segunda-feira, 27 de junho de 2022

Agulha Revista de Cultura # 211 | junho de 2022


∞ editorial | a grande chama das maravilhas

 


00 | Junho era o mês previsto para a finalização da série “Surrealismo Surrealistas”, com a marca preciosa de 120 ensaios dedicados a criadores ligados direta ou indiretamente ao movimento. No entanto, sua repercussão, bem como o encontro inesperado com alguns estudiosos que manifestaram sua simpatia e cumplicidade pela série, tudo isto nos levou a ampliar duração e atmosfera, o que vemos agora poderia se estender por todo o ano. Quando em 1952 Breton observa que depois de 30 anos de existência e “em razão mesmo da influência por vagas mais ou menos fixas que exerceu, não poderia limitar-se apenas àqueles que desejam vivamente formar parte do atual tecido”, com o que concluiria que “não se deixam de produzir hoje obras que, sem que sejam exatamente surrealistas, o são mais ou menos profundamente por seu espírito”, o que se permite entrever é que os vasos comunicantes do Surrealismo tanto se estenderam sobre a terra, muito além em muitos casos do que o aceito pelo próprio Breton, e que a tal insuspeita extensão se acrescenta o persistente desconhecimento crítico de algumas circunstâncias e nomes em vários países, que o tema se impõe como uma novidade constante, espécie de aluvião mágico e incessante que nos visita sempre de forma a mais surpreendente possível. Mesmo no caso de alguns de seus criadores mais conhecidos, neles também são impositivas as novas visões, leituras distintas e sempre reveladoras. Avançaremos, portanto, com a nossa série, inclusive como a mostra sensível da atualidade do Surrealismo.

 

01 | Para criar o tempo se interroga se há uma explicação possível para o imprevisível. Cada um de nós guarda em seu íntimo a expressão de um mundo surpreendente. O início das horas mais elevadas, a repartição de todas as questões até então irreconciliáveis, uma idade impossível para cada coisa sobre a terra. Quando criamos nossos sentimentos rebentam suas demandas. Somos a projeção do que a vida inteira trouxemos para junto de nós, para esse confim de maravilhas que ainda não aprendemos de todo o poder de sua mecânica terrestre. Ilustramos as quimeras com a nossa voz, celebramos as ilusões com nossos esgares, realizamos a fotossíntese de toda a floresta humana. Para criar o tempo escuta as confissões dos labirintos. Cada portal se abre para realçar o abismo a partir do qual vamos compondo nossos deslocamentos, nossa travessia pelas estações de fulgores primordiais. Sejamos associados ao Surrealismo ou não. O vento nos ouve e nos trata como suas criaturas prediletas. A natureza ainda nos ama. A surpresa deverá ser nosso guia até que aprendamos a cuidar de uma revolução saborosa, que perenize nosso amor ao outro e nos faça repousar em meio às diferenças. Não somos os escolhidos. Somos apenas os vivos. Para criar o tempo precisa de nós.

 

02 | [fragmento de uma entrevista concedida a Alfonso Peña, em 2009]

AP | Floriano, eu me lembro das primeiras edições (em meados dos anos 1980) que você mandou de Fortaleza para os diversos países de língua espanhola. O tabloide com o nome Resto do Mundo chamou a atenção. Foi uma publicação que deu vigor à criação poética e gráfica. Já naquela época se via seu interesse e o colóquio mantido com a corrente do Surrealismo Latino-Americano. Será muito esclarecedor se você falar sobre este tema.

 

FM | Não apenas o Surrealismo. No início dos 1980, começo a descobrir a América Hispânica, um mundo inteiramente novo para mim. Fico verdadeiramente fascinado com intensidade, nuances, linguagem, atuações, são lições que vou tomando em cada novo contato. Já então eu colaborava com a imprensa em alguns lugares do Brasil e em Portugal, com traduções, artigos e entrevistas referentes à poesia hispano-americana. O jornal Resto do mundo surge da necessidade de fundar um espaço especificamente dedicado à difusão de literaturas desconhecidas no Brasil. O dilema foi o mesmo de sempre, pelo qual já passamos todos nós, editores em qualquer lugar do mundo. Não havia suporte financeiro para dar continuidade à aventura editorial. Meus primeiros contatos com o surrealismo na América Latina coincidem com este período. Claro que antes conhecia as residências nerudianas, porém falo aqui de uma outra dimensão do surrealismo, mais profunda (do ponto de vista da linguagem e também do caráter da escrita e de seu autor) e que possui um tom distinto ao surrealismo europeu. Na época eu me correspondia com estudiosos como os espanhóis Jorge Rodríguez Padrón e Ángel Pariente, e também com o romeno Stefan Baciu. Foram anos de uma correspondência muito intensa, sobretudo com Rodríguez Padrón. Registrei tudo isto na forma de entrevistas, e recordo que tu mesmo trataste de publicar uma parte desse diálogo com Rodríguez Padrón (posteriormente a série toda foi incluída em uma edição da revista Cuadernos del Ateneo, em Tenerife). Por outro lado, quanto mais eu aprendia com os dois espanhóis, mais me pareciam absurdas as ponderações do romeno. Onde Baciu via surrealismo eu só conseguia ver modernismo, cubismo e outros sinais oriundos de uma mescla de períodos. De tal maneira que aquela antologia do surrealismo que ele publicou foi desde o primeiro momento motivo de desafio para mim, o desafio da correção, o volume me incomodava de tal forma que me impus a tarefa de corrigi-lo.

 

AP | A investigação abriu portas inesperadas para você. Você entrou em contato e participação imediata com muitos criadores do continente. Tenho a impressão de que quando você dá a conhecer O começo da Busca, já estava “iluminando o caminho”. Pouco tempo depois apareceria o impressionante volume Um Novo Continente, Antologia do Surrealismo em Nossa América (Ediciones Andrómeda, 2004), com uma extraordinária coleção de retratos dos poetas participantes feitos pelo artista Fabio Herrera. Quando entro nas páginas do livro, sinto uma vertigem ao encontrar poetas de linhagens muito diferentes: César Moro, Aimé Césaire, Olga Orozco, Roberto Piva, Eunice Odio, Claudio Willer, Emilio Adolfo Westphalen, só para citar alguns. Vamos falar em termos da ideia original; o que desencadeou nos últimos anos?

 

FM | São as nuances a que me referia anteriormente. Acrescentemos nomes como os de Enrique Gómez-Correa, Francisco Madariaga, Enrique Molina – estes três, por exemplo, ao lado de César Moro e Aimé Cesaire, são para mim o quinteto fundamental do surrealismo na América Latina, onde localizamos os registros mais renovadores do surrealismo. São eles, em essência, o que se poderia chamar de fundadores do surrealismo em nosso continente. Toda aquela carta de princípios dada pelo surrealismo é ambientada entre nós, estabelecendo uma boda perfeita entre o plano intelectual e orgânico, as afinidades com o surrealismo europeu e sua correspondência com os planos cósmicos e existenciais do continente americano. A fundação, por assim dizer, de um novo continente. É interessante observar que todo este assunto era absolutamente sigiloso no Brasil nos anos 1980 e também na década seguinte. Meu encontro com Sérgio Lima propiciou algumas realizações (mostras coletivas, folhetos, um ciclo de palestras), porém era preciso avançar em relação ao tema, sem guiar-se pelo excesso de ortodoxia e ao mesmo tempo tratando de tocá-lo com mais ousadia em termos de projetos editoriais. Houve então um reencontro, com Claudio Willer, que logo em seguida convidei para coeditar comigo a Agulha Revista de Cultura, criada ao final de 1999. Com Willer foi possível avançar nos dois planos essenciais: abolir toda e qualquer perspectiva de ortodoxia e criar condições de ampliação de difusão e discussão do tema. Em outra época seriam impensáveis aspectos como eu haver sido convidado pela Academia Brasileira de Letras para dar uma conferência sobre surrealismo no Brasil e a Editora Perspectiva dedicar um extenso volume (1.000 páginas) ao surrealismo, convidando a mim e ao Willer, dentre outros, para compor o grupo de ensaístas que conformam tal edição. Também fora do Brasil foi possível avançar, dando legitimidade ao tema, tratando do mesmo sem as corriqueiras miopias acadêmicas e sem os desvarios das tradicionais viúvas de Breton. A antologia que editaste em Andrómeda foi bastante ampliada, mantendo título e projeto original, para um volume de quase 700 páginas que no ano passado publicou a Monte Ávila Editores, na Venezuela. Pude ali avançar (não diria ainda que a tenha concluído) na pesquisa, abrangendo a totalidade de países em nosso continente, na extensão dos quatro idiomas aqui falados (espanhol, francês, inglês e português), onde é possível localizar a presença do surrealismo.

 


AP | Pouco tempo depois você dá o salto e a experiência surrealista latino-americana leva você a investigar as raízes do surrealismo na Península Ibérica. Naquela época, podia-se falar de um surrealismo hispano-americano? Conte-nos sobre as chaves e pistas de sua investigação.

 

FM | Esta lacuna permanece, ou seja, há estudos dedicados ao surrealismo em Portugal ou na Espanha, em separado, a maior parte deles mantendo certa conotação historicista, de fixar o surrealismo em um dado momento da história, privando-o de atualidade. Comecei a preparar uma antologia do surrealismo na Península Ibérica, porém fui forçado a interromper este projeto para atender ao convite da Secretaria da Cultura do Ceará para tratar da curadoria de uma Bienal Internacional do Livro. Agora em 2009 retomo o projeto. E inclusive retomo correspondência com um espanhol aqui já mencionado, Ángel Pariente, autor de uma antologia do surrealismo em língua espanhola. Eu creio que é importante compreender essas relações entre uma América Ibérica e a Península-matriz, até para que se complete a ruptura necessária. No Brasil, por exemplo, refere-se como absurdo (uma observação, por sinal, bem recente) nosso desconhecimento do que se passa na América Hispânica. O certo é falar em desinformação e má compreensão, havendo mesmo manipulação da informação em muitos casos. Esta é também nossa relação com Portugal. Nos últimos cinco anos dezenas de autores portugueses vêm sendo publicadas no Brasil por iniciativa e correspondente apoio financeiro do governo português. Fosse uma iniciativa de política exterior da Suécia e aqui estaríamos com valiosa bibliografia sueca. Compreendes o espírito? Carecemos, no Brasil, de consistência histórica. O pior é que ouvimos esta frase diariamente e a ninguém importa tomar a iniciativa de corrigir o tema. Trata-se, portanto, de um dilema percebido e não corrigido por interesse, ou seja, o pleno estabelecimento de uma hipocrisia. Porém me indagas também sobre um “surrealismo hispano-americano”, e confesso não sentir atrativo algum por este tipo de gentílico aplicado à criação artística. As distinções que topicamente tenho mencionado, quando me referi a um quinteto a ser destacado, reporta-se ao surrealismo na América Latina, o que inclui também os países que falam o português e o francês. Na América Hispânica, como em qualquer outra parte onde influiu o surrealismo, identificamos, em grau menor ou maior, aqueles poetas e artistas que rigorosamente seguiram a cartilha dos manifestos parisienses e das turbulentas orientações do grupo que deu origem ao movimento, e outros que, embora identificados com todos os aspectos evocados pelo surrealismo, tinham uma contribuição muito peculiar a acrescentar ao surrealismo e/ou compreendiam que o ambiente de formação, a realidade com que conviviam, implicava em uma escala distinta de afinação. Nomes? Não há dúvida de que Jorge Cáceres tenha sido, no Chile, um poeta mais substantivo em sua relação com o surrealismo do que Bráulio Arenas, pela intensidade com que o primeiro dialogou com as ideias que geraram o movimento, em momento algum acatando-as como ordens de um bureau intelectual. Mais? A afinidade de artistas plásticos no Canadá, o manifesto Refus Global, foi sempre crítica, e a presença de poetas como Paul-Marie Lapointe ou Roland Giguère é um diferencial enorme, no sentido de que não eram seguidores de uma estética. A obra de Lapointe inclusive se dissocia em vários momentos do surrealismo. Outro exemplo? A rejeição à atualidade do surrealismo quando chegamos aos anos 1960 e entra em campo a contracultura. Sem a presença da contracultura não teríamos poetas como Philip Lamantia e Roberto Piva. Não quero dizer que a grande dissidência interna do surrealismo esteja invariavelmente ligada a este aspecto ortodoxo. Mas é bem verdade que entre nós, em nosso continente, provocou alguns mal-entendidos clássicos.

 

03 | NELSON DE PAULA (Brasil, 1950) | Poeta, ensaísta, contista e artista visual. Em sua obra completa finge ser um traficante de sonhos, e atravessa as fronteiras das dimensões, com o ilegal debaixo do braço. Publicou cerca de 60 livros de poesia e artes visuais. Entre outros destacamos: O Plasma, Vozes do Aquém, Projeto para uma Revolução Fundamentalista, A Hóstia de Isis, Sete pulos na encruzilhada. Como artista plástico, participou de bienais, exposições individuais e coletivas no Brasil e no mundo. Foi membro do Grupo Surrealista de São Paulo. Participou da Exposição Surrealista “As chaves do desejo”, Costa Rica, Cartago, 2016. Colaborador da revista Matérika (Costa Rica). Ele mora em São Paulo e sua cumplicidade conosco, há anos, é motivo de grande orgulho. 

Floriano Martins  

 


∞ índice

 

ALICIA FRANCISCO RODÓ | Chema Madoz y la lección de Leonardo da Vinci

https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2022/06/alicia-francisco-rodo-chema-madoz-y-la.html

 

ANTÓNIO CÂNDIDO FRANCO | Violette Nozières e o Rei Ghob

https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2022/06/antonio-candido-franco-violette.html

 

BERTA LUCÍA ESTRADA | Frida Kahlo y la belleza del diablo

https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2022/06/berta-lucia-estrada-frida-kahlo-y-la.html

 

CARLOS M. LUIS | Kitasono Katue y el surrealismo

https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2022/06/carlos-m-luis-kitasono-katue-y-el.html

 

DAWN ADES | André Masson e a surpresa permanente da criação

https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2022/06/dawn-ades-andre-masson-e-surpresa.html

 

DIEGO RENART GONZÁLEZ | Marcel Duchamp, diario de un seductor

https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2022/06/diego-renart-gonzalez-marcel-duchamp.html

 

LILIAN PESTRE DE ALMEIDA | La longue durée, la mémoire collective et le retour au pays natal ou En relisant encore Lautréamont entre deux langues

https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2022/06/lilian-pestre-de-almeida-la-longue.html

 

MÁRCIO CATUNDA | Antonin Artaud e os estados de delírio da poesia

https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2022/06/marcio-catunda-antonin-artaud-e-os.html

 

ROGERIO LUZ | Maurice Blanchot e o Surrealismo

https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2022/06/rogerio-luz-maurice-blanchot-e-o.html

 

VICENT SANTAMARIA DE MINGO | El encuentro de J. V. Foix y Salvador Dalí en las avenidas subterráneas del pre-sueño

https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2022/06/vicent-santamaria-de-mingo-el-encuentro.html  

 







Agulha Revista de Cultura

Série SURREALISMO SURREALISTAS # 12

Número 211 | junho de 2022

Artista convidado: Nelson de Paula (Brasil, 1950)

editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com

editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com

concepção editorial, logo, design, revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS

ARC Edições © 2022

 






                


 

∞ contatos

Rua Poeta Sidney Neto 143 Fortaleza CE 60811-480 BRASIL

floriano.agulha@gmail.com

https://www.instagram.com/floriano.agulha/

https://www.linkedin.com/in/floriano-martins-23b8b611b/

 

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário