Houve uma época em que eu e Leila Ferraz criávamos a diário poemas a quatro mãos, como que possuídos pelo demônio do encantamento da linguagem. Éramos tinta e sangue, mesclados em uma mesma metafísica que a todo instante, como dissemos em um desses poemas, restaurava o ossuário do espanto. Foi precisamente este poema, A mobília violenta do fogo, que deu título a uma série plástica, e que se inicia com uma imagem devoradora: A minha alma avulta seus planos quando nela te vejo refletida, como um relâmpago ao ser despistado reflete teu beijo ali foragido. Leila é uma dessas deusas imemoriais da Poesia, e privar de sua amizade é um dos melhores atalhos que vislumbrei para a entrada no Maravilhoso.
Floriano querido
Já
aqueço as palavras em algum lugar dentro mim para devolvê-las incendiadas a você.
Por um longo tempo trocamos ritos solares, calor de corpos falantes transportados
pelos espaços informatizados e que você tão magistralmente, sucessivamente, criou
como agente de transformação que é, em imagens míticas e raras de tanta beleza.
Assim foi com as imagens e também com as palavras. Emanaram fumegantes de suas colagens
e iluminaram todos nós, os surrealistas, dos quatro cantos deste planeta. O seu
triunfo e vitalidade contagiam quem se aproxima de você ou quem você traz para perto
de sua fogueira e convida para participar do sagrado ritual de abrir o inconsciente
e deixar fluir o espírito, a essência do princípio luminoso – que é a criação em
estado puro. Seu trabalho resplandece erótico solar, místico, sublime e renovado.
A sua energia atua no centro de toda coisa, como diria Gaston Bachelard. Você é
o Alquimista que aproxima e reúne os Surrealistas de todas as partes. O editor que
unifica, identifica e mostra cada um de nós, possuidores da chama surrealista –
como somos. Relampejantes porque fomos atingidos pelo raio vital dos que buscam o ouro dos tempos, assim dizia André
Breton. Você, ao procurar, encontrar e reunir tantos Surrealistas e divulgar nossos
trabalhos, através da Agulha Revista de Cultura,
exposições, encontros por toda a América e outros continentes, restabelece um fator
de unificação e fixação, como postula Paracelso – a igualdade entre o fogo e a vida, ambos para alimentar-se necessitam
consumir vidas, a nossa e as alheias e devolvê-las ultra-viventes a fim de transcendermos,
simbolicamente, a condição humana, d’après
Mircea Eliade em Mitos, Sonhos e Mistérios.
Escolhi o fogo como paisagem para estas considerações sobre você, porque além de
termos nos incendiado mutuamente em nossas longas conversas, poemas a quatro mãos,
trabalhos intensamente inspirados e leituras compartilhadas, eu queria lhe atribuir
a imagem que você retrata nesta sua série sobre mobílias que ultrapassam as suas
próprias finalidades. Elas se consomem para ressurgirem esplendorosas como imagens-arquétipos
do seu fenômeno criativo. Da sua força de trabalho gigantesca. Da imensa produção
que você tem em sua bagagem de anos e anos dedicados à arte, à literatura. Ao campo
editorial e visual. Um trabalho impecável! Imparcial e justo. Que tarefa!
O que se aplica à essência do fogo também pode ser aplicado aos outros elementos da natureza e além dela no sentido de símbolos de transformação, regeneração e ampliação do Movimento Surrealista. Um movimento do inconsciente despertando. Do sonho expondo-se aos olhos maravilhados de quem os contempla. Você, Floriano Martins, tem essa rara habilidade de se transcender, dar passagens a todos nós. Queremos ser mágicos, encantadores, pacientes e agentes em nossos poemas e desenhos, pinturas, contos, ensaios, filmes, danças ou músicas. Você consegue, com sua luz nos mostrar generosamente os caminhos ou nos trazer do esquecimento à ribalta. Foi isso o que fez comigo. E talvez com tantos outros semelhantes a mim a quem estendeu a mão, abriu o coração e nos fez passar.
LEILA FERRAZ | abril de 2023
PROPRIEDADE IMAGINÁRIA
Galeria Virtual | FLORIANO MARTINS
SALAS DE VISITA
1990-2012 A IMAGEM E A SEMELHANÇA Entrevista com Floriano Martins
1998-2023 TRAJETÓRIA DE UM CAPISTA (seleção)
2010-2014 SÁTIRA DE ESPELHOS
2011 NA MÃO DE ADÃO CABEM TODOS OS SONHOS Texto de Jacob Klintowitz
2013 SOMBRAS RAPTADAS Texto de Berta Lucía Estrada
2014 BRONZE NO FUNDO DO RIO
2014 CINEMA IMAGINÁRIO Texto de Floriano Martins
2014 MÁSCARA IMAGINÁRIA Texto de Floriano Martins
2014 MÚSICA IMAGINÁRIA Texto de Floriano Martins
2015 A MOBÍLIA VIOLENTA DO FOGO
2016 CIRCO CYCLAME
2016 LÁBIOS PINTADOS DE AZUL Texto de Aglae Margalli
2017 OSSOS DO ESPÍRITO
2018 SELVA DE PELES
2023 O CEGO IDEALISTA Texto de Wasily Kaplowitz
2023 A ÚLTIMA LINHA CAPAZ DE DEVOÇÃO Texto de Maria Lúcia Dal Farra
Agulha Revista de Cultura
Criada por Floriano Martins
Dirigida por Elys Regina Zils
https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/
1999-2023
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