∞ editorial | As máscaras ocultas
01 | Certamente por trás de toda
máscara há um crime oculto, o corpo sorrateiro de uma vítima e as anotações
apócrifas de uma fuga não realizada. Ou mesmo os elementos soltos que vazam
pelas dobras de cada expressão. Como um cavalo maravilhoso ou uma pedra
atômica, por trás de seus mitos por vezes podemos herdar os impérios mais
violentos ou mesmo aflorar um terceiro olho despido de sentido e inteligência.
Certa vez vaticinou o aventureiro Robert Charroux, que em uma sociedade futura os sentidos possivelmente se tornarão mais e
mais atrofiados e substituídos por uma organização protetora criada pelo
cérebro. Por mais aceito que o cérebro é o grande motor da existência, essa
organização protetora tornou-se
dependente de estimulantes medicinais de toda ordem. As máscaras acabaram por
atrofiar a frequência de suas ondas ocultas. Até mesmo as suas expressões mais
espantosas estavam carregadas de evidências presumíveis. A força magnética que
antes caracterizava o olhar magnificente das máscaras agora já não se propaga
mais pelo ar. Perdeu-se a eletricidade do enigma. As máscaras são hoje como
pássaros à procura do próprio voo.
02 | [Fragmento de entrevista
concedida a Márcio Simões, 2010]
MS | Tendo em mente algumas linhas de
pensamento correntes, você acredita que a literatura, numa sociedade
massificada, injusta e muito pouco ética, vem correndo o risco de se tornar,
por um lado, apenas repetição, subproduto destes fatores e mera reprodutora dos
valores ostensivos do sistema vigente? E, por outro, espécie de realismo que a torna esgoto para onde confluem a expressão
dos recalques e podridões do humano?
FM | Eu penso que há muito estamos
produzindo uma série infinita e despreocupada de relançamentos – e não me
refiro aqui a reedições e sim ao caráter reciclável da escrita. Não se trata de
literatura, mas antes de cultura de massas. Envolve as demais artes,
colocando-as todas na condição de passatempo. É muito curioso observar que
escritores sempre se sentiram uma entidade à parte, e que agora se encontrem,
como artistas que são, porque afinal o que produzimos todos – poetas, músicos,
pintores, dramaturgos – é arte, que agora se encontrem todos reunidos pelo
pior, como títeres de uma indústria cultural que subverte a lógica e todos
aceitamos tacitamente não haver distinção entre produção artística e produção
industrial, como se escrever um romance, por exemplo, fosse apenas fase de um
processo industrial. O indivíduo desaparece duplamente, como criador e como espécie
humana.
MS | Ainda é viável um sentido de
resistência e crítica no trabalho literário, uma vez que o próprio poeta está
forçosamente inserido nesta estrutura social para sua sobrevivência e atuação?
FM | Este é um dos argumentos mais
torpes a que alguém pode recorrer. Artistas sempre comeram, casaram, compraram
instrumentos de trabalho e todos sobreviveram e seguem sobrevivendo. Se uns
foram mais felizes ou desafortunados que outros, creiamos em destino ou não,
esta balança ou funil sempre fez parte da vida dos criadores. No caso dos
escritores, a história está repleta dos que trabalham em bancos, dão aulas,
receberam heranças familiares, tiveram livros adaptados para o cinema ou
simplesmente recorreram ao mais comum dos truques de sobrevivência: buscaram
uma parceria amorosa que os sustentasse. Aqueles que se renderam facilmente que
não me venham com o argumento de que a sociedade os forçou a tanto. A vida
nunca é fácil, por mais que aparente sê-lo.
MS | As ideias de rebeldia e desregramento – oriundas da
poesia – esgotaram-se ao se tornarem produtos – se pensarmos na indústria da
música e no modismo envolvendo a cultura das drogas, cada vez mais afastada de
qualquer sentido e valor, bem como na institucionalização
dessas atitudes, relacionadas a uma faixa etária – ou ainda é possível uma
rebeldia e um desregramento autênticos como meios viáveis para o poético, uma
vez que, segundo dizes vivemos numa
sociedade domesticada?
FM | É verdade, nos convertemos em um
imenso zoológico, que é o melhor exemplo de sociedade domesticada. Agora, as
ideias se esgotam e talvez este seja um de nossos dilemas, o de que queremos
aplicar ao dia de hoje ideias que foram valiosas em outra circunstância. Eu
sinceramente não gosto dessa leitura da arte como fonte de rebeldia e
desregramento da forma datada como estes conceitos são interpretados. É puro
saudosismo. Não tem cabida querer povoar o século XXI com Baudelaire, Rimbaud,
Artaud, Pasolini, Jim Morrison. Românticos, simbolistas, surrealistas, beatniks, tiveram um papel inestimável e
valem como balizas, como referenciais substanciosos da cultura. Em uma de
minhas viagens ao exterior, alguém indagou sobre Paulo Coelho. É comum esse
tipo de clichê, o sujeito vem do Brasil, terra de samba, carnaval, futebol,
Paulo Coelho e corrupção. Eu estava sem muito apetite para a polêmica neste dia
e me saí com a frase: houve uma época em
que o Paulo Coelho era o maior problema da literatura brasileira; hoje é o menor.
Depois mastiguei bem o que disse de rompante e vejo que é exatamente isto.
Sorte dele que inventamos uma tolice maior. Todo grande criador em qualquer
tempo é naturalmente rebelde e rompe com as regras que são as características
de sua época.
MS | Você escreveu que acredita que a realidade se expressa de maneira mais viva
e desimpedida quanto mais lhe permitimos multiplicar-se em infinitas e
transbordantes máscaras. Em que medida esta realidade de que você fala se
relaciona com a realidade construída e reafirmada cotidianamente pelos meios de
comunicação de massa, por exemplo?
FM | O termo está perfeito: realidade construída. É outra forma de
ficção, estou certo? O argentino Borges disse certa vez que não há melhor
exemplo de literatura fantástica do que a Bíblia. A mídia representa este papel
em nosso tempo, o de construção de uma realidade fantástica em substituição à
vida cotidiana. E o faz com tamanha propriedade justamente anulando a
diversidade. E com tremendo sarcasmo se reporta a alguns profetas da ficção
científica como palpites sem maior expressividade do ponto de vista real.
Voltamos ao tema da arte convertida em passatempo.
[…]
MS | Pensando numa distinção em voga
na historiografia literária, que propõe a separação entre uma poesia cerebral, meditada e outra de
inspiração e entusiasmo (na qual
se inseriria o surrealismo), faz sentido a separação, ou seria um mero
maniqueísmo esquemático?
FM | Uma tolice que não tem mais
tamanho. Mas que agrada aos poetas, por situá-los em uma condição superior. O
que o surrealismo propunha era livrar-se dos excessos da razão e não
estabelecer tal maniqueísmo.
FM | Eu sinceramente creio que este
papel é ainda muito pequeno nessa releitura da atuação do surrealismo em nosso
continente. Não se trata propriamente de reformulação. Como disse em seminário
na Universidade de Cincinnati (primeiro trimestre de 2010), e que consta do
livro que escrevi e que serviu de base para este evento, a ausência de um
estudioso que fosse criterioso em relação aos desdobramentos do surrealismo em
todo o continente, sem situar as perspectivas estéticas do movimento, agravou a
percepção de sua real influência em nossa cultura. O surrealismo no continente
americano deixou de ser visto como um aspecto fundamental na construção de uma
vanguarda americana, e passou a ser visto como amém ao espírito vanguardista
europeu. E agora o cuidado é também no sentido de evitar que o tema não caia na
malha enganosa da história como algo que pertence ao passado, nada mais. A
Internet é todo um capítulo à parte, estamos apenas ao princípio de uma
impressionante expansão de meios e aos poucos vamos nos livrando da pior
armadilha de qualquer inovação tecnológica aplicada à arte e à cultura, a de
confundir meio e mensagem.
03 | O artista convidado da presente edição
é Hélio
Rola (Brasil, 1936), pintor,
desenhista, escultor e gravador. Estudou na Sociedade Cearense de Artes
Plásticas em 1949. Formado em medicina em 1961, cinco anos depois finaliza
curso de pós-graduação em Bioquímica pela USP. Entre 1967 e 1970, estuda
pintura com Joseph Tobin e Agnes Hart no Art Student’s League, em Nova Iorque
(Estados Unidos), período em que aproveita para frequentar a Liga de Estudantes
de Arte da cidade e trabalhar como pesquisador no The Public Health Research
Institute. Como membro do Grupo Aranha realiza diversos painéis de pintura
mural coletiva em Fortaleza e São Paulo. Artista inventivo e destacado no panorama da Arte Postal,
que soube transpor para o ambiente digital. Entre suas mais importantes
exposições, encontram-se as retrospectivas “Cidades” (Centro Dragão do Mar de
Arte e Cultura, Fortaleza, 2005) e “Um
Atlas para Hélio Rôla” (Museu de Arte Contemporânea, Fortaleza, 2021), sob a
curadoria, respectivamente de Floriano Martins e Flávia Muluc.
Floriano Martins
∞ índice
ANDRÉS LUQUE
TERUEL | Yves Klein, monocromía y acción
https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2022/07/andres-luque-teruel-yves-klein.html
ANTONY PENROSE | Roland Penrose and the Impulse of
Provence
https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2022/07/antony-penrose-roland-penrose-and.html
ARTURO CASAS |
Improbabilidad del ensayo surrealista. Sus derivaciones discursivas en la obra
de Eugenio F. Granell
https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2022/07/arturo-casas-improbabilidad-del-ensayo.html
CARLOS M. LUIS
| André Breton y la utopía surrealista
https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2022/07/carlos-m-luis-andre-breton-y-la-utopia.html
CÉSAR BISSO | Francisco
Madariaga: Surrealista de los esteros
bárbaros
https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2022/07/cesar-bisso-francisco-madariaga.html
FLORIANO MARTINS | Jorge Camacho e a
evocação dos mundos subterrâneos
https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2022/07/floriano-martins-jorge-camacho-e.html
INMACULADA ILLANES
ORTEGA | La mujer en la narrativa de André Pieyre de Mandiargues
https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2022/07/inmaculada-illanes-ortega-la-mujer-en.html
JORGE COAGUILA | Entrevista a Blanca Varela
https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2022/07/jorge-coaguila-entrevista-blanca-varela.html
JOSÉ LEZAMA LIMA | Los viajes de Julio Cortázar
https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2022/07/jose-lezama-lima-los-viajes-de-julio.html
MARIO CÁMARA |
Sexualidad y ciudad en la poesía de Roberto Piva
https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2022/07/hablaremos-de-la-rebelion.html
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Agulha Revista de Cultura
Série SURREALISMO SURREALISTAS # 14
Número 213 | julho de 2022
Artista convidado: Hélio Rola (Brasil, 1936)
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
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