sábado, 1 de abril de 2023

FLORIANO MARTINS | Música imaginária

 






































































































Afinal, Jelly Roll Morton foi mesmo o inventor do jazz ou apenas um notável pianista de blues? Ou acaso a pergunta está mal colocada e o certo seria indagar: Jelly Roll Morton foi um notável pianista de blues ou apenas o inventor do jazz? O jazz inventado por Jelly Roll Morton em New Orleans em 1904 difundiu-se por bordéis e outras casas noturnas até 1923, quando então grava o primeiro disco.

Um ano depois e do outro lado do Atlântico surge o primeiro manifesto do Surrealismo. Duas décadas adiante André Breton referir-se-ia à colagem inventada por Max Ernst como “uma proposta de organização visual absolutamente virgem”, sem deixar de dizer, ao mesmo tempo, que correspondia, em termos de poesia, ao que buscaram Lautréamont e Rimbaud. Max Ernst então seria mesmo o inventor da colagem ou apenas um notável pintor com tesouras e colas?

Ele próprio dizia que um outro notório surrealista, René Magritte, era autor de inúmeras colagens pintadas à mão. Jelly Roll Morton sabia que a cultura crioula era o diferencial no jazz que inventara. Assim como Max Ernst, sabia que não é a cola que define a colagem. Ele, que começara pintando, sempre confessara seu desejo de ir além da pintura.

A variedade de técnicas assimiladas ou descobertas por Max Ernst encontra alguma relação com a diversidade de estilos musicais que Jelly Roll Morton evocava ou encarnava em seu piano. Ambos sabiam que o instrumento não era propriamente o piano ou a cola. Como separar em Max Ernst ou Jelly Roll Morton o que é esfregação, gospel, ponta seca, ragtime, água-forte, blues, África, Caribe, visão, obsessão? Seria correto resumir tudo à colagem total ou escritura automática? Não há justiça ou correção no território da recepção artística. Uma intencional frase de efeito pode instaurar-se suprema e inquestionável e atravessar séculos. Os livros de história que alimentam as últimas quatro ou cinco gerações estão repletos de fatos que já não correspondem à realidade.

Ao introduzir esta palavra (realidade) o faço como quem sugere o endereço visceral do problema: jamais se tratou de uma condição singular: não há nada mais múltiplo e diverso e circunstancial do que a realidade. Jelly Roll Morton não inventou o jazz. Max Ernst não inventou a colagem. Talvez não tenham ido além de tentar equilibrar a relação entre composição e improvisação. Não queriam ser cúmplices de Deus nem do Diabo. A batida habanera de Jelly Roll Morton ao piano na primeira década do século XX era uma antevisão da mesma ordem do romance-colagem de Max Ernst. Nos dois casos não havia ruptura no que diz respeito a uma coerência narrativa, mas antes uma outra maneira de perceber as conexões (vamos lá) entre ser e tempo.

O fato de haver um recorte “parcialmente lógico” na colagem de Max Ernst talvez estimule uma contradição no que diz respeito à escritura automática. Até hoje o surrealismo padece os efeitos desse erro de leitura. A colagem de estilos em Jelly Roll Morton é suficiente para inventar o jazz? Até onde o jazz se definia unicamente como uma torrente incontrolável de improvisação?

As realidades que se amontoaram ao redor do jazz e da colagem, ao longo da primeira metade do século XX, conduziram a uma curiosa circunstância que, já nos anos 60, se apresenta como uma segunda vanguarda. Uma década intrigante e repleta de inventores. A música politonal de John Coltrane, os efeitos cenográficos evocados por Joseph Beuys, a erradicação da malha harmônica no free jazz de Ornette Coleman, somando-se aí a frustrada prefiguração de um anarquismo que perderia componentes no caldeirão alquímico onde se digladiavam a sociedade do espetáculo e o maio de 68, até então sem perceberem o quanto eram siameses.

Pobre Max Ernst. Pobre Jell Roll Morton. Seu notável apelo à necessidade de fusão permanente entre composição e improvisação foi uma vez mais esquecido em nome de uma obsessão ou outra: ora a composição, ora a improvisação. Então já não havia mais surrealismo. O surrealismo sempre foi surdo, e perdeu muito com isto. Mesmo que Joyce Mansour tenha dito que não é uma determinada técnica pictórica que pode ser entendida como surrealista e sim o pintor, ou seja, sua visão de vida, o surrealismo já então havia descartado alguns de seus mais importantes nomes ligados à pintura por relutância em aceitar que por trás de toda visão de vida há uma técnica em que ela se manifesta.

A subversão também é uma técnica. Assim como a dialética, a vertigem e a inconsequência. A realidade exige talento. Descarta o inventor de jazz e preserva o notável pianista de blues. Somos todos invenção da realidade ou apenas seus notáveis executores?

Assim é que nos anos 60 as técnicas se multiplicaram desordenadamente e não cabia mais falar em tensão narrativa. Convulsão política, conflitos raciais, anarquismo, rebeliões sindicais, encontravam-se no mesmo gramado que descontinuidade harmônica, exotismos melódicos, instalações, body art, prenúncios da multimídia, minimalismo etc. Atirava-se para todos os lados. E talvez o único alvo fosse o da regência do espetáculo. O estilo Broadway de selecionar dançarinos para suas temporadas. Seria tão simples assim?

René Magritte então lembrava que a técnica é indispensável para tornar a obra visível, mas que não alcança importância além do meio. Destacava ainda que é estúpido (assim se referia ao tema) o interesse demasiado pela técnica. René Magritte referia-se à pintura como o pensamento que vê. De alguma maneira sobrevivemos ao século XX e a subversão converteu-se em muitos casos em subserviência. Já não temos mais inventores de jazz ou mesmo notáveis pianistas de blues. A sociedade do espetáculo prenunciada nos anos 60 instaurou-se de tal maneira que abolimos a dualidade composição/improvisação, substituída por uma massa informe que opera no sentido de limitar a sensibilidade e não de aguçá-la. Resta saber se ainda há uma maneira de pintar hoje em dia, ou se acaso tudo se converteu em uma visão de produtores.

 

 

Qual o verdadeiro tempo que habitamos com nossas criações?

Ronda-me o fantasma de Jelly Roll Morton e o faz sempre bailando com o de Max Ernst. Agenda tomada de recortes que são atalhos cuja guia ou senha é mais do que uma saída. A solução como decorrência e não como meta.

Assim é que a linguagem me assalta.

Sem a ideia fixa de uma permanente atualização. Intensamente dedicada ao parto normal. Sem fórceps ou cesariana, sem este sentido comercial que confunde as tarefas da medicina, desnortear de princípios que também a arte achou por bem adotar. Não há brutalidade maior que o alheamento. Atenção ao mundo, a si mesmo, a todas as coisas à nossa volta. Todos os sonhos são reais, como defendia Artaud.

Por onde caminha meu pensamento? Por mares de espíritos diferentes, por rios de sombras encantadas e também pelas poças de sangue que identificam certas opções que não aceitamos como tais. Metáforas de toda ordem que muitas vezes funcionam como estímulos intelectuais, mas que se tornam enfadonhas, mecanismos gastos, se não as insultamos para que abandonem essa condição teimosamente única, e se lancem além de si… além de toda metáfora.

Dizer ao corpo nu da mulher desejada estendido sobre a grama que seja mais do que simplesmente o corpo do desejo. Ou ao mobiliário traçado pelo olhar, por mais que se configure a realidade tangível, que vá além, e descubra uma maneira de tornar-se ao mesmo tempo palpável e imprevisível.

Claro que há um momento em que o autêntico e o falso dividem a mesma cama. Resta saber se então caberá ainda distingui-los? Não somos propriamente o Bem ou o Mal, mas antes de tudo a maneira como nos deixamos reger por ambos, como nos revelamos na irritante precisão com que tais forças se entrelaçam.

Não é a semelhança do homem com Deus que deve nos preocupar, mas sim consigo mesmo. De qual maneira conjugamos desejo e hipocrisia, por exemplo. A palavra pudor é um desacato, a grande aberração que acoberta nossa desumanidade. Consequentemente não há fraude maior do que a beleza. Se eu me referir à ilusão magnífica da liberdade talvez se aceite melhor o que digo. Mas não há diferença entre tais parâmetros.

O caso de Robert Mapplethorpe permanece paradigmático em nosso tempo. Seus nus oscilavam do sublime ao pornográfico, melhor dizendo, do feminino ao masculino. Toda a intensa relação entre volume, sombra, movimento sugerido, angulação etc., em nada foram observados quando diante do olhar o que se tinha era o sexo masculino, ereto ou pendente, desperto ou disperso. Nem mesmo as mulheres saíram em sua defesa.

Assim é que a beleza é um atributo da mulher e não do feminino. Um fetiche com área de atuação prevista em lei. Lei moral. Esta que torna secundária toda e qualquer outra modalidade de julgamento do outro. Não adianta inverter os valores e declarar algo “belo como um exército derrotado”, como o fez Joyce Mansour.

A rigor, sempre que procuramos tocar a beleza recebemos um choque de realidade que nos esclarece acerca de seus limites morais. Estava certo Breton ao dizer que a beleza não se encontra em um ponto morto e sim na própria vida. Claro. É o que há de mais intenso em nós. É a nossa grande verdade. O atributo mais precioso da perfeição. A perfeição do amor, a perfeição do crime, a perfeição da ilusão. Tudo o que fazemos de melhor na vida o fazemos em nome da beleza.

Então podemos entender agora o que disse Joyce Mansour e fazer-lhe coro dizendo: belo como o choque de aviões contra as torres gêmeas. Não posso? Também ali um exército foi derrotado.

Max Svanberg disse certa vez que “para conseguir a beleza nítida é preciso, creio, ser consciente, até o sofrimento, da presença terrível da morte”. Que beleza então almejamos: uma beleza de meias circunstâncias? Há um claro refinamento livresco na perfeição. Já não se trata da banalidade do mal e sim da ambiguidade do bem. Talvez a única beleza possível seja de ordem cosmética, e sua glória cínica: o culto à deformidade do ser para atender àquela que é a mais convulsiva de todas as máscaras da beleza: o mercado das emoções.

Não há relação mais intensa entre arte e beleza em nosso tempo. Tudo isto soa anacrônico porque a religião e a ciência, bem antes da arte, recorreram aos mesmos métodos. Mas como ainda teimamos em dar algum destaque à criação da beleza, como ainda insistimos na dimensão sublime do belo, cabe então recordar que nada sobrevive longe da presença terrível de seu revés. Negar ou ofuscar a expressão dessa relação íntima dos contrários é substabelecer representações da hipocrisia por toda a eternidade. É o que temos feito. E o temos feito à perfeição, de maneira que esta é nossa beleza.

O chileno Braulio Arenas, como praticamente todo e qualquer surrealista, de carteirinha ou não, aderiu aos efeitos pirotécnicos da analogia, e nele encontramos esta preciosidade: “Bela como uma rosa que resolve de uma vez por todas o labirinto”. Imagem que pode ser atualizada da seguinte maneira: bela como uma rosa de plástico que ilude labirintos. Seria como trocar um artifício por outro. Um esplendor da retórica. No fundo, a beleza que tanto ostentamos nos imagina como pudicos conformistas. A arte não faz a menor ideia da guerra santa que o horror empreende para livrar-se do cinema da beleza.

Eis a primeira revolução que se exige de um criador: identificar a mesa de edição dos efeitos especiais que o fazem sentir-se circunstancialmente belo. E detoná-la sem pudor.

A beleza será despudorada ou não será. 


FLORIANO MARTINS | O fantasma que dança 




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2011 NA MÃO DE ADÃO CABEM TODOS OS SONHOS Texto de Jacob Klintowitz

2012 PERMANÊNCIA DA REALIDADE

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2014 BRONZE NO FUNDO DO RIO Texto de Mía Gallegos

2014 CINEMA IMAGINÁRIO Texto de Floriano Martins

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2014 MÚSICA IMAGINÁRIA Texto de Floriano Martins

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2015 A EXPRESSÃO DO LAMENTO 

2016 CIRCO CYCLAME

2016 LÁBIOS PINTADOS DE AZUL Texto de Aglae Margalli

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