sexta-feira, 30 de agosto de 2019

Agulha Revista de Cultura # 142 | Setembro de 2019


• SURREALISMO ATRAVÉS DE ENTREVISTAS

Indagado acerca da existência ou não de um surrealismo espanhol, Roland Penrose (Inglaterra, 1900-1984) prefere referir as contribuições essenciais ao esplendor do Surrealismo, independentes de qualquer limitação nacionalista. Ao mencionar o artista Antoni Tàpies afirma que lhe outorgaria um lugar especial [no Surrealismo], inclusive apesar dele. A entrevista que lhe fez José Miguel Ullan – reproduzida na presente edição –, realizada na oportunidade do lançamento de seu livro Picasso: su vida y su obra (1981), ainda que brevemente, elucida que a relação de Picasso com o Surrealismo se deu mais no ambiente das amizades do que propriamente na criação. Ali estão algumas centelhas que bem poderiam ser esmiuçadas.
De qualquer modo, dedicamos nossa edição a algumas inestimáveis entrevistas com surrealistas justamente pensando no carisma dessas centelhas. As entrevistas são tanto esclarecedoras quanto atiçam a nossa curiosidade, impelindo-nos à descoberta de outras conexões ali apenas sugeridas. Alberto Giacometti falava de certa mágica determinante dos encontros, que eles se davam no momento certo de sua necessidade. As entrevistas permitem a realização dessa necessidade dos encontros.
No encontro de Marie-Luise Scherer com Philippe Soupault há um vultoso ninho dessas centelhas, em especial no que diz respeito às origens desse trio que logo despertaria o destino do Surrealismo: Aragon, Breton, Soupault. Louis Aragon um dia foi secretário de Henri Matisse; André Breton trabalhava como revisor ortográfico de Marcel Prout; Philippe Soupault herdou uma pequena fortuna de família. Ele foi apresentado a Breton por Apollinaire e, de imediato, a afinidade entre eles encontra bases nas leituras de Lautréamont e Rimbaud, bem como na descoberta da tese de doutorado do psiquiatra Pierre Janet, intitulada O automatismo psicológico.
A extensa entrevista a Soupault resulta um balanço admirável e sincero dos primeiros anos surrealistas, em torno da criação da revista Littérature, saltando aos olhos o incômodo que a alguns causava a conduta impositiva de Breton. Soupault também recorda certo pedantismo de Francis Picabia. Marie-Luise Scherer, em seu texto bastante revelador, anota:

Soupault tinha dificuldades de aceitar as coincidências cultistas, os escândalos montados com precisão diária. Sente-se deslocado a um papel no qual lhe é custoso reconhecer-se: poder tratar com Breton significa ser um boneco que diz sim a tudo. Em 1922 André Breton assume em solitário a direção de Littérature, há uma briga entre Breton e Tzara, e isto significa o fim de Dadá.

Diversos temas ganham seu papel de destaque em cada uma das entrevistas aqui reunidas. No diálogo de Elena Poniatowska com Luis Buñuel, o poeta e cineasta menciona a impossibilidade de convivência entre Surrealismo e Comunismo:

Os movimentos revolucionários no mundo enfrentaram unicamente as realidades materiais, econômicas e políticas; a repartição das riquezas entre grupos opostos. Nós, os surrealistas, quisemos uma revolução do pensamento que condiciona a vida humana. Atacar o espírito e não a matéria! Mudar as bases sociais! […] No surrealismo só cabem duas palavras: liberdade e amor. Estes dois valores humanos sempre virão à tona. […] Os surrealistas compreenderam que não encaixavam com o comunismo. Nós nos dirigíamos ao espírito, e uma de nossas armas principais era a poesia. Hegel via na poesia “a verdadeira arte do espírito, a única arte universal…” […] Os surrealistas não podiam se dar bem com o comunismo e este separou a todos os surrealistas do movimento proletário, exceto quatro ou cinco, entre eles Aragon, Sadoul e Eluard…

Este conjunto de entrevistas aqui publicado ilumina áreas pouco ventiladas, trazendo à tona inquietudes, polêmicas, definições, o ouro mais intenso da aventura surrealista desde 1919, incluindo referências à criação artística. Diálogos com Hans Arp, Georges Bataille, Aimé Césaire e o próprio Breton acertam as contas com as ideias preconcebidas acerca do movimento, em seus erros e acertos. E jorram luz sobre abrangência e atualidade do mesmo os diálogos com Annie Le Brun, Pedr Kràl e Jan Svankmajer.
Indagado sobre o que o teria levado ao Surrealismo, Svankmajer responde: estrelas, morfologia mental, natureza ateísta, rebelião e mentalidade mágica e irracional de um homem neolítico. Král tece uma lúcida retrospectiva das polêmicas tão características do Surrealismo, e observa: Eu não sou contra nenhuma controvérsia. É natural que tomemos uma posição em relação ao que os outros fazem e lamento que o juízo de valor seja agora proibido, em nome de um consenso sorridente e tímido. A crítica é parte do pensamento e da troca entre as pessoas, uma espécie é, por definição, um sinal de vida. E nós inevitavelmente resolvemos assim que escolhemos beber vermelho ou branco; se nos perguntamos, além disso, por que um ao invés do outro, também se avança no conhecimento das coisas. Eu acho que não é saudável que a ideia de escolha seja tão ruim hoje. Marie-Dominique Lelièvre evoca a opinião de vários críticos sobre a sofisticação e delicadeza de Annie Le Brum.
Os temas são vários, o que torna esta edição um atlas bastante elucidativo dos sinais vitais do Surrealismo. Hans Arp, com seu humor sempre impecável, recorda os dilemas de uma época: Os novos tempos, com suas ciências e técnicas, estão dedicados à megalomania. A confusão do nosso tempo é o resultado dessa superestimação da razão. Aimé Césaire dá as pistas de sua afinidade com o movimento: Eu estava pronto para aceitar o surrealismo porque eu já havia avançado por conta própria, usando como pontos de partida os mesmos autores que influenciaram os poetas surrealistas. O pensamento deles e o meu tinham pontos de referência comuns. O surrealismo me forneceu o que eu estava procurando confusamente. Aceitei-o com alegria porque nele encontrei mais uma confirmação do que uma revelação. Foi uma arma que explodiu a língua francesa. Isso abalou absolutamente tudo. Isso era muito importante porque as formas tradicionais – formas onerosas e sobrecarregadas – estavam me esmagando.
Completa esse leque de relevantes diálogos uma homenagem a Winsor McCay (Estados Unidos, 1871-1934), cartunista e pioneiro na montagem de desenhos animados, que de algum modo poderia ser considerado um precursor secreto do Surrealismo, em especial pela trama de suas aventuras oníricas e imaginárias. Em 1905 McCay começa a publicar uma série de tiras na imprensa, intitulada Little Nemo in Slumberland (O pequeno Ninguém na terra dos sonhos), e em 1911 é lançado seu primeiro filme de animação.  A maestria de suas perspectivas, os enredos insólitos, a regência espirituosa do caos – eis aí alguns dos truques desse criador fascinante e provocativo. Nesta edição reproduzimos 46 quadros da série.
Nossos sinceros agradecimentos a todos os colaboradores: Elena Poniatowska, Georges Henein, Jean-Luc Fournier, José Miguel Ullan, Marie-Dominique Lelièvre, Marie-Luise Scherer, Pierre Dumayet, Radim Kopáč, René Depestre e S. Druet, bem como a Jan Dočekal, pelo envio da entrevista com Jan Švankmajer.

Os Editores


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• ÍNDICE


ELENA PONIATOWSKA | Luis Buñuel, o olho do século

GEORGES HENEIN | Entrevista con André Breton

JEAN-LUC FOURNIER | Entretien avec Jean Arp

JOSÉ MIGUEL ULLAN | Roland Penrose: “El surrealismo de Picasso fue más poético que pictórico”

MARIE-DOMINIQUE LELIÈVRE | Annie Le Brun, grande dame, d’un bloc

MARIE-LUISE SCHERER | Philippe Soupault, el último surrealista

PIERRE DUMAYET | Entrevista a Georges Bataille: “la literatura debe cuestionar la angustia”

RADIM KOPÁČ | Yes, I am also a misanthrope, says the artist Jan Švankmajer

RENÉ DEPESTRE | An interview with Aimé Césaire

S. DRUET | Petr Kràl, dialogue au cœur du silence


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Winsor McCay



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EDIÇÃO COMEMORATIVA | CENTENÁRIO DO SURREALISMO 1919-2019
Artista convidado: Winsor McCay (Estados Unidos, 1869-1934)


Agulha Revista de Cultura
20 ANOS O MUNDO CONOSCO
Número 142 | Setembro de 2019
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo & design | FLORIANO MARTINS
revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
ARC Edições © 2019


3 comentários:

  1. This is amazing, a total revelation, you keep revealing pure gold dust from the pulse of the imagination.
    With friendship and hugs
    John Welson

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  2. Mano, duas extraordinárias Agulhas mais: iluminando o mundo surreal das mulheres e, agora, este acervo de entrevistas!
    Muito eu te felicito por este magnífico trabalho demopédico que tendes levado a efeito. Congratulations and celebrations!
    Abraqson firmíssimo do teu hermano & confrade
    Nicolau Saião

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  3. No conozco estos textos. Es un regalo este número! Gracias.
    Va. mi abrazo y cariño,
    Susana Wald

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