Um ano depois e do outro lado do Atlântico surge o
primeiro manifesto do Surrealismo. Duas décadas adiante André Breton
referir-se-ia à colagem inventada por Max Ernst como “uma proposta de
organização visual absolutamente virgem”, sem deixar de dizer, ao mesmo tempo,
que correspondia, em termos de poesia, ao que buscaram Lautréamont e Rimbaud.
Max Ernst então seria mesmo o inventor da colagem ou apenas um notável pintor
com tesouras e colas?
Ele próprio dizia que um outro notório surrealista,
René Magritte, era autor de inúmeras colagens pintadas à mão. Jelly Roll Morton
sabia que a cultura crioula era o diferencial no jazz que inventara. Assim como
Max Ernst, sabia que não é a cola que define a colagem. Ele, que começara
pintando, sempre confessara seu desejo de ir além da pintura.
A variedade de técnicas assimiladas ou descobertas por
Max Ernst encontra alguma relação com a diversidade de estilos musicais que
Jelly Roll Morton evocava ou encarnava em seu piano. Ambos sabiam que o
instrumento não era propriamente o piano ou a cola. Como separar
Ao introduzir esta palavra (realidade) o faço como
quem sugere o endereço visceral do problema: jamais se tratou de uma condição
singular: não há nada mais múltiplo e diverso e circunstancial do que a
realidade. Jelly Roll Morton não inventou o jazz. Max Ernst não inventou a
colagem. Talvez não tenham ido além de tentar equilibrar a relação entre
composição e improvisação. Não queriam ser cúmplices de Deus nem do Diabo. A
batida habanera de Jelly Roll Morton ao piano na primeira década do
século XX era uma antevisão da mesma ordem do romance-colagem de Max Ernst. Nos
dois casos não havia ruptura no que diz respeito a uma coerência narrativa, mas
antes uma outra maneira de perceber as conexões (vamos lá) entre ser e tempo.
O fato de haver um recorte “parcialmente lógico” na
colagem de Max Ernst talvez estimule uma contradição no que diz respeito à
escritura automática. Até hoje o surrealismo padece os efeitos desse erro de
leitura. A colagem de estilos
As realidades que se amontoaram ao redor do jazz e da
colagem, ao longo da primeira metade do século XX, conduziram a uma curiosa
circunstância que, já nos anos 60, se apresenta como uma segunda vanguarda. Uma
década intrigante e repleta de inventores. A música politonal de John Coltrane,
os efeitos cenográficos evocados por Joseph Beuys, a erradicação da malha
harmônica no free jazz de Ornette Coleman, somando-se aí a frustrada
prefiguração de um anarquismo que perderia componentes no caldeirão alquímico
onde se digladiavam a sociedade do espetáculo e o maio de 68, até então sem
perceberem o quanto eram siameses.
Pobre Max Ernst. Pobre Jell Roll Morton. Seu notável apelo à necessidade de fusão permanente
entre composição e improvisação foi uma vez mais esquecido em nome de uma
obsessão ou outra: ora a composição, ora a improvisação. Então já não havia
mais surrealismo. O surrealismo sempre foi surdo, e perdeu muito com isto.
Mesmo que Joyce Mansour tenha dito que não é uma determinada técnica pictórica
que pode ser entendida como surrealista e sim o pintor, ou seja, sua visão de
vida, o surrealismo já então havia descartado alguns de seus mais importantes
nomes ligados à pintura por relutância em aceitar que por trás de toda visão de
vida há uma técnica em que ela se manifesta.
A subversão também é uma técnica. Assim como a
dialética, a vertigem e a inconsequência. A realidade exige talento. Descarta o
inventor de jazz e preserva o notável pianista de blues. Somos todos invenção
da realidade ou apenas seus notáveis executores?
Assim é que nos anos 60 as técnicas se multiplicaram
desordenadamente e não cabia mais falar em tensão narrativa. Convulsão
política, conflitos raciais, anarquismo, rebeliões sindicais, encontravam-se no
mesmo gramado que descontinuidade harmônica, exotismos melódicos, instalações,
body art, prenúncios da multimídia, minimalismo etc. Atirava-se para todos os
lados. E talvez o único alvo fosse o da regência do espetáculo. O estilo
Broadway de selecionar dançarinos para suas temporadas. Seria tão simples
assim?
René Magritte então lembrava que a técnica é
indispensável para tornar a obra visível, mas que não alcança importância além
do meio. Destacava ainda que é estúpido (assim se referia ao tema) o interesse
demasiado pela técnica. René Magritte referia-se à pintura como o pensamento
que vê. De alguma maneira sobrevivemos ao século XX e a subversão converteu-se
em muitos casos
∞
Qual o verdadeiro tempo que habitamos com nossas
criações?
Ronda-me o fantasma de Jelly Roll Morton e o faz
sempre bailando com o de Max Ernst. Agenda tomada de recortes que são atalhos
cuja guia ou senha é mais do que uma saída. A solução como decorrência e não
como meta.
Assim é que a linguagem me assalta.
Sem a ideia fixa de uma permanente atualização.
Intensamente dedicada ao parto normal. Sem fórceps ou cesariana, sem este
sentido comercial que confunde as tarefas da medicina, desnortear de princípios
que também a arte achou por bem adotar. Não há brutalidade maior que o
alheamento. Atenção ao mundo, a si mesmo, a todas as coisas à nossa volta.
Todos os sonhos são reais, como defendia Artaud.
Por onde caminha meu pensamento? Por mares de
espíritos diferentes, por rios de sombras encantadas e também pelas poças de
sangue que identificam certas opções que não aceitamos como tais. Metáforas de
toda ordem que muitas vezes funcionam como estímulos intelectuais, mas que se
tornam enfadonhas, mecanismos gastos, se não as insultamos para que abandonem
essa condição teimosamente única, e se lancem além de si… além de toda
metáfora.
Dizer ao corpo nu da mulher desejada estendido sobre a
grama que seja mais do que simplesmente o corpo do desejo. Ou ao mobiliário
traçado pelo olhar, por mais que se configure a realidade tangível, que vá
além, e descubra uma maneira de tornar-se ao mesmo tempo palpável e
imprevisível.
Claro que há um momento em que o autêntico e o falso dividem
a mesma cama. Resta saber se então caberá ainda distingui-los? Não somos
propriamente o Bem ou o Mal, mas antes de tudo a maneira como nos deixamos
reger por ambos, como nos revelamos na irritante precisão com que tais forças
se entrelaçam.
Não é a semelhança do homem com Deus que deve nos
preocupar, mas sim consigo mesmo. De qual maneira conjugamos desejo e
hipocrisia, por exemplo. A palavra pudor é um desacato, a grande aberração que
acoberta nossa desumanidade. Consequentemente não há fraude maior do que a
beleza. Se eu me referir à ilusão magnífica da liberdade talvez se aceite
melhor o que digo. Mas não há diferença entre tais parâmetros.
O caso de Robert Mapplethorpe permanece paradigmático
em nosso tempo. Seus nus oscilavam do sublime ao pornográfico, melhor dizendo,
do feminino ao masculino. Toda a intensa relação entre volume, sombra,
movimento sugerido, angulação etc., em nada foram observados quando diante do
olhar o que se tinha era o sexo masculino, ereto ou pendente, desperto ou
disperso. Nem mesmo as mulheres saíram em sua defesa.
Assim é que a beleza é um atributo da mulher e não do
feminino. Um fetiche com área de atuação prevista
A rigor, sempre que procuramos tocar a beleza
recebemos um choque de realidade que nos esclarece acerca de seus limites
morais. Estava certo Breton ao dizer que a beleza não se encontra em um ponto
morto e sim na própria vida. Claro. É o que há de mais intenso em nós. É a
nossa grande verdade. O atributo mais precioso da perfeição. A perfeição do
amor, a perfeição do crime, a perfeição da ilusão. Tudo o que fazemos de melhor
na vida o fazemos em nome da beleza.
Então podemos entender agora o que disse Joyce Mansour
e fazer-lhe coro dizendo: belo como o choque de aviões contra as torres gêmeas.
Não posso? Também ali um exército foi derrotado.
Max Svanberg disse certa vez que “para conseguir a
beleza nítida é preciso, creio, ser consciente, até o sofrimento, da presença
terrível da morte”. Que beleza então almejamos: uma beleza de meias
circunstâncias? Há um claro refinamento livresco na perfeição. Já não se trata
da banalidade do mal e sim da ambiguidade do bem. Talvez a única beleza
possível seja de ordem cosmética, e sua glória cínica: o culto à deformidade do
ser para atender àquela que é a mais convulsiva de todas as máscaras da beleza:
o mercado das emoções.
Não há relação mais intensa entre arte e beleza em
nosso tempo. Tudo isto soa anacrônico porque a religião e a ciência, bem antes
da arte, recorreram aos mesmos métodos. Mas como ainda teimamos em dar algum
destaque à criação da beleza, como ainda insistimos na dimensão sublime do
belo, cabe então recordar que nada sobrevive longe da presença terrível de seu
revés. Negar ou ofuscar a expressão dessa relação íntima dos contrários é
substabelecer representações da hipocrisia por toda a eternidade. É o que temos
feito. E o temos feito à perfeição, de maneira que esta é nossa beleza.
O chileno Braulio Arenas, como praticamente todo e
qualquer surrealista, de carteirinha ou não, aderiu aos efeitos pirotécnicos da
analogia, e nele encontramos esta preciosidade: “Bela como uma rosa que resolve
de uma vez por todas o labirinto”. Imagem que pode ser atualizada da seguinte
maneira: bela como uma rosa de plástico que ilude labirintos. Seria como trocar
um artifício por outro. Um esplendor da retórica. No fundo, a beleza que tanto
ostentamos nos imagina como pudicos conformistas. A arte não faz a menor ideia
da guerra santa que o horror empreende para livrar-se do cinema da beleza.
Eis a primeira revolução que se exige de um criador:
identificar a mesa de edição dos efeitos especiais que o fazem sentir-se
circunstancialmente belo. E detoná-la sem pudor.
A beleza será despudorada ou não será.
FLORIANO MARTINS | O fantasma que dança
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