∞ editorial | A visita do Chapeleiro Louco
01
| Um dia depois a luz ainda estava lá, um pouco retorcida, porém permanecia
engolindo as sombras. Um meio trêmulo de persistir na exploração do inesperado.
Dizer que a distância reconhece o peso dos amores perdidos é uma consideração
indevida com os rumos irreconhecíveis da memória. Deem-me as xícaras, esta vez
eu sirvo o chá, deixarei o conteúdo transbordar pela mesa e o chão até que o
desejo se torne palpável. Um brinde à natureza estirada ao sol dos labirintos
abandonados. Sempre que alteramos a aposição de um adjetivo sobre a argamassa
de um pensamento a ideia se distrai e o acaso nos oferece outra morada. Será
nada ou o que? Será um corrosivo talvez ou a ressonância de um símbolo
inspirado no vazio? Um corpo punido pelas referências desencontradas de suas
aparências. Como afugentar a linguagem até que ela aprenda a sentar-se conosco
para o chá de nossas vidas, as mais turbulentas, se preciso? Quem quer estar
conosco mesmo quando não estejamos mais aqui? Quem ou ninguém? Eu ligo a
vitrola e a música de sua vidência se alastra pelo campo. As cadeiras vazias se
põem a dançar. As combinações eloquentes não duram mais que um instante.
Deem-me as xícaras. É agora ou tudo?
02
| O século XX traz à cena uma série de valores que atuam na percepção
de uma nova realidade. Na música se verifica um duplo movimento de contração e
expansão, regido respectivamente pela atonalidade e a politonalidade. Na
poesia, dois outros mecanismos surpreendentes alcançam uma dimensão crescente:
a imagem e a imaginação. Por sua vez, às artes plásticas coube lidar com duas
outras forças: a síntese e a representação. Não cabendo exclusividade a nenhum
desses fatores, eles foram se mesclando em todas as formas de manifestação
artística.
Transcorrido
um século de existência do Surrealismo nos vemos no interior de um imenso paiol
de reflexões, inventariando suas marcas de resistência, seus repetidos
espólios, a atualidade de suas doutrinas. Em um século o mundo sofreu danos
irreparáveis, alterou a rota de seus fatos mais aparentemente definitivos. Com
a perda total da identidade do ser, tomou-se como fonte viral a negação do ser.
Não confundir com a negação do eu segundo o Budismo. Neste elimina-se o sujeito
de cada ação para adentrar o conceito de que o ato é comum a todos. Ao
contrário, a negação do ser que infesta nosso tempo se trata de uma
padronização de sentidos (como amamos, como vestimos, como pensamos). Em um
caso a busca de integração do ser no outro; no seguinte, a imposição de uma
doutrina de má-fé. Já que recorri ao Budismo – Octavio Paz (1914-1998) lastimou
certa vez que Breton não tenha se interessado por ele –, [1] indago: quando pensamos em Surrealismo importa acreditar em
André Breton ou no mito? Por mais que imaginemos que as duas figuras se
superponham em um amálgama de maravilhas, em uma leitura ao mesmo tempo lúcida
e apaixonada, percebemos que os preceitos básicos da doutrina surrealista –
amor, liberdade, poesia –, que podemos concentrar em uma palavra central
(tolerância) não foram seguidos tão estritamente por Breton.
Recordando
o mexicano Paz – ele próprio diria: minhas
atividades dentro do grupo surrealista foram bem mais tangenciais – é
plenamente possível concordar com as suas ideias sobre a inspiração:
O decisivo foi haver inserido a inspiração em
nossa ideia do mundo. Graças ao surrealismo a inspiração não é um mistério
sobrenatural, nem uma vã superstição ou uma doença. É uma realidade que não
está em contradição com nossas concepções fundamentais, uma possibilidade que
se dá a todos os homens e que lhes permite ir além de si mesmos. [2]
A
vida moderna desencadeia uma série de desejos de mudança, um deles regido por
Pierre Reverdy (1889-1960) através de suas proposições sobre a imagem, em
especial a imagem poética. Recordemos a frase de André Breton, destacada do Segundo manifesto:
Tudo leva a crer que existe certo ponto do
espírito de onde a vida e a morte, o real e o imaginário, o passado e o futuro,
o comunicável e o incomunicável, o alto e o baixo cessam de ser percebidos
contraditoriamente.
Bem
antes, em 1921, em uma conferência de Vicente Huidobro (1893-1948), lida no
Ateneu de Madri, Espanha, encontramos que
Toda poesia válida tende ao último limite da
imaginação. E não apenas da imaginação, mas sim do próprio espírito, porque a
poesia não é outra coisa que o último horizonte, que, por sua vez, a aresta
onde os extremos se tocam, onde não há contradição nem dúvida.
Mais
adiante sustenta:
O poeta estende a mão para nos conduzir mais
além do último horizonte, mais acima da ponta da pirâmide, nesse campo que se
estende muito além do verdadeiro e do falso, além da vida e da morte, além do
espaço e do tempo, além da razão e da fantasia, além do espírito e da matéria.
Antes
que se caia no ardil gratuito de aproximar Breton e Huidobro, até mesmo buscando
acusar um de apropriação das ideias do outro, ao abrir as páginas de revista Nord-Sud, março de 1918, encontramos a
compreensão de Pierre Reverdy no sentido de que
A imagem é uma criação pura do espírito. Não
pode nascer de uma comparação, mas sim da aproximação de duas realidades mais
ou menos afastadas. Quanto mais distantes, mais forte será a imagem, e possuirá
mais potência emotiva e realidade poética.
O
espírito que regia os passos de cada um desses três poetas encontrava seu ponto
absoluto de partida tanto no sonho quando no pensamento, e as imagens foram entalhando
a manifestação de suas exatidões na medida em que depuravam seus critérios. No
entanto, os três eram guiados por um inflexível acento de arbitrariedade.
Retornemos a Breton, 1935, ao dizer do Surrealismo que
ele nasceu de uma conscientização derrisória
reservada ao indivíduo e ao seu pensamento, e da recusa de acomodar-se a isso.
NOTAS
1. “André Breton o la búsqueda del comienzo”, conferência incluída
em La búsqueda del comienzo (México:
Editorial Fundamentos, 1974).
2. Esta passagem integra o conjunto de respostas dado por Octavio
Paz ao questionário sobre arte mágica,
preparado por Breton em 1955.
3. Jacqueline
Chénieux-Gendron, O surrealismo
(tradução de Mário Laranjeira). São Paulo: Martins Fontes, 1992.
03
| Aproveitamos a inclusão nesta edição
de um ensaio sobre a presença do Surrealismo na Austrália para ter conosco,
como artista convidada, Joy Hester
(1920-1960), a única mulher que participou do movimento The Angry Penguins, na
Adelaide dos anos 1940. O Museu de Arte Moderna de Heide, Austrália, entre
novembro de 1920 e fevereiro de 2021, apresentou uma grande retrospectiva da
obra da artista, sob a curadoria de Kendrah Morgan, em cuja nota de imprensa
podemos ler:
Joy Hester produziu algumas das imagens mais distintas e
intrigantes que surgiram na Austrália durante as décadas de 1940 e
1950. Trabalhando quase exclusivamente com pincel e tinta, ela se
concentrou em expressões potentes da figura humana, usando o desenho como
veículo para apreender a vida em toda a sua complexidade.
A exposição traça a progressão dos interesses artísticos
de Hester, desde seus trabalhos formativos respondendo ao clima opressivo da
Segunda Guerra Mundial até retratos psicológicos convincentes e mais tarde
imagens íntimas de rostos e amantes feitas pouco antes de sua morte prematura
em 1960. Hester não tinha medo de explorar temas considerados altamente
provocativos durante sua vida: amor, sexo, nascimento e morte – temas que são
encadeados ao longo da exposição. Joy Hester: Remember Me reúne
obras significativas de coleções públicas e privadas, incluindo muitos desenhos
que nunca estiveram em exibição pública, oferecendo uma nova visão sobre os
métodos de trabalho e processos criativos que Hester desenvolveu desde o início
de sua carreira.
Joe Hester foi uma intrigante artista do
desenho, cujo traço automático acentuava a expressão dos rostos por ela
revelados. Parte considerável da crítica entende que sua melhor fase data de
1948-9 quando fez inúmeros desenhos de seu amante. Contudo, a impulsão selvagem
de sua mão trouxe à luz imagens tanto assombrosas, quanto as delirantes figuras
da série “Getsêmani” (1946-47), quanto fascinante, no caso da luxúria
encontrada na série “Os Amantes” (1956-58), ou mesmo cativante como os desenhos
maiores de sua fase final, em que vemos crianças com os olhos esbugalhados ao
lado de seus cães. Ao lado de James Gleeson, Sidney Nolan, Arthur Boyd e
outros, Joe Hester se encontra entre os grandes artistas australianos do século
passado.
Floriano
Martins
∞ índice
ALCEBIADES DINIZ
MIGUEL |
Sacralidade Conspirativa (Georges Bataille e os ritos da sociedade secreta Acéphale)
https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2022/04/alcebiades-diniz-miguel-sacralidade.html
ANDRÉS LUQUE TERUEL & ALICIA
IGLESIAS CUMPLIDO | Yves Tanguy, dialogo surrealista consigo mismo
https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2022/04/andres-luque-teruel-alicia-iglesias.html
CLAUDIO
WILLER | Duas vezes André Breton
https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2022/04/claudio-willer-duas-vezes-andre-breton.html
CONTADOR BORGES | René Char: o
arquipélago em visão noturna
https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2022/04/contador-borges-rene-char-o-arquipelago.html
DIOGO
CARDOSO | O ódio ao normal ou A imaginação sem fim: O cinema de Alejandro
Jodorowsky
https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2022/04/diogo-cardoso-o-odio-ao-normal-ou.html
FERNANDO FREITAS FUÃO |
As collages surrealistas de Toshiko Okanoue
https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2022/04/fernando-freitas-fuao-as-collages.html
FLORIANO
MARTINS | Max Harris e os pinguins mais irados da terra
https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2022/04/floriano-martins-max-harris-e-os.html
JOHN WELSON | Oscar Dominguez – O Decano da
Decalcomania (Uma visão particular)
https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2022/04/john-welson-oscar-dominguez-o-decano-da.html
MIRIAN TAVARES | O Surrealismo em David Lynch
https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2022/04/mirian-tavares-o-surrealismo-em-david.html
WOLFGANG
PANNEK | Maura
Baiocchi e a Ecoperformance: rumo à simbiocena
https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2022/04/wolfgang-pannek-maura-baiocchi-e.html
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Agulha Revista de Cultura
Série SURREALISMO SURREALISTAS # 07
Número 206 | abril de 2022
Artista convidada: Joy Hester (Austrália, 1920-1960)
Tradução: Allan Vidigal
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
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