∞ editorial
| O MUNDO QUE HABITAMOS
1 | As noites se abrem quando
menos as esperamos. Por vezes são o reflexo previsível da vida que guardamos sob
a claridade do sol. As luzes despontam orientando os caminhos mais diversos. Um
dia pensamos em Surrealismo. No dia seguinte as imagens desaparecerem e os signos
difundidos ao longo da esfera humana são um relicário de pendências, lugar pouco
propício à espera de uma aquiescência da realidade. Eis um primeiro ponto, sempre
que nos dedicamos ao entendimento do abismo em que vivemos: qual realidade estamos
buscando? Um século se passou desde o instante em que alguém se preocupou com as
afetações da realidade, o assédio que poderia mudar nossa percepção do mundo. Um
século desde quando a perceptiva da leitura projetava um reflexo de sensações que
agendavam os abismos menos previsíveis: as cores insuspeitáveis, as sombras mudando
de sítio, os espectros que não guardavam um lugar onde ocultarem o mistério aviltado.
Um século e o Surrealismo é apenas isto, a vertente de um desvario, a academia de
um inexplicável, o deserto de mil veredas que ocultam em suas areias a decifração
de seus minérios. O inferno se torna um tormento quando menos esperamos. Um crime
por desvendar. Um mistério por compreender. O Surrealismo não é um crime ou uma
agulha de incompreensão. É um estado de doação ao mistério, uma vertigem da incompreensão,
um mergulho na infinidade de representações de elementos encontrados no interior
de cada um de nós. Alguém pode indagar sobre a natureza conceitual do Surrealismo,
e este é um sintoma curioso, porque a natureza conceitual da existência é a existência
em si. Ninguém está fora de si o suficiente para ausentar-se assim do mundo. Um
lugar para não fazer mais parte do mundo.
2 | Em 1919 caminhavam pelas ruas de Paris, sentavam nos cafés e se
encontravam na livraria La Maison des Amis des Libres, os poetas André Breton, Louis
Aragon e Philippe Soupault. A amizade entre eles evocava uma afinidade mágica, muito
além da turbulência que no futuro marcaria suas vidas. Este é o ano da gestação
do Surrealismo. O próprio Breton recorda que quando apareceu o Manifesto, ou
seja, em 1924, havia detrás dele cinco anos de atividade experimental ininterrupta,
que levava consigo grande número e uma variedade apreciável de participantes.
Recorda ainda Breton haver conhecido naquela ocasião seus dois amigos, a Soupault
graças a Apollinaire, a Aragon na livraria de Adrienne Monnier. E assim fala dos
dois, primeiro de Soupault, que trazia consigo
umas invejáveis disposições naturais: parecia, particularmente, se dar bem com “a
velharia poética” que Rimbaud, segundo confessava, jamais havia conseguido eliminar;
em seguida, de Aragon: Ninguém como ele foi
tão hábil detector do insólito em todos os seus aspectos ou mesmo plasmou uns sonhos
tão embriagadores sobre uma espécie de vida escondida da cidade. Deste modo,
o encontro entre os três poetas foi a primeira faísca que, ainda no seio de Dadá,
alimentaria o espírito surrealista.
Em março de 1919 os três dão início à publicação da revista Littérature. Seu título nasce de uma brincadeira
extraída de um conhecido poema de Paul Verlaine, seu verso final: Et tout le reste es littérature. Uma brincadeira
por conta da ambivalência da frase ou, como recorda Breton, a palavra foi adotada
por antífrase e com um espírito burlesco no
qual Verlaine nada tinha que ver. Assim nasce Littérature que, neste ano publica as Poésies de Lautréamont e os primeiros três capítulos de Les champs magnétiques, o livro mágico assinado
por Breton e Soupault que o primeiro considerava a primeira obra surrealista (de
modo algum dadá), uma vez que é o fruto das primeiras aplicações sistemáticas da
escritura automática.
Assim nasce o Surrealismo e cabe ainda destacar, nas palavras
do próprio Breton, que é de todo inexato,
e cronologicamente incorreto, apresentar o surrealismo como um movimento proveniente
de Dadá, ou ver nele o ressurgimento de Dadá no plano construtivo. Por demasiado
conhecidas as palavras de Breton em tom de definição do Surrealismo, dois anos depois
da publicação do primeiro manifesto assim observa Louis Aragon:
O vício chamado Surrealismo é
o desordenado e apaixonado emprego da imagem estupefaciente, ou melhor, da provocação
incontrolada da imagem por si mesma e pelo que arrasta no campo da representação
de perturbações imprevisíveis e de metamorfoses: pois cada imagem a cada golpe os
força a revisar todo o Universo. E existe para cada homem uma imagem por encontrar
que destrói o Universo.
Embora seja comum dizer, como o fez Salvador Dalí, que a revolução surrealista é antes de tudo uma revolução
de ordem moral, o movimento contribui com a máxima revolução no campo artístico
que conheceu o século XX. É fundamental no campo das ideias, certamente, porém não
é menor sua importância no ambiente estético, graças às suas técnicas e a diversidade
de aparências que nascem das obras de incontáveis surrealistas, poetas e artistas.
De tal modo que introduziu, como apontava Antonin Artaud, profundas transformações na escala das aparências, no valor de significado
e no simbolismo do criado. Por um lado, é essencial a possibilidade criada pelo
Surrealismo de, segundo Breton, escapar das
limitações que pesam sobre o pensamento controlado. Isto graças à introdução
da escritura automática e o registro da atividade onírica. Por outro lado, não se
pode esquecer que à maior emancipação do espírito naturalmente corresponde seu alcance
formal. A permanente renovação dos riscos na criação gera um contributo correspondente
no modo como essas audácias são apresentadas. A este respeito dirá Breton, em entrevista
a José María Valverde [2] que será surrealista em arte tudo aquilo que, por
novos caminhos, aponte uma maior emancipação do espírito. Ou seja, é impossível
separar os novos caminhos e a emancipação do espírito. E é sua alquimia sempre renovada
o que faz do Surrealismo uma força perene que se engrandece cada vez mais como a
imensa protagonista do século passado e até hoje brilha com sua incorruptível luz.
Caminhando desde o princípio para a configuração de um movimento
organizado, o Surrealismo se ramificou de tal forma por todo o mundo que é natural
uma pluralidade de estados de espírito que atuam como aportes peculiares de suas
manifestações culturais e artísticas. Desde a formação de grupos em vários países
até a afirmação individual de muitos criadores. Desde a esfera das técnicas – as
aproximações insólitas, o automatismo, o material onírico, o humor, o maravilhoso
– até o ápice alcançado de uma metafísica que estabelece, como tão lucidamente aponta
Aldo Pellegrini, em sua Antología de la poesía
surrealista (de lengua francesa), [2]
uma fusão entre o conceito romântico do amor
sublime e o erotismo. Tudo isto sob a compreensão essencial de que não se separam
arte e vida.
Por várias partes do planeta – desde o surgimento dos grupos até
as manifestações isoladas – o Surrealismo ganhou espaço através de suas obras, exposições,
jogos, revistas etc., sobrevivendo a seus próprios erros e às interferências contaminadoras
do mercado, da política e da religião. Não cabe falar com nostalgia dos anos 1920,
pois sua força anímica produziu novos períodos de precipitações mágicas desde então.
Agora mesmo é possível falar da dinâmica de conferências levadas a termo pelo Grupo
Surrealista de Madri, como as ações compartilhadas de poetas e artistas no Chile
e o esforço de realização de exposições coletivas que faz, na Costa Rica, o casal
Amirah Gazel e Alfonso Peña. Igual esforço de difusão se realiza no Brasil na série
de 24 edições quinzenais da Agulha Revista
de Cultura que configuram sua pauta de comemorações do centenário do Surrealismo
em 2019.
O poeta brasileiro Murilo Mendes (1901-1975) fez uma leitura muito
singular do Surrealismo por ocasião de um de seus Retratos-relâmpago:
O surrealismo, teoricamente inimigo
da cultura, tornou-se num segundo tempo um fato de cultura; e muitos surrealistas,
superando a técnica do automatismo, dispuseram-se a trabalhar com um método planificador.
Por isto mesmo, quando há uns vinte anos atrás Breton procedeu em Nova Iorque à
revisão analítica do movimento, a contragosto incluía Magritte entre os pintores
surrealistas, insinuando que o seu processo de compor não era automático, antes
plenamente deliberado. [3]
Ali recorda muito bem o brasileiro que a voragem de imprecisões
surgida do automatismo necessita uma forma concreta para se apresentar ao mundo.
Precisamente é essa forma concreta o que avança muito além de tempo e espaço em
nossa vida dando um valor novo à corrente de atividades humanas. Não esquecer, certamente,
a lucidez com que Aldo Pellegrini sai em defesa do movimento (em livro já referido):
O surrealismo és uma mística da
revolta. Revolta do artista contra a sociedade convencional, sua estrutura fossilizada
ou seu falso sistema de valores; revolta contra a condição humana, mesquinha e sórdida.
O artista resulta assim o paladino do homem em seu ardente protesto contra o mundo;
o protesto do homem submetido a coerções por aqueles que detêm o poder e pretendem
lhe impor a aceitação dessas coerções como a ordem natural. O surrealismo aparece
como uma sistematização do inconformismo.
Esta mística da revolta
a podemos observar no corpo fascinante das grandes criações surrealistas. Na pintura
de Yves Tanguy, na poesia de Benjamin Péret, na prosa de André Breton, assim como
no campo das ideias que são exemplos de autêntica renovação através do método paranoico-crítico
de Salvador Dalí, os estudos sobre erotismo de Georges Bataille e as concepções
vertiginosas da arte da representação em Antonin Artaud – por aí o Surrealismo criou
uma infinidade de novos caminhos para a emancipação do espírito. Basta aprender
a ler em suas entrelinhas para compreender o verdadeiro poder de fusão de arte e
vida. Basta desfazer-se de toda nostalgia para preparar o presente para novos mergulhos
no ventre do desconhecido. Basta evitar qualquer espécie de doutrina, sem afastar-se
da vida em si, para ajudar o homem em sua tarefa de desnudamento do absurdo. O Surrealismo
completa seu primeiro século de existência com a mesma vitalidade do princípio,
insurgindo contra uma época – a atual – que é a repetição levada ao esgotamento
de todos os males que homem tem enfrentado em sua história, uma história a ponto
de desfazer-se, como um putrefato cadáver que caminha pelas ruas, e que não encontra
mais razão de ser que a cobiça. Aqui o desafio maior do Surrealismo em nossa época.
Que seus 100 anos sejam algo e que o homem possa uma vez mais buscar a si mesmo
na intimidade do amor, da poesia e da liberdade.
3 | Nossa artista convidada para esta
edição é a fotógrafa brasileira Ana Sabiá (1978). Dentre as séries que aqui reproduzimos,
uma delas se intitula “Jogo de paciência” (2020/21), e Ana gentilmente nos enviou
uma reflexão a seu respeito:
Formalmente, meu trabalho se constrói
a partir de autorretratos embora, na maioria deles, o meu rosto - elemento instaurado
como afirmação identitária - está oculto. Essa escolha de suprimir
minha face é um esforço consciente na proposição de que o trabalho dialogue para
além da vivência individual abarcando também experiências coletivas. Os lençóis brancos constroem uma espécie de plano espacial indefinido:
entre um estúdio, um palco cênico ou um quarto. Existe um corpo humano, centralizado
nessa brancura amarrotada que performa com objetos, plantas e animais. Cada objeto
é escolhido pela sua representação formal, utilitária, simbólica ou afetiva de acordo
com os eventos que acontecem fora do isolamento, mas que interferem na realidade
isolada, e vice-versa. A arte sempre dialoga entre o pessoal e o coletivo, de tal
modo que essa relação é evidente no meu trabalho. As angústias sobre a pandemia
e as tentativas de construção dos dias a partir dessa realidade inevitável é a urgência de todos nós. Como indivíduo, sou agente participativa da criação da realidade concreta. Nessa realidade somos agentes críticos e fazemos
escolhas que configuram subjetividades. É uma relação dialética. Invento possibilidades de vida a partir da arte e reconfiguro
códigos para pensar a vida.
A ambiguidade é parte inerente de
qualquer linguagem pois, entre entre o que se expressa e o que se compreende existe
toda uma teia de construções subjetivas e demais contingências que afetam a recepção de dada mensagem. O desafio da linguagem, e aqui especificamente
a arte, constitui-se na tradução das nossas percepções e afectos na construção de um discurso que tenha o seu valor estético mas,
sobretudo, exerça força social, política, bem como alcance do entendimento mútuo.
O surrealismo, também presente como
possibilidade estética neste trabalho, movimento de vanguarda artística surgido
na Europa entre as duas grandes guerras, foi decorrente de uma consciência da extrema desilusão social diante do falimento dos ideais humanos. A
violência das guerras, o êxodo miserável para as cidades, a profunda exclusão social
inerente ao sistema capitalista, aliados às novas rupturas de paradigmas filosóficos
e humanos, a partir de Marx, Nietzsche e Freud, tornaram-se o estofo daquele movimento
que buscava contestar, resistir e subverter a realidade concreta e alienante. Passado
um século, saímos da sociedade industrial à sociedade tecnológica com outras
demandas e piores gravidades. O mundo está assolado por uma pandemia que nos tira
a liberdade dos afetos, dos contatos físicos e da alegria compartilhada. Em pleno
2021, os governantes assumem posturas fascistas e ditatoriais, os direitos humanos
são confiscados, a natureza é vendida, a violência humana além de física é também
virtual, as diásporas seguem com mais mortos, os super-ricos detém o usufruto
ambiental, capital e humano, as expressões artísticas são censuradas, a ciência é desvalorizada, os educadores são perseguidos... O surrealismo em sua
definição popular, que é a justaposição de elementos contraditórios que
se compõe, está entranhado na vida, particularmente na vida do povo latino-americano.
NOTAS
As declarações de André Breton
foram tomadas da série de entrevistas radiofônicas realizadas por André Parinaud
para a Radiodifusão francesa, em 1952. As declarações de Louis Aragon e Antonin
Artaud, respectivamente datadas de 1926 e 1927, se encontram citadas por André Pariente
em seu Diccionario temático del surrealismo
(Madri: Alianza Editorial, 1996).
1. Correo Literario, Madri, outubro de 1950. Posteriormente incluída em
Entretiens 1913-1952 (Paris: Editions
Gallimard, 1952).
2. Barcelona: Editorial Argonauta,
1981.
3. São Paulo: Conselho Estadual de Cultura, 1973. Posteriormente incluído em Poesia completa e prosa (Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1994, 4 volumes).
Floriano Martins
∞ índice
ANNIE RICHARD | A alegoria
da mulher-criança, também conhecida como Gisèle Prassinos como uma aporia de gênero
no surrealismo
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ANTÓNIO LAGINHA | Anna Sokolow. Too pretty,
too pretty! Remembering an iconoclast
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JON GRAHAM
| Radovan Ivšić e o teatro da estranheza
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KRZYSZTOF FIJAŁKOWSK | Emila Medková
e a magia do desespero
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LUCAS HENRIQUE DA SILVA, KARIN VOLOBUEF | Hans Bellmer: objetos
provocativos
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MÁRCIO CATUNDA | As noites transcendidas de Paul Éluard
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MARIA ELENA PALMEGIANI | Elsa Schiaparelli
y su relación con el surrealismo
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MARÍA RUIDO | El sueño del fotomontaje
produce sarcasmo: apuntes sobre la serie “Sueños” (1948-1951) de Grete Stern
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RONNY COHEN | Imaginação de
Paul Delvaux
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ZEBBA DAL FARRA | Notas sobre a presença do surrealismo em Eugène
Ionesco
https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2022/01/zebba-dal-farra-notas-sobre-presenca-do.html
|
|
Agulha Revista de Cultura
Série SURREALISMO SURREALISTAS # 01
Número 200 | janeiro de 2022
Artista convidada: Ana Sabiá (Brasil, 1978)
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
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