terça-feira, 28 de dezembro de 2021

AGULHA REVISTA DE CULTURA # 198 – dezembro de 2021

 

• EDITORIAL – O MERCADO MODELO DE NOSSAS VIDAS

 


Quantas vezes olhamos para o passado como se fosse um estranho animal que tivesse nos desventrado. Seria mesmo para o passado que estávamos olhando? Uma falsa questão afina o diapasão que marca nossa existência: onde estávamos quando o passado nos devorou? Talvez a filosofia não passe dessa besta retórica. Entendemos tanto do passado quanto pressupomos, em um permanente golpe de ironia, avistar o futuro enquanto ele se prepara para bater em nossa porta. Muitos morrem antes mesmo de nascer e escrevem poemas para estigmatizar o arbítrio que cava sob seus pés. As metáforas são uma fonte sintética de incompreensões. Um galope de ares, um minério de ventanias, as chagas do desejo. Há um mínimo de complexidade na vida que inspira profunda irritação ao nos depararmos com aquelas pessoas que veem tudo com soberba simplicidade. A pisada brutal dos desacertos. Um dia começamos a destinar um deus aos cuidados de cada fatia de nossa permanência na terra. Ao final do dia são tantos deuses que nos perdemos em seus destinos confusos. Não há filosofia que aplaque os distúrbios de nossa incongruência. A mente começa a jogar com uma variação abrupta de sinônimos aproximados que desconcertam o que imaginamos no instante em que falamos ou escrevemos. A voz e a mão se perdem em uma agonia de significados. Penso que te amo, confesso que te traio, escrevo que desejo a tua morte. Talvez sejamos todos esquizofrênicos. Basta pensar na condicionalidade da moral. Exigir de cada um que aja de modo normal hoje ressoa como uma cilada. Um fetiche da hipocrisia. A filosofia certamente perdeu a razão de ser. Quantas vezes olhamos para nós e não vemos senão um espelho cego. O homem não é mais reflexo de nada. Mesmo assim alguns ainda criam. Alguns ainda julgam guardar os segredos de uma idade da inocência. Poucos ainda sofrem com desconcertante sinceridade.

Esta penúltima edição do ano da Agulha Revista de Cultura recorda a presença inquietante na terra de uma artista fenomenal, a belga Evelyne Axell (1935-1972). Seu hedonismo psicodélico florescia na forma de impulsos que nos punha a levitar. Uma grande mulher, uma imensa artista. O texto do crítico Pierre Restany (1930-2003) que aqui reproduzimos se encontra na página web da artista. Sua permanente orgia de relevos e transparências provoca uma comoção em nosso ser que vai além do tablado habitual da arte pop. Não é a técnica, não é a inscrição revolucionária, mas antes de tudo a chave da sexualidade que ela punha à prova na medida em que todas as portas passavam à sua frente.

 

Os Editores

 

PIERRE RESTANY | Evelyne Axell e os anos sessenta

 

Evelyne Axell foi brutalmente arrancada da vida no dia 10 de setembro de 1972. Seu período criativo coincidiu com os anos 60, um período agora considerado um dos mais inovadores da segunda metade do século XX.

A obra de Axell, embora altamente singular, traz a forte marca desse período e sua liberação de estilos de vida, corpos, mentalidades e tabus de todos os tipos.

As obras estritamente pictóricas de Axell foram produzidas ao longo dos sete anos de 1965 a 1972. Os sete anos anteriores, de 1955 a 1962, foram dedicados à sua carreira como atriz. Houve, portanto, dois anos de transição entre as duas fases simetricamente sucessivas de sua vocação. Foram também anos de iniciação: o cineasta Jean Antoine, que fez um filme com ela, apresentou-a a Magritte. A primeira tornou-se seu marido e a segunda, seu mentor pictórico. De Jean Antoine, teve um filho, Philippe, de Magritte, teve uma iniciação que a levou a se tornar uma das principais protagonistas do cenário artístico europeu dos anos 1960.

Quando Axell começou a afirmar seu talento para a pintura, jovens de todo o mundo viviam em um mundo pop. Seus sete anos de pintura transcorreram no contexto do grande período de globalização cultural dos anos 60 e seus eventos culminantes. O estilo de vida metropolitano urbano de um distrito de Nova York havia se tornado um modelo existencial planetário: a Pop Art estava no centro de uma constelação sociocultural ao lado de canções pop, música pop, hambúrgueres, jeans e pipoca. Os líderes do novo realismo europeu consolidavam a segunda onda de sua afirmação. Niki de Saint-Phalle estava celebrando o feminismo triunfante com suas mulheres generosamente curvas, César estava mudando de compressões de carros para expansões de poliuretano. Warhol estava fazendo infinitas reproduções de retratos de estrelas impressos em tela.

Desde o início, Axell pintou em tom uniforme e recortou formas estilizadas no tecido, que então sobrepôs em fundos refletindo a influência da Op Art. Como numa premonição do futuro, o carro é um tema recorrente.

E então a efervescência da segunda metade dos anos 60 proclama o renascimento da alteridade e o direito de ser diferente: os outros em termos de todas as suas minorias protestantes. Maio de 68 foi um sintoma que apontava o caminho a seguir para uma mudança na sociedade, para a transição do mundo industrial para o mundo pós-industrial.

É neste turbilhão dinâmico que o trabalho de Axell se desenvolveu, e sua força expansiva nunca foi relaxada por um momento.

Como se refletisse sua adesão sincera ao movimento dinâmico de seu tempo, ela abandonou naturalmente a pintura a óleo para explorar a gama de resinas plásticas, e particularmente Clartex - um material produzido pelo espaço de apenas um ano - e que ela usou para obras incluindo “La grande sortie dans l'espace”, Plexiglass e polimetacrilato de metila, que ela utilizou prontamente em sua forma de cor opalina. Todos esses plásticos sintéticos estavam sendo experimentalmente desenvolvidos ou aprimorados durante esse período; em várias ocasiões, ela teve que parar de usar um material por ter sido descontinuado.


Axell foi capaz de brincar com as possibilidades de translucidez e transparência das resinas plásticas colorindo-as com esmalte. O meio da imagem pintada contribuiu assim para a sua modernidade e, ao longo dos sete anos de produção de Axell, é possível reconstituir o desenvolvimento paralelo da tecnologia do plástico durante o mesmo período. O Plexiglas opalino que ela finalmente escolheu foi uma solução bem adaptada para os problemas de sua linguagem expressiva.

Foi através do corpo da mulher, e principalmente do seu, que Axell nos transmitiu o fôlego de vida que animou toda a sua carreira pictórica. Já em 1966, a originalidade de seu estilo foi claramente afirmada. Sem hesitações ou arrependimentos, a artista impõe sua definição da imagem desde o início, em meio à fase expansiva da sociedade de consumo. Ela está determinada a nos mostrar que o corpo de uma mulher não é um bem de consumo.

Sua postura determinada de extroversão erótica é afirmada ao longo de sua obra. Seja ela uma odalisco, uma persa, uma tcheca ou uma pequena felina rosa, a mulher de Axell afirma – na imanência sutil de sua presença – seu direito de testemunhar a perenidade orgânica do desejo. A mulher Axell, linda e sensual, se lança em uma dança de roda matissiana.

Sensível aos acontecimentos de 1968, Axell fez um tríptico retratando um grupo de jovens nus, dominado ao fundo pela silhueta de uma jovem brandindo a bandeira vermelha. Duas outras expressões importantes de seu compromisso ideológico datam de 1970: “L’Assemblée libre”, em que seu velho amigo Dypréau é mostrado no centro, e “La Participation”. A mesma mutação política do desejo de massa pode ser encontrada: o erotismo puro libera energia para desafiar a ordem existente e se torna a força motriz da comunicação com outras pessoas.

E então ela seria a pintora da mulher idílica, florescendo em meio à natureza exuberante e um tanto exótica – ela amava tanto o México quanto a Guatemala – esperando o Tarzan que a levaria ao sétimo céu, uma espécie de oásis ou terrestre paraíso. Os animais lá são coloridos – azul para o elefante – laranja para o macaco, multicolor para as aves do paraíso.

Em sete anos de pintura, Axell experimentou a modernidade global de seu período com intensidade excepcional e entrou em um vínculo carnal com sua dinâmica de mudança. Evelyne Axell viveu sua arte como um destino, violentamente dramático, exigente, absoluto. Por meio dela, ela nos deixou o fôlego da vida, uma vida que cavalgou sem sela como uma amazona. 


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• ÍNDICE

 

ADRIANO CORRALES ARIAS | Devenir de la poesía costarricense con tres reconocidos representantes

https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2021/12/adriano-corrales-arias-devenir-de-la.html

 

ANDERSON COSTA, ELYS REGINA ZILS | De Itararé a uma deambulação contínua – Conversa com Floriano Martins sobre o surrealismo no Brasil

https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2021/12/anderson-costa-elys-regina-zils-de.html

 

CARLOS PAPEL | MPB – Origens do formato e outras histórias

https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2021/12/carlos-papel-mpb-origens-do-formato-e.html

 

FIDELIA CABALLERO CERVANTES | Conversación con José Ángel Leyva

https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2021/12/fidelia-caballero-cervantes.html

 

JULIO BORROMÉ | A propósito de La utopia del logos, de Gabriel Jiménez Emán

https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2021/12/julio-borrome-proposito-de-la-utopia.html

 

LUIS EDUARDO CORTÉS RIERA | Luchino Visconti y medio siglo del film La Muerte en Venecia

https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2021/12/luis-eduardo-cortes-riera-luchino.html

 

LUIS EDUARDO CORTÉS RIERA | Mozart, el triunfo de Amadeus

https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2021/12/luis-eduardo-cortes-riera-mozart-el.html

 

MARIA ESTHER ZARACHO R. | Giselle Caputo y la poesía como intuición del cotidiano https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2021/12/maria-esther-zaracho-r-giselle-caputo-y.html

 

ROGERIO LUZ | Franz Kafka e Samuel Beckett: a voz sem dono

https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2021/12/rogerio-luz-franz-kafka-e-samuel.html

 

ROSA SAMPAIO TORRES | As origens do trovadorismo e do “stilnuovo” (sec. XI-XIII)

https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2021/12/rosa-sampaio-torres-as-origens-do.html 

 


 

Evelyne Axell

 

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[A partir de janeiro de 2022]
 

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Agulha Revista de Cultura

UMA AGULHA NA MESA O MUNDO NO PRATO

Número 198 | dezembro de 2021

Artista convidada: Evelyne Axell (Bélgica, 1935-1972)

editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com

editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com

logo & design | FLORIANO MARTINS

revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES

ARC Edições © 2021

 

Visitem também:

Atlas Lírico da América Hispânica

Conexão Hispânica

Escritura Conquistada

 


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