∞ editorial | Taanteatro Companhia e Surrealismo
01 | O horizonte deve conter
a cilada de seus extremos. A travessia acidental dos desapegos. Tudo em sua
pele será escrito como se fosse a feição triunfante do caos. Uma alegoria com
suas faixas de extravios e a rebentação das águas que levamos em nosso íntimo.
Os deuses insistem na decomposição das causas humanas, de modo que é preciso
não deixar os corpos perecerem sob o selo das falsificações clericais. É
preciso guardar o vigor que nos protegerá das sutilezas da moral. Manter
abertas as portas para que o ar agitado do imprevisto circunde nossos corpos
permitindo que as forças ocultas não cessem de buscar a rubrica de suas
bênçãos. Eis onde viemos dar. Eis onde estamos. Não importam os mundos
esquecidos, as chacinas na memória, os frequentes atentados contra a
preservação do mistério. Há um furor mortal nos fanatismos que não devemos
deixar invadir o palco de nossa representação da história. Ainda que toda
escrita seja queimada, algo em nosso espírito deve se manter radiante como a
fiação elétrica das descobertas incessantes. Pássaros ou serpentes, deuses ou
vultos irreconhecíveis, não devemos temer o empirismo desde que ele não se
limite a criar uma teia de ilusões. Os caminhos da eficácia não devem ser
perturbados pelos falsos iniciados. Mesmo quando os vestígios de algumas
civilizações são destruídos, devemos manter a irradiação do milagre. Recordemos
com a sombra astral de Robert Charroux: O
mistério não está na interpretação ou na influência caprichosa dos astros, mas
na capacidade diferente de recepção dos indivíduos.
02 | Taanteatro – Uma
conversa com Maura Baiocchi e Wolfgang Pannek
FM | Nada melhor do que o princípio. No caso de vocês, como se conheceram?
WP | Na época eu trabalhava
como editor de artes cênicas da revista Bremer. Escrevi sobre o festival
e, depois de entregar meu artigo, vi que o desenhista gráfico ilustrou o texto
com uma foto do espetáculo da Maura. Abaixo da foto havia duas fotos menores,
uma de Ohno, a outra de Ikeda. Informei que a dançarina brasileira não era a
atração principal do festival, mas aqueles artistas japoneses. "A foto
dela é a mais bonita”, ele retrucou, e a imagem ficou. Logo depois, assisti ao
seu espetáculo sobre Frida Kahlo. A sala estava lotada. Consegui um
lugar no chão, no centro do proscênio. No final de uma dança com uma capa dourada,
Maura lançou o adereço sobre minhas pernas onde ele ficou até o término da
apresentação. A obra magnetizou a plateia e foi ovacionada. Esperei a saída da
Maura do camarim, me apresentei e saímos juntos para um encontro de artistas.
Na semana subsequente nos vimos todos os dias até o retorno dela ao Brasil. Na
hora da despedida, eu disse a ela que eu não queria que nosso encontro
terminasse assim. Ela concordou. Combinamos que eu fosse ao Brasil assim que
possível. Encerrei meu trabalho na revista, tranquei a matrícula em meus
estudos universitários, abandonei o plano de estudar teatro na Dinamarca e fiz
alguns bicos para arranjar dinheiro. Dois meses mais tarde, cheguei no
aeroporto em Guarulhos, onde fui recebido pela Maura. Ainda naquela mesma
manhã, viajamos para Santos, onde ela realizou um trabalho no Sesc. Esperei na
praia, ao lado da carcaça de uma tartaruga encalhada, e assisti a um jogo de
futebol de areia. No dia seguinte, de volta a São Paulo, comecei a participar
dos ensaios da Taanteatro Companhia.
FM | É conhecida a observação de Roland Barthes de que a
fotografia, como o teatro, é uma encenação.
Naturalmente penso que toda a criação é fruto
desse princípio de encenação, pois não é outra a
forma encontrada pelo homem de desentranhar seu caudal de pensamentos,
sentimentos e intuições. Leio em texto do Wolfgang que a encenação de
atmosferas de tensão exige o arranjo sensível da polifonia de forças e formas
múltiplas, diversas e híbridas, que operam relações de reciprocidade. Encenação, sim, mas também observo
no plano conceitual do Taanteatro essa concepção do teatro como imagem do
mundo fenomênico, como
entendia Juan-Eduardo Cirlot. Um teatro de exaltação da imaginação e de invenção
permanente, como evoca Maura. Podemos saber um pouco mais
sobre essa definição de vocês de um teatro
coreográfico de tensões?
As artes performativas são
caraterizadas pela interpenetração energética e semiótica de dimensões,
elementos e linguagens diversos: espaço, tempo, luz, corpos e objetos,
movimento, som, imagem, texto etc. São artes múltiplas, heterogêneas e
híbridas, e a encenação se alimenta dessa impureza. O processo de encenação
exige eleger as forças e formas que devem integrar a performance de acordo com
o seu tema, a compreensão e a calibragem das interrelações ou tensões
intermodais entre seus elementos (por exemplo entre luz e som,
movimento e cor) e a percepção qualitativa e dinâmica do próprio acontecimento
performativo que surge através dos processos interativos e que se concretiza em
contato com o público.
No taanteatro (ou teatro
coreográfico de tensões) partimos da ideia das interrelações
energético-semióticas entre todos os fenômenos da natureza e da cultura (e,
consequentemente, das artes performativas) chamando-as de tensões. A
partir desta imagem do mundo, avizinhada ao plano do dionisíaco em Nietzsche,
tudo o que existe, vive, age e se comunica faz isso graças a sua participação
de um jogo infinito de tensões múltiplas em constante transformação. Os corpos
com suas intratensões se constituem em função de suas intertensões
com outros corpos e ambientes, e vivem sob o efeito das infratensões
sociohistóricas de seu tempo.
O princípio tensão transcende
determinações meramente discursivas. Como denominador relacional comum,
possibilita a conexão e mediação dos elementos mais heterogêneos na encenação.
Empregamos o princípio tensão e a tipologia de tensões com fins
analíticos e criativos, por exemplo, no desenvolvimento do movimento corporal e
como ponto de partida da composição das linguagens de uma performance. Dessa
composição intra, inter- e infratensões de uma performance, dança ou peça emana
uma atmosfera tensiva que transcende seus componentes individuais e que
influencia, enquanto ambiente afetivo, a qualidade da realização e recepção do
acontecimento performativo.
O taanteatro não tem fixação
ideológica, nem vínculo político-partidário, mas em função dos critérios
apontados – multiplicidade, heterogeneidade, diversidade, hibridismo – se
posiciona decididamente na contramão de qualquer tipo de totalitarismo,
incluindo as tendências reacionárias recentes no Brasil e no exterior.
Não almejamos criar imagens ou
linguagens modelares de representação. Imagem e linguagem variam, ou podem
variar, entre uma produção e outra, dependendo do tema, das circunstâncias
sociopolíticas e das intenções artísticas. Mas dificilmente nos atemos à ideia
de um mero mimetismo realista da vida social, mesmo que crítico. Gostamos de
inventar imagens inusitadas, movimentos novos e dramaturgias desconcertantes
que desafiam o imaginário e transcendem o senso comum. É certo que uma certa
dose de concretude temática favorece o estabelecimento de uma relação mais
contundente com o público, por acentuar a relevância da obra performativa em
relação à experiência vivida de quem assiste. O devaneio lírico completamente
abstraído da percepção cotidiana pode ser tão enfastiante quanto o excesso de
fotorrealismo social. A interação entre reflexão
crítica e
imaginário poético atiça
a tensão entre o real e o possível, e faz que com que o convite ao novo e à
inovação, expresso por meio da obra, pareça motivado, não como propriedade ou privilegio
do artista e de
sua obra, mas como potencial de seu encontro com o público.
Curiosamente, muitos agentes
culturais politicamente engajados defendem ainda a ideia de que o povo precisa
e somente compreende histórias que mimetizam o cotidiano por meio de uma
linguagem cotidiana. De acordo com essa ideia paternalista, classes sociais
menos escolarizadas carecem de um imaginário poético não discursivo (e, por
consequência, de seu poder transformador). Experiências nossas em teatros de
periferia e de bairro, com espetáculos sobre Frida Kahlo, Nietzsche e Artaud,
nos demonstraram o contrário.
FM | Me utilizo de uma das técnicas do Taanteatro e aqui distribuo as cartas
de um questionário: 1. Quais os motivos da criação?; 2. Com quem buscam
interlocução? 3. Como se sentem entre seus pares?
MB | Trabalho profissionalmente com
dança, teatro e performance desde meados dos anos 1970. É certo que os motivos
de criação evoluem ao longo dos anos, mas em meu trabalho sempre se fundiram
uma percepção onírica do mundo em que vivemos com sua reflexão crítica. Bumerangue, meu primeiro trabalho
coreográfico com grande elenco, foi apresentado uma única vez no Teatro
Nacional em Brasília, em 1981, e censurado na sequência por problematizar, de
forma poética e documental, o militarismo e a liberdade de expressão na capital
do país. Apesar de talvez não ser recebido dessa forma, meu trabalho sempre
teve essa dimensão do político, mas expressa numa linguagem corporal e
imagética poética que apela primeiramente à sensação e que desperta o
pensamento como consequência da relação afetiva.
Em meu repertório e no da Taanteatro
Companhia, há múltiplos exemplos disso: Quando somem as borboletas
(1989) abordava a destruição do meio ambiente. Frida Kahlo: uma mulher de
pedra dá luz à noite (1991) se aproximava de uma icônica artista comunista
da América Latina. O Livro dos Mortos de Alice (1992) explorava a
politicidade do inconsciente. Ironizamos as representações políticas e
religiosas do poder em Arará - histórias que os ossos cantam (1997),
tematizamos a situação de gente em situação de rua com Esperando Godot
(2000), encenado como intervenção urbana. Tratamos da autopercepção histórica
brasileira em Máquina Hamlet Fisted (2011) e enfocamos questões de
gênero em Androgyne (2013) e em TRANS (2014).
A questão do
colonialismo emergiu em Mensagens de Moçambique (2018). Retomamos a
discussão do descaso ambiental em DAN devir ancestral (2009), como a
criação de conceitos como ecorporalidade e ecoperformance, por meio do 1º
Festival Internacional de Ecoperformance e o filme APOKÁLYPSIS (2021). E,
conforme diz o teórico teatral Hans-Thies Lehmann, buscamos formular um
"crítica
abrangente da civilização” através de nossos ciclos de trabalhos dedicados à
vida e à obra de Nietzsche e Artaud, realizados entre os anos de
1996 e 2016.
Do ponto de vista criativo, buscamos
interlocução com
pessoas de áreas como
música, artes plásticas, artes performativas
e audiovisuais, literatura,
filosofia e
ecologia – e de nacionalidades variadas.
A Taanteatro Companhia sempre teve uma vocação transcultural e supranacional.
Nosso elenco atual tem gente do Brasil, Alemanha, Moçambique e Argentina.
No diálogo com o público, nunca
priorizamos um grupo específico
definido por uma pauta identitária ou um critério sociológico. Nos apresentamos
em todo tipo de teatro e espaço cultural, entre centro e periferia, bem como em
ambientes alternativos, urbano
ou natural. Isso implica também uma disposição comunicativa com todo tipo de
gente, independentemente
de origem étnica e nacional, social e econômica e orientações políticas,
religiosas, filosóficas e sexuais.
Creio que ganhamos algum
reconhecimento de nossos colegas de profissão e junto aos setores da academia e
da imprensa. O fato de a Taanteatro Companhia persistir por trinta anos no meio
cultural brasileiro produzindo ano após ano, não somente coreografias e peças,
mas também eventos, festivais e livros sobre nossa teoria e metodologia,
acarreta inevitavelmente um certo respeito, mesmo que não haja identificação
estética. Por outro lado, quase nunca
escapamos de sermos percebidos como um “caso à parte”, conforme escreveu Nelson
de Sá, em 1998, numa crítica sobre a
nossa montagem de Homem Branco e Cara Vermelha, texto de George Tabori. E apesar de nosso trabalho ter sido contemplado várias vezes pelo fomento municipal à
dança e por prêmios municipais, estaduais e federais, nunca tivemos grande
proximidade com os artistas da dança desde que recebi a bolsa Vitae de Artes em 1991 para realizar o
projeto Taanteatro: uma pesquisa para a transformação da dança.
O aspecto dinâmico e transformativo do taanteatro
e a dificuldade de enquadrá-lo
em termos estéticos colaborou, possivelmente, com seu status à
parte no Brasil e fez proliferar trabalhos de TCC e de pós-graduação
de estudantes de universidades de diferentes estados brasileiros. Também é interessante notar que nosso trabalho encontrou
respostas muito positivas no
exterior, tanto em
relação ao meio artístico, quanto
ao universo acadêmico, por exemplo, na Argentina, França, Austrália, Inglaterra e no Canadá, onde passou a
integrar programas de estudos.
FM | Há no Surrealismo uma espécie de eixo que permite raiz e movimento do
Taanteatro, ou vocês diriam que há um móvel mais amplo ou distinto que os
inspira?
WP | É preciso levar em conta que os movimentos
artísticos do início do século XX viviam experiências históricas muito
distintas das atuais e nutriam expectativas extremas relativas a sua capacidade
de intervenção social e política. Essas esperanças quase religiosas investidas
nas artes perderam sustentação depois da Segunda Guerra Mundial e no decorrer
dos empreendimentos pós-modernistas. Hoje, o valor da arte nos processos de
formação e transformação sociais é reconhecido, mas a ideia de sua potência revolucionária se tornou muito mais modesta
– micropolítica, por assim dizer.
Apesar disso, existe por parte da
Taanteatro Companhia uma certa afinidade com ideias, imagens e figuras caras ao
Surrealismo, uma filiação sensível a uma tradição, ainda que de ruptura, à qual
pertence o pensamento surrealista. Lautréamont, Artaud e Frida Kahlo tiveram
impacto concreto na trajetória e no repertório da companhia, e, de forma mais
difusa, as obras de Baudelaire, Rimbaud, Nerval, Jarry, Duchamps, Magritte,
André Masson, Salvador Dalí ou Hans Bellmer fazem parte de nossa formação
cultural.
Admitindo
de bom grado essas ressonâncias, é preciso
deixar claro que o teatro coreográfico de tensões não está
comprometido com nenhum programa ou código
estético histórico em particular, incluindo o Surrealismo. O que nos separa do
movimento artístico em torno de Breton é a descrença em verdades absolutas,
sectarismos e atitudes papais. A Taanteatro Companhia atua numa outra fase da
história e desenvolve concepções e práticas de autoria própria.
Uma das forças motrizes do taanteatro, mais distante das aspirações bastante
urbanas do Surrealismo, é o seu lado “eco”, expresso em conceitos e práticas
como ecorporalidade e ecoperformance. Esse resgate ambiental no
plano performativo manifesta-se, entre outras coisas, na organização do
Festival Internacional de Ecoperformance. [2]
FM | Recorto aqui uma observação da historiadora
Carolyn Butler Palmer, na qual ela diz que a dança desempenhou um papel
integral na busca surrealista para recuperar verdades suprimidas pelo
desenvolvimento da cultura ocidental moderna nos últimos quinhentos anos,
concluindo que a arte baseada na perspectiva linear era um dos oponentes
mais valiosos dos surrealistas. Estão de acordo? E como se verifica a
aplicação dessa oposição no Taanteatro?
WP | Desconheço a obra e os argumentos de Butler Palmer.
A partir de minhas leituras, eu não poderia confirmar que a dança – enquanto
prática – tenha exercido um papel
integral no período constitutivo e mais ativo do Surrealismo, isto é, entre
o início dos anos 1920 e o final dos anos 1940. O movimento, o erotismo e o
êxtase da dança estão presentes nas obras de Picasso, Max Ernst e Dalí. Mas o
fascínio exercido pela dança vem desde as culturas antigas da África, Índia,
China, Grécia; é uma constante da pintura medieval e é também um tema frequente
das obras de Degas, Rodin, Toulouse-Lautrec, poucas décadas antes do
Surrealismo. Quer dizer, a exploração das verdades libidinais da dança não é
exatamente um privilégio surrealista.
Na
história da dança dos séculos XX e XXI há múltiplas tentativas de exploração
coreográfica do imaginário surrealista. Por exemplo, no caso de Dalí e Bellmer.
Mas é importante ressaltar que a encenação de paisagens, atmosferas e figuras
extraídas da produção visual do Surrealismo não é uma condição suficiente para
se falar em dança surrealista. Tampouco podemos equiparar os exercícios de
improvisação em dança contemporânea com o projeto da écriture automatique,
sem levar em consideração se esses improvisos também estão imbuídos do estado
de espírito e dos objetivos poéticos e políticos do Surrealismo. Talvez o Butoh
de Tatsumi Hijikata seja a dança que mais se aproximou do Surrealismo, não
primeiramente em termos formais, mas sobretudo metafísicos, ao criar uma dança
que se propõe a explorar as trevas das pulsões corporais e da consciência
humana. A linguagem curvada, torta e desacelerada do Butoh opõe-se também à
linearidade apolínea citada por Butler Palmer.
A meu
ver, é preferível evitar expressões grandiloquentes como “verdades suprimidas
pelo desenvolvimento da cultura ocidental moderna nos últimos quinhentos anos”.
Não acredito no valor de verdades supra-históricas e absolutas. Se a chamada
cultura ocidental deu preferência a paradigmas culturais lineares em detrimento
de paradigmas curvilíneos, ela não se reduz simplesmente à supressão de
verdades, mas dedicou-se à criação de outras formas de verdade. O mesmo vale
para a cultura oriental, se é que denominações e dicotomias generalizadas como
ocidental e oriental ainda detêm algum sentido específico. É fundamental ter
consciência crítica das imagens que norteiam nosso pensamento e nossas vidas,
justamente para evitar que essas imagens se transformem em figuras sagradas e
opressivas ou em oposições absolutas e mutuamente excludentes. Reta e
curva, ambas são linhas possíveis que podemos explorar.
FM | Na magistral entrevista que Eugène Ionesco concedeu a Claude Bonnefoy, ele observa
que sempre foi seu interesse denunciar certos delitos,
logo destacando que esta talvez não fosse a função
da arte, que deveria, segundo ele, a de tornar real o irreal, de suscitar o
imprevisto. O que pensam vocês dois a este respeito?
MB | As observações do grande Ionesco ressaltam a tensão entre realidade e
imaginação, entre crítica e criação. Assim, tocam na antiga relação entre o
verdadeiro, o belo e o bom, ou seja, entre existência, estética e ética. Numa
obra de arte, uma coisa não enfraqueceria a outra? Afinar artisticamente essa
tensão entre o factual e o possível foi sempre desafiador. Mas creio que é
possível conciliar com êxito essas funções ou características numa mesma obra
de arte. E então, quando isso acontece, é o nirvana do criador. Hoje, com os
avanços da experimentação artística e do hibridismo de linguagens, uma poética
crítica não somente é perfeitamente viável, mas desejada e aceita, tanto pelo
artista quanto por seu público. A contaminação entre as mais diversas
modalidades de expressão – incluindo dimensões documentais e biográficas,
corporais e discursivas, analógicas e digitais –, somada à crescente influência
de correntes filosóficas atuais, colaboram para discutir a vida, no seu mais
amplo sentido, à luz da arte, e para redimensionar a arte sob a luz do fator
sociopolítico.
WP | Debates sobre a função da arte são motivados por
tendências ideológicas, pelo horizonte epistêmico e por inclinações pessoais de
um determinado locus histórico; e, muitas vezes, pela fusão inconsciente
dessas influências. Da determinação de uma suposta essência da arte, deduz-se a
sua função. É difícil encontrar uma definição filosófica inteiramente
satisfatória do que seja arte e é improvável que a arte tenha uma função
atemporal e única que independe do contexto sociohistórico de seu exercício e
usufruto. Mas a ausência de um critério absoluto e definitivo da função da arte
não invalida o valor das preferências culturais e individuais de um determinado
período da história.
Conforme
eu disse acima, a Taanteatro Companhia percebe seu trabalho artístico também
como político – por exemplo, eco-político –, mas não como instrumento
ideológico. Problematizamos questões como poder, colonialismo, gênero e meio
ambiente, mas a denúncia nunca foi nosso foco. A mera denúncia investe numa
linguagem ideologicamente fundada, linear, inequívoca. Com frequência, parte da
pressuposição de deter um saber superior e consolidado, e estabelece entre
artistas e espectadores uma relação assimétrica de transmissão desse saber.
Talvez haja circunstâncias sociais excepcionais capazes de justificar essa
abordagem, mas em geral, a denúncia artística sofre da fraqueza de antecipar
suas respostas na formulação de seus questionamentos e por instrumentalizar não
somente a arte, mas também o público. Em resumo, a denúncia está baseada numa
visão anti-poética da arte sem interesse na criação do novo ou imprevisto no
ato comunicativo. Não existe um modelo padrão de conciliação do poético e do
político em arte e, a meu ver, não deve existir. Qualquer modelo, neste campo,
tende ao totalitarismo e passa a exercer a função que afirma combater.
FM | Se pensarmos em três nomes relevantes da música contemporânea – Egberto Gismonti, Frank Zappa, Keith Jarrett –, podemos acompanhar os dois primeiros nos
inúmeros arranjos de uma mesma peça, como uma obsessiva procura de sua melhor
realização, enquanto que no terceiro, em seus concertos de piano solo, o que se
verifica é o entendimento de que não se pode repetir uma performance. Isto me
lembra o que disse Viktor Mazin da dança de Maura Baiocchi, que ela é imprevisível,
que a sua gramática nunca se enquadra em uma escritura coreográfica
reconhecível. Qual a
orientação da construção de enredos e personagens, e a sua dinâmica ao longo
das apresentações de cada espetáculo? A repetição, na criação artística, pode vir a ser um truque estético ou deve
ser sempre evitada?
MB | Desde
minha infância, tenho uma ligação muito forte com
a natureza. Onde moro tem um jardim natural muito grande, com
plantas da Mata Atlântica e um córrego. Todos os dias caminho por esse
pequeno paraíso e o observo detalhadamente. Repito o mesmo trajeto duas a três
vezes por dia.
Nunca me canso, nunca enjoo, a cada incursão descubro
novidades, me deparo com imprevistos. Na natureza, essa dinâmica jogo de forças se
repete, mas as formas que produz nunca são as mesmas. Minha dança e meu
trabalho coreográfico são, por assim dizer, naturalmente dionisíacos.
Oriento-me pelas forças que são
prenhas de formas que, por sua vez, são prenhas de novas forças, e assim
sucessivamente, repetidamente. Quando crio uma obra, não inicio o
trabalho atraída pela exploração de uma forma
pré-existente, um padrão ou ritmo
pré-estabelecido, mas motivada pelas energias que
subjazem às formas, fenômemos
ou problemas. A
repetição, na criação artística, pode possibilitar deleite estético, mas, se
mal-empregada, pode causar fastio e desinteresse. Penso que o uso criativo da
repetição em coreografias pode ser tão surpreendente e estimulante como
acontece na música, por exemplo.
Na música, o recurso da repetição foi levado às últimas consequências no
serialismo e no minimalismo, diz-se que ambos influenciaram a música eletrônica
e até mesmo o punk-rock. O minimalismo se caracteriza pela repetição, com
pequenas variações, de frases musicais ou pela execução de um mesmo tom por um
longo tempo, o que acaba por produzir melodias e ritmos hipnotizantes. Algumas
composições são capazes de desencadear estados meditativos no ouvinte e até
mesmo estados alterados de consciência e transe. Mas isso é algo que nossos
ancestrais ao redor do mundo já experimentavam durante festas rituais. E a
música, tanto instrumental quanto cantada, era inseparável da dança e
vice-versa. Desde tempos imemoriais conhecemos e exploramos o potencial que a
repetição de passos, coreografias, cantos, ritmos e melodias tem em concentrar
e transbordar energias e, consequentemente, transformar pessoas. E isso serve
aos propósitos das artes em geral.
As
observações do escritor Vitor Mazin referem-se ao meu solo TRANS, apresentado
em 2014 no Museo Freud dos Sonhos, em São Petersburgo. Na época, Mazin era
diretor do museu e fiz o solo em função de um congresso psicanalítico que
abordava a "monstruosidade" na vida contemporânea. Para fazer esse trabalho, não
me dediquei a estudar e imitar as formas de fenômenos sociais que consideramos
monstruosos, mas investiguei os processos
energéticos que originam o monstruoso em meu corpo. Da mesma maneira, não me
aproximo de personagens históricos em meus trabalhos, entre os quais Frida
Kahlo, Nietzsche, Artaud, tentando imitar sua aparência e suas condutas. Claro
que estudo suas obras e biografias. Mas não me interessa a mimese dessas
figuras e de suas vidas. O que me interessa, a
priori, são as forças que as moviam e de que maneira suas
energias se atualizam em meu corpo ou nos
corpos dos performers com quem trabalho.
WP | Apesar de sua problematização filosófica, por
exemplo, em A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica, de
Walter Benjamin, a repetição nas artes performativas parece ser debatida com
maior ênfase do que nos âmbitos das artes visuais e da música. Suponho que essa
acentuação maior é devida à centralidade do corpo
vivo
na dança, no teatro e na performance. De um lado, e do ponto de vista formal,
institucional e tradicional, as artes performativas repetem, isto é,
reapresentam e reencenam a mesma coreografia ou peça, a mesma encenação durante
uma temporada ou encenações diversas da mesma obra ao longo de décadas ou
séculos. Por outro lado, no sentido de cumprir sua função essencial, espera-se
das artes performativas a vivência de uma experiência singular. Reconciliar
essas duas dimensões é um de seus maiores desafios.
Os
exemplos citados, ao mesmo tempo eruditos e populares, da música – Gismonti e
Zappa, de um lado; Jarret, de outro – exemplificam possibilidades de abordagem
da repetição. A meu ver, devemos evitar a entronização de modelos normativos
gerais – sempre repetir, nunca repetir, sempre
variar
–, para, ao invés disso, encontrar estratégias que convêm para cada artista e
obra em questão.
No
taanteatro, a questão da repetição está vinculada à relação entre as forças e
as formas mobilizadas numa apresentação. Para conferir à experiência do
acontecimento performativo uma dimensão singular, é preciso que as formas
empregadas estejam em contato vivo com as forças que motivam a performance. A
ausência desse vínculo torna a apresentação mecânica e estéril. Quando forças e
formas se manifestam e beneficiam de maneira interdependente, sentimos a
necessidade interior da obra e de sua apresentação. Para proporcionar uma
experiência singular, a repetição precisa ser percebida como necessária e
justificada em termos dramatúrgicos e performativos. Do ponto de vista
dramatúrgico, a repetição deve exercer uma função estrutural e dinâmica, e do
ponto de vista performativo deve ser repetida com intensidade atualizada.
FM | E como falamos em música, como ela coabita o
universo em expansão da Taanteatro Companhia?
MB | Dança
e música sempre coabitam e não é diferente no taanteatro. Sempre gostei de
colaborar com músicos e no início de
minha carreira, em Brasília, tive a oportunidade de conviver e trabalhar com compositores como Jorge
Antunes, Conrado Silva, Emílio Terraza,
Rodolfo Caesar, João
Rochael, e também a banda Akneton, de
Celso Araujo. Posteriormente, no período em que estudei dança Butoh com Kazuo Ohno e Min
Tanaka no Japão, conheci o compositor Kazuo Uehara, com quem colaborei intensamente em Tóquio e em São Paulo.
O grande
obstáculo à colaboração com músicos, sobretudo ao vivo, é financeiro. Em geral, o mundo das artes performativas não tem os recursos necessários para
pagar pelo trabalho de composição e execução
musicais. Na ausência desses recursos, é preciso recorrer a obras musicais
existentes. Na Taanteatro Companhia fizemos isso amplamente sobretudo com foco
em música erudita clássica e contemporânea. Trabalhamos com músicas de
compositores muito diversos: Franz Schubert, Mozart, Bizet, Liszt, Richard
Strauss, Satie, Shostakovich, para citar alguns dos clássicos, e Arvo Pärt,
Krzysztof Penderecki, Giacinto Scelsi, Edgar Varèse e Philip Glass, entre os
mais contemporâneos.
Nos
últimos anos, tivemos novamente a oportunidade de trabalhar com músicas e
trilhas compostas especialmente para nossos espetáculos. A música
eletroacústica de Conrado Silva em nosso ciclo Matéria, as composições de
Vinicius Fróes Fialho para DAN - devir ancestral (2010) e Danças [Im]Puras (2012) e o trabalho musical de Gustavo Lemos para o espetáculo
Artaud - 50 desenhos para assassinar a magia (2014), incluindo a trilha para a trilogia cARTAUDgrafia
(2015), para Artaud, le Momo (2016) e
para 1001 Platôs (2017). Com o
ingresso do dançarino moçambicano Jorge Ndlozy em nossa companhia, o canto e instrumentos musicais como timbila e tambores passaram a
exercer um papel importante em nossas
encenações. Em DAN eu já soltava a voz interpretando El
Payande, uma canção do folclore peruano-colombiano. E a partir de 2014 o
canto passou a ser mais explorado por nós e o canto-falado tem estado bastante
presente no plano sonoro de nosso trabalho mais recente, o filme APOKÁLYPSIS (2021). [3]
FM | Em meio às turbulências que enfrentamos
agora, em plano político, econômico e,
sobretudo, sanitário (sem esquecer o quanto que os dois primeiros elementos
ferem a saúde mental de nosso tempo), remeto à inquietude de Kristen Bateman,
citada por ti em ensaio que publicamos na Agulha Revista de Cultura, e
indago: o quanto ainda estamos longe de “um novo estado de sonho”?
WP | O Surrealismo despontou entre duas Guerras Mundiais,
quer dizer, entre atrocidades de dimensões industriais nunca antes vistas na
história humana. A experiência do massacre de dezassete milhões de vidas
humanas durante a Primeira Guerra Mundial e das desgraças socioeconômicas
subsequentes abalou profundamente a crença nos valores e nas instituições
burgueses do início do século XX. Na juventude artística daquela época despertou
um espírito de revolta e, no caso dos surrealistas, também a esperança por uma vida
verdadeira, um conhecimento da realidade supra-sensível,
transcendente à realidade histórica. Essa esperança, entretanto, foi violentada
por uma carnificina ainda maior, a Segunda Guerra Mundial. Desde então, há 75
anos, vivemos em territórios ocidentais um período prolongado não de paz, mas
de cessar-fogo. Não em função de uma transformação espiritual da humanidade,
mas porque “não pode haver vencedores numa guerra nuclear”. [4] À paz aparente somou-se em décadas
mais recentes o temor da destruição das condições de vida na Terra, prospecto
decorrente da poluição ambiental e das mudanças climáticas.
A indagação de
Bateman diz respeito às ressonâncias surrealistas no mundo fashion
contemporâneo. Deixando de lado a problematização de um surrealismo haute
couture, podemos nos perguntar de que tipo de sonho ela está falando e
quais motivos justificariam a esperança por “um novo estado de sonho” diante de
um horizonte de ameaças apocalípticas. Hoje, o desencanto com as instituições é
novamente devastador. Mas, na atualidade, o furor da juventude se manifesta em
favor de políticas e práticas concretas e materiais, não em nome do direito ao
devaneio, mas, primeiramente, voltado à preservação da possibilidade da vida
biológica em nosso planeta. Apesar de raramente compartilhar do otimismo da
crença na possibilidade de definição do destino humano através da reafirmação
dos ideais do Iluminismo, como em Steven Pinker, ou da fé em um novo
estágio evolutivo com base na taxa exponencial de progresso tecnológico,
proferida por Ray Kurzweil, a juventude crítica atual também sonha com uma vida
verdadeira e baseia suas esperanças no poder da verdade, um poder menos da
arte, mas da razão, da ciência e da militância ecopolítica.
NOTAS
1. Cf. o
artigo publicado em 5 de novembro de 2021 na Agulha Revista de Cultura: https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2021/11/wolfgang-pannek-surrealismo-e-teatro.html\.
2.
Confira o website do festival: https://taanteatro.wixsite.com/ecoperformance?lang=pt.
3.
Veja o filme APOKÁLYPSIS no canal
Youtube da Taanteatro Companhia: https://www.youtube.com/channel/UCztS0CowPKVkaCNm-2Xy40w.
03 | CANDELARIA SILVESTRO | Artista argentina nacida en
Córdoba, en 1977. Expone desde el año 1998 en salas de arte, galerías y Museos
públicos y privados. Su obra forma parte de colecciones públicas y privadas,
nacionales e internacionales de Argentina, Brasil, Holanda, Estados Unidos.
Desde el año 2000 colabora con la Compañía Taanteatro de Sao Paulo en la
realización de escenografía, vestuario, video animación, objeto escénico y
performer. Sus trabajos más recientes son una participación en el film
internacional La Peste de Antonin
Artaud junto a la Compañía Taanteatro, en 2020; además de una participación
especial en el Festival de Ecoperformance 2021 (Compañía Taanteatro); una exposición de pinturas de gran formato inspirada en el paisaje de la Mar
Chiquita “Bandada de Flamencos”; la performance Ophelia de Ansenuza, concepción, dirección y coreografía de Maura
Baiocchi (Compañía Taanteatro); y participación en el filme Apokalypsis, dirección de Maura Baiocchi
y Wolfgang Pannek – todo esto en 2021.
Floriano Martins
∞ índice
ANTON
BONNICI | Uma crítica da leitura cinematográfica de Antonin
Artaud’s
The Theatre and the Plague
https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2022/02/anton-bonnici-uma-critica-da-leitura.html
CÉLIA
MUSILLI | Artaud: a arte,
a solidão e seu sapato
https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2022/02/celia-musilli-artaud-arte-solidao-e-seu.html
CELSO
ARAÚJO | Os voos de Maura por e sobre Brasília
https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2022/02/celso-araujo-os-voos-de-maura-por-e.html
CLAUDIO WILLER | Falar sobre Taanteatro
https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2022/02/claudio-willer-falar-sobre-taanteatro.html
HANS-THIES LEHMANN | Um teatro radicalmente
"verde"
https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2022/02/hans-thies-lehmann-um-teatro.html
NOURIT
MASSON-SÉKINÉ | Para
Maura, uma humanidade inteira
https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2022/02/nourit-masson-sekine-para-maura-uma.html
RODRIGO
MARCÓ DEL PONT | Maura Baiocchi, a Taanteatro Companhia e o trabalho com a mitologia
[trans]pessoal
https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2022/02/rodrigo-marco-del-pont-maura-baiocchi.html
ROLF GERSTLAUER | Ecoperformance em Filme – A Alquimia da Matéria
Transmutante [Reflexões prolongadas sobre o 1º Festival
Internacional de Ecoperformance 2021]
https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2022/02/rolf-gerstlauer-ecoperformance-em-filme.html
SHANE
PIKE | Capoeira,
Coca e Cachaça: experimentando novas técnicas de
criação teatral com a Taanteatro Companhia
https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2022/02/shane-pike-capoeira-coca-e-cachaca.html
TAANTEATRO | Quatro
críticas: TRANS no Museo dos Sonhos; Artaud le Mômo em Paris (Victor Mazin, Florence de Mèredieu, Philippe Person
e Guillaume D’azémar de
Fabregues)
https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2022/02/tanteatro-quatro-criticas-trans-no.html
Agulha Revista de Cultura
Série SURREALISMO SURREALISTAS # 03
Número 202 | fevereiro de 2022
Artista convidada: Candelaria Silvestro (Argentina, 1977)
Traduções de Wolfgang Pannek e Vadim Nikitin
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
concepção editorial, logo, design, revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS
ARC Edições © 2022
∞ contatos
Rua Poeta Sidney Neto 143 Fortaleza CE 60811-480 BRASIL
https://www.instagram.com/floriano.agulha/
https://www.linkedin.com/in/floriano-martins-23b8b611b/
Nenhum comentário:
Postar um comentário