Em um filme do Wim Wenders, o personagem vivido pelo ator Sam Neill, solta um lampejo revelador em meio a uma conversa: “Só os milagres têm sentido”. Não à toa, o personagem é um escritor. Reluto em usar o termo, por desgastada conotação, venha da parte dos excessos de realismo ou das suspeitas de alienação. Tema atualmente piorado pelo antepasto da conveniência, dieta preferida de muitos. De qualquer forma é um termo como outro qualquer. Não limita à vítima ou à divindade. Tampouco lhe salva de qualquer escorrego ou pecado mais grave. E, para muitos, em sociedades que ainda hoje se dilaceram entre um romantismo piegas e a versão brega do utilitarismo, a indagação reincidente ostenta um inconfundível cheiro de naftalina: para que serve um escritor? Como se fizesse parte do script logo em seguida indagar pela serventia do político e do líder religioso. No fundo, a pergunta tem a sua graça, a de desmantelar um mecanismo de crença não na utilidade do escritor, mas sim em sua essencialidade, no que ele realmente pensa acerca do que é e do que faz. Descobrimos um santo para cobrir outro. Embora em nenhum dos casos haja santo algum. Fiquemos com os milagres, portanto, esqueçamos os santos.
O
primeiro milagre é o da travessia. Há um provérbio iugoslavo que aconselha: Diga a verdade e saia correndo. Para
aqueles que não gostam de perder a piada, até hoje não se sabe se este
provérbio foi a causa real do desaparecimento da Iugoslávia. A travessia é mais
do que a celebração dos deslocamentos. Graças a ela embaralhamos as formas,
descobrimos outros dentro de nós, nascemos infinitas vezes. E criamos coragem para
dizer longe de casa o que sob o teto doméstico nem pensar. Na Europa Murilo
Mendes chegou a declarar-se surrealista, por exemplo. No Brasil sabia o risco
mortal que isto significava. O chileno Vicente Huidobro encontrou na língua
francesa uma forma de livrar-se da influência demasiada da cultura europeia em
sua poesia. Ao escrever em francês rompeu o ovo da serpente, descobrindo ali
sua força vital. O provinciano é aquele que só diz a verdade em casa? O que não
rompe a casca do ovo? O assim chamado mundo
lá fora acaba por subverter a própria imagem que fazemos de nós diante do
espelho. Associamos à ruptura com o pai o princípio da constituição de um novo
ser, uma nova personalidade. Não importa com quem rompemos. Mas quem se põe a
pensar isto quando já quase ninguém sabe frigir ovos pela manhã?
O
primeiro milagre persiste: o ponto de origem. Os chineses costumavam acreditar
que longa viagem começa por um passo.
Com isto, é possível que nem exista um segundo milagre ou que os milagres não
se acumulem. Eles são como a grande casa da singularidade, no sentido de que a
cada vida corresponde um único milagre. Vasculhando a biografia dos artistas
que desempenharam papel fundamental na progressão do que poderíamos chamar de
milagre da criação, a vida deles é tudo menos invejável. Quem desejaria estar
ali, em seu lugar? Todos desejam a fama, a glória, o prestígio, a conta
bancária bem amparada. A arte nos diverte ou substitui em nós uma verdade que
se dita por nós nos obrigaria a sair correndo. A arte é a melhor desculpa que
temos para que permaneçamos onde estamos.
É possível que o maior de todos os milagres seja o da
descoberta do outro que temos dentro de nós. Aquele que é revelação e
confirmação de nossa natureza. Não há significado secundário para ele. Pode ser
o amor, a poesia ou a liberdade. Para uns é o amor com que sempre sonhou. Para
outros é uma descoberta de doação. Ou esses jardins que saímos visitando por
toda parte como se o verdadeiro símbolo da felicidade estivesse em permanente
deslocamento. Os gregos costumavam dizer que um corvo não tira o olho de outro corvo. Uma metáfora que não se
aplica ao homem. De tal maneira que o milagre é quando recebemos um olho.
Talvez por haver tido uma vida sempre repleta de música, incluindo aí a amizade
com músicos, sempre pensei nela como uma jam
session. Foi o que mais me atraiu quando descobri os jogos surrealistas. O
dilema é que logo descobri também que o milagre era bom, mas o santo não. Não é
fácil conviver com poetas. A grande proeza dos poetas é a elasticidade de seu
ego. Embora essa firmeza de caráter seja uma virtude humana, é curioso como ela
se propaga entre poetas. Quando cruzei a soleira da primeira metade de século
vivida fui visitado por dois milagres na poesia. Escrever poemas a quatro mãos
sem que o poema em si seja esquartejado pela armadilha do ego. A brasileira
Viviane de Santana Paulo vive em Berlim há muitos anos e não a conheço
pessoalmente. O mexicano Manuel Íris eu o conheci em um pesado inverno de 15
graus negativos
Há um
provérbio brasileiro que diz: A viagem é mais rápida quando se tem boa companhia. Como a
viagem entre músicos. A viagem mítica, demasiado romântica, como muitos podem
pensar, em uma carroça de atores. Quando deixamos o verbo escorrer pela espinha
com essa mescla de vertigem e encantamento, o mistério da descoberta, é que
preenchemos a vida com toda a força de nosso espírito. Mas quem poderia
imaginar uma carroça de poetas? Podemos pensar em um encontro de mágicos, se
acaso eles se divertiriam entre si um fazendo o outro desaparecer no fundo
falso de seu truque. Mágicos dividem cabine nos acampamentos de um grande
circo? O poeta deve preferir a viagem mais longa, sem boa companhia. Cada vez
que penso nisto me sinto menos poeta. Ou talvez eu não esteja sabendo escolher
bem os meus provérbios.
Eu vi um verbo correndo como se tentasse escapar de
uma fábula. Daqui de onde eu o via sabia que não ia a parte alguma. Um tolo
enche a própria vida de máximas. Já vi tolos que não sobreviviam sem reproduzir
frases de Schopenhauer. Eu sou o tolo que me ponho aqui a cotejar
provérbios. É um balaio sem fundo. Tem um que garante que a prática leva à perfeição, exceto na roleta russa. Ora, em
circunstância alguma o golpe do acaso se deixa dominar. Joguemos dados com Deus
a vida inteira e nunca blefaremos o suficiente para adiar o jogo. Porque a vida
será sempre a mesa de apostas e não o guichê de pagamento das fichas. Já
estamos nos distanciando da poesia? Viemos aqui para falar de poesia? Eu não
sei. Eu sempre penso que quando falamos de qualquer coisa que seja
indispensável em nossa vida nós estamos falando de poesia. O que é distinto de
falar de um poema. A poesia é o que temos dentro e diante de nós. A travessia,
a longa viagem, o milagre. Os poemas nascem de viagens, como qualquer instância
da criação. O prumo precário que inventamos na linha do horizonte. O verbo
dilatado. A sensação de estrangeiro em qualquer parte. O poeta é aquele que não
desiste um só instante de adaptar-se à vida ou o outro que viu no artifício da
estranheza um bom negócio? A verdade se queima nas mãos da existência. É uma
fadiga da história quando ela aponta o poema como sendo mais importante que o
homem. O poema é um valioso reflexo de seu estar no mundo. E quando calha de
ser tolo ou indisfarçavelmente pragmático, impossível seguir acreditando que um
dado tenha apenas seis faces.
Os provérbios são como pedras de sal postas na língua da história. Até hoje não entendo a razão que levou o espanhol Juan-Eduardo Cirlot a não incluir “provérbio” entre os verbetes de seu dicionário dos símbolos. A arte, a política, a religião, não deram um passo adiante sem o jogo astuto das máximas. A César o que é de César; A necessidade é mestra; Cada qual tem a idade que parece ter; Mais vale penhor que fiador; Ladrão endinheirado não morre enforcado; Quem só anda na linha o trem atropela – isto não tem fim. Em adesivos em carros encontramos uma que reza simplesmente: Deus é fiel. Nunca saberemos que deus nem a que ou quem propriamente ele é fiel. Sua astúcia inquestionável está na dubiedade. Para elas, quanto mais se vive, mais se vê. Para a poesia, quem define a extensão do olhar é a intensidade. Em conversa com a pintora húngara Susana Wald, ela me diz que lamenta que estejamos sempre a justificar o que fazemos, como se a vida nos impusesse outra coisa. A vida somos nós e não nos impomos algo distante de nós. Por que criar uma ideia tão negativa do que somos na vida? Quase sempre estamos curando alguma ferida. A arte, em seu melhor sentido, é um posto de emergência para as almas feridas. Não era para ser engraçadinha como quem vem aqui rir um pouco de tudo. Até seria, desde que cada um levasse a sério essa necessidade de rir um pouco de tudo. Mais um provérbio? Um plano de fuga, que tal? Um sonho. A vida está gravada em nós muito mais a partir do sinal de dor do que propriamente de alegria. O que não me agrada na condição tripartida de um velho amuleto é que à ciência corresponda a dúvida, à religião a crença e à arte o maravilhar-se. Este trevo de três folhas jamais me convenceu. Quando ponho a minha vida em uma tigela, eu o faço no sentido de que tanto ela seja provada por todos como que também eu me renove ao toque de cada lábio.
Aqui deveria haver um silêncio inquietante na forma de uma pergunta irrevelável: essa coisa não tem fim? É verdade. Em qualquer cultura os provérbios ensinam a não demorar muito em voo. É curioso porque aponta na direção de uma presunção de que estamos sempre muito próximos das grandes descobertas, ao mesmo tempo em que pode denunciar um cuidado para que o santo de casa não desista nunca do martírio ao qual devota sua vida.
FLORIANO MARTINS | A tigela dos provérbios
PROPRIEDADE IMAGINÁRIA
Galeria Virtual | FLORIANO MARTINS
SALAS DE VISITA
1990-2012 A IMAGEM E A SEMELHANÇA Entrevista com Floriano Martins
1998-2023 TRAJETÓRIA DE UM CAPISTA (seleção)
2010-2014 SÁTIRA DE ESPELHOS
2011 NA MÃO DE ADÃO CABEM TODOS OS SONHOS Texto de Jacob Klintowitz
2013 SOMBRAS RAPTADAS Texto de Berta Lucía Estrada
2014 BRONZE NO FUNDO DO RIO
2014 CINEMA IMAGINÁRIO Texto de Floriano Martins
2014 MÁSCARA IMAGINÁRIA Texto de Floriano Martins
2014 MÚSICA IMAGINÁRIA Texto de Floriano Martins
2015 A MOBÍLIA VIOLENTA DO FOGO
2016 CIRCO CYCLAME
2016 LÁBIOS PINTADOS DE AZUL Texto de Aglae Margalli
2017 OSSOS DO ESPÍRITO
2018 SELVA DE PELES
2023 O CEGO IDEALISTA Texto de Wasily Kaplowitz
2023 A ÚLTIMA LINHA CAPAZ DE DEVOÇÃO Texto de Maria Lúcia Dal Farra
Agulha Revista de Cultura
Criada por Floriano Martins
Dirigida por Elys Regina Zils
https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/
1999-2023
Nenhum comentário:
Postar um comentário