No primeiro caso temos as alucinações auditivas, que distorcem a camada mais
superficial mas também mais decisiva da linguagem verbal, o fonema. O fonema, parcela
mínima da linguagem verbal articulada, é encarado em geral como um material arbitrário,
posto ao serviço duma codificação de sentido. Como quer que seja, é possível usar
esse material de modo distinto, desvinculando-o da relação de arbitrariedade com
o real sensível, de primeiro nível, e procurando no som verbal a manifestação do
invisível ou do inefável.
Foi esse o trabalho de Mário Cesariny no livro Alguns mitos maiores alguns
mitos menores propostos à circulação pelo autor, escrito em grande parte em
1948, publicado dez anos depois, e que António Maria Lisboa teve ainda ocasião de
apreciar, a ele se referindo na conferência manifesto de 1950, Erro Próprio, editada em 1952, como sendo um jogo
de cabala fonética, destinado a progressiva assimilação do irracional, um sinónimo
daquilo que linhas acima apontámos como invisível ou inefável.
As manifestações de segundo nível, que interrompem e transformam nas formas
de representação o contínuo da realidade sensível, não se apresentam porém apenas
ao nível fonético. Há materiais de tipo visual não fonético que se mostram de grande
importância para revelar a alteridade do real. As alucinações de tipo visual, distorcendo
a percepção óptica que temos da realidade, contribuem para articular a linguagem
com uma realidade de segundo nível. A base da linguagem verbal é o fonema, mas o
seu resultado mais vulgar é a imagem. A criação de sentido que se pretende obter
com a junção dos fonemas, a reprodução do real sensível a que se aspira em qualquer
língua arbitrária, não poética, faz-se através da imagem, não do som.
Dou um exemplo. Quando digo a palavra mesa,
tenho por um lado as unidades mínimas sonoras, duas consoantes e duas vogais que
formam duas sílabas, e por outro uma imagem, uma noção unívoca e universal, que
me permite referenciar, a partir duma realidade sensível, um sentido – a mesa.
Um dos que trabalhou ou sublimou estes materiais visuais, na tentativa de com
eles obter resultados inesperados na assimilação do real de segundo nível, foi Artur
Manuel do Cruzeiro Seixas. A sua acção entre nós é paralela, no domínio puramente
visual da sua criação pictórica e objectual, daqueloutra que se encontra na poética
verbal de Mário Cesariny e de António Maria Lisboa, que tem, apesar duma unidade
de base, direcções diferentes.
Cruzeiro Seixas também escreveu poesia com palavras. Esta poesia verbal sucedeu-lhe
sobretudo depois da sua partida para África, em 1951. Por isso localizou-a e datou-a
muitas vezes de “África”. Não nos deixemos porém enganar. Essa África é muito menos
a terra física onde ele viveu do que o continente negro da sua alma, onde ele foi
buscar a realidade de segundo nível que tanto nos dá a ver no seu trabalho visual
das formas como no seu trabalho com as palavras. Por isso, como processo, a sua
acção verbal está muito mais próxima dos exercícios ópticos a que um António Maria
Lisboa se entregou do que das prestidigitações fonéticas que foram em tantos momentos
a arte maior dum Cesariny e dum Mário-Henrique Leiria.
Se o Universo é um caos organizado, uma anarquia espontânea, onde os astros
fazem a vez duma ordem desconhecida e superior, os poemas de Cruzeiro Seixas são
a escrita automática do espírito, um alfabeto psíquico capaz de registar as pequenas
e as grandes convulsões da alma, onde as imagens, sempre escaldantes, sempre borbulhantes,
tomam o lugar de mediadores entre a matéria densa do mundo e a liberdade gratuita
do espírito.
Na tapeçaria dramática de Cruzeiro Seixas uma mão nunca é uma mão, um rosto
nunca é um rosto, um cavalo nunca é um cavalo. Os poemas de Cruzeiro Seixas são
apenas imagens de outras realidades, metáforas vivas, num processo contínuo de metamorfoses,
que opera por sucessivas e imperceptíveis trasladações de sentido.
Na rotação das imagens que as palavras põem em jogo temos o carnaval intenso
da criação, a festa do mundo tal como ela pôde ser superiormente vivida em colectivo
nas culturas magnas do paleolítico, tudo antes que a história, com a folha relativa
à produção e acumulação, com a eugenia própria da proibição do incesto, que impôs
constrangimentos nas operações mentais humanas, sufocasse a vida mágica da cultura
natural.
Cruzeiro Seixas, em sentido pleno, não foi um artista nem um
poeta; foi um xamã, um mago, um vidente, um bandeirante do espírito e do seu irreal,
um corsário sempre em viagem para o além. O seu trabalho exerceu-se mais na transformação
interior e quotidiana que na mercantilização galopante e massiva dos artefactos
que a sua imaginação deu ao mundo. Não foi um artista nem do desenho nem da palavra,
mas um condutor de imagens psíquicas. Não expôs talento; antes deu a ver a alma,
naquilo que esta tem de supra-natural e de genial.
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SÉRIE PARTITURA DO MARAVILHOSO
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Agulha Revista de Cultura
UMA AGULHA NA MESA O MUNDO NO PRATO
Número 180 | setembro de 2021
Artista convidada: Virginia Tentindo (Argentina, 1931)
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