∞ editorial | A eletrificação explosiva do desterro
01 | As folhas dobradas ao acaso e espalhadas
pela terra reluzem em um esforço de dissociação. Como luzes esvoaçantes em seu desejo
de digressões acumuladas. A paisagem é uma mina incandescente de estados de ânimo.
Por vezes os olhos são como manchas que se confundem com pequenos pontos que parecem
o início de uma rede de antigos elementos detonantes. A memória em sua trajetória
onírica reformulando os códigos de entrada e saída em um mundo atormentando pelas
represálias da ausência total de escândalo. O que pode ser perdurável em uma dessas
estações agônicas? Aqui vive a senhora posteridade
– ainda é possível ler na placa corroída pelo tempo. Mas certamente ela sobreviveu
a inúmeros deslocamentos. Como o desejo de morar na colina não torna melhor o tolo
que vaga pela estrada escura. As melhores fatias da existência será sempre um pranto
dos desterrados, as vozes de sua dilacerante consciência. Um surrealismo plantado
em qualquer solo só dará conta de seu destino incerto se questionar cada fascínio
seu pela transcendência e a metamorfose. A coragem que demanda esse questionamento
é como uma chave fragmentada cujas partes estão ocultas por todo o mundo.
02 | [texto
recuperado de 2002] Em uma série de reflexões sobre o Surrealismo,
recordou Georges Sebbag (La Red de las letras
# 7, Antioquia, setembro de 2000) que “os surrealistas desmontaram o mito segundo
o qual a revolução social seria um prelúdio a toda transformação individual”, ao
que se poderia acrescentar uma declaração de Octavio Paz: “a atividade surrealista
foi coletiva e individual” (Plural # 35,
México, 1974). E cabe ainda recorrer ao mesmo Sebbag, ao sublinhar que “os grupos
surrealistas fora da França enfrentam uma dificuldade suplementar: de um lado, abraçam
a causa de um movimento que os preexiste, de outro não estão dispostos a sacrificar
sua personalidade”.
Os aspectos aqui mencionados
são indispensáveis à discussão em torno de uma dupla contradição: a negação de atividade
surrealista onde não se registrou a formação grupal e a ideia de um surrealismo
tardio. A essas duas condicionantes de uma falsa interpretação da ação do Surrealismo
viria se juntar uma outra, que tanto podemos identificar pelo conceito empregado
por Stefan Baciu, de “parasurrealista”, ou recorrer à expressão de Paz: “tangencialmente
surrealista”. São três fatores comumente empregados para desorientar um mínimo entendimento
que se possa ter da existência do Surrealismo fora da circunstância parisiense originária,
do eixo central das vanguardas, e consequentemente de sua própria condição de recusa
a ser uma escola. Baciu considera como para-surrealistas aqueles poetas que “sem
ser explicitamente surrealistas, coincidem ou coincidiram – às vezes – com o movimento
ou com sua expressão poética” (Antología de la poesía surrealista latinoamericana,
2ª ed., Valparaíso, 1981). É a mesma ideia de Paz no tocante a uma condição tangencial.
Uma recente exposição ocorrida
no Centro Cultural Banco do Brasil (Rio de Janeiro, 2001), dedicada ao Surrealismo
e inclusive destacando-lhe a presença em continente americano, situa o ano de 1947,
tomando por base a Exposition Internationale du Surréalisme, como data-limite do
percurso do evento. Segundo esclarece uma das curadoras da mostra, Denise Mattar,
“esta exposição é considerada um marco da volta da atividade surrealista a Paris
e a conclusão de um período de descobertas” (texto de catálogo da mostra). Retorna-se
assim, por mais que discretamente, à ideia de um surrealismo histórico, leitura
que já provocara suficientes dissensões mesmo entre parisienses.
Refiro-me ao marco definido
pela mostra brasileira pelo que ele nos permite avaliar o que anuncia os parágrafos
anteriores. Mesmo considerando aportes importantes ocorridos na América Latina dentro
dos limites cronológicos aludidos, sabe-se que nos anos 1950/60 houve uma presença
muito mais intensa do Surrealismo entre nós, sobretudo no plano individual. No Chile,
por exemplo, podemos evocar a presença de Ludwig Zeller, cuja ação individual –
jamais esteve ligado ao que se poderia entender como uma formação grupal surrealista
– é das mais essenciais não somente em termos de difusão e produção de obras ligadas
ao Surrealismo, como – e sobretudo – pelo próprio aporte a essa combinatória de
poesia e arte, moral individual e ação coletiva etc., aspectos que definem de maneira
consabida o Surrealismo.
Aos olhos de Octavio Paz,
acaso Zeller seria considerado “tangencialmente surrealista”? Stefan Baciu o situa
textualmente como um “parasurrealista”, ao lado de nomes como o venezuelano Juan
Sánchez Peláez, o colombiano Jorge Gaitán Durán e o argentino Roberto Juarroz, dentre
outros. Baciu residiu no Brasil nos anos 1950/60, quando então escrevia para publicações
em São Paulo e Rio de Janeiro, como Diário
Carioca, Correio da Manhã, Diário de Notícias, Letras & Artes e Cadernos
de Cultura, sendo autor de uma antologia do Surrealismo na América Latina publicada
originalmente no México em 1974, mas o influxo entre nossos scholars da literatura seguramente alcançou
maior reforço com a defesa que fez de seu pioneirismo Octavio Paz em resenha publicada
no mesmo ano. Curiosamente jamais foi observada por crítico algum a ausência de
Sérgio Lima dessa antologia, que havia fundado grupo no Brasil, nos anos 1960, e
inclusive organizado uma exposição internacional do Surrealismo em São Paulo, com
presença de franceses e sul-americanos.
No artigo do poeta mexicano
há uma passagem sobre o fotógrafo Manuel Alvarez Bravo, em que lemos: “Suas fotografias,
sem detrimento de seu preciso realismo, são verdadeiras imagens no sentido realista
da palavra imagem: subversão e transfiguração da realidade”. Alvarez Bravo, considerado
por Paz, como um “surrealista tangencial” encontra-se na mostra do CCBB e é nome
hoje claramente aceito como… surrealista. A própria Denise Mattar refere-se a uma
leitura de Breton cuja atenção, segundo ela, “recairá apenas sobre as obras de Manuel
Alvarez Bravo e Frida Kahlo, que sempre recusarão o rótulo de surrealista”. Um dos
poetas mais reconhecidamente ligados ao Surrealismo é o argentino Francisco Madariaga,
morto recentemente. No entanto, na primeira edição da antologia de Baciu não está
presente, tendo sido incluído na edição posterior à crítica de Paz, edição que traz
collages de Ludwig Zeller.
Até aqui, o que poderíamos
chamar apenas de descompasso. Ao compararmos versões de não tão inúmeros estudiosos
do Surrealismo nos deparamos com um mesmo senso de desigualdades conceituais. Discute-se
sempre a preponderância do aspecto moral sobre o estético. Contudo, em momento algum
Salvador Dalí e Louis Aragon passam a ser nomes compreendidos como extra-surrealismo.
O mesmo se pode dizer de Paul Éluard e Braulio Arenas e… francamente, uma grande
lista de artistas e poetas que poderiam estar ligados ao que Octavio Paz chama de
“afinidades momentâneas com a linguagem, as ideias e ainda os tiques da poesia surrealista”.
Quem seria verdadeiramente surrealista? E penso aqui no próprio poeta mexicano,
que foi igualmente um “surrealista tangencial”.
Parece que a confusão assume
uma conotação intencional. Indaguemos, por exemplo, sobre a razão da antologia de
Baciu se chamar Antología de la poesía surrealista latinoamericana, e não
haver ali um único brasileiro. Já mencionei em parágrafo anterior o exemplo de Sérgio
Lima, mas claro está que se poderia pensar em outros nomes. Diz Paz que “com base
na confusão reinante, publicaram-se muitas teses doutorais, livrórios e livrecos
sobre o surrealismo espanhol e hispano-americano”, concluindo que “esta atividade
se converteu em um ramo menor dessa indústria que chamamos crítica universitária”,
ou seja, “uma maneira de ganhar bolsas, viagens e cátedras”. Também entre nós, brasileiros,
se deu o mesmo. Cotejar teses a respeito é a melhor maneira de comprová-lo.
Com a publicação deste livro
me vem uma preocupação, a de que a leitura crítica remeta uma vez mais a um tardo-surrealismo
já apontado por Wilson Martins e José Paulo Paes quando publiquei meu livro de entrevistas
a poetas latino-americanos (Escritura conquistada, 1998). O livro – que incluía
entrevistas com poetas tão distintos entre si quanto Enrique Gómez-Correa, Leónidas
Lamborghini, Alfredo Silva Estrada, Ivan Junqueira, Gerardo Deniz, Sérgio Lima e
José Kozer – não se definia por nenhuma corrente específica, mas antes discutia,
com poetas de várias tendências, algumas perspectivas estéticas do século XX nas
letras latino-americanas. No entanto, acabou por acentuar uma rejeição clássica
a tudo o que fere preceitos em nossa cultura.
Algo marcante na trajetória
político-cultural brasileira é a capacidade de se criar discursos paralelos que
não se comunicam entre si. É bem possível que o problema esteja na raiz, segundo
observação de Gilberto Mendonça Teles e Klaus Müller-Bergh (Vanguardia latinoamericana,
Madrid, 1995), quando tratam das “marcas profundas do colonialismo” em nossa cultura
e recordam: “Se a Espanha, já no século XVI, fundou universidades em alguns países
(México e Peru), Portugal eliminou do Brasil qualquer pretensão de transformação
cultural, com leis que proibiram fábricas, imprensa e estudos universitários, o
mesmo acontecendo com a França em relação a Guadalupe, Martinica e Guiana Francesa”.
Comecemos anotando algumas
passagens deste mesmo livro, onde os autores observam que em alguns países latino-americanos
a ideia de nacionalidade possuía um caráter “mais universalista”, ao contrário de
“um nacionalismo estreito e ufanista”, como o que se verificava no Brasil. Essa
vontade de “participar da cultura Ocidental”, além do próprio anseio de uma afirmação
individual, decerto ambientou a eclosão de um sem-número de ismos entre nós, embora muitos deles pudessem
ser seguramente inseridos no âmbito de um Futurismo ou de um Surrealismo. Como não
há um estudo comparativo em torno dessas manifestações todas, ficamos sem saber
quais relações possíveis existam entre si. E talvez haja mesmo um interesse nisto,
pois assim se dilui a ideia de um influxo mais determinante em nossa cultura.
No caso específico do Surrealismo,
vale lembrar que Mendonça Teles e Müller-Bergh consideram sua presença em manifestos
surgidos em Cuba, República Dominicana, Venezuela e Porto Rico, por exemplo, embora
não tenha havido uma defesa explícita, nominalmente referida. Dizem estes autores
que “em 1939, o grupo da Espuela de Plata,
liderado por Lezama Lima, já expõe ideias surrealistas”, o que contrasta com uma
recusa terminante de Octavio Paz em ver em Lezama Lima algum traço mínimo que seja
de surrealismo. Por outro lado, os dois autores, quando tratam do Chile, observam
que “a partir de 1927 a vanguarda chilena se repete, sem muita originalidade, notando-se
mesmo a luta interna de grupos”, sugerindo aí a inclusão do grupo Mandrágora, surgido
em 1938, em que mencionam um “intuito surrealizante” que nos leva de volta ao âmbito
do tangencial.
Na verdade, o grupo Mandrágora
era explicitamente surrealista e o próprio Octavio Paz considera que “a postura
dos surrealistas chilenos foi exemplar”, pois “não somente tiveram que enfrentar
os grupos conservadores e as milícias negras da Igreja Católica, mas também os stalinistas
e Neruda”. Em meu Escrituras surrealistas (Fund. Memorial da América Latina,
São Paulo, 1998) anotei que “Mandrágora é por muitos considerado o mais coerente,
relevante e explosivo grupo surrealista em todo o mundo”, passagem que reproduzo
aqui literalmente pelo fato dessas minhas palavras terem sido repetidas por Denise
Mattar no ensaio “O surrealismo e o Novo Mundo” (catálogo exposição CCBB, 2001)
sem a devida referência de autoria.
A propósito, uma semana antes
da abertura desta mostra, a UNESP (Universidade do Estado de São Paulo) promovia
em Araraquara (SP) um encontro de escritores e críticos ligados ao Surrealismo,
incluindo participações mexicanas e estadunidenses. Neste caso, o curioso é que
alguns convidados coincidiam, o que pode gerar uma indigesta leitura de caráter
excludente, sobretudo quando o catálogo da exposição CCBB deixa de mencionar uma
bibliografia a respeito do assunto. É o caso, por exemplo, de Robert Ponge, que
esteve presente nos dois momentos, mas na conferência publicada no catálogo, que
tem por título “Sobre a chegada e a expansão do surrealismo na América Latina”,
evita as fontes brasileiras que antecedem seu estudo, o que não deixa de lhe dar
certa conotação de originalidade.
Ponge, no entanto, acerta
ao sugerir certas relações a serem consideradas no tocante a uma discussão mais
ampla do influxo do Surrealismo na cultura americana como um todo, e refere-se ao
estadunidense Jackson Pollock e aos vínculos entre o argentino Julio Llinás e o
movimento Phases. Também se poderia pensar no brasileiro Antonio Bandeira, o que
abriria um largo espaço para discussão em torno de um outro ismo, o abstracionismo, gerador de uma polêmica
igualmente considerável, que inclui os mesmos componentes individuais e nacionalistas.
Ponge também menciona uma perspectiva surrealista em Xavier Villaurrutia, contrastando
com a recusa radical de Paz a ver nas letras mexicanas qualquer sinal do que considera
“uma atitude vital, total – ética e estética –, que se expressou na ação e na participação”.
É quando menos ingênuo – quando não de todo constitutivo de má fé – desconsiderar
relações entre artistas como Antonio Bandeira, Frida Kahlo, Malcolm de Chazal, Maurice
Blanchard, dentre outros, e o Surrealismo, simplesmente por não terem sido militantes
diretos.
Anterior a Robert Ponge,
no Brasil havia se pronunciado sobre o Surrealismo na América Latina Jorge Schwartz
(Vanguardas latino-americanas, São Paulo, 1995), e ali se consubstancia o
estratégico interesse de Paz, quando afirma Schwartz que “foram as artes visuais,
e não a literatura, as mais beneficiadas pelo influxo do surrealismo no México”,
e que “a poesia surrealista propriamente dita somente surge com Octavio Paz na década
de 50”. Estabelece-se aí uma confusão, tanto pela recusa posterior de Paz ao Surrealismo,
quanto pela leitura da coleção da revista Contemporáneos
(1929-1931), dirigida por um importante grupo de intelectuais de uma geração anterior
à de Paz, de cujo ideário o Surrealismo fazia parte, claro que nas mesmas condições
já aqui arroladas por Mendonça Teles e Müller-Bergh em relação a outros países.
Em outra passagem de seu
livro, Schwartz sentencia que “o surrealismo argentino não teve continuidade como
movimento, mas posteriormente arraigou-se, enquanto estilo poético, em autores da
importância de Aldo Pellegrini, Olga Orozco e Enrique Molina, e, por fim, na geração
posterior a Girondo e contemporânea ao surrealismo de Octavio Paz”. Além da confusão
cronológica estabelecida – Girondo nasceu em 1891, Pellegrini em 1903, Molina em
1910 e Orozco em 1920, sendo Paz de 1914 –, o interessante é essa definição de um
“surrealismo de Octavio Paz”. E anoto ainda duas outras pérolas de Schwartz: “assim
como no resto da América Latina, o surrealismo chileno aparece de maneira tardia”,
e “César Moro foi o único poeta verdadeira e assumidamente surrealista do continente”.
Retornamos assim ao começo
de nossa busca de um entendimento, quase sempre confundida por uma desarticulação
programática. Há uma propensão de cunho provinciano a multiplicar pólos isolados,
desconexos entre si. O provincianismo hoje não é mais um aturdimento cultural, mas
antes uma administração de recursos. Há uma posologia controlada da miséria humana.
Michel Serres (Le contrat naturel, Paris, 1990) considera uma cumplicidade
existente entre cientistas, administradores e jornalistas como ponto decisivo desse
desmoronamento da humanidade, chamando a atenção para o ambiente em que lucubram
seus achados, completamente isolados da realidade cotidiana. O abismo entre vida
e cátedra esclarece umas tantas divergências. No entanto, Serres não considerou
uma cumplicidade determinante desse processo, a própria classe artística.
Em entrevista que lhe fiz,
Stefan Baciu estabeleceu uma equívoca distinção entre grupo e movimento: “Na Espanha
não existiu um movimento surrealista; existiu um grupo surrealista em Tenerife…”,
ao mesmo tempo em que confundiu simpatia com visão crítica: ao contestar Augusto
de Campos, quando este acusava o influxo do Surrealismo na América Hispânica de
haver conduzido a “uma insuportável retórica metaforizante”, recorreu a “uma nova
maneira de escrever” por ele chamada de “surrealizante”, mas recusou-se a aceitar
um livro como Residencia en la tierra, de Pablo Neruda, como exemplo dessa
equívoca perspectiva estética (Diário do Nordeste,
Fortaleza, 31/01/88). Observe-se ainda que Baciu chegou a situar José Juan Tablada
como precursor do Surrealismo no México, e nisto o próprio Paz dele discordou, ainda
que cautelosamente (“O caso de Tablada é, talvez, duvidoso: pertence à história
da vanguarda, mas à do surrealismo? A mesma dúvida sinto frente a Girondo: típico
poeta de vanguarda, sua obra não é uma profecia, nem uma preparação do surrealismo.”).
Sem me estender muito no
assunto, cabe uma digressão ilustrativa em torno de Girondo. No estudo que lhe dedica
Enrique Molina, e que serviria de prólogo para a edição das Obras Completas
(Losada, Buenos Aires, 1968), este poeta chega a mencionar a proximidade com Rimbaud
no sentido oracular da linguagem, recorrendo à “exaltação encantatória dos poderes
verbais”. Girondo esteve ligado a Pellegrini e Molina, de maneira que talvez caiba
aproximá-lo do Surrealismo. Curioso é que a edição brasileira de En la masmédula
(Iluminuras, São Paulo, 1995) não mencione no estudo introdutório, assinado pelo
também tradutor, Régis Bonvicino, qualquer referência ao estudo de Molina ou a aproximações
possíveis entre Girondo e Surrealismo. Trata-se, evidentemente, de uma articulação
inconsequente de delimitações estratégicas, o que fere por completo uma leitura
mais aberta que se precisa fazer da história, até mesmo e sobretudo para se afirmar
alguma posição de relevante consistência.
A revista Cult # 50 (setembro
de 2001) publicou um valioso dossiê sobre o Surrealismo, com textos assinados por
Simone Rossinneti Rufinoni, Eliane Robert Moraes, Claudio Willer e Contador Borges.
No Brasil, este seria um terceiro momento, em um mesmo ano, de reflexão propiciada
a respeito do assunto. Contudo, as bibliografias apresentadas contrastam entre si,
o que nos ajuda a identificar um deslize algo ingênuo, de estabelecimento de surrealismos
particulares. Repete-se o recorte já apontado por Serres – cientistas, administradores
e jornalistas –, a contribuir para uma leitura distorcida da realidade. No caso
brasileiro, é lícito mencionar o que escreveu Willer em ensaio para esta edição
da Cult: “Hoje, deve-se deslocar o foco da militância por vezes episódica para uma
configuração de obras pautadas pela riqueza imagética e pelo exercício de liberdade
de imaginação, cuja recepção é prejudicada pelo filtro de uma espécie de cartesianismo
poético brasileiro”.
03 | O Surrealismo encontra no Chile um de seus vasos internacionais mais pulsantes e renovadores, de que são exemplos desde a vitalidade esplêndida de Rosamel del Valle (1901-1965), passando pelo grande marco em torno do grupo Mandrágora, em especial com a grandeza estética e o caráter de Enrique Gómez-Correa (1915-1995), as atividades concentradas ao redor do imenso articulador que foi Ludwig Zeller (1927-2019), a formação do grupo Derrame, até a destacada presença de Enrique de Santiago (1961) – nosso artista convidado. Poeta, artista plástico, ensaísta e agitador cultural. Autor de livros como Frágiles tránsitos bajo las espirales (2012), Elegía a las magas (2014) e Bitácora de un viaje ontológico (2018). Neste último, em seu prólogo o poeta aclara: Minha ação poética está baseada no Uno, no indivisível, de modo que as palavras adquirem uma multiformidade, que as torna mais profundas, mais côncavas e mais convexas, pois assim as vejo, e assim devem ser expostas. Estas não apenas estão compostas de linhas ou formas, mas há também nelas algo invisível que lhes é, ao mesmo tempo, próprio e não, e em tais versos há uma superposição desses elementos que realizam a tarefa simbólica de dilucidar suas proporções fenomenológicas. Deixo assim que ela se expresse por si mesma, que dialogue a partir de sua própria hermenêutica, com sua própria paráfrase ontológica e com a mudez estrondosa que a rodeia, em uma e mil alegorias ou nenhuma – quando o alegórico não está contido no qualificável e reconhecível – onde tudo é tão real precisamente por não sê-lo. Igual reflexão se aplica também à sua pintura, colagem e desenho. Enrique de Santiago vem cuidando da memória do Surrealismo em seu país, graças à publicação de livros e curadoria de exposições, mas, sobretudo, na preparação, ainda em curso, de uma História do Surrealismo no Chile. www.flickr.com/photos/enriquedesantiago/.
Floriano
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Série SURREALISMO SURREALISTAS # 10
Número 209 | maio de 2022
Artista convidado: Enrique de Santiago (Chile, 1961)
Traduções: Agathi Dimitrouka, Allan Vidigal, Wolfgang Pannek
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