∞ editorial | O voo secreto das chaves
01
| Ela me mostrou livros de madeira que se abrem com o deslocamento do dorso e outros
de papelão que são, como gavetas, prestígios da memória. Em um mundo de incontáveis
pequenas caixas e gavetas que davam para outros sítios, ela me mostrou que os totens
se escondem por trás de imagens que alimentam fracassos e capturas felizes da realidade.
Ela poderia escrever sobre a multidão misteriosa de seus guardados, porém tudo o
que pareceu lhe atrair era mostrar a disciplina de preservar a imaginação e suas
pontes entre todos aqueles curiosos objetos. Nunca sabemos quantos somos quando
estamos a bordo de um enigma. Em uma das paredes vejo um quadro que fixa em mim
seu múltiplo olhar. O rosto de uma mulher com seus olhos recortados e deslocados,
um para cada lado, o que nos dá a impressão de uma observação infinita. Assim como
a pintura me vê eu desconfio que seja o que vejo agora na multiplicidade dessa matéria,
os olhos postos em cada peça como um desígnio, o que investigo em meu íntimo como
a flâmula errante de um destino que sangra como a transcrição de uma memória furtada.
Há sempre a ilusão de que a estrada evolui em duas direções, como se fosse impossível
seguir outro percurso. Quando a estrada cai fora de si, não estamos mais indo ou
vindo. Uma das pequenas caixas me trouxe essa confirmação, quando a abri e dali
retirei a mesma foto reproduzida sem previsão de fim. Era para ser isso mesmo? Talvez tenha sido isto que o destino indagou.
Mas ela me fez crer que não estávamos em busca de um declínio. Do lado de fora o
rio seduzia duas rochas surgidas de cada margem a se encontrarem ao centro e abocanhar
um ovo que talvez contivesse em seu útero a última serpente da imaginação. Era impossível
prever o que o passado desejava de si. A todo instante somos desfigurados por uma
extensão do tempo esvaziado de sua cobiça. Ela me mostrou que as gavetas sangram
evidências invisíveis e que quase ninguém se interessa pelo imprevisível. Para onde
iríamos, ao sair dali, é algo que tateamos quando a próxima cena se refaz.
02
| O
Surrealismo foi conhecido na América de imediato a seu nascimento na Europa. O continente
americano contemplava com atenção os desdobramentos das vanguardas. Em muitos casos
– cabe destacar o Futurismo –, houve ampla assimilação da parte de artistas, poetas,
críticos em todo o continente. Mas claro, conhecimento não significa filiação.
Também a
Europa conheceu o Surrealismo da América muito antes da magia e do sangue negro
da floresta. Através de Lautréamont o Surrealismo da América tornou-se conhecido
na Europa, com seu espanto natural diante do mundo abissal da poética do Conde.
As duas partes do mundo sempre souberam que o Surrealismo é fruto de suas viagens,
os deslocamentos do ser que agiganta a visão de mundo e torna possível conhecer
o mais íntimo de toda perspectiva, de toda relação.
Naturalmente
é um jogo, uma brincadeira, isto de dois surrealismos, embora seja muito possível
distinguir singularidades em uma margem e outra do Atlântico. Porém houve Surrealismo
em outras partes do planeta, de modo que é imperativo pesquisar seus modos de ser,
suas preferências, obstáculos etc. Entre as eclosões todas das vanguardas, fato
é que duas se destacam com maior claridade estética, precisamente Futurismo e Surrealismo.
Duas posturas
definem a presença inegável dessas correntes. O Futurismo foi uma exaltação do presente.
Para o Surrealismo, foi sua negação. Vem daí a distinção de escola e movimento.
Se Marinetti desejava fortalecer a relação entre criação artística e realidade,
a Breton lhe parecia mais certo averiguar os equívocos dessa relação, propondo que
a criação melhor se define por sua condição de questionar a realidade. Dois pontos
de vista contrários no modo de apresentar seus postulados.
Talvez seja
melhor compreender até que ponto a América estava preparada para as duas vanguardas
surgidas na Europa, em seu território múltiplo e convulsionado pelas buscas de identidade.
Tomemos um caso, por exemplo: a presença de Marinetti e Breton na América, precisamente
o primeiro em Montevidéu e o outro no México. Os uruguaios foram anuentes ao Futurismo,
assimilado como um diálogo possível com suas inquietudes locais. Por outro lado,
os mexicanos foram contrários à presença do Surrealismo, e mantiveram com o poeta
francês uma atitude hostil.
Dois fatores
explicam tais reações. Enquanto o Futurismo mantinha-se estável com seus princípios,
o Surrealismo trasladava por todas as partes o tablado de suas controvérsias internas,
sem esquecer a rejeição de Breton de aprender outras línguas que não fossem o francês.
Outro fator era que o Surrealismo soava como uma imposição, enquanto que o Futurismo
buscava mais a compreensão do que a aceitação. Também é possível agregar outras
impossibilidades, sobretudo de ordem moral. Olhando a história como o fazemos agora,
é possível observar que por razões distintas o Futurismo alcançou uma identificação
com a realidade de alguns países em nosso continente – México, Brasil, Uruguai –,
ao mesmo tempo em que o Surrealismo encontrou um campo afetivo em países como Chile,
Argentina e Canadá. Porém, ao mesmo tempo, semeou relações complexas, tanto por
gestões políticas quanto religiosas.
David Curbelo
menciona poetas que mantiveram relações distintas com o Surrealismo. Vallejo (Peru,
1892-1938) foi duramente contrário ao movimento; Neruda (Chile, 1904-1973) sempre
esteve em favor dele mesmo; Paz (México, 1914-1998) foi um estrategista; Lezama
Lima (Cuba, 1910-1976) foi silencioso; Molina (Argentina, 1910-1997) foi naturalmente
surrealista. Na verdade, tanto é inegável a presença do Surrealismo na prosa poética
que se encontra em um livro como La fijeza
(1949), do cubano, como é duvidosa a influência do movimento na poética do peruano.
Uma vez mais, houve demasiado equívoco de leituras entre os diversos ismos de princípios do século XX. Uma confusão
de encruzilhadas, ampliada em muitos casos por preconceitos comuns e fatais.
As tensões
foram muitas e hoje me parece que o caráter principal da rejeição foi o fato de
que o continente buscava desnudar-se da roupagem colonial, de modo que formalizar
filiação a um partido estético significava um tipo de limitação em sua necessidade
de resistência ao conquistador europeu. Em silêncio, um silêncio convulsivo como
a beleza, a verdade é que o continente foi agregando surrealismo, e mais ainda:
em muitos casos foi descobrindo uma razão de ser surrealista que já não era simples
aceitação, mas sim atuação decisiva em uma esfera estética.
Por isso
a provocação inicial de surrealismos distintos em uma e outra parte, como se fosse
possível fracioná-lo. É possível? Verdade é que o surrealismo na plástica hoje se
encontra mais difundido do que na poesia. Falamos com facilidade das imagens surrealistas,
porém em geral estamos tratando das inquietudes abissais de René Magritte (Bélgica,
1898-1967), Salvador Dalí (Espanha, 1904-1989), Max Ernst (Alemanha, 1891-1976).
Afirmei que
o Surrealismo foi uma negação do presente, porém isto se deu destacadamente em suas
origens. Na América, embora tenhamos exemplos de filiações ortodoxas, o mais importante
foi certa característica desvelada de busca de criar uma realidade própria, assim
como um tempo próprio. Francisco Madariaga (Argentina, 1927-2000) define este ambiente
muito bem. Para ele o Surrealismo na América significou uma boda, mais do que simples ruptura. É possível
encontrar exemplos de filiação em formações grupais em países como Estados Unidos,
Canadá, Brasil. Houve igualmente pontos de diálogos, mais além de uma aceitação
tácita, em grupos surgidos em países como Chile, Argentina, República Dominicana.
Porém o mais singular é encontrado em vozes muito particulares, de poetas que devem
ser reconhecidos como donos de uma poética fundamental, tais como Enrique Molina,
César Moro e Ludwig Zeller.
O século
XX foi, em meio a outras febres, algumas bem irracionais, marcado pelo descobrimento
da imagem. A imagem surrealista foi talvez o ponto central dessa renovação da construção
de uma visão de mundo. A ideia de imagem não se limitava ao ambiente plástico em
momento algum. Sempre esteve mais clara a concepção da imagem. O que se passa é
que este mesmo século se caracterizou por outra coisa, o desenvolvimento vertiginoso
de um mercado que utilizou a arte, a ciência e a religião para entronizar-se como
um novo padrão de existência.
Tratemos
de não esquecer: vivemos – mais do que convivemos – em um mundo que ainda não encontro
seu lugar próprio. Não há América. Em geral nos aproximamos dos noticiários para
compreender o que se passa na Europa e talvez isto nos permita conhecer um pouco
mais sobre nós mesmos. Pior: pensamos que os demais continentes atuam como nós.
Há um que sofre, outro que busca cumplicidade e um terceiro que cuido de sua vida
independente de tudo. América ainda não se desgrudou da Europa.
Há muito
o Surrealismo, no entanto, não se chama Europa. Seu nome real tem que ver com o
que propôs: buscar uma realidade além do visível. Não há surrealismo europeu se
o compreendemos em sua raiz. Há Surrealismo na Austrália, no Japão, no Peru, em
Marrocos etc. Um olhar é o que temos pronto para compreender ou mudar o mundo. Em
seguida fazer parte da afirmação desse olhar. Não há cânone, ou por que havê-lo.
O Surrealismo aceita sua própria inexistência no momento em que o compreendemos.
Por isto não há escola.
Em pleno
século XXI, é fato que ainda não passamos a página de muitos temas – racismo, colonialismo,
tensões entre liberdade e responsabilidade –, que permanecem impregnados na história
como um cancro invencível. A Europa viveu sempre de entrechoques, enquanto que a
América é uma perene desconhecida de si mesma. Duas faces da mesma moeda. A história
não faz outra coisa senão repetir-se. O próprio Surrealismo segue repetindo seus
erros clássicos, seja por magnitude ortodoxa ou pela falta de convicção estética
e moral que tanto caracteriza nossa época. Um tema é reflexo do outro.
Logo chegaremos
ao centenário do Primeiro Manifesto do Surrealismo. Recordemos como o mesmo se inicia:
Tamanha é a crença na vida, no que a vida
tem de mais precário, bem entendo, a vida real, que afinal esta crença se perde. E como termina: Viver e deixar viver é que são soluções imaginárias.
A existência está em outro lugar. O argumento central é a vida ou a crença?
A existência ou a imaginação? O homem ainda se comporta como se não soubesse a resposta.
Em muitos casos, pior: como se não houvesse importância em sabê-lo. Dói saber que
o mundo não mudou muito, exceto na maquiagem, nos efeitos, na falsa simetria.
O que vamos
fazer com o centenário do Surrealismo? Convertê-lo em palco de nova onda? Celebrar
a mais valiosa oportunidade de que a aventura humana se desenvolvesse em favor do
homem? Nostalgia? Moda? Creio que cabe reflexão por todas as partes. Que nada –
ou ninguém – é irrevogável. A própria exposição que agora se realiza por ser uma
antecipação desta meditação acerca dos 100 anos de algo que, no drama universal
da existência humana, se converteu em fonte inquebrantável de perspectivas de transfiguração
do ser, fazendo com que este personagem central brilhe ao atuar ao mesmo tempo como
criador e criatura.
Como recuperar
a história do Surrealismo? A inexistência de escola não quer dizer que a obra não
se realiza. Embora estejamos acostumados à classificação, há surrealismo pelos sítios
menos visitáveis de nosso continente. Em muitos casos tomados por uma inocência,
alheios às rejeições ou aos vícios de aceitação. A gente mais humilde que ainda
crê que uma imagem pode mudar o mundo. A gente que não sabe o que é Surrealismo
e que em muito de sua vida o realiza. O próprio Surrealismo não alcançou o grau
de naturalidade que propôs. Porém sabemos: a vida é impossibilidade. O que define
a vida, no entanto, é o que realizamos ou o que fazemos por realizar?
NOTAS
Este
ensaio integra a fortuna crítica da Exposição Internacional do Surrealismo intitulada
“As chaves do desejo” (Costa Rica, março de 2016). Escrito em fevereiro de 2015,
o texto foi atualizado para a presente edição.
1. Escritura conquistada – Poesía
hispanoamericana (Fortaleza: ARC Edições, 2018), de Floriano Martins. Volume
com 700 páginas, editado originalmente em espanhol.
03 | JOHN WELSON (País de Gales, 1953). Poeta e artista plástico, Welson é um desses personagens admiráveis por sua incondicional obsessão pela criação. Desde a infância que se dedica à pintura, ao desenho, à cerâmica e logo dando início também à escritura poética. Resultado dessa voracidade criativa é que tem em sua agenda um registro de mais de 300 participações em galerias em vários países. Nas últimas décadas produziu um abstracionismo lírico cuja ótica central é a paisagem de seu País de Gales. A seu respeito escreveu John Richardson: Quer sejamos encantados com a poesia de John Welson, fascinados quando suas pinturas batem à porta de nosso inconsciente, ou nos encontremos iludidos por suas colagens enquanto conscientemente reordenam nossa visão de o que é e o que pode ser, é possível, acredito, discernir através do vidro as sombras, os traços e os impulsos que revelam seu compromisso com a liberdade e o surrealismo. […] Para John, a violência em tomar ou separar é apenas a primeira etapa necessária de uma grande obra de desconstrução, necessária para reconstruir e reconstruir, permitindo assim que a realidade latente da vida cotidiana, que a ideologia burguesa mascara, surja e se destaque. É dessa maneira orgânica que o Maravilhoso nos é revelado. Mais uma vez, ele nos oferece um vislumbre do que poderia ser.
Floriano Martins
∞ índice
ANTÓNIO
CÂNDIDO FRANCO | O Surrealismo em André Coyné
https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2022/03/antonio-candido-franco-o-surrealismo-em.html
BEATRIZ HAUSNER
| El amor de César Moro
https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2022/03/beatriz-hausner-el-amor-de-cesar-moro.html
BERTA LUCÍA ESTRADA | Fernando Arrabal: el poeta está en las
catacumbas
https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2022/03/berta-lucia-estrada-fernando-arrabal-el.html
DIOGO
CARDOSO | A palavra iluminada: Algumas considerações sobre Cadernos de João, de Aníbal Machado
https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2022/03/diogo-cardoso-palavra-iluminada-algumas.html
ENRIQUE DE SANTIAGO
| Matta en el inverso del universo
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JACOB
KLINTOWITZ | Alexander Calder, o senhor do ar e dos ventos
https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2022/03/jacob-klintowitz-alexander-calder-o.html
LUIZ NAZARIO | O cinema louco de Guy Maddin
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MARIANA
SILVA FRANZIM | A fotografia surrealista de Diane Arbus
https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2022/03/mariana-silva-franzim-fotografia.html
MIRIAN TAVARES | Hilma af Klint – O espírito do
tem ou o tempo dos espíritos
https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2022/03/mirian-tavares-hilma-af-klint-o.html
ROCÍO LUQUE | Nahui Olin: una mirada lúcida
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Agulha Revista de Cultura
Série SURREALISMO SURREALISTAS # 05
Número 204 | março de 2022
Artista convidado: John Welson (País de Gales, 1953)
Tradução: Susana Wald
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
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