domingo, 9 de janeiro de 2022

Agulha Revista de Cultura # 200 | janeiro de 2022

 

editorial | O MUNDO QUE HABITAMOS

 


0 | A partir deste número 200 – um marco feliz em nosso sentido inalterado de persistência – dedicaremos 12 números de Agulha Revista de Cultura a uma série intitulada Surrealismo Surrealistas, reunião de 120 ensaios em sua maior parte escritos especialmente a nosso pedido. O modo como os colaboradores – incluindo aqueles novos, cuja aproximação tem se dado por um reconhecimento ao trabalho que realizam – vêm atendendo às nossas sugestões confirma a dose expressiva de altruísmo e solidariedade que ainda nos resta atualmente. A todos agradecemos que sejamos assim. Ao lado dos ensaístas, como é um padrão da Agulha Revista de Cultura, também teremos a presença de 12 artistas convidados, no registro dessa série que confirma tanto a grandeza como a atualidade do Surrealismo, em seus 100 anos de existência. A série terá uma periodicidade quinzenal e circulará sempre nos dias 10 e 25 de cada mês. Seguimos contando com a presença de todos.

 

1 | As noites se abrem quando menos as esperamos. Por vezes são o reflexo previsível da vida que guardamos sob a claridade do sol. As luzes despontam orientando os caminhos mais diversos. Um dia pensamos em Surrealismo. No dia seguinte as imagens desaparecerem e os signos difundidos ao longo da esfera humana são um relicário de pendências, lugar pouco propício à espera de uma aquiescência da realidade. Eis um primeiro ponto, sempre que nos dedicamos ao entendimento do abismo em que vivemos: qual realidade estamos buscando? Um século se passou desde o instante em que alguém se preocupou com as afetações da realidade, o assédio que poderia mudar nossa percepção do mundo. Um século desde quando a perceptiva da leitura projetava um reflexo de sensações que agendavam os abismos menos previsíveis: as cores insuspeitáveis, as sombras mudando de sítio, os espectros que não guardavam um lugar onde ocultarem o mistério aviltado. Um século e o Surrealismo é apenas isto, a vertente de um desvario, a academia de um inexplicável, o deserto de mil veredas que ocultam em suas areias a decifração de seus minérios. O inferno se torna um tormento quando menos esperamos. Um crime por desvendar. Um mistério por compreender. O Surrealismo não é um crime ou uma agulha de incompreensão. É um estado de doação ao mistério, uma vertigem da incompreensão, um mergulho na infinidade de representações de elementos encontrados no interior de cada um de nós. Alguém pode indagar sobre a natureza conceitual do Surrealismo, e este é um sintoma curioso, porque a natureza conceitual da existência é a existência em si. Ninguém está fora de si o suficiente para ausentar-se assim do mundo. Um lugar para não fazer mais parte do mundo.

 

2 | Em 1919 caminhavam pelas ruas de Paris, sentavam nos cafés e se encontravam na livraria La Maison des Amis des Libres, os poetas André Breton, Louis Aragon e Philippe Soupault. A amizade entre eles evocava uma afinidade mágica, muito além da turbulência que no futuro marcaria suas vidas. Este é o ano da gestação do Surrealismo. O próprio Breton recorda que quando apareceu o Manifesto, ou seja, em 1924, havia detrás dele cinco anos de atividade experimental ininterrupta, que levava consigo grande número e uma variedade apreciável de participantes. Recorda ainda Breton haver conhecido naquela ocasião seus dois amigos, a Soupault graças a Apollinaire, a Aragon na livraria de Adrienne Monnier. E assim fala dos dois, primeiro de Soupault, que trazia consigo umas invejáveis disposições naturais: parecia, particularmente, se dar bem com “a velharia poética” que Rimbaud, segundo confessava, jamais havia conseguido eliminar; em seguida, de Aragon: Ninguém como ele foi tão hábil detector do insólito em todos os seus aspectos ou mesmo plasmou uns sonhos tão embriagadores sobre uma espécie de vida escondida da cidade. Deste modo, o encontro entre os três poetas foi a primeira faísca que, ainda no seio de Dadá, alimentaria o espírito surrealista.

Em março de 1919 os três dão início à publicação da revista Littérature. Seu título nasce de uma brincadeira extraída de um conhecido poema de Paul Verlaine, seu verso final: Et tout le reste es littérature. Uma brincadeira por conta da ambivalência da frase ou, como recorda Breton, a palavra foi adotada por antífrase e com um espírito burlesco no qual Verlaine nada tinha que ver. Assim nasce Littérature que, neste ano publica as Poésies de Lautréamont e os primeiros três capítulos de Les champs magnétiques, o livro mágico assinado por Breton e Soupault que o primeiro considerava a primeira obra surrealista (de modo algum dadá), uma vez que é o fruto das primeiras aplicações sistemáticas da escritura automática.

Assim nasce o Surrealismo e cabe ainda destacar, nas palavras do próprio Breton, que é de todo inexato, e cronologicamente incorreto, apresentar o surrealismo como um movimento proveniente de Dadá, ou ver nele o ressurgimento de Dadá no plano construtivo. Por demasiado conhecidas as palavras de Breton em tom de definição do Surrealismo, dois anos depois da publicação do primeiro manifesto assim observa Louis Aragon:

 

O vício chamado Surrealismo é o desordenado e apaixonado emprego da imagem estupefaciente, ou melhor, da provocação incontrolada da imagem por si mesma e pelo que arrasta no campo da representação de perturbações imprevisíveis e de metamorfoses: pois cada imagem a cada golpe os força a revisar todo o Universo. E existe para cada homem uma imagem por encontrar que destrói o Universo.

 

Embora seja comum dizer, como o fez Salvador Dalí, que a revolução surrealista é antes de tudo uma revolução de ordem moral, o movimento contribui com a máxima revolução no campo artístico que conheceu o século XX. É fundamental no campo das ideias, certamente, porém não é menor sua importância no ambiente estético, graças às suas técnicas e a diversidade de aparências que nascem das obras de incontáveis surrealistas, poetas e artistas. De tal modo que introduziu, como apontava Antonin Artaud, profundas transformações na escala das aparências, no valor de significado e no simbolismo do criado. Por um lado, é essencial a possibilidade criada pelo Surrealismo de, segundo Breton, escapar das limitações que pesam sobre o pensamento controlado. Isto graças à introdução da escritura automática e o registro da atividade onírica. Por outro lado, não se pode esquecer que à maior emancipação do espírito naturalmente corresponde seu alcance formal. A permanente renovação dos riscos na criação gera um contributo correspondente no modo como essas audácias são apresentadas. A este respeito dirá Breton, em entrevista a José María Valverde [2] que será surrealista em arte tudo aquilo que, por novos caminhos, aponte uma maior emancipação do espírito. Ou seja, é impossível separar os novos caminhos e a emancipação do espírito. E é sua alquimia sempre renovada o que faz do Surrealismo uma força perene que se engrandece cada vez mais como a imensa protagonista do século passado e até hoje brilha com sua incorruptível luz.

Caminhando desde o princípio para a configuração de um movimento organizado, o Surrealismo se ramificou de tal forma por todo o mundo que é natural uma pluralidade de estados de espírito que atuam como aportes peculiares de suas manifestações culturais e artísticas. Desde a formação de grupos em vários países até a afirmação individual de muitos criadores. Desde a esfera das técnicas – as aproximações insólitas, o automatismo, o material onírico, o humor, o maravilhoso – até o ápice alcançado de uma metafísica que estabelece, como tão lucidamente aponta Aldo Pellegrini, em sua Antología de la poesía surrealista (de lengua francesa), [2] uma fusão entre o conceito romântico do amor sublime e o erotismo. Tudo isto sob a compreensão essencial de que não se separam arte e vida.

Por várias partes do planeta – desde o surgimento dos grupos até as manifestações isoladas – o Surrealismo ganhou espaço através de suas obras, exposições, jogos, revistas etc., sobrevivendo a seus próprios erros e às interferências contaminadoras do mercado, da política e da religião. Não cabe falar com nostalgia dos anos 1920, pois sua força anímica produziu novos períodos de precipitações mágicas desde então. Agora mesmo é possível falar da dinâmica de conferências levadas a termo pelo Grupo Surrealista de Madri, como as ações compartilhadas de poetas e artistas no Chile e o esforço de realização de exposições coletivas que faz, na Costa Rica, o casal Amirah Gazel e Alfonso Peña. Igual esforço de difusão se realiza no Brasil na série de 24 edições quinzenais da Agulha Revista de Cultura que configuram sua pauta de comemorações do centenário do Surrealismo em 2019.

O poeta brasileiro Murilo Mendes (1901-1975) fez uma leitura muito singular do Surrealismo por ocasião de um de seus Retratos-relâmpago:

 

O surrealismo, teoricamente inimigo da cultura, tornou-se num segundo tempo um fato de cultura; e muitos surrealistas, superando a técnica do automatismo, dispuseram-se a trabalhar com um método planificador. Por isto mesmo, quando há uns vinte anos atrás Breton procedeu em Nova Iorque à revisão analítica do movimento, a contragosto incluía Magritte entre os pintores surrealistas, insinuando que o seu processo de compor não era automático, antes plenamente deliberado. [3]

 

Ali recorda muito bem o brasileiro que a voragem de imprecisões surgida do automatismo necessita uma forma concreta para se apresentar ao mundo. Precisamente é essa forma concreta o que avança muito além de tempo e espaço em nossa vida dando um valor novo à corrente de atividades humanas. Não esquecer, certamente, a lucidez com que Aldo Pellegrini sai em defesa do movimento (em livro já referido):

 

O surrealismo és uma mística da revolta. Revolta do artista contra a sociedade convencional, sua estrutura fossilizada ou seu falso sistema de valores; revolta contra a condição humana, mesquinha e sórdida. O artista resulta assim o paladino do homem em seu ardente protesto contra o mundo; o protesto do homem submetido a coerções por aqueles que detêm o poder e pretendem lhe impor a aceitação dessas coerções como a ordem natural. O surrealismo aparece como uma sistematização do inconformismo.

 

Esta mística da revolta a podemos observar no corpo fascinante das grandes criações surrealistas. Na pintura de Yves Tanguy, na poesia de Benjamin Péret, na prosa de André Breton, assim como no campo das ideias que são exemplos de autêntica renovação através do método paranoico-crítico de Salvador Dalí, os estudos sobre erotismo de Georges Bataille e as concepções vertiginosas da arte da representação em Antonin Artaud – por aí o Surrealismo criou uma infinidade de novos caminhos para a emancipação do espírito. Basta aprender a ler em suas entrelinhas para compreender o verdadeiro poder de fusão de arte e vida. Basta desfazer-se de toda nostalgia para preparar o presente para novos mergulhos no ventre do desconhecido. Basta evitar qualquer espécie de doutrina, sem afastar-se da vida em si, para ajudar o homem em sua tarefa de desnudamento do absurdo. O Surrealismo completa seu primeiro século de existência com a mesma vitalidade do princípio, insurgindo contra uma época – a atual – que é a repetição levada ao esgotamento de todos os males que homem tem enfrentado em sua história, uma história a ponto de desfazer-se, como um putrefato cadáver que caminha pelas ruas, e que não encontra mais razão de ser que a cobiça. Aqui o desafio maior do Surrealismo em nossa época. Que seus 100 anos sejam algo e que o homem possa uma vez mais buscar a si mesmo na intimidade do amor, da poesia e da liberdade.

 

3 | Nossa artista convidada para esta edição é a fotógrafa brasileira Ana Sabiá (1978). Dentre as séries que aqui reproduzimos, uma delas se intitula “Jogo de paciência” (2020/21), e Ana gentilmente nos enviou uma reflexão a seu respeito:


“Jogo de Paciência surgiu em consequência do isolamento necessário para o enfrentamento seguro contra a pandemia Covid-19. As dúvidas, inseguranças, ansiedades, o medo do contágio, além de todas as transformações psíquicas, sociais, econômicas e culturais decorrentes desse período inédito formam o estofo do trabalho e, claro, sem o qual não teria nascido. A ideia surgiu a partir de um lençol antigo, herdado da minha tia, que tem uma abertura central que convoca a ideia de moldura de porta-retrato. Um lençol branco é um elemento que perpassa muitas simbologias, do acolhimento do lar à assepsia hospitalar, vida-morte, bandeiras, religiões e festas. Aquele lençol-moldura tornou-se minha folha em branco, estrutura primordial na construção imagética do meu enfrentamento ao evento pandêmico.

Formalmente, meu trabalho se constrói a partir de autorretratos embora, na maioria deles, o meu rosto - elemento instaurado como afirmação identitária - está oculto. Essa escolha de suprimir minha face é um esforço consciente na proposição de que o trabalho dialogue para além da vivência individual abarcando também experiências coletivas. Os lençóis brancos constroem uma espécie de plano espacial indefinido: entre um estúdio, um palco cênico ou um quarto. Existe um corpo humano, centralizado nessa brancura amarrotada que performa com objetos, plantas e animais. Cada objeto é escolhido pela sua representação formal, utilitária, simbólica ou afetiva de acordo com os eventos que acontecem fora do isolamento, mas que interferem na realidade isolada, e vice-versa. A arte sempre dialoga entre o pessoal e o coletivo, de tal modo que essa relação é evidente no meu trabalho. As angústias sobre a pandemia e as tentativas de construção dos dias a partir dessa realidade inevitável é a urgência de todos nós. Como indivíduo, sou agente participativa da criação da realidade concreta. Nessa realidade somos agentes críticos e fazemos escolhas que configuram subjetividades. É uma relação dialética. Invento possibilidades de vida a partir da arte e reconfiguro códigos para pensar a vida.

A ambiguidade é parte inerente de qualquer linguagem pois, entre entre o que se expressa e o que se compreende existe toda uma teia de construções subjetivas e demais contingências que afetam a recepção de dada mensagem. O desafio da linguagem, e aqui especificamente a arte, constitui-se na tradução das nossas percepções e afectos na construção de um discurso que tenha o seu valor estético mas, sobretudo, exerça força social, política, bem como alcance do entendimento mútuo.

O surrealismo, também presente como possibilidade estética neste trabalho, movimento de vanguarda artística surgido na Europa entre as duas grandes guerras, foi decorrente de uma consciência da extrema desilusão social diante do falimento dos ideais humanos. A violência das guerras, o êxodo miserável para as cidades, a profunda exclusão social inerente ao sistema capitalista, aliados às novas rupturas de paradigmas filosóficos e humanos, a partir de Marx, Nietzsche e Freud, tornaram-se o estofo daquele movimento que buscava contestar, resistir e subverter a realidade concreta e alienante. Passado um século, saímos da sociedade industrial à sociedade tecnológica com outras demandas e piores gravidades. O mundo está assolado por uma pandemia que nos tira a liberdade dos afetos, dos contatos físicos e da alegria compartilhada. Em pleno 2021, os governantes assumem posturas fascistas e ditatoriais, os direitos humanos são confiscados, a natureza é vendida, a violência humana além de física é também virtual, as diásporas seguem com mais mortos, os super-ricos detém o usufruto ambiental, capital e humano, as expressões artísticas são censuradas, a ciência é desvalorizada, os educadores são perseguidos... O surrealismo em sua definição popular, que é a justaposição de elementos contraditórios que se compõe, está entranhado na vida, particularmente na vida do povo latino-americano.

 

NOTAS

As declarações de André Breton foram tomadas da série de entrevistas radiofônicas realizadas por André Parinaud para a Radiodifusão francesa, em 1952. As declarações de Louis Aragon e Antonin Artaud, respectivamente datadas de 1926 e 1927, se encontram citadas por André Pariente em seu Diccionario temático del surrealismo (Madri: Alianza Editorial, 1996).

1. Correo Literario, Madri, outubro de 1950. Posteriormente incluída em Entretiens 1913-1952 (Paris: Editions Gallimard, 1952).

2. Barcelona: Editorial Argonauta, 1981.

3. São Paulo: Conselho Estadual de Cultura, 1973. Posteriormente incluído em Poesia completa e prosa (Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1994, 4 volumes). 

Floriano Martins 

 


índice

 

ANNIE RICHARD | A alegoria da mulher-criança, também conhecida como Gisèle Prassinos como uma aporia de gênero no surrealismo

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ANTÓNIO LAGINHA | Anna Sokolow. Too pretty, too pretty! Remembering an iconoclast

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MÁRCIO CATUNDA | As noites transcendidas de Paul Éluard

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MARIA ELENA PALMEGIANI | Elsa Schiaparelli y su relación con el surrealismo

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MARÍA RUIDO | El sueño del fotomontaje produce sarcasmo: apuntes sobre la serie “Sueños” (1948-1951) de Grete Stern

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RONNY COHEN | Imaginação de Paul Delvaux

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ZEBBA DAL FARRA | Notas sobre a presença do surrealismo em Eugène Ionesco

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Ana Sabiá


Agulha Revista de Cultura

Série SURREALISMO SURREALISTAS # 01

Número 200 | janeiro de 2022

Artista convidada: Ana Sabiá (Brasil, 1978)

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