5. FURTIVA LÁGRIMA – Tragédia da Cortina Carmezim
MARTINICO
Nunca mais
eu tinha ouvido falar do Thomaz Fraska.
SARDANELO
Acho que
o Thomaz Fraska é o único de seu grupo que os vizinhos conheciam. Os demais foram
morrendo sem que ninguém percebesse… Há umas cortinas de invisibilidade que envolvem
algumas pessoas … Elas vão se evaporando e sumindo sem que ninguém dê conta.
MARTINICO
As cortinas
de invisibilidade são uma invenção nacional que foram exportadas para alguns lugares
tão ou mais terríveis do que as terras d'Além Mar, por sinal terras que jamais quiseram
saber dos mares além da vista curta…
ARAUTO
É pra baixar
a cortina?… Muito bem: Um-Dois- e…
CORTINA
Espere
um pouco, Arauto, não muito depressa …
BEDEL
Estou trazendo
a bandeja com o champanhe envenenado.
MARTINICO
As trombetas
anunciavam a noite inteira onde os corpos foram desovados, mas a rádio patrulha
chegando lá encontrava a cena devidamente limpa, invisível mesmo.
SARDANELO
A Quadrilha
do Pavão é de nível internacional. O serviço de limpeza é de uma eficácia extraordinária.
MARTINICO
Com o tempo
passaram a se superar, limpando cenas que ainda não haviam sido comprometidas. Sumiam
com os presuntos antes mesmo do crime. Isto acabou irritando o sindicato do crime,
pois se tornou patente que as mortes eram dispensáveis, o importante era que a cena
sempre estivesse imaculada, como se nada…
ARAUTO
O pior é que com o sumiço dos cadáveres das vítimas, não poderemos fazer
nosso projetado guinhol-policial. Não há crime sem cadáver, e muito menos romance
policial sem crime nem cadáver, e nem sequer detetive. Já vamos no 5° ato e não
houve nenhum crime, não apareceu nenhum cadáver, e nenhum detetive sequer telefonou.
Só papo furado …
PÚBLICO
[Enfurecido.] FOOOOOORAAAA!!! Guinhol
de BOOOOOSTAAAA!!! Arauto de Meeerrrdaaaaa!!! FOOOOOOOOOOORAAAAAAAAAA!!!
BEDEL
[Sottovoce, pro Arauto.] E que
faço eu com o garrafão de cerveja envenenada?…
ARAUTO
[Furtiva lágrima.) Passa… sniff-sniff…
pra esse público ignaro e cruel … sniff… sniff …
CORTINA
Um guinhol policial sem crime, é muito mais imprevisto e sofisticado … que
tal chamá-lo de… Cortina Carmezim?…
PÚBLICO
[Possesso.] Cai, Cortina de Bosta!!! Cai,
Fresca Carmezim!!! Cai, seu Filó do Salim!!!
MARTINICO
Já não
é a primeira vez que essa exaltação carnavalesca se instala em nosso teatro. O público
inocente entra em cena extrapolando sua indignação sem perceber que está sendo ludibriado.
Este é o verdadeiro eixo nervoso do drama, causar esse frisson ilusório em que todas
as partes se consideram integradas à fábula. Xô, realidade! O recado está dado.
Ninguém te quer em nosso palco…
BEDEL
Aí está,
Arauto … Martinico disse bem. Pensavas que o mundo fosse de groselha… e agora ?…
Agora…
dá-me desse champanhe envenenado … numa taça de cristal… neste mundo abestado e
grosseirão, não me interessa mais viver.
BEDEL
Com Biscoitos
Madalena?…
PÚBLICO
Muito bem!!!
Boa ideia!!! Bebe o champanhe envenenado, paspalho!!! MOOOOOORRREEEEE!!!
ARAUTO
Ah! É assim
?… pois este prazer não vos dou. Não beberei o Champanhe envenenado. Viverei pra
vos irritarrr, ignaros paspalhos!!!
BEDEL
Mas come
ao menos as bolachas, Arauto, e o que trago não é Champanhe envenenado, mas Cerveja
Preta, bem geladinha…
ARAUTO
Agora bebo
a Cerveja, e a seguir darei uma mijada na plateia …. Glu-Glu-Glu … Mas que gosto
esquisito, Bedel !…
BEDEL
É da cicuta,
Arauto!…
ARAUTO
Mas… disseste
que era o Champanhe que estava envenenado…
BEDEL
O Champanhe,
certamente… Mas… a Cerveja também.
Cai o Arauto
em estertores, e o Bedel o arrasta pros bastidores… Retorna rápido pro palco, e
diz ao público:
BEDEL
Pronto,
respeitável público. Tivestes o assassinato, no último ato. E agora, licencinha
…
Sai o Bedel
cabriolando, e puxa a corda, geme a Cortina… e de repente:
[Cai.) PLAFFFFFFFFTTTTTTTTTTTT!!! Desate jeito
não dá, o maldito me pegou desprevenida outra vez. Quem diria que fosse este o meu
fim!
BEDEL
Olha a
presunção, Cortina de brechó. O fim é de nosso Guignol. E vê se te cala. É o fim,
mesmo. Pronto.
CORTINA
Arre!
6. Tragédia
na prateleira
O pacotinho inquieto parecia
querer saltar da mesa da sala, quando dele se aproxima Sardanelo e indaga a sua
cabrocha bamba Martinoka:
SARDANELO
O que diabos é isto
em minha mesa, ‘tinoka?
MARTINOKA
Parece ser um livro,
mas o bicho está vivo! Foi um tal de Katapiolho, contramestre de seu amigo, aquele
barbudo amalucado, o Martinico.
SARDANELO
[Abrindo o pacote relutante em aquietar-se em
suas mãos.] Pega ali a minha bengala, talvez eu tenha que bater nesse pacote.
MARTINOKA
[Correndo busca a bengala com cabeça de rinoceronte
de dr. Sardanelo, quando de dentro do pacote salta um livro fininho com capa dura
e letras parecendo em chamas no título curioso: Diário da Sapa Sulamita, uma compilação
de textos apócrifos preparada por Martinico Faruco.] Eita que o danado só falta
agora falar… O Senhor
falou que é uma copulação de textos?
RÁDIO BAKELITA
PAFF -KRAK-POOOOOFFF – E agora, vossa Rádio Bakelita, transmitindo diretamente
de sua sede na ilha Fernão de Noronha … Com a palavra vosso repórter predileto,
o sensacional Dyrceo!!!! Ele vai entrevistar para nossas assanhadas ouvintas e eruditos
e sábios ouvintos… por telefone ligado ao cabo submarino, o famoso pianista Francisco
Liszt!!! que está arrasando Paris!!! Superou os Bitles e os Rolestones na Rita Parada
da Semana!!! Entra no ar, Dyrceo!!!
LIZST
[Desajeitado com o aparelho no ouvido.]
Ouço com zzt-tzz-zzt interferências agudas, um pinicado em meu ouvido, isto vai
acabar com a minha genialidade auditiva, diga lá quem quer que seja, diga logo o
que deseja…
DYRCEO
Tudo bem, Seu Francisco, não se preocupe com a audição … e repita cada manhã:
Estou bem… cada dia ouço melhor… e o Beethoven
só virou gênio da música… quando ficou mais surdo que uma porca.
LIZST
Isto prova que não retiramos a música daquilo que ouvimos e sim de uma fornada
interior de mistérios. Tudo no mundo corre ao revés do que dele pensamos. A razão
é uma placa de ferro à entrada de um salão abandonado, tudo em ruínas. O que se
salva na vida é o que dela imaginamos.
DYRCEO
Ao que parece estás
a compor a tua melhor sonata. E logo será a tua vez de também ser compreendido como
um gênio da música…
LIZST
Pouco me importa
que a vaca tussa, eu quero mesmo é rosetar… A galope na pedrinha mágica que nos
leva a toda parte. Zump-zez-tchaco…
LIZST
Pois é. A ideia voa bem, nem precisa de asas. Mas desde que tiraram o dó
da escala, a música ficou saltando acordes, variando entre o engasgo e o soluço.
Talvez se eu começasse a tocar pendurado eu me tornasse up-to-date, essa supimpa
veneração pelo instante. E ao piano eu poderia acrescentar um coral assustado, de
vozes penduradas.
ARAUTO
[Surdina.] Vou baixar
a cortina em cima desse falastrão…
CORTINA
[Toda enroscada em um
canto do palco.] Ainda não, ainda não. Tenho o script, Martinico Faruco ainda
vai ler um trechinho do Diário da Sapa Sulamita,
acompanhado pelo piano pendurado de Francisco Lizst. E vejo agora o detalhe da ousadia:
eles vão se apresentar simulando voz e música. Nunca tivemos disso por aqui, nosso
teatrinho vai ser o mais falado em toda a redondeza, uma nova dimensão do drama.
Sossega o facho, Arauto, não vamos perder isso de modo algum.
BEDEL
[Entra.) Dyrceo, estás ficando
muito pirado … Agora queres te entrevistar a ti próprio … aquelas tuas pastilhas
de groselha estão carregadas de haxixe …
DYRCEO
Haxixe é bom pra tosse… Receita do Doutor Jatobá. Se existem autos da fé,
por que não podem existir auto-entrevistas? … O Hamlet já fazia. É verdade que eu
terei que encarnar a Dama das Orquídeas…
BEDEL
[Bruscamente interrompendo.) Mas
não era das Camélias essa tal Dama?
DYRCEO
Nada como lidar com um Bedel retardado. A notável dama mudava sempre de sobrenome
a depender do jardim onde se instalava. Foi na verdade uma grande biscateira de
pólen, que sintetizava no fabrico de um simulacro do procurado pó de pirlimpimpim.
Isto lhe trouxe grande fortuna e renome, porém quando descobriram o roubo dos componentes
do pó ela teve que levar uma vida de fugas, e com isto veio a ideia de mudar o sobrenome
a todo instante.
BEDEL
Está bem, acho que alguém já me havia contado essa bravata. Mas, e a auto-entrevista?
DYRCEO
A auto-entrevista, Bedel, é uma invenção de ... plec! plec!... um príncipe
da Dinamarca!... elegantíssimo, que se chamava... plec! plec!...
BEDEL
Seria o... Sócrates?... Mas ele não era dinamarquês, Dyrceo ... Estás fazendo
confusão ... Ele tomou cicuta pensando que fosse sopa de feijão.
DYRCEO
Não, este foi um grande erro na história do futebol, eu falo do príncipe
Nico o Grande. De todos modos, eu posso fingir que me faço intrépidas perguntas,
ao mesmo tempo em que movimento os lábios como se dera na jugular com as minhas
respostas. A plateia, que não quer engolir esse trapo de sarjeta, esse bugalho de
papo, faz cara de quem entendeu muito bem e até nos (me) surpreende com seus inesperados
aplausos.
BEDEL
É boa. Mas mesmo assim ainda acho que falta algo.
RÁDIO BAKELITA
Tudo devidamente documentado por nossas frequências moduladas, com a vantagem de não ter imagem, como forma de estímulo para que nossos ouvintes desenvolvam sua imaginação. Vai lá, Cortina, faz de conta que estás ouvindo a música…
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Número 175 | julho de 2021
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