∞ editorial | a grande chama das maravilhas
01
| Para criar o tempo se interroga se há uma explicação possível para o
imprevisível. Cada um de nós guarda em seu íntimo a expressão de um mundo
surpreendente. O início das horas mais elevadas, a repartição de todas as
questões até então irreconciliáveis, uma idade impossível para cada coisa sobre
a terra. Quando criamos nossos sentimentos rebentam suas demandas. Somos a
projeção do que a vida inteira trouxemos para junto de nós, para esse confim de
maravilhas que ainda não aprendemos de todo o poder de sua mecânica terrestre.
Ilustramos as quimeras com a nossa voz, celebramos as ilusões com nossos
esgares, realizamos a fotossíntese de toda a floresta humana. Para criar o
tempo escuta as confissões dos labirintos. Cada portal se abre para realçar o
abismo a partir do qual vamos compondo nossos deslocamentos, nossa travessia
pelas estações de fulgores primordiais. Sejamos associados ao Surrealismo ou
não. O vento nos ouve e nos trata como suas criaturas prediletas. A natureza
ainda nos ama. A surpresa deverá ser nosso guia até que aprendamos a cuidar de
uma revolução saborosa, que perenize nosso amor ao outro e nos faça repousar em
meio às diferenças. Não somos os escolhidos. Somos apenas os vivos. Para criar
o tempo precisa de nós.
02
| [fragmento de uma entrevista concedida a Alfonso Peña, em 2009]
AP | Floriano, eu me lembro das
primeiras edições (em meados dos anos 1980) que você mandou de Fortaleza para
os diversos países de língua espanhola. O tabloide com o nome Resto do Mundo chamou a atenção. Foi uma
publicação que deu vigor à criação poética e gráfica. Já naquela época se via
seu interesse e o colóquio mantido
com a corrente do Surrealismo Latino-Americano. Será muito esclarecedor se você
falar sobre este tema.
FM | Não apenas o Surrealismo. No
início dos 1980, começo a descobrir a América Hispânica, um mundo inteiramente
novo para mim. Fico verdadeiramente fascinado com intensidade, nuances,
linguagem, atuações, são lições que vou tomando em cada novo contato. Já então
eu colaborava com a imprensa em alguns lugares do Brasil e em Portugal, com
traduções, artigos e entrevistas referentes à poesia hispano-americana. O
jornal Resto do mundo surge da
necessidade de fundar um espaço especificamente dedicado à difusão de
literaturas desconhecidas no Brasil. O dilema foi o mesmo de sempre, pelo qual
já passamos todos nós, editores em qualquer lugar do mundo. Não havia suporte
financeiro para dar continuidade à aventura editorial. Meus primeiros contatos
com o surrealismo na América Latina coincidem com este período. Claro que antes
conhecia as residências nerudianas,
porém falo aqui de uma outra dimensão do surrealismo, mais profunda (do ponto
de vista da linguagem e também do caráter da escrita e de seu autor) e que
possui um tom distinto ao surrealismo europeu. Na época eu me correspondia com
estudiosos como os espanhóis Jorge Rodríguez Padrón e Ángel Pariente, e também
com o romeno Stefan Baciu. Foram anos de uma correspondência muito intensa,
sobretudo com Rodríguez Padrón. Registrei tudo isto na forma de entrevistas, e
recordo que tu mesmo trataste de publicar uma parte desse diálogo com Rodríguez
Padrón (posteriormente a série toda foi incluída em uma edição da revista Cuadernos del Ateneo, em Tenerife). Por
outro lado, quanto mais eu aprendia com os dois espanhóis, mais me pareciam
absurdas as ponderações do romeno. Onde Baciu via surrealismo eu só conseguia
ver modernismo, cubismo e outros sinais oriundos de uma mescla de períodos. De
tal maneira que aquela antologia do surrealismo que ele publicou foi desde o
primeiro momento motivo de desafio para mim, o desafio da correção, o volume me
incomodava de tal forma que me impus a tarefa de corrigi-lo.
AP | A investigação abriu portas
inesperadas para você. Você entrou em contato e participação imediata com
muitos criadores do continente. Tenho a impressão de que quando você dá a
conhecer O começo da Busca, já estava
“iluminando o caminho”. Pouco tempo depois apareceria o impressionante volume Um Novo Continente, Antologia do Surrealismo
em Nossa América (Ediciones Andrómeda, 2004), com uma extraordinária
coleção de retratos dos poetas participantes feitos pelo artista Fabio Herrera.
Quando entro nas páginas do livro, sinto uma vertigem ao encontrar poetas de linhagens muito diferentes: César
Moro, Aimé Césaire, Olga Orozco, Roberto Piva, Eunice Odio, Claudio Willer,
Emilio Adolfo Westphalen, só para citar alguns. Vamos falar em termos da ideia
original; o que desencadeou nos últimos anos?
FM | São as nuances a que me referia
anteriormente. Acrescentemos nomes como os de Enrique Gómez-Correa, Francisco
Madariaga, Enrique Molina – estes três, por exemplo, ao lado de César Moro e
Aimé Cesaire, são para mim o quinteto fundamental do surrealismo na América
Latina, onde localizamos os registros mais renovadores do surrealismo. São
eles, em essência, o que se poderia chamar de fundadores do surrealismo em
nosso continente. Toda aquela carta de princípios dada pelo surrealismo é
ambientada entre nós, estabelecendo uma boda perfeita entre o plano intelectual
e orgânico, as afinidades com o surrealismo europeu e sua correspondência com
os planos cósmicos e existenciais do continente americano. A fundação, por
assim dizer, de um novo continente. É interessante observar que todo este
assunto era absolutamente sigiloso no Brasil nos anos 1980 e também na década
seguinte. Meu encontro com Sérgio Lima propiciou algumas realizações (mostras
coletivas, folhetos, um ciclo de palestras), porém era preciso avançar em
relação ao tema, sem guiar-se pelo excesso de ortodoxia e ao mesmo tempo
tratando de tocá-lo com mais ousadia em termos de projetos editoriais. Houve
então um reencontro, com Claudio Willer, que logo em seguida convidei para
coeditar comigo a Agulha Revista de
Cultura, criada ao final de 1999. Com Willer foi possível avançar nos dois
planos essenciais: abolir toda e qualquer perspectiva de ortodoxia e criar
condições de ampliação de difusão e discussão do tema. Em outra época seriam
impensáveis aspectos como eu haver sido convidado pela Academia Brasileira de
Letras para dar uma conferência sobre surrealismo no Brasil e a Editora
Perspectiva dedicar um extenso volume (1.000 páginas) ao surrealismo,
convidando a mim e ao Willer, dentre outros, para compor o grupo de ensaístas
que conformam tal edição. Também fora do Brasil foi possível avançar, dando
legitimidade ao tema, tratando do mesmo sem as corriqueiras miopias acadêmicas
e sem os desvarios das tradicionais viúvas de Breton. A antologia que editaste
em Andrómeda foi bastante ampliada, mantendo título e projeto original, para um
volume de quase 700 páginas que no ano passado publicou a Monte Ávila Editores,
na Venezuela. Pude ali avançar (não diria ainda que a tenha concluído) na
pesquisa, abrangendo a totalidade de países em nosso continente, na extensão
dos quatro idiomas aqui falados (espanhol, francês, inglês e português), onde é
possível localizar a presença do surrealismo.
FM | Esta lacuna permanece, ou seja,
há estudos dedicados ao surrealismo em Portugal ou na Espanha, em separado, a
maior parte deles mantendo certa conotação historicista, de fixar o surrealismo
em um dado momento da história, privando-o de atualidade. Comecei a preparar
uma antologia do surrealismo na Península Ibérica, porém fui forçado a interromper
este projeto para atender ao convite da Secretaria da Cultura do Ceará para
tratar da curadoria de uma Bienal Internacional do Livro. Agora em 2009 retomo
o projeto. E inclusive retomo correspondência com um espanhol aqui já
mencionado, Ángel Pariente, autor de uma antologia do surrealismo em língua
espanhola. Eu creio que é importante compreender essas relações entre uma
América Ibérica e a Península-matriz, até para que se complete a ruptura
necessária. No Brasil, por exemplo, refere-se como absurdo (uma observação, por
sinal, bem recente) nosso desconhecimento do que se passa na América Hispânica.
O certo é falar em desinformação e má compreensão, havendo mesmo manipulação da
informação em muitos casos. Esta é também nossa relação com Portugal. Nos últimos cinco anos dezenas de autores
portugueses vêm sendo publicadas no Brasil por iniciativa e correspondente
apoio financeiro do governo português. Fosse uma iniciativa de política
exterior da Suécia e aqui estaríamos com valiosa bibliografia sueca. Compreendes
o espírito? Carecemos, no Brasil, de consistência histórica. O pior é que
ouvimos esta frase diariamente e a ninguém importa tomar a iniciativa de
corrigir o tema. Trata-se, portanto, de um dilema percebido e não corrigido por
interesse, ou seja, o pleno estabelecimento de uma hipocrisia. Porém me indagas
também sobre um “surrealismo hispano-americano”, e confesso não sentir atrativo
algum por este tipo de gentílico
aplicado à criação artística. As distinções que topicamente tenho mencionado,
quando me referi a um quinteto a ser destacado, reporta-se ao surrealismo na
América Latina, o que inclui também os países que falam o português e o
francês. Na América Hispânica, como em qualquer outra parte onde influiu o
surrealismo, identificamos, em grau menor ou maior, aqueles poetas e artistas
que rigorosamente seguiram a cartilha dos manifestos parisienses e das
turbulentas orientações do grupo que deu origem ao movimento, e outros que,
embora identificados com todos os aspectos evocados pelo surrealismo, tinham
uma contribuição muito peculiar a acrescentar ao surrealismo e/ou compreendiam
que o ambiente de formação, a realidade com que conviviam, implicava em uma
escala distinta de afinação. Nomes? Não há dúvida de que Jorge Cáceres tenha
sido, no Chile, um poeta mais substantivo em sua relação com o surrealismo do
que Bráulio Arenas, pela intensidade com que o primeiro dialogou com as ideias
que geraram o movimento, em momento algum acatando-as como ordens de um bureau intelectual. Mais? A afinidade de
artistas plásticos no Canadá, o manifesto Refus
Global, foi sempre crítica, e a presença de poetas como Paul-Marie Lapointe
ou Roland Giguère é um diferencial enorme, no sentido de que não eram
seguidores de uma estética. A obra de Lapointe inclusive se dissocia em vários
momentos do surrealismo. Outro exemplo? A rejeição à atualidade do surrealismo
quando chegamos aos anos 1960 e entra em campo a contracultura. Sem a presença
da contracultura não teríamos poetas como Philip Lamantia e Roberto Piva. Não
quero dizer que a grande dissidência interna do surrealismo esteja
invariavelmente ligada a este aspecto ortodoxo. Mas é bem verdade que entre
nós, em nosso continente, provocou alguns mal-entendidos clássicos.
03 | NELSON DE PAULA (Brasil, 1950) | Poeta, ensaísta, contista e artista visual. Em sua obra completa finge ser um traficante de sonhos, e atravessa as fronteiras das dimensões, com o ilegal debaixo do braço. Publicou cerca de 60 livros de poesia e artes visuais. Entre outros destacamos: O Plasma, Vozes do Aquém, Projeto para uma Revolução Fundamentalista, A Hóstia de Isis, Sete pulos na encruzilhada. Como artista plástico, participou de bienais, exposições individuais e coletivas no Brasil e no mundo. Foi membro do Grupo Surrealista de São Paulo. Participou da Exposição Surrealista “As chaves do desejo”, Costa Rica, Cartago, 2016. Colaborador da revista Matérika (Costa Rica). Ele mora em São Paulo e sua cumplicidade conosco, há anos, é motivo de grande orgulho.
Floriano
Martins
∞ índice
ALICIA FRANCISCO RODÓ | Chema Madoz y la lección de
Leonardo da Vinci
https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2022/06/alicia-francisco-rodo-chema-madoz-y-la.html
ANTÓNIO CÂNDIDO FRANCO | Violette Nozières e o Rei Ghob
https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2022/06/antonio-candido-franco-violette.html
BERTA LUCÍA
ESTRADA | Frida Kahlo y la belleza del diablo
https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2022/06/berta-lucia-estrada-frida-kahlo-y-la.html
CARLOS M. LUIS | Kitasono
Katue y el surrealismo
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DAWN ADES | André Masson e a surpresa permanente da criação
https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2022/06/dawn-ades-andre-masson-e-surpresa.html
DIEGO RENART
GONZÁLEZ | Marcel Duchamp,
diario de un seductor
https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2022/06/diego-renart-gonzalez-marcel-duchamp.html
LILIAN PESTRE
DE ALMEIDA | La longue durée, la mémoire collective et le retour au pays natal
ou En relisant encore Lautréamont entre deux langues
https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2022/06/lilian-pestre-de-almeida-la-longue.html
MÁRCIO
CATUNDA | Antonin Artaud e os estados de delírio da poesia
https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2022/06/marcio-catunda-antonin-artaud-e-os.html
ROGERIO LUZ |
Maurice Blanchot e o Surrealismo
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VICENT
SANTAMARIA DE MINGO | El encuentro de J. V. Foix y Salvador Dalí en las
avenidas subterráneas del pre-sueño
https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2022/06/vicent-santamaria-de-mingo-el-encuentro.html
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Agulha Revista de Cultura
Série SURREALISMO SURREALISTAS # 12
Número 211 | junho de 2022
Artista convidado: Nelson de Paula (Brasil, 1950)
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
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