close-ups e os planos abertos se alternam para revelar um road movie em que a existência é confrontada constantemente pelos lastros do passado e pelas expectativas de futuro. Os fotógrafos Lukasz Zal e Ryszard Lenczewski são minuciosos, não obstante, a câmera estática revela o necessário, contrabalanceando luz natural e sombras.

E a fotografia é essencial na apresentação das duas mulheres que movem a trama de Ida. Os enquadramentos provocam a sensação de claustrofobia, cingindo um limite a elas. A jovem noviça Anna (Agata Trzebuchowska) está prestes a completar 18 anos e fazer seus votos de castidade. Antes do aguardado dia, a madre superior ordena a ela que deixe o convento e visite uma tia, Wanda Gruz (Agata Kulesza), que até então Anna nem sabia existir. Wanda é uma juíza que nos tempos de caça aos inimigos do Estado, do partido comunista polonês, no pós-Guerra, era conhecida por ser implacável.

A reunião de família, inicialmente, é de estranhamento e deboche de Wanda à fé cristã de Anna. Menos crueldade gratuita que assinalação da ironia da situação, pois, em seguida, Wanda revela a sobrinha (filha de sua irmã, vítima do Holocausto) que a sua origem é judia, o seu verdadeiro nome é Ida e que os pais foram mortos durante à invasão alemã a Polônia na Segunda Guerra. À presença de Ida, não passam impunes os dissabores pretéritos que atormentam Wanda. Tanto ela quanto a sobrinha decidem descobrir a verdade sobre o destino dos parentes. E é na fronteira entre passado (reminiscências e horror histórico, com a guerra a berrar suas atrocidades) e presente (de incertezas em um país comandado por um regime austero) que se dará a viagem dessas mulheres ao interior da Polônia, no início dos anos 1960, em busca dos restos mortais dos pais de Ida e de seu suposto irmão (a localização do túmulo deles).

É na estrada e seus acontecimentos que Ida revela o seu valor, a de ser uma obra simples e profunda em que a alma humana é atravessada por um senso existencial e um sentido histórico.

As vilas pelas quais passam carregam a marca do abandono, são lugares vazios, praticamente perdidos no tempo, com pessoas desconfiadas, em que a arte – o vitral feito pela mãe de Ida para um celeiro se deteriora sem testemunhas, ignorado – parece não mais capaz de brotar. O complexo passado político da Polônia arruína esses locais, abate sua vivacidade. O colaboracionismo polaco – um dos maiores paradoxos do Holocausto – e os atos do Partido surgem como tormentos a esconder (contraditoriamente, à vista) as feridas que sangram, recusando-se a cicatrizar.

E é no silêncio e no não dito que a narrativa ganha força. A elegância cruel de Wanda e a convicção inexorável de Ida começam a ceder a essa ligação (ao mesmo tempo que se intensificam os conflitos internos) e as diferenças se amenizam, elas começam a se conhecer e a relação toma à direção do reconhecimento. Wanda é um rio represado, de dores sufocadas pelo álcool e pelo sexo (que guarda um segredo, o peso de uma escolha), e Ida, por baixo de toda camada e fachada, tem curiosidades que a concentração consegue afastar.


Autodestruição e legado. Ida é um filme sobre a História e uma obra sobre vidas e suas vivências. E esse é um dos principais méritos do longa-metragem de Paweł Pawlikowski, os efeitos do campo de extermínio na alma de familiares (ou de quem sobreviveu) e como reconstruir o que resta. O tom seco e sincero nos aproxima de Wanda e Ida na busca pelo que perderam. E Agata Kulesza e Agata Trzebuchowska são extraordinárias. Kulesza revela a tristeza de Wanda, mas conectada a fortaleza de quem ocupou seu lugar no mundo apesar dos pesares. Mesmo o gesto derradeiro de Wanda (que terá um efeito determinante sobre Ida), ao som de Mozart, fruto das respostas encontradas, carrega a marca de quem precisa usar uma armadura para não ser engolida pelo abismo. Wanda chega ao seu limite. Já a Ida de Agata Trzebuchowska é expressiva, olhos e corpo respondendo às descobertas com as quais a jovem noviça se depara. Há inocência, há maturidade, eles caminham lado a lado, afastando a fragilidade desesperadora que geralmente invade personagens que precisam lidar com o peso de uma verdade insustentável. São atuações agudas, brilhantes.

Ida é um filme que não traz respostas aos assombros da História. Os fantasmas que nos acompanham, devorando, interrogando, implacáveis, presentes. Avançar é preciso. Mas como avançar, eis a questão. No fim, o rosto de Ida (a câmera, enfim, em movimento), retornando ao convento ou partindo em definitivo, é uma incógnita, com uma estrada à frente.

 

6. Na Flor da Idade (In Bloom). Direção: Nana Ekvtimishvili e Simon Gross. Geórgia, 2013.

Nos últimos anos, o cinema da Geórgia vem ganhando projeção internacional e amealhando prêmios ao redor do mundo. A Ilha dos Milharais (2014) é um bom exemplo dessa realidade. O filme de George Ovashvili recebeu uma menção honrosa no São Paulo International Film Festival, edição 2014, e também o troféu máximo do Karlovy Vary International Film Festival, na República Tcheca. Outra película notável é Hostages (2017) de Rezo Gigineishvili, que conquistou reconhecimento ao seu diretor em festivais realizados na Rússia e participou de importantes eventos cinematográficos como o de Edimburgo (Reino Unido) e Haifa (Israel).

Antes do sucesso das obras de Ovashvili e Gigineishvili, Na Flor da Idade (em inglês In Bloom e no original Grzeli Nateli Dgeebi), de 2013, viveu idêntica jornada de glória e distinções em festivais e premiações para além das fronteiras da Geórgia, como nos festivais de Berlin, Milão e de Saravejo, sendo que nesse último foi laureado como melhor filme.

Galardões à parte, Na Flor da Idade é um retrato cruel da crise vivida pelo país no início dos anos 90, durante o conflito étnico entre a Geórgia e a região da Abecásia, e como esse transe afetou às famílias e, principalmente, roubou o processo natural de crescimento de muitas meninas, destituindo-as de sua infância e atirando-as no olho do furacão, obrigando-as a viver entre um sonhado protagonismo que não lhes pertenciam, por estarem em uma sociedade patriarcal, e a sobrevivência de seu universo interior.

A realização cinematográfica de Nana Ekvtimishvili e Simon Gross centra-se na amizade entre Eka (Lika Babluani) e Natia (Mariam Bokeria), adolescentes de 14 anos que residem em Tbilisi, capital de uma Geórgia recém-independente do poder político, econômico e ideológico da União Soviética. E a crise não tem relação tão somente com as incertezas políticas criadas pelas circunstâncias históricas, há uma falência de valores, não por suscitar mudanças extremas que culminam em amoralidade e negação das tradições, mas por agravar comportamentos hostis, diferenças regionais e o machismo que dão forma a homens levados à guerra, pelo mesmo sistema que os despoja de sua fortaleza residencial e que, em nome de um poder que se fragmenta cada vez mais, bestializa-os com a violência própria dos soldados que não conseguem se livrar do combate.

Na flor da idade, as amigas têm que lidar com situações-limite que as forçam ao amadurecimento precoce. A cineasta Ekvtimishvili e o codiretor Gross mostram essa passagem a partir dos efeitos cotidianos do recrudescimento social gerado pela guerra e da opressão sofrida pelas mulheres, em uma sociedade que exige a prevalência de um tipo agressivo para estabelecer-se em um cenário árido de alcoolismo, assassinatos, racionamento de alimentos e violência doméstica.

Esse ambiente de insegurança, de instabilidade social e de conservadorismo ganha linhas significativas quando Natia recebe, de um apaixonado – rapaz pelo qual a garota claramente nutre afeição –, um revólver de presente. O gesto amplia o círculo de perigos expostos. Em tese, a pistola deve protegê-la desses perigos. Apesar de não saber o que fazer com o revólver, Natia se encanta pela arma de fogo. A partir de então, escola, família e costumes, além das adversidades promovidas pelas ruas, contribuem para dimensionar essa possibilidade de tragédia iminente, já que nenhum lugar parece seguro.

Sobre as amigas, Eka é uma menina tímida e séria, que se equilibra entre duas ausências, da mãe, que trabalha em demasia, e do pai, que está preso por assassinato – ela reluta em visitá-lo. Natia é uma jovem cuja beleza se faz notar, que, em casa, conhece o inferno das relações conturbadas, pois o pai alcoólatra desconta as frustrações de um tempo sombrio na própria família. Assim, a casa é reflexo da desestruturação do país.

Na Flor da Idade investe em uma fotografia sépia na qual detalhes da ruína em que se transforma Tbilisi ganham destaque para enfatizar as marcas que a guerra crava não apenas na arquitetura da cidade, mas no ânimo de seus residentes, que convivem com a ameaça de uma explosão de violência e com a fome.

Sendo uma obra sobre o amadurecimento forçado, o vínculo dessas amigas inseparáveis é apresentado sob a égide do que pode vir a romper essa ligação profunda, podendo ser a presença de um admirador de Nati, rapaz que faz parte de uma gangue e que a persegue insistentemente, a pistola, que engendra um clima de tensão e também de solução para as tiranias diárias, ou os produtos da guerra, que acossam e têm o poder de desumanizar. Neste sentido, a produção georgiana enfrenta o machismo reinante na sociedade de Tbilisi, se não com rompantes de indignação e superação, mas ao revelar como exerce seu domínio ao privar jovens de seu direito de escolha. As regras que as mulheres são obrigadas a seguir e o comportamento viril dos homens em busca de autonomia e autoridade compõem o cenário que leva uma adolescente sequestrada a um dilema: o de se casar com seu raptor, já que a justificativa é o amor deste pela moça. A tradição institucionaliza a violação do corpo da mulher. E a revolta viva e incompreendida de Eka mostra o absurdo (e o crime) contido na situação.

Episódico, construído por gestos, olhares e silêncios, Na Flor da Idade investe, ainda que seja marcado por uma narrativa lenta, em alguns pontos de intensidade que marcam, de certo modo, o ritmo da vida, como nas passagens em que Eka baila ao som de uma tradicional música georgiana – em uma cena primorosa – e o motivo que faz o revólver que Natia ganha do seu primeiro amor voltar ao foco, deixando clara que a semiótica do objeto deslinda a emergência da calamidade que é (sobre)viver sob tensão, preenchendo a tela e nos atingindo para completar a abertura insidiosa da película.

Com um par de atrizes talentosas e uma direção que aposta em tratar a guerra como um espectro, reforçando sua presença pelos seus efeitos, em vez de exibir combates e bombardeios, o filme de Ekvtimishvili e Gross traz à tona a destruição física e moral em que crise econômica, tradição patriarcal e infâncias roubadas entram em colisão e afirmam o modus operandi de uma violência naturalizada. Na secura e no imediatismo que sufocam uma população e oprimem meninas, convocando-as a se moldar a um mundo que desejam rechaçar com todas suas forças, Eka desperta Natia para a resistência, ao não permitir que ela se manche de sangue em mundo masculino hostil e vingativo.


Ao se manifestar com toda sua brutalidade, a virilidade nefasta, abençoada pelo machismo incrustado na sociedade, sofre uma queda graças à recusa das jovens amigas em se conduzirem conforme a lei de quem tem o poder. A vida adulta as recebe diante do sexismo e das barbaridades da guerra, mas ambas não são mais garotas indefesas, são o retrato de uma sabedoria, de uma percepção que estava sendo dirimida desde o colapso soviético, e da possibilidade de uma nova sociedade.

Baseado nas memórias de Nana Ekvtimishvili, Na Flor da Idade é indispensável para quem prefere um cinema realista, com um ritmo que aposta em um efeito progressivo, que parte da asfixia social para alcançar a possibilidade de iluminar existências que parecem não encontrar refúgios.

 

7. Elena. Direção: Petra Costa. Brasil, 2012.

O documentário Elena, de Petra Costa, é um memorial visual, ou, ainda, um mergulho nos insondáveis recônditos da mente e emoções humanas. Petra, por intermédio da obra fílmica, esquadrinha os sonhos e as frustrações de sua irmã Elena, e, ao mesmo tempo, revela as nuances de seu relacionamento com a jovem que desejava ser atriz, mas que em sua viagem para Nova York, no início dos anos 90, com o intuito de realizar esse objetivo, depara-se com estranhamentos, medos e a depressão, que a levam a cometer suicídio.

Reunindo gravações caseiras, fotos e o testemunho da mãe (que partiria para a guerrilha do Araguaia, durante as sublevações contra o regime militar, caso não estivesse grávida de Elena), Petra costura uma memória que, pela narração da própria cineasta, procura ser a reconciliação com o passado, a compreensão do presente e um olhar para o futuro. Desse modo, Elena, a irmã, é a instigadora da busca de Petra por si mesma. Se a memória é um desejo de reconhecer, como fala-nos Nietzsche, em Sobre a Verdade e a Mentira no Sentido Extra-moral, Petra, ao propor seguir os vestígios deixados por Elena, constrói uma elegia que sanciona as lembranças como marcas inextinguíveis daquilo que somos.

E ao não esquecer Elena é que Petra pode reconstituir o seu passado, trazendo de volta momentos, paisagens e sombras. Nietzsche postula que a dosagem entre esquecimento e memória é o cerne da criação artística. Assim, o que Petra realiza é a documentação poética de uma interrogação: o que há de Elena em mim, que não me permite esquecê-la? (Lembrando que esquecer assume um sentido de figurar e não de abandono da rememoração). Sendo a memória uma ferramenta do conhecimento para superar perdas, temores, dúvidas, Elena é a confirmação artística de Petra, e a sua mais pessoal recordação. Esse jogo entre memória e esquecimento encontra na poesia, e na atuação e na dança, seu ponto de irradiação, que permite fazer o itinerário da dor e da saudade que a mise-en-scène elaborada por Petra Costa executa.

Se Elena, a jovem aspirante à atriz, quer seguir os sonhos que a mãe não realizou, Petra, que tinha sete anos quando a irmã se suicidou e guarda assombrosa semelhança física com a mana, consolida o desejo de gerações de mulheres de sua família. E esse é um dos aspectos mais delicado do documentário e o que confere sua notável qualidade: a de tornar a memória um processo de reinvenção artística. E a constituição formal da documentarista traça linhas tênues entre a objetividade contida em um fato que gera desdobramentos, que fomentam um inquérito e/ou pesquisa, e a subjetividade própria dos desnudamentos interiores (ainda mais em um caso em que a cineasta se torna personagem, que constantemente se confunde com o objeto documentado), que expõe de modo aberto dores em processo de cicatrização.

E é essa condição de dupla experiência, documental e íntima, que atribui a Elena autenticidade e o separa de tantos outros filmes-investigação sobre dramas familiares. Petra, como atriz, performa em um documentário sobre os motivos que levam uma jovem e promissora estudante de artes cênicas ao suicídio, e nessa rota, à procura de respostas, interroga-se se seus passos não são idênticos ao de Elena, e, assim, os seus destinos.

O retrato poético no qual se transforma o documentário de Petra tem em sua mãe um ponto chave, pois aceitação, responsabilidade e a persistente dúvida, “se eu tivesse percebido”, acompanham cada depoimento, está na busca em Nova York da antiga residência de Elena e no dia fatídico de seu suicídio. É a dor entranhada em uma mulher – suportável no limite do silêncio que contém uma tristeza em demasia – exposta com coragem e explorada em nome de uma espécie de expurgação artística.

A Petra narradora, a certa altura, diz sobre o percurso de uma vida que conflita incessantemente memória e esquecimento, E pouco a pouco as dores viram água. Viram memórias. As memórias vão com o tempo, se desfazem. Mas algumas memórias não encontram consolo, só algum alívio nas pequenas brechas da poesia. Você é a minha memória inconsolável, feita de pedra e sombras. E é dela que tudo nasce e dança. O documentário construído por fragmentos, depoimentos, imersão em dores e afetos, na busca pelas desilusões de Elena e consagração da relação entre a cineasta e a irmã tem nas imagens, em sua elaboração, a exposição de um arquivo de memórias que surge, foge, reaparece e potencializa essas lembranças em variações de foco que favorecem o tom poético da produção.

De uma protagonista ausente à uma documentarista/narradora/irmã, Elena não é uma obra fílmica que necessita de antemão das referências de seus observadores, armadilhas para a obra artística e para a fruição que a arte pode proporcionar, a saber, a identificação e/ou projeção. Elena é o relato poético, e em muitos momentos sentimental, da jornada do sonho à frustração de uma talentosa aspirante à atriz e a busca pelo porquê de seu desfecho trágico pela irmã. Porém é, na mesma medida, o enfrentamento do jogo que torna a vida um processo de dor e superação recorrente, a de equilibrar esquecimento e memória, e pela via que, invariavelmente, flerta com a eternidade, a da arte. E é essa arte que proporciona a Elena a realização de seu sonho: a de fazer cinema. Petra Costa ao confeccionar como documentário seu mais doce fantasma, engendra a esse espectro um corpo e ao filme sua alma indelével.

 

8. Neste Canto do Mundo. Direção: Sunao Katabuchi. Japão, 2016.

2016 foi um grande ano para a indústria da animação japonesa. Além da coprodução com a França em A Tartaruga Vermelha, do holandês Michael Dudok de Wit, que rendeu uma indicação ao Oscar na categoria, chegaram aos cinemas Koe no Katachi, de Naoko Yamada, Kimi no na wa (mais conhecido pelo seu título em inglês, Your Name), de Makoto Shinkai, e Kono Sekai no Katasumi ni, de Sunao Katabuchi, que no Brasil se chama Neste Canto do Mundo.


Entre essas produções, o drama de guerra dirigido por Sunao Katabuchi foi distinguido como melhor animação no Awards of the Japanese Academy. Prêmios são considerações abertas às anuências e às discordâncias, mas Neste Canto do Mundo possui méritos superlativos que justificam a escolha e o seu reconhecimento mundo afora.

Baseado no mangá de Fumiyo Kouno (3 volumes, de 2006 a 2009), adaptado por Katabuchi e Chie Uratani, o filme, em suas 2 horas e 9 minutos, acompanha a vida da menina Suzu de 1933 até 1945, ano em que se chegou ao fim a Segunda Grande Guerra Mundial, logo após as bombas atômicas lançadas em Hiroshima e Nagasaki (a maior parte do filme se passa nos anos de 1944 e 1945). Neste Canto do Mundo ao focar em Suzu, portanto nos sonhos desfeitos e na luta para manter a esperança de uma jovem mulher, constrói uma investigação dos efeitos da guerra sobre o coletivo e seu espírito de comunhão e resistência no abandono e na incerteza do futuro.

O filme começa com um ritmo de slice of life, uma história de formação contemplativa, com pequenos grandes acontecimentos na vida de Suzu e sua família, em Hiroshima. Ela nos é apresentada com pouco menos de dez anos, em 1933, fazendo uma travessia de barco para outra cidade a fim de realizar uma entrega, em substituição ao irmão. Suzu é uma menina criativa para desenhar e inventar histórias (e tem poéticos diálogos interiores), o que confere à obra o imaginário e a ludicidade presentes na infância. Esse é um fato importante, pois a fantasia será mais tarde reintegrada à narrativa, como sinal tanto de apaziguamento quanto de maturidade.

Do tempo de infante na zona rural de Hiroshima, passando por um amor nunca declarado até o casamento arranjado e mudança para o porto de Kure, a existência de Suzu preenche-se pelas atividades domésticas e a tentativa de torná-la menos cinza por intermédio da pintura. Deste modo, a condição da mulher em uma sociedade tradicionalista é vislumbrada na ideia de substituição da sogra, já doente, por Suzu como responsável pelo cuidado da casa. Tarefas do lar que a jovem deve assumir, ainda que sua pouca experiência dificulte a execução de algumas delas com destreza. A adaptação de Suzu a sua nova vida ocorre no tempo em que a guerra se intensifica e deixa de ser o indício da superioridade nipônica diante de seus inimigos. A guerra é brutal e atinge Kure com pesados bombardeios com o objetivo de destruir navios e porta-aviões da marinha japonesa.

A partir daí Neste Canto do Mundo se transforma em um drama voraz, sombrio e melancólico, que não poupa o espectador dos horrores e mazelas da guerra. Suzu sofre com mudanças e separações, e o seu próprio corpo se torna um despojo do conflito armado.

Assim como Túmulo dos Vagalumes (1988), a obra-prima de Isao Takahata, a crueldade e o absurdo da guerra são pungentes na obra (ainda que não alcance as devastações do flagelo engendrado por Takahata). Sunao Katabuchi sabe chocar sem ser apelativo. A ruína surge como uma das heranças inevitáveis da guerra, tocando os limites de nossa desumanização: o Outro é visto como um efeito colateral, vítima inegociável de um planejamento que objetiva a rendição como ponto culminante.

Do soldado vítima da bomba atômica em Hiroshima que morre em Kure, deixando uma mancha preta na parede do centro comunitário, à menina que fica ao lado do corpo da mãe morta até a sua putrefação, vestígios do poder de destruição que o ser humano carrega, nos são apresentados em momentos em que a crueza se sobrepõe terrivelmente a poesia de um cotidiano já despedaçado.

Neste sentido, Neste Canto do Mundo é um filme sobre sobrevivência, esperança e laços afetivos (de Suzu com sua família – principalmente com a irmã –, e com a família do marido), que tem na determinação e na resiliência suas virtudes essenciais para manter viva a perspectiva de um futuro que não se esqueça do passado, um fantasma que ensina quais os desacertos cometidos.

Os aspectos visuais da obra de Katabuchi merecem menção já que seu trabalho artístico é muito rico ao acompanhar o olhar artístico que Suzu lança ao seu redor e entregando cores e luzes arrebatadoras. A beleza da animação encontra seu auge em um dos ataques aéreos ao porto de Kuru, em que as explosões no céu se transmutem em imagens pictóricas como se fossem pinceladas (há até uma referência a Uma Noite Estrelada de Van Gogh). A reconstituição de época é impressionante, recriando as cidades e o modo de vida à perfeição.

O cotidiano realista mostrado em um ritmo parcimonioso, que é interrompido por um fato histórico de marcas indeléveis, é algo a se superar em sua primeira hora de metragem, mas a vida de Suzu e os pormenores que nos revelam como se davam a organização interna das famílias são preparativos para o impacto das tragédias vindouras (para quem quer saber mais a respeito do período, vale conferir o longa-metragem de Shohei Imamura, Black Rain – A Coragem de um Povo, de 1989, que é uma das mais angustiantes produções sobre os efeitos da radiação das bombas atômicas lançadas em Hiroshima e Nagasaki).

O filme expõe a brutalidade da guerra e consegue ser terno com as suas personagens, o que dá um tom esperançoso à animação – com a reconstrução da vida em família, que, mesmo sob os escombros de perdas dolorosas, recebe de braços abertos uma menina sem lar. Neste Canto do Mundo nos lembra o que os descompassos políticos e os afãs de domínio e expansão territorial quando tornados guerra fazem a alma humana. E na figura de Suzu recorda-nos que sonhar é um direito irrevogável e que temos o nosso lugar no mundo, mesmo que esse canto seja alcançado pelo amor fati, ao tornarmos o destino algo precioso.

 

9. Judas e o Messias Negro. Direção: Shaka King. Estados Unidos, 2021.

1969. Um roubo de carro por um jovem negro em um bairro negro, fingindo-se policial federal, dá início a um plano do FBI para implodir por dentro o movimento social e partido político Panteras Negras. William O’Neal, de 17 anos, é obrigado pela agência estadunidense a se infiltrar na organização sob a ameaça de ser levado a cumprir pena por roubo e falsidade ideológica. A missão de O’Neal, que se torna informante, é se aproximar e se integrar aos Panteras Negras de Chicago, então presidida pelo igualmente jovem Fred Hampton, um fenomenal orador, socialista, que pregava a união do povo. A obra de Shaka King, em sua duas horas e cinco minutos, ocupa-se da militância de Fred e dos Panteras Negras e do dilema de William.

Hampton era um líder carismático, de retórica impecável e atento às carências da comunidade negra de Chicago. Seu ideal marxista, potencial revolucionário e discurso da autodefesa armada ecoavam entre jovens e demais grupos organizados, tanto negros quanto de outras etnias, em pleno período de conflitos raciais e recrudescência da luta pelos direitos civis dos negros, com Martin Luther King e Malcolm X assassinados, mas seus ideais vivos e impulsionando novas lideranças, reforçando o sentido de liberdade. O racismo institucional, a violência e crimes da polícia, a pobreza e o capitalismo formavam os algozes a serem combatidos. Problemas sistêmicos que nos acossam até hoje.

O ativismo de Hampton era a perfeita ilustração da práxis. Inteligente, colocava a favor da atividade concreta o seu conhecimento, gerando engajamento no que tange às ações culturais, sociais e políticas e influenciando positivamente as relações entre indivíduos e grupos. Para tal empenho prático e domínio discursivo, Daniel Kaluuya investe a figura humana de segurança, destemor, revolta e amor. É uma atuação soberba, colossal, que lhe rendeu o Oscar de Melhor Ator Coadjuvante no Oscar de 2021 e inúmeras outras láureas. As suas conversas com a companheira Deborah Johnson (interpretada por Dominique Fishback, que insufla, de modo admirável, delicadeza e coragem a personagem) é repleta de respeito, carinho e nos dá a total dimensão de um homem que sabe que está marcado para morrer, mas percebe que é um elemento em uma causa maior, portanto, preparado para o sacrifício.


Por sua vez, LaKeith Stanfield trabalha o oposto em William O’Neal. Não conhecemos o seu passado, então não sabemos como e nem porque domina a arte da mentira e do disfarce. O que pode ser apontado como uma falha do roteiro de Will Berson e Shaka King, na verdade, propícia a Stanfield nutrir O’Neal de mistério, um enigma a ser desvendado pelo espectador. Sem informações prévias que nos auxilie a entender o caráter do homem, resta-nos suas ações como informante. O ator, que já havia mostrado a sua capacidade em Temporário 12 (de Destin Daniel Cretton [2013]) e Desculpe te Incomodar (de Boots Riley [2018]), revela um homem dividido entre o medo e o fascínio – um duplo fascínio, pela vida confortável do agente federal Roy Mitchell (Jesse Plemons), epítome do neoliberalismo, e do senso de comunhão, integridade e irmandade dos Panteras Negras. Subserviente ao agente federal? Capaz de se entusiasmar pelo trabalho do partido? Gestos e expressões são primordiais para manter a sua situação uma incógnita: é duplicidade ou dubiedade que representa melhor O’Neal? Sabemos que sente o pavor de ser desmascarado, mas age por estar sem saída ou por dinheiro? É óbvio que tem respeito pelo que Hampton é, porém não temos ideia se chega em algum momento passar pela sua mente a contraespionagem.

O passado desconhecido obriga LaKeith Stanfield a construir uma lógica para a personagem que o mantém em alerta, atraente, incerto, mas seguindo o que lhe é ordenado pelo agente do FBI, em um estado de perturbação constante. É um desempenho digno de prêmios e estranhamente indicado ao Oscar de melhor ator coadjuvante no Oscar 2021 pelo entendimento de que o filme não tem um protagonista definido.

Judas e o Messias Negro joga luz sobre o uso da violência como suporte político defendido pelo partido, quando as vias diplomáticas e pacíficas já não são mais suficientes ou fracassam. Contra a opressão do poder e o terrorismo de Estado somente instrumentos que igualam a força entre os oponentes podem tornar a disputa justa e gerar temor a quem é guiado pela brutalidade e por um sentimento de proteção ao establishment, isto é, ao seu modo de vida e privilégios, que são ao mesmo tempo considerados naturais e passíveis de contínua defesa.

Deste modo, há subjacente um embate de mundos: um neoliberal, no qual o racismo é intrínseco ao sistema, e um coletivista, em que o povo deve buscar a autossuficiência para vencer os desmandos e os obstáculos engendrados pelo poder do capital.

Para isso, temos um roteiro em que os discursos têm muito peso, porém sem panfletarismo, com as cenas de tiroteio sendo bem conduzidas e as imagens de arquivos nos mostrando os fatos que proporcionaram a existência da ficção poderosa de Shaka King.

Hampton estava com 21 anos quando foi assassinado em uma operação secreta de inteligência doméstica do FBI. Segundo a agência, para pôr fim às atividades de movimentos políticos que colocavam em risco a ordem política e social existente. De alguma forma, por ser uma história baseada em acontecimentos reais, o fatalismo já está presente na primeira vez que Kaluuya surge como Hampton, pois sabemos de seu destino trágico e final violento. Desde quanto Roy Mitchell compara o Partido dos Panteras Negras à Ku Klux Klan, já temos a percepção de que a destruição é o modus operandi principal de um estado democrático que joga com a ameaça, a inverdade e a manipulação para conter supostos inimigos, isto é, a revolução, a insurreição popular.

A fotografia equilibra, de forma certeira, luminosidade e sequências sombrias, com luz mais baixa, e closes e planos abertos, dando significado a cada enquadramento. Já a direção de arte e figurinos retratam com fidelidade à época e realiza um trabalho de caracterização excelente das personagens, conseguindo o feito de destacá-los ao mesmo tempo que lhes confere a marca de um grupo, de um coletivo.

A montagem é ágil, levando em sintonia a tensão e os momentos mais amenos, o que favorece as atuações, captando os silêncios que precedem a tempestade. Tudo isso embalado por uma trilha sonora crucial – que se torna mais intensa conforme o filme avança – para o entendimento político do maior país em extensão territorial da América do Norte em 1969. Momento de contracultura, de luta pelos direitos humanos e contra os fascismos internos e externos, de reação às práticas racistas do Estado.

O título Judas e o Messias Negro vêm de um memorando publicado pelo FBI, em 1968, que objetivava determinar as metas do COINTELPRO, um programa de contraespionagem da agência, que mencionava a importância de Prevenir a ascensão de um Messias que poderia unificar o movimento nacionalista negro militante.

O filme é uma produção de Hollywood, da Warner Bros., portanto, carrega a contradição de seu discurso explosivo sair da indústria que, ainda hoje, reflete estereótipos racistas e vende o ideal farsesco de igualdade, democracia e liberdade do país que mais fomenta guerras no mundo supostamente para promover esses conceitos, libertar povos oprimidos.

Mesmo lidando com o contrassenso, Judas e o Messias Negro expõe de forma densa o debate sobre a luta de classes, as questões raciais e de direitos humanos, que permanecem atuais, com a discussão sendo reatualizada a cada morte de uma contestadora, de um libertário, de uma militante.

De todas as qualidades verificáveis ao final da obra de Shaka King, salta aos olhos o talento de seus atores, que entregam a complexidade de um homem comum em conflito (Stanfield) e a confiança e vulnerabilidade de uma figura pública carismática, íntegra, de ações humanitárias, quase maior que a vida (Kaluuya).

Um filme preciso e precioso. Mas um pequeno manual de revolução? Talvez um daqueles casos que evidenciam um tema, e por serem hollywoodianos são compreendidos como uma bomba desarmada, porém conseguem traficar para película denúncias contra o capitalismo e reacendem a importância da militância política e da consciência racial.

 

Não acreditamos que a melhor forma de combater o fogo seja com fogo; a melhor forma de combater o fogo é com água. Vamos combater o racismo não com racismo, mas com solidariedade. Dizemos que não vamos combater o capitalismo com o capitalismo negro, mas com o socialismo. Fred Hampton (Summit, 30 de agosto de 1948 – Chicago, 4 de dezembro de 1969).

 

10. O Homem que Vendeu Sua Pele. Direção: Kaouther Ben Hania. Tunísia/França/Bélgica/Suécia/Alemanha, 2020.

Indicado ao Oscar 2021 de Filme Internacional pela Tunísia (e primeiro da história do país a chegar entre os cinco finalistas), O Homem que Vendeu Sua Pele é inspirado em uma história real. Um tatuador de Zurique, Tim Steiner, em 2006, aceitou a proposta de ser uma tela humana e ter as suas costas tatuadas pelo artista belga Wim Delvoye, que fez fama ao tatuar a pele de porcos. A obra TIM é exibida em museus, galerias ao redor do mundo. Em 2008, a tela em movimento foi vendida para o colecionador de arte alemão Rik Reinking pela bagatela de 150 mil euros.

A diretora Kaouther Ben Hania, uma documentarista de sucesso, em seu segundo longa-metragem de ficção – o seu filme de estreia A Bela e os Cães é uma intrigante e ousada crítica à burocracia e à misoginia que ainda imperam na Tunísia pós-revolução de Jasmin (2010-2011), manifestações insurrecionais que abriram caminho para a Primavera Árabe –, conta a história de um refugiado sírio que vende suas costas para um artista europeu, no intuito de obter um passaporte e viajar para Bruxelas, na Bélgica, a fim de encontrar a ex-namorada, agora casada com um diplomata.

Ao tratar da mercantilização de um ser humano, Ben Hania tem como pano de fundo uma história de amor. Sam (Yahya Mahayni) topa se tornar uma obra de arte viva por desespero, pela falta de escolha, pela necessidade premente de estar diante da amada Abeer (Dea Liane).

O artista conceitual Jeffrey Godefroi (Koen De Bouw), que é um misto de cinismo, presunção e desapontamento, tatua na pele de Sam um visto Schengen, que é necessário para estrangeiros ingressar na Europa. Um símbolo de liberdade para um refugiado, mas que cria para o sírio um contrato de restrição a sua liberdade individual, sendo obrigado a estar em exposições e mostras determinadas pelo documento que assina na negociação. Deste modo, Sam é arte e é mercadoria, podendo ir a leilão e ser observado em galerias, para a curiosidade e deslumbre do público.

Antes de ter o consumismo e o elitismo como um dos focos para a análise da cultura contemporânea, o filme se inicia com Sam e Abeer em um trem e o que se desencadeia nesta sequência traz o tema e a estética que sustentam a película de Kaouther Ben Hania. Tomado pelo entusiasmo do amor, o homem fala em revolução e liberdade, reivindicando o direito de declarar sua paixão sem medo, porém se referindo às proibições sociais ditadas pelos costumes. Isso basta para que Sam seja implicado politicamente e detido pelas autoridades do governo de Bashar al-Assad. A liberdade é um bem frágil em regimes ditatoriais. O jovem cruza a fronteira para o Líbano e chega a Beirute, capital do país.

Em relação à estética, a cena do trem antecipa a visualidade da película, pois tem enquadramentos que aludem a pinturas e o filme todo é repleto de espaços delimitados, apertados que dialogam com o formato de obras pictóricas – mesmo telas de computador ou espelhos. O Homem que Vendeu Sua Pele é de uma plasticidade impecável.

Em Beirute, Sam tem um trabalho mecanizado em um frigorifico de aves, selecionando pintinhos adequados provavelmente para a produção de ração. À noite, invade vernissages com um amigo para comer o que é servido pelos buffets. Em uma dessas aventuras como penetra que Sam é interpelado por Soraya (Monica Bellucci), que gerencia a carreira de Jeffrey. A partir daí, começam o dilema e a via-crúcis de Sam.

Jeffrey é uma sensação no mundo da arte por tornar objetos comuns e banalidades em obras de arte. Suas criações são vendidas por milhares de euros. E transformar o corpo, uma parte do corpo do Outro em uma tela, parece fazer parte do desafio do artista. Situação que enseja o debate ético sobre os limites da arte, principalmente por envolver um homem refugiado. Exploração e oportunismo ou poder de decisão e liberdade?

Sam passa a ser um corpo vigiado, sempre seguido por seguranças e conduzido por funcionários dos museus. Tempo para pausas e interação com o público também estão no bojo das interdições. Afinal, Sam Ali é uma mercadoria. A liberdade também é um bem frágil em países capitalistas se você não é um dos privilegiados.

Jeffrey diz que se sente mais como Mefistófeles no acordo com Sam do que um gênio da lâmpada no que tange a conceder desejos. É o pleno exercício da liberdade ou é tão somente vender a alma para aceitar grilhões em um mundo exclusivo, de suposta sensibilidade e lucrativo? O mundo que Jeffrey critica com sua arte-mercadoria é a mesma que o geógrafo Milton Santos aponta em sua tese, a de que há uma livre circulação de mercadorias e informações que está em contraste com o impedimento da circulação dos indivíduos, especialmente imigrantes, que buscam emprego e direitos básicos, enfim, uma vida melhor.

Conforme Milton Santos, o consumismo é o maior dos fundamentalismos. E o mundo da arte ilustra a crítica de Kaouther Ben Hania ao capitalismo. Dizem que as maiores loucuras se fazem por amor ou por dinheiro, e ambos são ausência ou excesso no circuito que se percorre pelas galerias de arte e leilões da diretora tunisiana. Nesse ambiente elitizado, temos o estar ali e o ter como responsáveis pelo contato com as obras e a apreciação artística ficando em segundo plano. Há uma ausência de paixão e um excesso de valoração, que distorcem e inflacionam o mercado – ou o valor artístico das obras?

A situação leva a reflexão sobre a identidade humana. Sam é um fugitivo das autoridades sírias – o drama da guerra na Síria é apresentado em momentos pontuais – o que o torna um imigrante, um refugiado. Ao aceitar a proposta de Jeffrey, Sam inicia um processo de desumanização, de perda da dignidade. No entanto, nunca completo pela resistência da própria mercadoria, que é um homem sensível, impulsivo, de personalidade forte. Ele quer sua liberdade de volta, resolver o paradoxo em que está metido, que é, retomando Milton Santos, a valorização do objeto sobre a pessoa. Sam é muito mais que um corpo-tela.

Se tratando de corpo, a atuação de Yahya Mahayni traz muitos significados, revelando sentimentos como angústia e paixão, além do peso do tratamento que recebe pela sua reificação. Nele, em sua linguagem corporal – seus gestos, movimentos e silêncios –, a proposta do paralelo entre a crise dos refugiados e a crise da arte contemporânea ganha dimensões surpreendentes. Não à toa, Mahayni foi laureado em Veneza pelo seu desempenho emocionante e profundo.

Vale destacar a cinematografia de Christopher Aoun, que, muita atenciosa às cores, é elegante e confere o apuro estético a atmosfera da obra. E a trilha sonora de Amin Bouhafa, com sintetizadores e cordas, contribui de maneira significativa para as situações e relacionando-se com os espaços.

Kaouther Ben Hania se arrisca em seu conteúdo, como A bela e os cães é um desafio à forma. Sua sátira é profundamente humana, conduzindo a uma reflexão de como liberdade é um termo ampliado e restringido conforme os interesses do capital (e de regimes ditatoriais), restando-nos o desejo de ser livre e um senso de dignidade como resistência.

 

 


WULDSON MARCELO. Mestre em Estudos de Cultura Contemporânea (UFMT) e graduado em Filosofia (UFMT). Escritor, cineasta, roteirista e continuísta. Curador e organizador das edições 2017, 2018, 2019, 2020, 2022 e 2024 da Mostra de Cinema Negro de Mato Grosso, idealizada e organizada pelo Coletivo Audiovisual Negro Quariterê, do qual é membro desde a sua fundação, em 2016. Integrante do Coletivo Audiovisual Miraluz Films, que lançou, desde 2014, sete curtas-metragens, entre documentários e ficções. É um dos editores da revista virtual de arte e cultura Ruído Manifesto.





RAQUEL GAIO (Brasil, 1981). Poeta e fotógrafa. Licenciada em Letras pela UFRJ, é poeta, artista-cuidadora e pesquisadora independente. Escreveu os livros de poesia Das chagas que você não consegue deter ou a manada de rinocerontes que te atravessam pela manhã (2018), Manchar a memória do fogo (2019) e Com as patas no grande hematoma (2023). Artista convidada desta edição de Agulha Revista de Cultura.





 


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CODINOME ABRAXAS # 03 – REVISTA RUÍDO MANIFESTO (BRASIL)

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