sexta-feira, 4 de março de 2022

Agulha Revista de Cultura # 204 | março de 2022

 

∞ editorial | O voo secreto das chaves

 


00 | Por mais que se diga que nada deve ser dito à morte, é difícil resignar-se ao estrondo silencioso deixado pela ausência de quem se ama. Desta vez a morte se chama Alfonso Peña (Costa Rica, 1950-2022), um desses personagens mais carismáticos que conheci. Como bem destacou um de nossos amigos comuns, Ricardo Echavarri, Alfonso foi o mais nobre espírito poético desta parte do mundo. Dentre tantos amigos que me escreveram, reproduzo aqui as palavras de alguém que me foi apresentada justamente por Alfonso, Rocio Portocarrero: Conheço a maravilhosa amizade que te uniu a Alfonso. Através dele eu te conheci em sua viagem à Costa Rica, que vocês conspiraram juntos. Graças a ele, te apresentamos com sucesso no Centro de Estudos Brasileiros, como parte do Programa Brasil Presente, da Embaixada do Brasil em São José. Havia uma camaradagem única entre vocês em vários tópicos: amor pela poesia, livros, surrealismo etc. Ao longo de 40 anos, nos encontramos sempre maravilhados perante a existência e realizamos vários projetos: https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2021/12/alfonso-pena-floriano-martins-de-la.html, sempre acompanhados pelo vinho de uma grande amizade. Não fosse pelos graves problemas de saúde que vinha enfrentando, seguramente ele participaria desta nossa série dedicada ao Surrealismo, de modo que é um imperativo natural dedicar-lhe a presente edição. A esse imenso amigo, sempre tão cheio de vida, Alfonso Peña. Abraxas

 

01 | Ela me mostrou livros de madeira que se abrem com o deslocamento do dorso e outros de papelão que são, como gavetas, prestígios da memória. Em um mundo de incontáveis pequenas caixas e gavetas que davam para outros sítios, ela me mostrou que os totens se escondem por trás de imagens que alimentam fracassos e capturas felizes da realidade. Ela poderia escrever sobre a multidão misteriosa de seus guardados, porém tudo o que pareceu lhe atrair era mostrar a disciplina de preservar a imaginação e suas pontes entre todos aqueles curiosos objetos. Nunca sabemos quantos somos quando estamos a bordo de um enigma. Em uma das paredes vejo um quadro que fixa em mim seu múltiplo olhar. O rosto de uma mulher com seus olhos recortados e deslocados, um para cada lado, o que nos dá a impressão de uma observação infinita. Assim como a pintura me vê eu desconfio que seja o que vejo agora na multiplicidade dessa matéria, os olhos postos em cada peça como um desígnio, o que investigo em meu íntimo como a flâmula errante de um destino que sangra como a transcrição de uma memória furtada. Há sempre a ilusão de que a estrada evolui em duas direções, como se fosse impossível seguir outro percurso. Quando a estrada cai fora de si, não estamos mais indo ou vindo. Uma das pequenas caixas me trouxe essa confirmação, quando a abri e dali retirei a mesma foto reproduzida sem previsão de fim. Era para ser isso mesmo? Talvez tenha sido isto que o destino indagou. Mas ela me fez crer que não estávamos em busca de um declínio. Do lado de fora o rio seduzia duas rochas surgidas de cada margem a se encontrarem ao centro e abocanhar um ovo que talvez contivesse em seu útero a última serpente da imaginação. Era impossível prever o que o passado desejava de si. A todo instante somos desfigurados por uma extensão do tempo esvaziado de sua cobiça. Ela me mostrou que as gavetas sangram evidências invisíveis e que quase ninguém se interessa pelo imprevisível. Para onde iríamos, ao sair dali, é algo que tateamos quando a próxima cena se refaz.

 

02 | O Surrealismo foi conhecido na América de imediato a seu nascimento na Europa. O continente americano contemplava com atenção os desdobramentos das vanguardas. Em muitos casos – cabe destacar o Futurismo –, houve ampla assimilação da parte de artistas, poetas, críticos em todo o continente. Mas claro, conhecimento não significa filiação.

Também a Europa conheceu o Surrealismo da América muito antes da magia e do sangue negro da floresta. Através de Lautréamont o Surrealismo da América tornou-se conhecido na Europa, com seu espanto natural diante do mundo abissal da poética do Conde. As duas partes do mundo sempre souberam que o Surrealismo é fruto de suas viagens, os deslocamentos do ser que agiganta a visão de mundo e torna possível conhecer o mais íntimo de toda perspectiva, de toda relação.

Naturalmente é um jogo, uma brincadeira, isto de dois surrealismos, embora seja muito possível distinguir singularidades em uma margem e outra do Atlântico. Porém houve Surrealismo em outras partes do planeta, de modo que é imperativo pesquisar seus modos de ser, suas preferências, obstáculos etc. Entre as eclosões todas das vanguardas, fato é que duas se destacam com maior claridade estética, precisamente Futurismo e Surrealismo.

Duas posturas definem a presença inegável dessas correntes. O Futurismo foi uma exaltação do presente. Para o Surrealismo, foi sua negação. Vem daí a distinção de escola e movimento. Se Marinetti desejava fortalecer a relação entre criação artística e realidade, a Breton lhe parecia mais certo averiguar os equívocos dessa relação, propondo que a criação melhor se define por sua condição de questionar a realidade. Dois pontos de vista contrários no modo de apresentar seus postulados.

Talvez seja melhor compreender até que ponto a América estava preparada para as duas vanguardas surgidas na Europa, em seu território múltiplo e convulsionado pelas buscas de identidade. Tomemos um caso, por exemplo: a presença de Marinetti e Breton na América, precisamente o primeiro em Montevidéu e o outro no México. Os uruguaios foram anuentes ao Futurismo, assimilado como um diálogo possível com suas inquietudes locais. Por outro lado, os mexicanos foram contrários à presença do Surrealismo, e mantiveram com o poeta francês uma atitude hostil.

Dois fatores explicam tais reações. Enquanto o Futurismo mantinha-se estável com seus princípios, o Surrealismo trasladava por todas as partes o tablado de suas controvérsias internas, sem esquecer a rejeição de Breton de aprender outras línguas que não fossem o francês. Outro fator era que o Surrealismo soava como uma imposição, enquanto que o Futurismo buscava mais a compreensão do que a aceitação. Também é possível agregar outras impossibilidades, sobretudo de ordem moral. Olhando a história como o fazemos agora, é possível observar que por razões distintas o Futurismo alcançou uma identificação com a realidade de alguns países em nosso continente – México, Brasil, Uruguai –, ao mesmo tempo em que o Surrealismo encontrou um campo afetivo em países como Chile, Argentina e Canadá. Porém, ao mesmo tempo, semeou relações complexas, tanto por gestões políticas quanto religiosas.


O fato, como afirma Jesús David Curbelo (Cuba, 1965), em diálogo inserido em um livro sobre as vanguardas na América Hispânica, é que é inegável a importância do Surrealismo como elemento para desintoxicar a consciência artística, e é indiscutível também a forma com que marcou muitos dos principais poetas latino-americanos do século XX (Pablo Neruda, César Vallejo, Octavio Paz, José Lezama Lima, Enrique Molina), ao ponto de constituir o motor impulsor do pensamento artístico e literário em muitos deles. [1]

David Curbelo menciona poetas que mantiveram relações distintas com o Surrealismo. Vallejo (Peru, 1892-1938) foi duramente contrário ao movimento; Neruda (Chile, 1904-1973) sempre esteve em favor dele mesmo; Paz (México, 1914-1998) foi um estrategista; Lezama Lima (Cuba, 1910-1976) foi silencioso; Molina (Argentina, 1910-1997) foi naturalmente surrealista. Na verdade, tanto é inegável a presença do Surrealismo na prosa poética que se encontra em um livro como La fijeza (1949), do cubano, como é duvidosa a influência do movimento na poética do peruano. Uma vez mais, houve demasiado equívoco de leituras entre os diversos ismos de princípios do século XX. Uma confusão de encruzilhadas, ampliada em muitos casos por preconceitos comuns e fatais.

As tensões foram muitas e hoje me parece que o caráter principal da rejeição foi o fato de que o continente buscava desnudar-se da roupagem colonial, de modo que formalizar filiação a um partido estético significava um tipo de limitação em sua necessidade de resistência ao conquistador europeu. Em silêncio, um silêncio convulsivo como a beleza, a verdade é que o continente foi agregando surrealismo, e mais ainda: em muitos casos foi descobrindo uma razão de ser surrealista que já não era simples aceitação, mas sim atuação decisiva em uma esfera estética.

Por isso a provocação inicial de surrealismos distintos em uma e outra parte, como se fosse possível fracioná-lo. É possível? Verdade é que o surrealismo na plástica hoje se encontra mais difundido do que na poesia. Falamos com facilidade das imagens surrealistas, porém em geral estamos tratando das inquietudes abissais de René Magritte (Bélgica, 1898-1967), Salvador Dalí (Espanha, 1904-1989), Max Ernst (Alemanha, 1891-1976).

Afirmei que o Surrealismo foi uma negação do presente, porém isto se deu destacadamente em suas origens. Na América, embora tenhamos exemplos de filiações ortodoxas, o mais importante foi certa característica desvelada de busca de criar uma realidade própria, assim como um tempo próprio. Francisco Madariaga (Argentina, 1927-2000) define este ambiente muito bem. Para ele o Surrealismo na América significou uma boda, mais do que simples ruptura. É possível encontrar exemplos de filiação em formações grupais em países como Estados Unidos, Canadá, Brasil. Houve igualmente pontos de diálogos, mais além de uma aceitação tácita, em grupos surgidos em países como Chile, Argentina, República Dominicana. Porém o mais singular é encontrado em vozes muito particulares, de poetas que devem ser reconhecidos como donos de uma poética fundamental, tais como Enrique Molina, César Moro e Ludwig Zeller.

O século XX foi, em meio a outras febres, algumas bem irracionais, marcado pelo descobrimento da imagem. A imagem surrealista foi talvez o ponto central dessa renovação da construção de uma visão de mundo. A ideia de imagem não se limitava ao ambiente plástico em momento algum. Sempre esteve mais clara a concepção da imagem. O que se passa é que este mesmo século se caracterizou por outra coisa, o desenvolvimento vertiginoso de um mercado que utilizou a arte, a ciência e a religião para entronizar-se como um novo padrão de existência.

Tratemos de não esquecer: vivemos – mais do que convivemos – em um mundo que ainda não encontro seu lugar próprio. Não há América. Em geral nos aproximamos dos noticiários para compreender o que se passa na Europa e talvez isto nos permita conhecer um pouco mais sobre nós mesmos. Pior: pensamos que os demais continentes atuam como nós. Há um que sofre, outro que busca cumplicidade e um terceiro que cuido de sua vida independente de tudo. América ainda não se desgrudou da Europa.

Há muito o Surrealismo, no entanto, não se chama Europa. Seu nome real tem que ver com o que propôs: buscar uma realidade além do visível. Não há surrealismo europeu se o compreendemos em sua raiz. Há Surrealismo na Austrália, no Japão, no Peru, em Marrocos etc. Um olhar é o que temos pronto para compreender ou mudar o mundo. Em seguida fazer parte da afirmação desse olhar. Não há cânone, ou por que havê-lo. O Surrealismo aceita sua própria inexistência no momento em que o compreendemos. Por isto não há escola.

Em pleno século XXI, é fato que ainda não passamos a página de muitos temas – racismo, colonialismo, tensões entre liberdade e responsabilidade –, que permanecem impregnados na história como um cancro invencível. A Europa viveu sempre de entrechoques, enquanto que a América é uma perene desconhecida de si mesma. Duas faces da mesma moeda. A história não faz outra coisa senão repetir-se. O próprio Surrealismo segue repetindo seus erros clássicos, seja por magnitude ortodoxa ou pela falta de convicção estética e moral que tanto caracteriza nossa época. Um tema é reflexo do outro.

Logo chegaremos ao centenário do Primeiro Manifesto do Surrealismo. Recordemos como o mesmo se inicia: Tamanha é a crença na vida, no que a vida tem de mais precário, bem entendo, a vida real, que afinal esta crença se perde. E como termina: Viver e deixar viver é que são soluções imaginárias. A existência está em outro lugar. O argumento central é a vida ou a crença? A existência ou a imaginação? O homem ainda se comporta como se não soubesse a resposta. Em muitos casos, pior: como se não houvesse importância em sabê-lo. Dói saber que o mundo não mudou muito, exceto na maquiagem, nos efeitos, na falsa simetria.

O que vamos fazer com o centenário do Surrealismo? Convertê-lo em palco de nova onda? Celebrar a mais valiosa oportunidade de que a aventura humana se desenvolvesse em favor do homem? Nostalgia? Moda? Creio que cabe reflexão por todas as partes. Que nada – ou ninguém – é irrevogável. A própria exposição que agora se realiza por ser uma antecipação desta meditação acerca dos 100 anos de algo que, no drama universal da existência humana, se converteu em fonte inquebrantável de perspectivas de transfiguração do ser, fazendo com que este personagem central brilhe ao atuar ao mesmo tempo como criador e criatura.

Como recuperar a história do Surrealismo? A inexistência de escola não quer dizer que a obra não se realiza. Embora estejamos acostumados à classificação, há surrealismo pelos sítios menos visitáveis de nosso continente. Em muitos casos tomados por uma inocência, alheios às rejeições ou aos vícios de aceitação. A gente mais humilde que ainda crê que uma imagem pode mudar o mundo. A gente que não sabe o que é Surrealismo e que em muito de sua vida o realiza. O próprio Surrealismo não alcançou o grau de naturalidade que propôs. Porém sabemos: a vida é impossibilidade. O que define a vida, no entanto, é o que realizamos ou o que fazemos por realizar?

 

NOTAS

Este ensaio integra a fortuna crítica da Exposição Internacional do Surrealismo intitulada “As chaves do desejo” (Costa Rica, março de 2016). Escrito em fevereiro de 2015, o texto foi atualizado para a presente edição.

1. Escritura conquistada – Poesía hispanoamericana (Fortaleza: ARC Edições, 2018), de Floriano Martins. Volume com 700 páginas, editado originalmente em espanhol.

 


03 | JOHN WELSON (País de Gales, 1953). Poeta e artista plástico, Welson é um desses personagens admiráveis por sua incondicional obsessão pela criação. Desde a infância que se dedica à pintura, ao desenho, à cerâmica e logo dando início também à escritura poética. Resultado dessa voracidade criativa é que tem em sua agenda um registro de mais de 300 participações em galerias em vários países. Nas últimas décadas produziu um abstracionismo lírico cuja ótica central é a paisagem de seu País de Gales. A seu respeito escreveu John Richardson: Quer sejamos encantados com a poesia de John Welson, fascinados quando suas pinturas batem à porta de nosso inconsciente, ou nos encontremos iludidos por suas colagens enquanto conscientemente reordenam nossa visão de o que é e o que pode ser, é possível, acredito, discernir através do vidro as sombras, os traços e os impulsos que revelam seu compromisso com a liberdade e o surrealismo. […] Para John, a violência em tomar ou separar é apenas a primeira etapa necessária de uma grande obra de desconstrução, necessária para reconstruir e reconstruir, permitindo assim que a realidade latente da vida cotidiana, que a ideologia burguesa mascara, surja e se destaque. É dessa maneira orgânica que o Maravilhoso nos é revelado. Mais uma vez, ele nos oferece um vislumbre do que poderia ser.
 

Floriano Martins 

 

 

∞ índice

 

ANTÓNIO CÂNDIDO FRANCO | O Surrealismo em André Coyné

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BEATRIZ HAUSNER | El amor de César Moro

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BERTA LUCÍA ESTRADA | Fernando Arrabal: el poeta está en las catacumbas

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DIOGO CARDOSO | A palavra iluminada: Algumas considerações sobre Cadernos de João, de Aníbal Machado

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ENRIQUE DE SANTIAGO | Matta en el inverso del universo

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JACOB KLINTOWITZ | Alexander Calder, o senhor do ar e dos ventos

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LUIZ NAZARIO | O cinema louco de Guy Maddin

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MARIANA SILVA FRANZIM | A fotografia surrealista de Diane Arbus

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MIRIAN TAVARES | Hilma af Klint – O espírito do tem ou o tempo dos espíritos

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ROCÍO LUQUE | Nahui Olin: una mirada lúcida

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John Welson




Agulha Revista de Cultura

Série SURREALISMO SURREALISTAS # 05

Número 204 | março de 2022

Artista convidado: John Welson (País de Gales, 1953)

Tradução: Susana Wald

editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com

editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com

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