quarta-feira, 8 de setembro de 2021

ANTÓNIO CÂNDIDO FRANCO | Obra poética de Artur Cruzeiro Seixas

 


Os materiais de segundo nível, que permitem a metamorfose do real sensível, e a percepção desse outro real a que o surrealismo chamou supra-real, são de dupla natureza, ou sonora ou visual, quer dizer, tanto se manifestam por meio da audição como por meio da visão.

No primeiro caso temos as alucinações auditivas, que distorcem a camada mais superficial mas também mais decisiva da linguagem verbal, o fonema. O fonema, parcela mínima da linguagem verbal articulada, é encarado em geral como um material arbitrário, posto ao serviço duma codificação de sentido. Como quer que seja, é possível usar esse material de modo distinto, desvinculando-o da relação de arbitrariedade com o real sensível, de primeiro nível, e procurando no som verbal a manifestação do invisível ou do inefável.

Foi esse o trabalho de Mário Cesariny no livro Alguns mitos maiores alguns mitos menores propostos à circulação pelo autor, escrito em grande parte em 1948, publicado dez anos depois, e que António Maria Lisboa teve ainda ocasião de apreciar, a ele se referindo na conferência manifesto de 1950, Erro Próprio, editada em 1952, como sendo um jogo de cabala fonética, destinado a progressiva assimilação do irracional, um sinónimo daquilo que linhas acima apontámos como invisível ou inefável.


O poeta, desarticulando as palavras, ou sequências delas, através dum jogo fonético que assenta nas similitudes dos fonemas, criou uma linguagem própria, feita de neologismos, que se pode tomar por um idiolecto de segundo nível, adequado a comunicar com a supra-realidade que o surrealismo procura e que se identifica com o irracional.

As manifestações de segundo nível, que interrompem e transformam nas formas de representação o contínuo da realidade sensível, não se apresentam porém apenas ao nível fonético. Há materiais de tipo visual não fonético que se mostram de grande importância para revelar a alteridade do real. As alucinações de tipo visual, distorcendo a percepção óptica que temos da realidade, contribuem para articular a linguagem com uma realidade de segundo nível. A base da linguagem verbal é o fonema, mas o seu resultado mais vulgar é a imagem. A criação de sentido que se pretende obter com a junção dos fonemas, a reprodução do real sensível a que se aspira em qualquer língua arbitrária, não poética, faz-se através da imagem, não do som.

Dou um exemplo. Quando digo a palavra mesa, tenho por um lado as unidades mínimas sonoras, duas consoantes e duas vogais que formam duas sílabas, e por outro uma imagem, uma noção unívoca e universal, que me permite referenciar, a partir duma realidade sensível, um sentido – a mesa.

Um dos que trabalhou ou sublimou estes materiais visuais, na tentativa de com eles obter resultados inesperados na assimilação do real de segundo nível, foi Artur Manuel do Cruzeiro Seixas. A sua acção entre nós é paralela, no domínio puramente visual da sua criação pictórica e objectual, daqueloutra que se encontra na poética verbal de Mário Cesariny e de António Maria Lisboa, que tem, apesar duma unidade de base, direcções diferentes.

Cruzeiro Seixas também escreveu poesia com palavras. Esta poesia verbal sucedeu-lhe sobretudo depois da sua partida para África, em 1951. Por isso localizou-a e datou-a muitas vezes de “África”. Não nos deixemos porém enganar. Essa África é muito menos a terra física onde ele viveu do que o continente negro da sua alma, onde ele foi buscar a realidade de segundo nível que tanto nos dá a ver no seu trabalho visual das formas como no seu trabalho com as palavras. Por isso, como processo, a sua acção verbal está muito mais próxima dos exercícios ópticos a que um António Maria Lisboa se entregou do que das prestidigitações fonéticas que foram em tantos momentos a arte maior dum Cesariny e dum Mário-Henrique Leiria.


Artur Manuel do Cruzeiro Seixas é um alquimista das formas, um poeta das imagens, um arquitecto do espírito. Os seus poemas, de resto como as imagens dos seus desenhos, que melhor se designam por sismografias da psique, caligrafias psíquicas ou registos pulsionais, são a linguagem da alma humana.

Se o Universo é um caos organizado, uma anarquia espontânea, onde os astros fazem a vez duma ordem desconhecida e superior, os poemas de Cruzeiro Seixas são a escrita automática do espírito, um alfabeto psíquico capaz de registar as pequenas e as grandes convulsões da alma, onde as imagens, sempre escaldantes, sempre borbulhantes, tomam o lugar de mediadores entre a matéria densa do mundo e a liberdade gratuita do espírito.

Na tapeçaria dramática de Cruzeiro Seixas uma mão nunca é uma mão, um rosto nunca é um rosto, um cavalo nunca é um cavalo. Os poemas de Cruzeiro Seixas são apenas imagens de outras realidades, metáforas vivas, num processo contínuo de metamorfoses, que opera por sucessivas e imperceptíveis trasladações de sentido.

Na rotação das imagens que as palavras põem em jogo temos o carnaval intenso da criação, a festa do mundo tal como ela pôde ser superiormente vivida em colectivo nas culturas magnas do paleolítico, tudo antes que a história, com a folha relativa à produção e acumulação, com a eugenia própria da proibição do incesto, que impôs constrangimentos nas operações mentais humanas, sufocasse a vida mágica da cultura natural.


Convenço-me que o homem arcaico, o homem ante-histórico, o homem natural, o homem criança, o homem mulher, via o mundo – animais, plantas, pedras, rios, astros – desenrolar-se diante dos seus olhos como nós vemos a metamorfose das imagens num poema de Cruzeiro Seixas. Daí a ideia de tapeçaria dramática, de montagem psíquica, mas também de percepção em estado puro.

Cruzeiro Seixas, em sentido pleno, não foi um artista nem um poeta; foi um xamã, um mago, um vidente, um bandeirante do espírito e do seu irreal, um corsário sempre em viagem para o além. O seu trabalho exerceu-se mais na transformação interior e quotidiana que na mercantilização galopante e massiva dos artefactos que a sua imaginação deu ao mundo. Não foi um artista nem do desenho nem da palavra, mas um condutor de imagens psíquicas. Não expôs talento; antes deu a ver a alma, naquilo que esta tem de supra-natural e de genial.

 


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Número 180 | setembro de 2021

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