domingo, 4 de julho de 2021

ZUCA SARDAN & FLORIANO MARTINS | As sete tragédias de Sardanelo & Martinico [Parte 3]

 


5. FURTIVA LÁGRIMA – Tragédia da Cortina Carmezim

 

MARTINICO

Nunca mais eu tinha ouvido falar do Thomaz Fraska.

 

SARDANELO

Acho que o Thomaz Fraska é o único de seu grupo que os vizinhos conheciam. Os demais foram morrendo sem que ninguém percebesse… Há umas cortinas de invisibilidade que envolvem algumas pessoas … Elas vão se evaporando e sumindo sem que ninguém dê conta.

 

MARTINICO

As cortinas de invisibilidade são uma invenção nacional que foram exportadas para alguns lugares tão ou mais terríveis do que as terras d'Além Mar, por sinal terras que jamais quiseram saber dos mares além da vista curta…

 

ARAUTO

É pra baixar a cortina?… Muito bem: Um-Dois- e…

 

CORTINA

Espere um pouco, Arauto, não muito depressa …

 

BEDEL

Estou trazendo a bandeja com o champanhe envenenado.

 

MARTINICO

As trombetas anunciavam a noite inteira onde os corpos foram desovados, mas a rádio patrulha chegando lá encontrava a cena devidamente limpa, invisível mesmo.

 

SARDANELO

A Quadrilha do Pavão é de nível internacional. O serviço de limpeza é de uma eficácia extraordinária.

 

MARTINICO

Com o tempo passaram a se superar, limpando cenas que ainda não haviam sido comprometidas. Sumiam com os presuntos antes mesmo do crime. Isto acabou irritando o sindicato do crime, pois se tornou patente que as mortes eram dispensáveis, o importante era que a cena sempre estivesse imaculada, como se nada…

 

ARAUTO

O pior é que com o sumiço dos cadáveres das vítimas, não poderemos fazer nosso projetado guinhol-policial. Não há crime sem cadáver, e muito menos romance policial sem crime nem cadáver, e nem sequer detetive. Já vamos no 5° ato e não houve nenhum crime, não apareceu nenhum cadáver, e nenhum detetive sequer telefonou. Só papo furado …

 

PÚBLICO

[Enfurecido.] FOOOOOORAAAA!!! Guinhol de BOOOOOSTAAAA!!! Arauto de Meeerrrdaaaaa!!! FOOOOOOOOOOORAAAAAAAAAA!!!

 

BEDEL

[Sottovoce, pro Arauto.] E que faço eu com o garrafão de cerveja envenenada?…

 

ARAUTO

[Furtiva lágrima.) Passa… sniff-sniff… pra esse público ignaro e cruel … sniff… sniff …

 

CORTINA

Um guinhol policial sem crime, é muito mais imprevisto e sofisticado … que tal chamá-lo de… Cortina Carmezim?…

 

PÚBLICO

[Possesso.] Cai, Cortina de Bosta!!! Cai, Fresca Carmezim!!! Cai, seu Filó do Salim!!!

 

MARTINICO

Já não é a primeira vez que essa exaltação carnavalesca se instala em nosso teatro. O público inocente entra em cena extrapolando sua indignação sem perceber que está sendo ludibriado. Este é o verdadeiro eixo nervoso do drama, causar esse frisson ilusório em que todas as partes se consideram integradas à fábula. Xô, realidade! O recado está dado. Ninguém te quer em nosso palco…

 

BEDEL

Aí está, Arauto … Martinico disse bem. Pensavas que o mundo fosse de groselha… e agora ?…

 
ARAUTO

Agora… dá-me desse champanhe envenenado … numa taça de cristal… neste mundo abestado e grosseirão, não me interessa mais viver.

 

BEDEL

Com Biscoitos Madalena?…

 

PÚBLICO

Muito bem!!! Boa ideia!!! Bebe o champanhe envenenado, paspalho!!! MOOOOOORRREEEEE!!!

 

ARAUTO

Ah! É assim ?… pois este prazer não vos dou. Não beberei o Champanhe envenenado. Viverei pra vos irritarrr, ignaros paspalhos!!!

 

BEDEL

Mas come ao menos as bolachas, Arauto, e o que trago não é Champanhe envenenado, mas Cerveja Preta, bem geladinha…

 

ARAUTO

Agora bebo a Cerveja, e a seguir darei uma mijada na plateia …. Glu-Glu-Glu … Mas que gosto esquisito, Bedel !…

 


BEDEL

É da cicuta, Arauto!…

 

ARAUTO

Mas… disseste que era o Champanhe que estava envenenado…

 

BEDEL

O Champanhe, certamente… Mas… a Cerveja também.

 

Cai o Arauto em estertores, e o Bedel o arrasta pros bastidores… Retorna rápido pro palco, e diz ao público:

 

BEDEL

Pronto, respeitável público. Tivestes o assassinato, no último ato. E agora, licencinha …

 

Sai o Bedel cabriolando, e puxa a corda, geme a Cortina… e de repente:


CORTINA

[Cai.) PLAFFFFFFFFTTTTTTTTTTTT!!! Desate jeito não dá, o maldito me pegou desprevenida outra vez. Quem diria que fosse este o meu fim!

 

BEDEL

Olha a presunção, Cortina de brechó. O fim é de nosso Guignol. E vê se te cala. É o fim, mesmo. Pronto.

 

CORTINA

Arre!

 

 

6. Tragédia na prateleira

 

O pacotinho inquieto parecia querer saltar da mesa da sala, quando dele se aproxima Sardanelo e indaga a sua cabrocha bamba Martinoka:

 

SARDANELO

O que diabos é isto em minha mesa, ‘tinoka?

 

MARTINOKA

Parece ser um livro, mas o bicho está vivo! Foi um tal de Katapiolho, contramestre de seu amigo, aquele barbudo amalucado, o Martinico.

 

SARDANELO

[Abrindo o pacote relutante em aquietar-se em suas mãos.] Pega ali a minha bengala, talvez eu tenha que bater nesse pacote.

 

MARTINOKA

[Correndo busca a bengala com cabeça de rinoceronte de dr. Sardanelo, quando de dentro do pacote salta um livro fininho com capa dura e letras parecendo em chamas no título curioso: Diário da Sapa Sulamita, uma compilação de textos apócrifos preparada por Martinico Faruco.] Eita que o danado só falta agora falar… O Senhor falou que é uma copulação de textos?

 

SARDANELO
Eu não falei nada, Martinoka, sou um gramático, só leio textos sérios, a Pedra de Esmeralda, a Pedra Rosetta, o Upanishad … a Dama das Camélias

 

MARTINOKA
Esta não se sabe onde vai dar, porque já nasceu torta, antes se chamava Dama das Colmeias, mas não tinha jeito de dar bom mel, então a levaram para outras terras, lá pros sítios altos de Wenceslau Tupinambá. Durante algum tempo ficou conhecida como Dama das Tulipas, até que…

 

SARDANELO
Não tens mesmo juízo, Martinoka. Invades as páginas alheias e plantas tuas sementes lunáticas… Margarida Gautier já nasceu Dama das Camélias e nela se inspiraram até mesmo as mais puritanas jovens do século XIX.

 

MARTINOKA
Sei não, acho que ela tinha os tímpanos desnorteados e só por isto se enrabichou com o pianista Francisco Liszt.

 

RÁDIO BAKELITA

PAFF -KRAK-POOOOOFFF – E agora, vossa Rádio Bakelita, transmitindo diretamente de sua sede na ilha Fernão de Noronha … Com a palavra vosso repórter predileto, o sensacional Dyrceo!!!! Ele vai entrevistar para nossas assanhadas ouvintas e eruditos e sábios ouvintos… por telefone ligado ao cabo submarino, o famoso pianista Francisco Liszt!!! que está arrasando Paris!!! Superou os Bitles e os Rolestones na Rita Parada da Semana!!! Entra no ar, Dyrceo!!!


DYRCEO
Vou discar: plic-plic-plic-plic… Alô alô!!! Quem está no aparelho (roctrac trac)!! Alô, é o Senhor Liszt??? O Senhor está me ouvindo??? (tractroc poff)

 

LIZST

[Desajeitado com o aparelho no ouvido.] Ouço com zzt-tzz-zzt interferências agudas, um pinicado em meu ouvido, isto vai acabar com a minha genialidade auditiva, diga lá quem quer que seja, diga logo o que deseja…

 

DYRCEO

Tudo bem, Seu Francisco, não se preocupe com a audição … e repita cada manhã: Estou bem… cada dia ouço melhor… e o Beethoven só virou gênio da música… quando ficou mais surdo que uma porca.

 


LIZST

Isto prova que não retiramos a música daquilo que ouvimos e sim de uma fornada interior de mistérios. Tudo no mundo corre ao revés do que dele pensamos. A razão é uma placa de ferro à entrada de um salão abandonado, tudo em ruínas. O que se salva na vida é o que dela imaginamos.

 

DYRCEO

Ao que parece estás a compor a tua melhor sonata. E logo será a tua vez de também ser compreendido como um gênio da música…

 

LIZST

Pouco me importa que a vaca tussa, eu quero mesmo é rosetar… A galope na pedrinha mágica que nos leva a toda parte. Zump-zez-tchaco…

 

DYRCEO
Poderias viajar de Condor. Voando sobre o Monte Branco!… Teu prestígio e celebridade aumentariam ainda mais. Aquele rei amigo do Wagner, que adora fazer uns castelos deslumbrantes pendurados nas montanhas, à beira do precipício!… Ele poderia te oferecer um recital em um de seus castelos pendurados… e tu chegarias de Condor!... Que sensação!!!

 

LIZST

Pois é. A ideia voa bem, nem precisa de asas. Mas desde que tiraram o dó da escala, a música ficou saltando acordes, variando entre o engasgo e o soluço. Talvez se eu começasse a tocar pendurado eu me tornasse up-to-date, essa supimpa veneração pelo instante. E ao piano eu poderia acrescentar um coral assustado, de vozes penduradas.

 

DYRCEO
Comecei a fazer planos de produção, desde já me candidato a ser teu empresário…

 

ARAUTO

[Surdina.] Vou baixar a cortina em cima desse falastrão…

 

CORTINA

[Toda enroscada em um canto do palco.] Ainda não, ainda não. Tenho o script, Martinico Faruco ainda vai ler um trechinho do Diário da Sapa Sulamita, acompanhado pelo piano pendurado de Francisco Lizst. E vejo agora o detalhe da ousadia: eles vão se apresentar simulando voz e música. Nunca tivemos disso por aqui, nosso teatrinho vai ser o mais falado em toda a redondeza, uma nova dimensão do drama. Sossega o facho, Arauto, não vamos perder isso de modo algum.

 

DYRCEO
Eu mesmo já acertei com a cervejaria Caravaca e as lojas Pirandello de fantasias teatrais que serão nossos patrocinadores. E contamos a apresentação dos artistas feita por Dyrceo Penduricalho. Vai lá, Dy, é contigo, capricha:

 

BEDEL

[Entra.) Dyrceo, estás ficando muito pirado … Agora queres te entrevistar a ti próprio … aquelas tuas pastilhas de groselha estão carregadas de haxixe …

 

DYRCEO

Haxixe é bom pra tosse… Receita do Doutor Jatobá. Se existem autos da fé, por que não podem existir auto-entrevistas? … O Hamlet já fazia. É verdade que eu terei que encarnar a Dama das Orquídeas…

 


BEDEL

[Bruscamente interrompendo.) Mas não era das Camélias essa tal Dama?

 

DYRCEO

Nada como lidar com um Bedel retardado. A notável dama mudava sempre de sobrenome a depender do jardim onde se instalava. Foi na verdade uma grande biscateira de pólen, que sintetizava no fabrico de um simulacro do procurado pó de pirlimpimpim. Isto lhe trouxe grande fortuna e renome, porém quando descobriram o roubo dos componentes do pó ela teve que levar uma vida de fugas, e com isto veio a ideia de mudar o sobrenome a todo instante.

 

BEDEL

Está bem, acho que alguém já me havia contado essa bravata. Mas, e a auto-entrevista?

 

DYRCEO

A auto-entrevista, Bedel, é uma invenção de ... plec! plec!... um príncipe da Dinamarca!... elegantíssimo, que se chamava... plec! plec!...

 

BEDEL

Seria o... Sócrates?... Mas ele não era dinamarquês, Dyrceo ... Estás fazendo confusão ... Ele tomou cicuta pensando que fosse sopa de feijão.

 

DYRCEO

Não, este foi um grande erro na história do futebol, eu falo do príncipe Nico o Grande. De todos modos, eu posso fingir que me faço intrépidas perguntas, ao mesmo tempo em que movimento os lábios como se dera na jugular com as minhas respostas. A plateia, que não quer engolir esse trapo de sarjeta, esse bugalho de papo, faz cara de quem entendeu muito bem e até nos (me) surpreende com seus inesperados aplausos.

 

BEDEL

É boa. Mas mesmo assim ainda acho que falta algo.

 

CORTINA
Que tal eu dar umas evoluções tipo dança dos sete véus, sem odalisca?…

 

RÁDIO BAKELITA

Tudo devidamente documentado por nossas frequências moduladas, com a vantagem de não ter imagem, como forma de estímulo para que nossos ouvintes desenvolvam sua imaginação. Vai lá, Cortina, faz de conta que estás ouvindo a música…


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Número 175 | julho de 2021

Artista convidado: José Duarte Julio (Chile, 1968)

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