segunda-feira, 29 de julho de 2019

Agulha Revista de Cultura # 139 | Agosto de 2019


• SETE VISÕES SUBMERSAS – ENQUETE SOBRE SURREALISMO

Corta a água
O quanto queiras
Não encontrarás
Jamais
O esqueleto
O esqueleto do vento
É a vida toda.

Malcolm de Chazal

O conjunto das indagações que constituem a enquete de que se ocupa a presente edição buscou sugerir uma leitura múltipla de aspectos polêmicos, tais como estética, ortodoxia, as relações entre movimento e civilização, a possível avaliação da qualidade das obras surrealistas etc. Até mesmo para sondar novas balizas, novas linhas que venham a provocar as imagens ocultas do horizonte em nosso tempo.
Como destaco em capítulo de meu livro Um novo continente – Poesia e Surrealismo na América (Fortaleza: ARC Edições, 2016),

a enquete sempre foi um instrumento eficaz nas mãos do Surrealismo, pela própria dinâmica do desafio, o estímulo à polêmica, à confraternização de ideias. A revista La Révolution Surréaliste foi palco de algumas das mais relevantes. Vale recordar a instigante “Enquete sobre a sexualidade”, onde o grupo praticamente inteiro se manifesta aclarando assim sua estrutura moral, com toda a carga de aventura e liberdade, sem deixar de transparecer alguns reveladores preconceitos. Nessa enquete, que tem a particularidade de ser ao vivo, exemplo notável de declaração automática, encontramos uma curiosa fala de André Breton. Ao ser indagado se lhe resultaria agradável ou desagradável “fazer amor com uma mulher que não falasse francês”, o poeta responde que seria insuportável, uma vez que sente “horror pelas línguas estrangeiras”.

Tratamos então de enumerar sete tópicos que permitam revitalizar as forças constitutivas desta que foi a mais relevante revolução cultural do Século XX.
A existência de inúmeros grupos redimensiona o entendimento de uma formação grupal oficial, de modo que o Surrealismo está orientado melhor pela denominação de um movimento múltiplo que se ramifica pelos cinco continentes, ampliando e atualizando sua abrangência inaugural. Um rio naturalmente acidentado e com inúmeros afluentes.
Não esquecer que um dos pontos básicos de uma estética surrealistas radica justamente na defesa incondicional de uma linguagem pessoal, de modo que a formação grupal não condiciona seus integrantes à dominação de um estilo comum. Este aspecto inclusive tornou possível a existência de inúmeros surrealistas que jamais fizeram parte de um grupo, sem que se perdesse, aparente contradição, o espectro de movimento coletivo.
A opção por afastar do Surrealismo todo âmbito estético conduz a uma soma de perigos em que tudo é aceito como um tecido amplo do desejo e uma escadaria sem fim, para cima ou para baixo, de veleidades da imaginação. Quando distinguimos criação e diluição a baliza correta se chama estética, não como uma afirmação reducionista do belo ou o estabelecimento de um padrão – a arte rejeita o padrão, bem o sabemos –, mas antes como a identificação de uma singularidade.
Segundo o poeta e ensaísta Armando Romero, o ideal estético do surrealismo não se centra exclusivamente na obra artística, ele se estende à vida cotidiana, a nosso fazer de todos os dias. Não é ir ao despropósito, mas sim à integração das forças vitais que vivem dessa tríade do maravilhoso, para que este seja agora o lugar comum e não um disparate.
Por sua vez, observa a artista plástica e ensaísta Susana Wald: Entendo que o surrealismo busca uma estética aberta, concentrada na ideia do maravilhoso, do que através da criação visual ou por outro meio produz uma sensação de frisson, uma vibração interior na pessoa. Ideia complementada pela opinião da poeta e ensaísta Maria Lúcia Dal Farra: O ideal estético do Surrealismo é, creio firmemente, um humanismo: ele nos incita a reatarmos, à nossa existência, as nossas forças vitais, tornando o universo habitável – muito diverso daquele que hoje é o nosso. Isto nos recorda a afirmação do poeta Enrique Molina, de que o Surrealismo é um humanismo poético.
Outro tema polêmico, o dos vícios acríticos de uma confraria, em que teria incorrido o Surrealismo, é abordado pelo poeta e ensaísta Carlos Fernández, que o amplia destacando a condição misógina do Surrealismo em seu primeiro momento. Diz ele: Os círculos surrealistas foram claramente classistas e não apenas isto, eles tiveram um comportamento claramente machista. As poucas mulheres que frequentavam os dadaístas do café Voltaire em Zurique não tinham um papel relevante no movimento emergente. Pelo contrário, na maioria dos casos eram meras acompanhantes de suas sisudas parelhas. Em face dessa incoerência misógina dedicamos um número especial da revista Triplov (Portugal) – “21 mulheres surrealistas” (a sair) – bem como temos em preparo uma próxima edição da Agulha Revista de Cultura (“Algumas mulheres surrealistas”).
De algum modo o Surrealismo já se acostumou com seus erros, em especial consideração a seus acertos, que o são em maior vulto. Vez que outra, em um que outro lugar, voltam a friccionar os moinhos algumas águas passadas. Exemplos mais recentes são os temas da homofobia e – já referido – da misoginia. Sim, o Surrealismo, com ênfase dada a seu cenário inicial, na Europa da primeira metade do século passado, os incluiu em seu catálogo de afrontas à mesma liberdade que preconizava. Também entre seus equívocos se enquadra a filiação do movimento a um partido político (mais do que simpatia por uma ideologia). A este respeito observa Armando Romero ter sido uma lástima que Breton necessitasse esse apoio do político circunstancial, quando já desde o princípio havia conseguido assentar as bases para uma revolução transformadora. Também houve, em especial da parte de André Breton, a imposição caprichosa de uma língua sobre as demais.
Um dos aspectos que julgamos pertinentes evocar diz respeito à distinção de classificações como movimento surrealista e civilização surrealista – este último evocado por Vincent Bounoure em livro homônimo de 1976. O poeta e artista plástico Zuca Sardan, a este respeito, observa que a palavra Civilização está associada a uma separação dos civilizados de um lado, e os selvagens, do outro, logo concluindo: Ora, o Surrealismo é essencialmente selvagem, dadas suas raízes fincadas no inconsciente (não pode ser analisado cientificamente, mas, sim, vivido diretamente), e nos mitos, na magia, arte primitiva e totemismo.
Naturalmente inesgotáveis, os temas aqui sugeridos foram frutos de uma relevante e múltipla reflexão, e aos 35 convidados de diversos países, soma-se a presença plástica da canadense Marcelle Ferron (1924-2001), como artista convidada da presente edição. Marcelle foi uma das signatárias do manifesto Refus Global e integrante do grupo Automatistes, nos anos 1940, movimento de destaque no Surrealismo e nas artes no Canadá.

• Os Editores

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• ÍNDICE

Allan Graubard | David Nadeau | Gregg Simpson | Stuart Inman

Alfonso Peña | Luis Fernando Cuartas | Ricardo Echavarri | Verónica Cabanillas

Nelson de Paula | Nicolau Saião | Zuca Sardan

Armando Romero | Carlos Barbarito | Graciela Maturo

Bob Danco | Franklin Fernández | Susana Wald

Jan Dočekal | Lubomír Kerndl | Merl Fluin & Paul Cowdell | Paul MCrandle

Gérard Calandre | Joaquim Simões | Maria Estela Guedes | Maria Lúcia Dal Farra

Jason Abdelhadi | Mattias Forshage | Michel Remy

Amirah Gazel | Carlos Fernández | Fabio Rincones |

Gaetano Andreoni | Miguel Lohlé | Sergio Bonzón |



PARTICIPAM DESTA EDIÇÃO

ALFONSO PEÑA. Narrador, poeta, editor e artista visual. Dirige a revista Matérika. Ao lado de Amirah Gazel foram idealizadores e curadores da exposição internacional surrealista Las llaves del deseo (Costa Rica, 2016).
ALLAN GRAUBARD. Poeta e dramaturgo.
AMIRAH GAZEL. Artista plástica e ativista cultural. Ao lado de Alfonso Peña foram idealizadores e curadores da exposição internacional surrealista Las llaves del deseo (Costa Rica, 2016).
ARMANDO ROMERO. Poeta, narrador e crítico literário, integrou grupo inicial do Nadaísmo, movimento vanguardista literário da década de ‘60 na Colômbia.
CARLOS BARBARITO. Poeta e crítico de arte, com uma extensa blibliografia poética, tem se destacado também como intenso divulgador do Surrealismo.
CARLOS FERNÁNDEZ. Artista visual e jornalista. Um dos fundadores do grupo surrealista Arin Dodo (Espanha).
DAVID NADEAU. Poeta, artista e historiador de arte, é também diretor do selo La vertèbre et le rossignol, além de sua revista homônima, e participa regularmente das atividades do Movimento Surrealista e do Instituto de Pesquisa Alienígena.
DENIS MAGERMAN (BOB DANCO) (1962). Fotógrafo, cineasta, aquarelista, pintor e collagista. Membro do grupo Agorart (Bélgica).
FABIO RINCONES. Artista plástico.
FRANKLIN FERNÁNDEZ. Escritor e artista plástico, com uma obra singular de poemas objetos e a realização de libros de aforismos e entrevistas.
GAETANO ANDREONI. Fotógrafo e designer.
GÉRARD CALANDRE. Poeta.
GRACIELA MATURO. Ensaísta, estudiosa do Surrealismo na Argentina.
GREGG SIMPSON. Tem atuado em artes visuais, música, vídeo e performances multimídia desde meados dos anos 1960. Foi nome de destaque nos primeiros desenvolvimentos da “era de ouro” de multimídia de Vancouver nos anos 1960, como a Sound Gallery e a Intermedia.
JAN DOČEKAL. Historiador de arte e artista plástico com inúmeras exposições, destaca-se ainda a intensa difusão do Surrealismo que tem feito através da imprensa.
JASON ABDELHADI. Artista plástico e historiador. Integra o Grupo Surrealista de Ottawa. Colaborador da revista Chimaera. Editor do jornal Peculiar Mormyrid. Ambas publicações canadenses.
JOAQUIM SIMÕES. Poeta e músico.
LUBOMÍR KERNDL. Escultor, fotógrafo e artista gráfico. Um dos integrantes do grupo surrealista Stir Up (República Checa).
LUIS FERNANDO CUARTAS. Poeta e editor. Um dos diretores da revista Punto Seguido (Colômbia)
MARIA ESTELA GUEDES. Poeta, dramaturga, ensaísta e editora, criadora e diretora da revista Triplov (Portugal).
MARIA LÚCIA DAL FARRA. Poeta e ensaísta.
MATTIAS FORSHAGE. Poeta.
MERL FLUIN. Poeta e ocultista, um dos fundadores do grupo SLAG (Surrealist London Action Group), que atuou de 2006 a 2016.
MICHEL REMY. Poeta e ensaísta. Fundador do Marges Group em 1978 e sua revista: Flagrant Délit.
MIGUEL LOHLÉ. Poeta, pintor, escultor. Um dos fundadores do grupo surrealista Agorart (Bélgica).
NELSON DE PAULA. Poeta e artista plástico.
NICOLAU SAIÃO. Poeta, ensaísta e artista plástico.
OSCAR JAIRO GONZÁLEZ HERNÁNDEZ. Poeta e ensaísta. Tem dirigido revistas e programas de rádio, sempre com destaque para a atuação do Surrealismo internacional.
PAUL COWDELL. Escritor e historiador, integrante do grupo SLAG.
PAUL MCRANDLE. Poeta. Um dos fundadores do selo editorial Phasm Press.
RICARDO ECHÁVARRI. Poeta e ensaísta. Colaborador na difusão do Surrealismo junto à editora Pleno Margen, é também diretor do Centro de Estudios Surrealistas no México.
SERGIO BONZÓN. Artista plástico. Coordenador do grupo Itinerancia (Argentina).
STUART INMAN. Escritor, poeta, pintor e fotógrafo. Participante de atividades surrealistas desde 1988. Membro fundador do London Surrealist Group, em 2003. Autor do primeiro estudo completo em inglês do surrealismo nas terras tchecas.
SUSANA WALD. Artista plástica e ensaísta.
VERÓNICA CABANILLAS. Poeta e artista plástica.
ZUCA SARDAN. Poeta, dramaturgo e artista plástico. Integra o Quarteto Kolax.


Marcelle Ferron (Canadá, 1924-2001)







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EDIÇÃO COMEMORATIVA | CENTENÁRIO DO SURREALISMO 1919-2019
Artista convidada: Marcelle Ferron (Canadá, 1924- 2001)


Agulha Revista de Cultura
20 ANOS O MUNDO CONOSCO
Número 139 | Agosto de 2019
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo & design | FLORIANO MARTINS
revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
ARC Edições © 2019



2 comentários:

  1. Dear friend Floriano,
    I send you heartfelt thanks. I am very pleased
    that I came among so many important names. Also my friend Lubomír Kerndl, whom I often see, is certainly equally pleased. I admire, dear friend, the scope and quality of your editorial and authorial work. In our conditions I do not know anyone who is able and willing to do so much work for art lovers.
    I will also try to write and send You a few sentences for the 20th anniversary of Agulha Revista de Cultura.
    With a surreal hug,
    from now hot Central Europe,
    Jan Docekal

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