segunda-feira, 25 de julho de 2022

Agulha Revista de Cultura # 213 | julho de 2022

 

∞ editorial | As máscaras ocultas

 


00 | Até onde iremos? Eis uma dessas indagações essencialmente indevidas. A quem pode interessar o passo seguinte quando não se está competindo com ninguém? No ano passado, quando ainda estávamos editando a série “Partituras do maravilhoso” (https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2021/10/agulha-revista-de-cultura-projeto.html), listamos criadores que poderiam compor uma nova série, dedicada ao Surrealismo. Quando elencamos os colaboradores que seriam consultados, intuímos que seria possível editar 12 números quinzenais, o que totalizaria 120 ensaios. Temas e colaboradores se multiplicaram, leitores deram sugestões, até o final de agosto teremos 140 matérias publicadas. No 10/09 publicaremos uma edição extra-surrealismo e anunciaremos nossas primeiras férias em 21 anos. Até onde iremos? O plano é retornar com novembro, dando continuidade à série, mas isto nunca se sabe. Planejar uma nova série? Quem sabe os leitores se manifestam sugerindo algo. Agulha Revista de Cultura prossegue.

 

01 | Certamente por trás de toda máscara há um crime oculto, o corpo sorrateiro de uma vítima e as anotações apócrifas de uma fuga não realizada. Ou mesmo os elementos soltos que vazam pelas dobras de cada expressão. Como um cavalo maravilhoso ou uma pedra atômica, por trás de seus mitos por vezes podemos herdar os impérios mais violentos ou mesmo aflorar um terceiro olho despido de sentido e inteligência. Certa vez vaticinou o aventureiro Robert Charroux, que em uma sociedade futura os sentidos possivelmente se tornarão mais e mais atrofiados e substituídos por uma organização protetora criada pelo cérebro. Por mais aceito que o cérebro é o grande motor da existência, essa organização protetora tornou-se dependente de estimulantes medicinais de toda ordem. As máscaras acabaram por atrofiar a frequência de suas ondas ocultas. Até mesmo as suas expressões mais espantosas estavam carregadas de evidências presumíveis. A força magnética que antes caracterizava o olhar magnificente das máscaras agora já não se propaga mais pelo ar. Perdeu-se a eletricidade do enigma. As máscaras são hoje como pássaros à procura do próprio voo.

 

02 | [Fragmento de entrevista concedida a Márcio Simões, 2010]

 

MS | Tendo em mente algumas linhas de pensamento correntes, você acredita que a literatura, numa sociedade massificada, injusta e muito pouco ética, vem correndo o risco de se tornar, por um lado, apenas repetição, subproduto destes fatores e mera reprodutora dos valores ostensivos do sistema vigente? E, por outro, espécie de realismo que a torna esgoto para onde confluem a expressão dos recalques e podridões do humano?

 

FM | Eu penso que há muito estamos produzindo uma série infinita e despreocupada de relançamentos – e não me refiro aqui a reedições e sim ao caráter reciclável da escrita. Não se trata de literatura, mas antes de cultura de massas. Envolve as demais artes, colocando-as todas na condição de passatempo. É muito curioso observar que escritores sempre se sentiram uma entidade à parte, e que agora se encontrem, como artistas que são, porque afinal o que produzimos todos – poetas, músicos, pintores, dramaturgos – é arte, que agora se encontrem todos reunidos pelo pior, como títeres de uma indústria cultural que subverte a lógica e todos aceitamos tacitamente não haver distinção entre produção artística e produção industrial, como se escrever um romance, por exemplo, fosse apenas fase de um processo industrial. O indivíduo desaparece duplamente, como criador e como espécie humana.

 

MS | Ainda é viável um sentido de resistência e crítica no trabalho literário, uma vez que o próprio poeta está forçosamente inserido nesta estrutura social para sua sobrevivência e atuação?

 

FM | Este é um dos argumentos mais torpes a que alguém pode recorrer. Artistas sempre comeram, casaram, compraram instrumentos de trabalho e todos sobreviveram e seguem sobrevivendo. Se uns foram mais felizes ou desafortunados que outros, creiamos em destino ou não, esta balança ou funil sempre fez parte da vida dos criadores. No caso dos escritores, a história está repleta dos que trabalham em bancos, dão aulas, receberam heranças familiares, tiveram livros adaptados para o cinema ou simplesmente recorreram ao mais comum dos truques de sobrevivência: buscaram uma parceria amorosa que os sustentasse. Aqueles que se renderam facilmente que não me venham com o argumento de que a sociedade os forçou a tanto. A vida nunca é fácil, por mais que aparente sê-lo.

 

MS | As ideias de rebeldia e desregramento – oriundas da poesia – esgotaram-se ao se tornarem produtos – se pensarmos na indústria da música e no modismo envolvendo a cultura das drogas, cada vez mais afastada de qualquer sentido e valor, bem como na institucionalização dessas atitudes, relacionadas a uma faixa etária – ou ainda é possível uma rebeldia e um desregramento autênticos como meios viáveis para o poético, uma vez que, segundo dizes vivemos numa sociedade domesticada?

 

FM | É verdade, nos convertemos em um imenso zoológico, que é o melhor exemplo de sociedade domesticada. Agora, as ideias se esgotam e talvez este seja um de nossos dilemas, o de que queremos aplicar ao dia de hoje ideias que foram valiosas em outra circunstância. Eu sinceramente não gosto dessa leitura da arte como fonte de rebeldia e desregramento da forma datada como estes conceitos são interpretados. É puro saudosismo. Não tem cabida querer povoar o século XXI com Baudelaire, Rimbaud, Artaud, Pasolini, Jim Morrison. Românticos, simbolistas, surrealistas, beatniks, tiveram um papel inestimável e valem como balizas, como referenciais substanciosos da cultura. Em uma de minhas viagens ao exterior, alguém indagou sobre Paulo Coelho. É comum esse tipo de clichê, o sujeito vem do Brasil, terra de samba, carnaval, futebol, Paulo Coelho e corrupção. Eu estava sem muito apetite para a polêmica neste dia e me saí com a frase: houve uma época em que o Paulo Coelho era o maior problema da literatura brasileira; hoje é o menor. Depois mastiguei bem o que disse de rompante e vejo que é exatamente isto. Sorte dele que inventamos uma tolice maior. Todo grande criador em qualquer tempo é naturalmente rebelde e rompe com as regras que são as características de sua época.

 

MS | Você escreveu que acredita que a realidade se expressa de maneira mais viva e desimpedida quanto mais lhe permitimos multiplicar-se em infinitas e transbordantes máscaras. Em que medida esta realidade de que você fala se relaciona com a realidade construída e reafirmada cotidianamente pelos meios de comunicação de massa, por exemplo?

 

FM | O termo está perfeito: realidade construída. É outra forma de ficção, estou certo? O argentino Borges disse certa vez que não há melhor exemplo de literatura fantástica do que a Bíblia. A mídia representa este papel em nosso tempo, o de construção de uma realidade fantástica em substituição à vida cotidiana. E o faz com tamanha propriedade justamente anulando a diversidade. E com tremendo sarcasmo se reporta a alguns profetas da ficção científica como palpites sem maior expressividade do ponto de vista real. Voltamos ao tema da arte convertida em passatempo.

 

[…]

 

MS | Pensando numa distinção em voga na historiografia literária, que propõe a separação entre uma poesia cerebral, meditada e outra de inspiração e entusiasmo (na qual se inseriria o surrealismo), faz sentido a separação, ou seria um mero maniqueísmo esquemático?

 

FM | Uma tolice que não tem mais tamanho. Mas que agrada aos poetas, por situá-los em uma condição superior. O que o surrealismo propunha era livrar-se dos excessos da razão e não estabelecer tal maniqueísmo.

 


MS | Você tem sido um dos responsáveis pela reformulação do que se entende na historiografia literária por surrealismo, ao mesmo tempo em que aponta a falácia conceitual e a derrocada do sentido como elementos definidores do nosso tempo. Acredita que há relação entre as duas coisas? Crê que no meio da confusão generalizada uma voz coerente e independente possa ser mais facilmente ouvida? Qual o papel da Internet neste contexto, uma vez que suas ações vêm ganhando visibilidade por esse meio?

 

FM | Eu sinceramente creio que este papel é ainda muito pequeno nessa releitura da atuação do surrealismo em nosso continente. Não se trata propriamente de reformulação. Como disse em seminário na Universidade de Cincinnati (primeiro trimestre de 2010), e que consta do livro que escrevi e que serviu de base para este evento, a ausência de um estudioso que fosse criterioso em relação aos desdobramentos do surrealismo em todo o continente, sem situar as perspectivas estéticas do movimento, agravou a percepção de sua real influência em nossa cultura. O surrealismo no continente americano deixou de ser visto como um aspecto fundamental na construção de uma vanguarda americana, e passou a ser visto como amém ao espírito vanguardista europeu. E agora o cuidado é também no sentido de evitar que o tema não caia na malha enganosa da história como algo que pertence ao passado, nada mais. A Internet é todo um capítulo à parte, estamos apenas ao princípio de uma impressionante expansão de meios e aos poucos vamos nos livrando da pior armadilha de qualquer inovação tecnológica aplicada à arte e à cultura, a de confundir meio e mensagem.

 

03 | O artista convidado da presente edição é Hélio Rola (Brasil, 1936), pintor, desenhista, escultor e gravador. Estudou na Sociedade Cearense de Artes Plásticas em 1949. Formado em medicina em 1961, cinco anos depois finaliza curso de pós-graduação em Bioquímica pela USP. Entre 1967 e 1970, estuda pintura com Joseph Tobin e Agnes Hart no Art Student’s League, em Nova Iorque (Estados Unidos), período em que aproveita para frequentar a Liga de Estudantes de Arte da cidade e trabalhar como pesquisador no The Public Health Research Institute. Como membro do Grupo Aranha realiza diversos painéis de pintura mural coletiva em Fortaleza e São Paulo. Artista inventivo e destacado no panorama da Arte Postal, que soube transpor para o ambiente digital. Entre suas mais importantes exposições, encontram-se as retrospectivas “Cidades” (Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura, Fortaleza, 2005) e “Um Atlas para Hélio Rôla” (Museu de Arte Contemporânea, Fortaleza, 2021), sob a curadoria, respectivamente de Floriano Martins e Flávia Muluc.


Floriano Martins

 

 

∞ índice

 

ANDRÉS LUQUE TERUEL | Yves Klein, monocromía y acción

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ANTONY PENROSE | Roland Penrose and the Impulse of Provence

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ARTURO CASAS | Improbabilidad del ensayo surrealista. Sus derivaciones discursivas en la obra de Eugenio F. Granell

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CARLOS M. LUIS | André Breton y la utopía surrealista

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CÉSAR BISSO | Francisco Madariaga: Surrealista de los esteros bárbaros

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FLORIANO MARTINS | Jorge Camacho e a evocação dos mundos subterrâneos

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INMACULADA ILLANES ORTEGA | La mujer en la narrativa de André Pieyre de Mandiargues

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JORGE COAGUILA | Entrevista a Blanca Varela

https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2022/07/jorge-coaguila-entrevista-blanca-varela.html

 

JOSÉ LEZAMA LIMA | Los viajes de Julio Cortázar

https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2022/07/jose-lezama-lima-los-viajes-de-julio.html

 

MARIO CÁMARA | Sexualidad y ciudad en la poesía de Roberto Piva

https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2022/07/hablaremos-de-la-rebelion.html

 



Hélio Rola


Agulha Revista de Cultura

Série SURREALISMO SURREALISTAS # 14

Número 213 | julho de 2022

Artista convidado: Hélio Rola (Brasil, 1936)

editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com

editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com

concepção editorial, logo, design, revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS

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