sábado, 9 de abril de 2022

Agulha Revista de Cultura # 206 | abril de 2022

 

∞ editorial | A visita do Chapeleiro Louco

 


00 | Aqui estamos com a edição # 7 da série SURREALISMO SURREALISTAS: http://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2022/01/surrealismo-surrealistas.html. Até o momento publicamos pouco mais de 70 estudos críticos sobre a obra de criadores ligados direta ou indiretamente com o movimento surrealista, ou seja, aqueles grandes criadores que, em muitos casos, mesmo não tendo jamais formalizado seu ingresso em formações grupais, sempre tiveram em sua obra, assim como em sua vida, o Surrealismo como a grande fonte de convulsões do maravilhoso. A série continua, por todo este ano de 2022.

01 | Um dia depois a luz ainda estava lá, um pouco retorcida, porém permanecia engolindo as sombras. Um meio trêmulo de persistir na exploração do inesperado. Dizer que a distância reconhece o peso dos amores perdidos é uma consideração indevida com os rumos irreconhecíveis da memória. Deem-me as xícaras, esta vez eu sirvo o chá, deixarei o conteúdo transbordar pela mesa e o chão até que o desejo se torne palpável. Um brinde à natureza estirada ao sol dos labirintos abandonados. Sempre que alteramos a aposição de um adjetivo sobre a argamassa de um pensamento a ideia se distrai e o acaso nos oferece outra morada. Será nada ou o que? Será um corrosivo talvez ou a ressonância de um símbolo inspirado no vazio? Um corpo punido pelas referências desencontradas de suas aparências. Como afugentar a linguagem até que ela aprenda a sentar-se conosco para o chá de nossas vidas, as mais turbulentas, se preciso? Quem quer estar conosco mesmo quando não estejamos mais aqui? Quem ou ninguém? Eu ligo a vitrola e a música de sua vidência se alastra pelo campo. As cadeiras vazias se põem a dançar. As combinações eloquentes não duram mais que um instante. Deem-me as xícaras. É agora ou tudo?

02 | O século XX traz à cena uma série de valores que atuam na percepção de uma nova realidade. Na música se verifica um duplo movimento de contração e expansão, regido respectivamente pela atonalidade e a politonalidade. Na poesia, dois outros mecanismos surpreendentes alcançam uma dimensão crescente: a imagem e a imaginação. Por sua vez, às artes plásticas coube lidar com duas outras forças: a síntese e a representação. Não cabendo exclusividade a nenhum desses fatores, eles foram se mesclando em todas as formas de manifestação artística.

Transcorrido um século de existência do Surrealismo nos vemos no interior de um imenso paiol de reflexões, inventariando suas marcas de resistência, seus repetidos espólios, a atualidade de suas doutrinas. Em um século o mundo sofreu danos irreparáveis, alterou a rota de seus fatos mais aparentemente definitivos. Com a perda total da identidade do ser, tomou-se como fonte viral a negação do ser. Não confundir com a negação do eu segundo o Budismo. Neste elimina-se o sujeito de cada ação para adentrar o conceito de que o ato é comum a todos. Ao contrário, a negação do ser que infesta nosso tempo se trata de uma padronização de sentidos (como amamos, como vestimos, como pensamos). Em um caso a busca de integração do ser no outro; no seguinte, a imposição de uma doutrina de má-fé. Já que recorri ao Budismo – Octavio Paz (1914-1998) lastimou certa vez que Breton não tenha se interessado por ele –, [1] indago: quando pensamos em Surrealismo importa acreditar em André Breton ou no mito? Por mais que imaginemos que as duas figuras se superponham em um amálgama de maravilhas, em uma leitura ao mesmo tempo lúcida e apaixonada, percebemos que os preceitos básicos da doutrina surrealista – amor, liberdade, poesia –, que podemos concentrar em uma palavra central (tolerância) não foram seguidos tão estritamente por Breton.

Recordando o mexicano Paz – ele próprio diria: minhas atividades dentro do grupo surrealista foram bem mais tangenciais – é plenamente possível concordar com as suas ideias sobre a inspiração:

 

O decisivo foi haver inserido a inspiração em nossa ideia do mundo. Graças ao surrealismo a inspiração não é um mistério sobrenatural, nem uma vã superstição ou uma doença. É uma realidade que não está em contradição com nossas concepções fundamentais, uma possibilidade que se dá a todos os homens e que lhes permite ir além de si mesmos. [2]

 

A vida moderna desencadeia uma série de desejos de mudança, um deles regido por Pierre Reverdy (1889-1960) através de suas proposições sobre a imagem, em especial a imagem poética. Recordemos a frase de André Breton, destacada do Segundo manifesto:

 

Tudo leva a crer que existe certo ponto do espírito de onde a vida e a morte, o real e o imaginário, o passado e o futuro, o comunicável e o incomunicável, o alto e o baixo cessam de ser percebidos contraditoriamente.

 

Bem antes, em 1921, em uma conferência de Vicente Huidobro (1893-1948), lida no Ateneu de Madri, Espanha, encontramos que

 

Toda poesia válida tende ao último limite da imaginação. E não apenas da imaginação, mas sim do próprio espírito, porque a poesia não é outra coisa que o último horizonte, que, por sua vez, a aresta onde os extremos se tocam, onde não há contradição nem dúvida.

 

Mais adiante sustenta:

 

O poeta estende a mão para nos conduzir mais além do último horizonte, mais acima da ponta da pirâmide, nesse campo que se estende muito além do verdadeiro e do falso, além da vida e da morte, além do espaço e do tempo, além da razão e da fantasia, além do espírito e da matéria.

 

Antes que se caia no ardil gratuito de aproximar Breton e Huidobro, até mesmo buscando acusar um de apropriação das ideias do outro, ao abrir as páginas de revista Nord-Sud, março de 1918, encontramos a compreensão de Pierre Reverdy no sentido de que

 

A imagem é uma criação pura do espírito. Não pode nascer de uma comparação, mas sim da aproximação de duas realidades mais ou menos afastadas. Quanto mais distantes, mais forte será a imagem, e possuirá mais potência emotiva e realidade poética.

 

O espírito que regia os passos de cada um desses três poetas encontrava seu ponto absoluto de partida tanto no sonho quando no pensamento, e as imagens foram entalhando a manifestação de suas exatidões na medida em que depuravam seus critérios. No entanto, os três eram guiados por um inflexível acento de arbitrariedade. Retornemos a Breton, 1935, ao dizer do Surrealismo que

 

ele nasceu de uma conscientização derrisória reservada ao indivíduo e ao seu pensamento, e da recusa de acomodar-se a isso.

 


Pois bem, essa recusa não pode ser entendida como uma palavra polida que permaneça intocável em seu conceito de origem, mas antes como uma evidência de que as coisas mudam e se transformam, como a vida e o mundo, segundo pretenderam Rimbaud e Marx, provocando sempre a recusa, assim evitando que o espírito se curve diante da construção de um templo. Como expressão da sensibilidade em sua mais alta voltagem o Surrealismo deve, mais do que qualquer outra instância ligada ao pensamento e à criação no homem, reconhecer as diferenças e antever a exigência natural de aclimatá-las em suas raízes, naquele território das relações em que a liberdade intervém ampliando o alcance da linha do horizonte. Impera aquela ideia defendida por Jacqueline Chénieux-Gendron, de que a criação artística deve alargar o campo do nosso conhecimento. [3] Ampliar, distenter, expandir, dilatar, porém jamais viciar conceitos ou dilemas, jamais restringir ou simplificar a percepção.

 

NOTAS

1. “André Breton o la búsqueda del comienzo”, conferência incluída em La búsqueda del comienzo (México: Editorial Fundamentos, 1974).

2. Esta passagem integra o conjunto de respostas dado por Octavio Paz ao questionário sobre arte mágica, preparado por Breton em 1955.

3. Jacqueline Chénieux-Gendron, O surrealismo (tradução de Mário Laranjeira). São Paulo: Martins Fontes, 1992.

 

03 | Aproveitamos a inclusão nesta edição de um ensaio sobre a presença do Surrealismo na Austrália para ter conosco, como artista convidada, Joy Hester (1920-1960), a única mulher que participou do movimento The Angry Penguins, na Adelaide dos anos 1940. O Museu de Arte Moderna de Heide, Austrália, entre novembro de 1920 e fevereiro de 2021, apresentou uma grande retrospectiva da obra da artista, sob a curadoria de Kendrah Morgan, em cuja nota de imprensa podemos ler:

 

Joy Hester produziu algumas das imagens mais distintas e intrigantes que surgiram na Austrália durante as décadas de 1940 e 1950. Trabalhando quase exclusivamente com pincel e tinta, ela se concentrou em expressões potentes da figura humana, usando o desenho como veículo para apreender a vida em toda a sua complexidade.

A exposição traça a progressão dos interesses artísticos de Hester, desde seus trabalhos formativos respondendo ao clima opressivo da Segunda Guerra Mundial até retratos psicológicos convincentes e mais tarde imagens íntimas de rostos e amantes feitas pouco antes de sua morte prematura em 1960. Hester não tinha medo de explorar temas considerados altamente provocativos durante sua vida: amor, sexo, nascimento e morte – temas que são encadeados ao longo da exposição. Joy Hester: Remember Me reúne obras significativas de coleções públicas e privadas, incluindo muitos desenhos que nunca estiveram em exibição pública, oferecendo uma nova visão sobre os métodos de trabalho e processos criativos que Hester desenvolveu desde o início de sua carreira.

 

Joe Hester foi uma intrigante artista do desenho, cujo traço automático acentuava a expressão dos rostos por ela revelados. Parte considerável da crítica entende que sua melhor fase data de 1948-9 quando fez inúmeros desenhos de seu amante. Contudo, a impulsão selvagem de sua mão trouxe à luz imagens tanto assombrosas, quanto as delirantes figuras da série “Getsêmani” (1946-47), quanto fascinante, no caso da luxúria encontrada na série “Os Amantes” (1956-58), ou mesmo cativante como os desenhos maiores de sua fase final, em que vemos crianças com os olhos esbugalhados ao lado de seus cães. Ao lado de James Gleeson, Sidney Nolan, Arthur Boyd e outros, Joe Hester se encontra entre os grandes artistas australianos do século passado.

 

Floriano Martins

 

 

∞ índice

 

ALCEBIADES DINIZ MIGUEL | Sacralidade Conspirativa (Georges Bataille e os ritos da sociedade secreta Acéphale)

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MIRIAN TAVARES | O Surrealismo em David Lynch

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Joy Hester


Agulha Revista de Cultura

Série SURREALISMO SURREALISTAS # 07

Número 206 | abril de 2022

Artista convidada: Joy Hester (Austrália, 1920-1960)

Tradução: Allan Vidigal

editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com

editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com

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