segunda-feira, 18 de fevereiro de 2019

1996 LEONARDO CHAGAS



[ DEZ POEMAS ]

[AMBIENTE ESCUSO E FRIO]

Ambiente escuso e frio de que se faz o verso, a flor rótula arrota o cânone cancerígeno, não há espaço para lamentar a estupidez, enquanto o corpo aspira o corte e engole a aspirina sem questionar o encanto do acaso opaco que surge diante dos olhos da menina rosa-cruz.


[CANSADO DO COLORIDO]

Cansado do colorido, visão cansada que se apoia na quina da escada, sobe até o firmamento das somas exatas e desce ao corpo ardiloso da esperança morna, detalhada através da luz que atravessa o vidro da câmera estilhaçada pela porrada de anjos esfumaçados.

[GANESHA À LUZ DE VELAS]

Ganesha à luz de velas, na calçada descalça fala versos aos mendigos que tentam dormir distraídos da vida mundana.   Os anjos de Sodoma espancam o adolescente pelado que se comove ao ver os mictórios públicos do metrô.

Sei que um dia o sonho há de curar-me do espanto
há de me fazer chicotear a face do inimigo e roubar dezenas de garrafas de vinho tinto e esconde-las num casacão
há de me fazer cuidar melhor dos meus cabelos
há de me fazer correr à beira mar comer frutas saudáveis & me estarrecer de pranto quando triste
o sonho há de impulsionar
minha revolução espiritual e política
construir barricadas com corpos estupendos cor de jasmim esculpidos em bronze


[O FIM DA FESTA]

O fim da festa é o início de novos objetos proféticos particulares. O espaço, o céu abortado, as vespas fim-do-mundo, são tudo que mais almejo ao terminar do expediente.
Cantando para os céus de cimento encontro o coro dos nossos fascínios seu pranto no escuro, o pau e a pedra, receio não poder reconhecer a escrita automática dos meus dias, o fim de todos os santos, o corte das chaves na pele do mundo,
O sonho é o objeto de desejo lúdico do instante oculto, do nada, da parte chamada de arsênico da alma, o corte feito na terra que cria sulcos e desvia a poesia da natureza, da loucura, do desregramento, da escuridão translucida.


[O BOI DAS VÁRIAS FACES SORRATEIRAS]

o boi das várias faces sorrateiras persegue o caminho do lobo observa um púbis a quarar na sacada do apartamento no largo São Francisco. Submerso em babas e grossos pentelhos teu corpo como estátua imóvel ao vento só treme todo por dentro lembrando o gozo próximo
Costurando arranhões na sua pele-mármore, com um pincel de penas de serafim disseca toda a estrutura de seu tórax e seu dorso compulsivamente fareja teu pescoço e cospe teu sangue ao se afogar.
Descendo a teus pés se confunde em pensamentos sacrossantos
a desistir do rito pula da sacada em movimento instantâneo marcando o chão com um z de sangue fluido de seu corpo estilhaçado a comer grama.


QUEDA

Gosto-te em fragmentos
o olho separado do resto
tua boca ao avesso
tuas coxas nas fotografias
Gosto-te das ideias esfumaçadas
do batom frouxo no lábio
dos teus cabelos picotados
do cais em teus ombros
Gosto-te mais à luz da lua
da tua voz quando grita
do teu sorriso ao revés
da revelia de teus passos na cidade ao amanhecer.
Gosto-te dos teus seios dobrados
da tua cor esquisita
das pétalas a teus pés
Gosto-te a mergulhar no oceano
cansada de tempestade
percorrendo a fúria dos dias
acirrando os teus passos
em tardes quentes de outono -
gosto-te em fragmento
e a mim, me gosto aos pedaços.


[EM NOITE DE CÉU ESTRELADO]

em noite de céu estrelado
sinto o cheiro das estrelas & me transporto a meus desejo sóbrios
cantar para os montes dispersos
nos cantos escuros do mapa
& jogar a toalha ao te ver partir

desisto
resisto

vejo você com outros olhos
mas não me despertam mais que um às de copas
os seios alheios me chamam & eu corro deles

os seios alheios nas fotos
tangem a tela
tingem de furta cor a imaginação
deliro ao som de “round’ midnight”

corpos nus, sem faces, rondam a sacada estelar
emitem sinais através do odor do corpo

mergulho em estrelas
ao alcance dos meus olhos, os deuses estão a jogar bilhar com as bolas, biles e bules, bebendo sangue de poetas e vomitando auroras boreais

lucifer is rising
and i’m coming down.


[COMO OS CÃES QUE PERAMBULAM]

Como os cães que perambulam no asfalto quente
salto no vento em busca de alguma absolvição e me encontro solto
agora envolto pelo copo de cerveja azeda

há algo de sombrio no reino das coisas noturnas
as pessoas vestem máscaras e usam trajes de fogo

noites bagres
noites magras

O pensamento
repousa em um gemido lento e imbecil -


A dúvida é uma homenagem prestada à esperança.
Lautréamont


AUTOANÁLISE

recorra ao cálice e resista para além dos méritos barrocos
recorra ao cálice e silencie tudo dentro de si
recorra ao cálice num passe de mágica abrindo as densas feridas no peito áspero da noite
recorra ao cálice e corra para longe, desejando montanhas colossais ainda que vivendo nas planícies tropicais
recorra ao cálice e almeje a morte
como troféu do sindicalismo das almas,
da maratona das angústias
recorra ao cálice e embriague-se ao fim da noite, observe seu corpo voando para fora da sacada e sinta-se desaparecer.


O SELVAGEM CÓSMICO

Há sempre um copo de mar
para um homem navegar

Jorge de Lima (Invenção de Orfeu)



Sem medo da morte & da loucura/no meio da noite hasteio a pau inteiro/ a bandeira da imaginação/escalo colinas selvagens acariciando os animais ferozes / mastigo plantas carnívoras que beliscam minha língua até sangrar/ escrevo em árvores com paus e pedras / cartas de amor sublime & manuais de sobrevivência na polis / carrego espelhos nas costas em dias ensolarados / para incendiar a copa das árvores / fazendo com que as folhas imitem a incandescência das estrelas/ qualquer gota de imaginação é um oásis marítimo/ no deserto racional dos homens/ percebo a reflexão e então/ desperto aos soluços.


[ TRÊS PERGUNTAS ]

FM | Poesia, amor, liberdade – a tríade essencial do Surrealismo. De que maneira ela faz parte de tua vida e se integra à tua criação?

LC | A tríade proposta por Breton, é certamente o que me guiou na elaboração do meu primeiro projeto poético, a eterna busca pela poesia, pela liberdade & pelo amor sublime é o que move minha poesia em Cosmos/ Cacos. Me percebi diante dessa busca desde muito jovem, em meus poemas de adolescência, e o que acontece neste livro é uma condensação dessa busca em um projeto autônomo, libertário & poético. Em Cosmos/Cacos, percebo meus diálogos internos, entre o sagrado e o profano, minha descida órfica, meus acasos místicos e oníricos, revelados através do vômito que é o lirismo para mim. Minha escrita é um processo de auto-percepção, uma espécie de mergulho no inconsciente, que ocorre de modo extremamente inesperado, em momentos em que estou submerso no caos da cidade ou no tédio do meu quarto, a observar o selvagem parque estadual do juquery.

FM | Dentro e fora do país, entre vivos e mortos, independente até mesmo da poesia, não apenas citando os nomes, mas comentando os motivos, poderias referir algumas afinidades tuas na criação artística?

LC | Sou certamente um poeta leitor, tudo que escrevo é de algum modo uma transmutação daquilo que li anteriormente. Em minha poesia, ressoam minhas leituras, sobretudo dos poetas brasileiros, mortos & vivos, Pedro Kilkerry, Jorge de Lima, Murilo Mendes, e a geração paulista dos anos 60, com Claudio Willer, Roberto Piva e também Sergio Lima. Também mergulhei no barco bêbado dos franceses e desde muito novo, sou leitor de geração beat. Inclusive, os beats me introduziram à literatura. Para além da poesia, sou fascinado pelo cinema de Jean Luc Godard, Claude Chabrol, Felini, Cassavettes, Carlos Reichenbach, Andrea Tonacci, Julio Bressane entre muitos outros. Nas artes plásticas meu fascínio está em Bosch, Max Ernst, Magritte, Duchamp, Man Ray, Tarsila do Amaral, Dora Maar, Ismael Nery entre também muitos outros. Também sou apaixonado por música, sobretudo, o rock n’ roll setentista, o jazz e o rap, cujo tem sido meu ritmo favorito nos últimos tempos, sobretudo no Brasil.
Acredito que todas essas referências me são caras, pela inspiração que me trazem de seguir em frente, lutando pela liberdade plena e absoluta de criação dos povos, gosto de arte que incite ruptura, que incite transformação de padrões, que incite o mundo novo, a busca por alternativas de vida. No cinema e nas artes plásticas, ressoam em minha obra poética as imagens, o ritmo é permeado pelas minhas influências musicais. A poesia que leio, é de certa forma, minha inspiração para viver, de acordo com todo panorama que estabelecem entre arte & vida, sonho & realidade, o que busco nos poetas é sempre algum tipo de discurso capaz de gerar imagens que inspirem o desejo, e a ruptura com a moral burguesa e os bons costumes.

FM | Tenho percebido que, sobretudo em poetas nascidos a partir de 1980, há um renascimento na lírica brasileira, que é tanto na densidade da escrita, quanto na definição de uma voz própria, quanto no sentido de uma solidariedade explícita, sem que isto reflita a existência de um movimento. O que observas a este respeito?

LC | Nossa geração, ou pelo menos os artistas e poetas que gosto e tenho apreço, desta geração, esteja apta a desconstruir toda e qualquer concessão com movimentos de privação de liberdade, nós vivemos em um período em que não aceitamos mais ficar presos em caixas. Nisso, surgem poetas de expressão até então únicas em nosso país. A ruptura com a tradição do moderno nacionalista, tosco, cliché, é necessária para que possamos desenvolver a lírica de maneira universal, e quem também acredita na poesia, tem se virado pra poder construir fundamentalmente possibilidades de se manter criando fora desses padrões higienistas da linguagem e da expressão, ou seja, há diversos grupos e coletivos, que se organizam para publicar poetas novos, que desviam-se dos sulcos da obviedade na terra da poesia brasileira.
 Neste sentido, há diversos grupos editoriais fazendo trabalhos importantíssimos no país, como é o caso da Azougue editorial, que foi um importante meio de conhecimento para mim, lá li coisas inéditas de geração beat, poetas da magnitude de Leonardo Fróes, entre outras importâncias. A própria editora em que publiquei meu primeiro livro, é um exemplo dessa solidariedade, que parte da poesia e do interesse na criação de poesia, a “Poesia Primata”, se trata de um coletivo de amigos interessados em publicar aquilo que acreditam ser a poesia contemporânea brasileira, dentro de seus limites é claro.
No entanto, eu acredito que estamos ainda sendo prejudicados pela tradição canônica que parte das academias e das universidades, ainda não fomos capazes de extrair toda a potência da poesia no país, e que seremos cada vez mais esmagados a depender do Estado. Por essas e outras, eu tenho resistido e apoiado amigos em processo de criação. Há cerca de 2 anos, tive a iniciativa de criar um grupo de Estudos do Surrealismo em São Paulo, onde lemos diversos textos e obras. Esse tipo de iniciativa, creio ser de extrema importância, para aglomerarmos interessados e darmos prosseguimento àquilo que acreditamos ser fundamental. Essas iniciativas, me parecem cada vez mais presentes, e creio que prosseguirão por longo tempo.


[ FOLHA DE VIDA ]

Leonardo Chagas (São Paulo, 1996). Poeta. Transita diariamente sobre as linhas férreas desde as margens do rio Juquery às margens do rio Tietê. Disseminador da poética paranoica Beat-Surreal, lança seu primeiro livro Cosmos/ Cacos em 2018 aos 22 anos sob o signo do Cão.


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EDIÇÃO COMEMORATIVA | CENTENÁRIO DO SURREALISMO 1919-2019
Artista convidada: Anna Höch (Alemanha, 1889-1978)



Agulha Revista de Cultura
20 ANOS O MUNDO CONOSCO
Número 128 | Fevereiro de 2019
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo & design | FLORIANO MARTINS
revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
ARC Edições © 2019





sexta-feira, 15 de fevereiro de 2019

Agulha Revista de Cultura # 128 | Fevereiro de 2019


SURREALISMO E JOVENS POETAS BRASILEIROS, 3


Com esta edição concluímos um tríptico destinado a mapear alguns pontos vitais de enlace entre surrealismo e jovens poetas brasileiros. Nas duas edições anteriores – ARC # 126 e ARC # 127 – trouxemos para nossos leitores uma breve mostra de poesia e pensamento de 20 poetas, nascidos a partir de 1970. Extrapolando nosso planejamento, teremos agora um número maior de poetas, 16 deles, o que vem comprovar que nosso mapeamento aponta em boa direção, sendo plenamente possível ampliar sua extensão. Em face disto é que temos em preparação a publicação de uma antologia reunindo 50 desses poetas.
Inserimos as três edições em uma pauta de comemoração do centenário do Surrealismo, onde está prevista, ao longo de 2019, a publicação de 24 números quinzenais. No entanto, não houve intenção alguma de estabelecer algum vínculo programático com o movimento, o que seria, de certo modo, um retrocesso. Além da mostra poética que aqui compilamos, interessa-nos, sobretudo, avaliar o pensamento desses poetas, conhecer a sua visão de mundo.
Nas três perguntas que acompanham cada seleção de poemas, sugeri reflexões sobre a relação entre vida & criação, suas afinidades e como percebem a reação de seus pares. Acerca de um dos aspectos observados, sobre o sentido de solidariedade existente nas novas gerações, é claro o risco de que tal perfil solidário se confunda com um padrão de confraria, que sempre permeou a nossa cultura, e alguns poetas chegaram a apontar uma aproximação por afinidade, sendo que esta se dá não por uma confluência estética, mas antes por um dado estratégico, o que amplia o risco de uma ausência de visão crítica.
Envolvendo poetas, editores, tradutores em torno de publicações e eventos, tem surgido em alguns pontos do país uma série de movimentos coletivos. A este respeito, observa Diogo Cardoso: Penso que essas trocas acabam por dar densidade e estofo ao fundo da criação por ela se alimentar desses diálogos e contrabandos, que se faz numa espécie de conspiração secreta. Luxas Perito, por sua vez, é mais direto e percebe que, em geral, as relações pessoais se sobrepõem à qualidade. De qualquer modo, é um esforço que se faz para vencer o teatro sombrio de uma realidade fatalista.
Considerando a extensão geográfica do país e sua estratificação cultural, ampliamos o mais possível o alcance de nossa lente, empenhados em abrir um panorama que trace uma viagem múltipla pelos estilos e obsessões de todas as partes desse aturdido Brasil. Ao contrário das duas primeiras fornadas, sempre com 10 poetas, aqui apresentamos 15 outros, cujo excesso não se explica, mas que tampouco incomoda. São belas vozes e todas elas benvindas.
Na sequência desta tríplice jornada, temos já em montagem uma antologia que deverá contar com a presença de 60 jovens poetas, nascidos a partir de 1970, cujo volume será incluído em nossa coleção de circulação pela Amazon: O amor pelas palavras.
Ao lado desses jovens poetas reproduzimos 70 imagens da obra plástica de Hannah Hoch (Alemanha, 1889-1978), irrequieta dadaísta, uma das pioneiras no uso de colagens e fotomontagens. Rompendo o círculo Dadá, todo ele constituído por homens, Hannah Hoch foi a primeira mulher a integrar a fileira das vanguardas. Sua obra, de cunho satírico, reagia contra o conceito da nova mulher na sociedade alemã, com afiados comentários acerca dos símbolos feminista da época.

Os Editores



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• ÍNDICE

1972 GLEDSON SOUSA

1977 WILSON ALVES BEZERRA

1979 GIULIANO FRATIN

1979 MÁRCIO SIMÕES

1979 RODRIGO BARBOSA

1980 NUNO GONÇALVES

1980 TITO LEITE

1983 DIOGO CARDOSO

1985 LUCAS PERITO

1986 LEONARDO CHAGAS

1989 MARIANA BASÍLIO

1991 PEDRO BLANCO

1993 JOAQUIM BUHRER

1994 LAÍS PAIVA

1995 IAN VIANA

1997 CÍNTIA FARIA









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EDIÇÃO COMEMORATIVA | CENTENÁRIO DO SURREALISMO 1919-2019
Artista convidada: Anna Höch (Alemanha, 1889-1978)


Agulha Revista de Cultura
20 ANOS O MUNDO CONOSCO
Número 128 | Fevereiro de 2019
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
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revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
ARC Edições © 2019



1997 CÍNTIA FARIA


[ DEZ POEMAS ]

MISERERE

A entonação das vozes todas elas cantam
teu corpo imobilizado. Na outra noite há
luz,
aqui não. A vida converte-se em pureza
como uma sombra vasta, o choro dos
humildes faz tremer toda a crueldade.
Despedaçados através do caminho
rastejamos até o último rio porém logo
afogamos todas as bestas –
só o reflexo do nosso berço
na água. É tão vil alcançar o tempo
desse nascimento, suportar a hora
para a qual viemos de punhos cerrados,
vigiar as marés e adormecer o sono
infantil, cair enormemente, dar a face
o consolo sempre inexistente de ainda
estar aqui e consentir porque é real isto
agora o momento da Terra e todos
estes rostos ainda são reais. Povoamos
as ilhas de miríades, adiamos todos os
adeuses, louvamos e blasfemamos
sempre em nome do inexorável mas
não há marca no mundo de nenhum
triunfo e nem mesmo toda a ira impedirá
que retornemos ao pó, famintos,
como crianças em novelos de
fogo, ajoelhadas.


[SUPORTAR O INCONSOLÁVEL]

Suportar o inconsolável, as premonições,
carregar no colo os fragmentos de ossos
incandescentes, testemunhar a grande
queda do homem sólido, avançamos
rumo ao desaparecimento?
O que resta é ilegível. Cada ferida basta,
nesta noite é tão suficientemente o que
peço. Doí esta água do rio, as pedras
de vento nas margens das estrelas, o
reflexo de todas as cores ainda vivas
ao redor do fogo [luz de âncora trêmula
e cruel, a imagem do corpo sacrificado,
a voz dos invisíveis ainda não ressuscitados
junto aos barcos na névoa – a canção
de flauta não lamenta todo o esquecimento.
É contra o fim que se compartilha o exílio,
durar calorosamente no centro das aflições,
aproximar-se de um amor tão obscuro
quanto frágil, arder nas têmporas lentamente
até que a manhã seja enorme e as velas
estejam finalmente apagadas.


[LÁ ONDE AS ASAS SÃO INCANSÁVEIS]

Lá onde as asas são incansáveis
junto a todos os holocaustos tão frio
e tão duro quanto os gestos que nunca
bastaram, muralhas não aprendemos
a construir tudo leva a crer nos corpos
desmoronando eu não consigo escalar
não consigo estremecer ninguém
constrói uma fortaleza sob escombros
e eu vi a tua casa de mármore eu vi os
anjos ao redor do fogo e todos aqueles
que testemunharam a fraqueza. CADA
CRIATURA ANIQUILADA NÃO BUSCA
NENHUMA REDENÇÃO NA PALAVRA,
estar aqui perante o teu rosto em brasa
é o meu álibi, sabemos,
tu e eu, como são intocáveis tudo aquilo
que terrivelmente se aproxima de nós,
ajuda-me a dizer o invisível esta é a hora
do fim do silêncio eu estou sem fôlego e
nenhuma criança nos dá as mãos sem
temer se despendurar do espaço ainda
sim é real esta comunhão de segredos
extremidade em ser atingido nunca
saber-se nascido mas sempre em chamas.


[QUEM CEGOU-TE DIANTE O TÚMULO]

Quem cegou-te diante o túmulo não disse
adeus, lembro-me de pensar é tão duro
unir nas próprias mãos silêncio e fúria
inesperar que o fracasso da língua seja
apenas o que nos separa do mistério,
o verbo dentro do canto não se quebra
algo grandioso carrega o teu corpo
pela amplidão do espaço, não é somente
a carne um núcleo de som violentado,
tudo o que cresce em tremor desaba e
ressuscita fortemente para a morte, sob
o risco de ser esmagado pelo invisível
consentimos no padecimento e com brasa
e sal, alimentamos todas as nossas memórias,
na tua sombra cresce e afundam-se
navios, há velas acesas na direção da noite,
mares que nos distanciam e finalmente
nos tornam indistinguíveis – abandonamos
tudo, escrevemos salmos à espera do
fim do mundo, algumas palavras sempre
restam inacessíveis –
exceto entre nós.


[NADA NOS TORNA SIMPLES O BASTANTE]

Nada nos torna simples o bastante
para o amor. Tão dura é a distância
entre a vela e o candeeiro, esse cheiro
do incomunicável nos assombrando,
nunca a hora certa de escrever uma
carta, tudo resta ainda por nascer.
Todas as mil e uma noites partem-se
guardadas, as minhas mãos tecem
infrutíferas para tocar aquilo que fomos.
Uma mulher na alvorada cresce sobre
mim, dá-me um nome. O pacto
que fizemos conheceu a verdade
e todos os nossos pecados, o mundo
também nos perdoou embora os sinais
que deixamos uma para outra tenham
sido lidos em outra língua. Nada nos torna
simples o bastante para a morte, tantos sóis
nos separam mas ainda crescemos, etéreas,
fusionadas, para dizer a palavra impossível,
para recriar a fuga sempre adiada.


[OS RAIOS DE LUZ E A TERRA AVERMELHADA]

Os raios de luz e a terra avermelhada
se recusam a perceber as flores
que crescem por fora
da casa,
o temporal é imenso, cada criatura feroz
devora os pássaros que restam feridos.
Tecer e purificar –
bater com a noite dentro do corte
e sentir extinguir o anseio voraz
de confundir-se com o
excesso das ondas,
cavar em silêncio esta cegueira
e proteger os rebanhos contra a
arrebentação da água, há sempre
algo por iluminar dentro do relâmpago,
derramar lágrimas ou colher sombras
celestes nos pergaminhos antigos,
demolir as estradas e finalmente
estar como que consumido pelo
imprevisível.


[O INCÊNDIO TE CRESCE NO TREMOR]

O incêndio te cresce no tremor e torna
toda casa inabitável –
aquela que atravessa o nevoeiro
sepulta teus mortos cobre-os com areia,
abandona toda margem e cobre-os
sem recusa, vencida docemente pelos
sinais de fogo toda a vida oculta dentro
de seu corpo sacrificado a penetrar
a última estrela e de repente silêncio
mais uma vez as tuas mãos e o rio
se fundem e nada está intacto,
toda guerra necessita de um sol
que se destina à queda, teu olho
de Mulher tu sentes
tu sentes a mim como
o filho sente o sangue daquele
para quem as crateras são grandes
demais, teu voo de peixe branco
não me consola – estou em prantos,
é impossível impedir o curso
dos trovões: luz dispersa,
ESPASMOS, Tu-Absoluto,
o magma e os ossos fraturados,
deitamo-nos na verdade e
a verdade nos despedaçou -
o peso de um deus não suporta
morar no Nada.


[QUEM TE OFERECEU COM AS MÃOS]

Quem te ofereceu com as mãos
o dom da morte no monte moriá?
Não há senão impactos,
ama violentamente o naufrágio,
quando os deuses todos gritam Mãe
sangue e primavera não se rompem.
Todas as torres e pedras nos templos
construídas através dos teus filhos
esmagados como que diante de mil sóis.
O corpo abandonado em cinzas,
esquecido com safiras e corais imensos,
ali na colina rochosa não há nada
de visível apenas a voz dos desfalecidos
e incabíveis: é precioso teu rosto
luminoso e aceso dentro do meu
todo o horror e tu e eu, você para mim
de ti para dentro da noite flutuar sonolenta
e no escuro tocar teu nome.


[A VERDADE EM ESTAR CEGO]

A verdade em estar cego é
poder tocar as estrelas e sabê-las
eternas, em miséria e paixão, colher
nos lábios o enigma de um centauro
ser cativeiro do imenso e desmoronar
para dentro do escuro, oscilar junto
aos veleiros, estar descalço sobre
as ondas: ferir-se como quem
desdenha de toda mácula,
tão impuro e inocente, cravar
os pés no chão, receber do
deserto o dom do esquecimento,
perdoar o próprio sangue e
estar finalmente íntimo do silêncio.


[A MÁGOA NÃO PERDOA AS MANHÃS]

A mágoa não perdoa as manhãs de nascer
no centro das folhas. Esta paisagem não
se põe sobre o pomar, aérea dentro do
fruto estico as mãos sobre o rosto, peço
a doçura dos sítios alagados e entre os
ciprestes, torno-me incolor na água. É
terrível toda a beleza, dolorosamente
cair no fundo de todo este sal e saber
que por anos ficaremos vagando em
tremendo exílio neste lugar. Cada ferida
aberta é tão intocável entretanto não
há medida para nenhum vale e todas
as criaturas também estão esburacadas.
A espera é este fogo absoluto, a caça
sem fim no limite do impossível daquilo
que não houve [nunca
há. Pedras, cascalhos, incêndio,
inteiramente carne-viva, flutuo tal
como concha, perdida no mar.


[ TRÊS PERGUNTAS ]

FM | Poesia, amor, liberdade – a tríade essencial do Surrealismo. De que maneira ela faz parte de tua vida e se integra à tua criação?

CF | Tenho pra mim a poesia como este lugar que não está compromissado com o sentido e que pode de certa maneira estar entregue à experiência do vertiginoso, aquilo que nos arranca para além do interpretável e das representações do mundo fixadas na lógica ou pautadas pela racionalidade. Os sons, as imagens, as sensações, forças que atravessam e marcam a escrita, penso que tudo isso tenha um ritmo próprio que não necessariamente se encaixa nas leis da linguagem e da compreensão. Certas experiências só podem ser tangíveis para além do que se pode compreender delas. Acredito que o surrealismo abra espaço para isso. A liberdade tenciona entre as determinações de nossas referências e sentidos estabelecidos no mundo e a possibilidade de que algo se extravie, reste para além das pontuações devidamente colocadas ou das sentenças ordenadas que façam sentido. E o amor é certamente onde cresce o extravio.

FM | Dentro e fora do país, entre vivos e mortos, independente até mesmo da poesia, não apenas citando os nomes, mas comentando os motivos, poderias referir algumas afinidades tuas na criação artística?

CF | Creio que a poesia portuguesa seja uma das minhas grandes paixões, talvez seja pela presença do porto, a proximidade com certa grandiosidade do mar e um ritmo de palavras [os sons dos poemas, o canto], tudo isso me comove bastante. O Herberto Helder tem essa função de pólvora naquilo que sinto, penso, escrevo, assim como também Sophia de Mello Breyner, Daniel Faria, Al Berto, todos magnâmicos. Mas uma das grandes afinidades, como quando sentimos que nosso corpo está tomado por algo que alguém escreveu, é com a obra da argentina Alejandra Pizarnik. Todos os dias acordo e peço ajuda para “escrever palavras, nesta noite, neste mundo.”

FM | Tenho percebido que, sobretudo em poetas nascidos a partir de 1980, há um renascimento na lírica brasileira, que é tanto na densidade da escrita, quanto na definição de uma voz própria, quanto no sentido de uma solidariedade explícita, sem que isto reflita a existência de um movimento. O que observas a este respeito?

CF | Tenho presenciado um desejo de tornar a escrita poética viva mesmo em tempos de ruína, ousar habitar ainda poeticamente o mundo, “não ceder aos desastres” e por isso, certa solidariedade explícita entre os poetas, escritores e amantes da literatura.  Ainda sim, percebo que às vezes se torna difícil alcançar outros espaços, fazer ressoar o poema para fora dos nichos literários ou dos que já circulam neste meio. Não sei, talvez seja uma dificuldade mais pessoal do que geral. Certamente há preciosos nomes na poesia brasileira atualmente, não apenas os que estão nas grandes livrarias. Fico contente com o convite do Floriano e dessa revista tornar possível a leitura, o encontro e a publicação de jovens escritores no Brasil.


[ FOLHA DE VIDA ]

Cíntia Faria (Rio de Janeiro, 1997). Amante, finda em 2019 a graduação de Psicologia na UFRJ.



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EDIÇÃO COMEMORATIVA | CENTENÁRIO DO SURREALISMO 1919-2019
Artista convidada: Anna Höch (Alemanha, 1889-1978)


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20 ANOS O MUNDO CONOSCO
Número 128 | Fevereiro de 2019
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
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