sábado, 1 de abril de 2023

FLORIANO MARTINS | Máscara imaginária (Abismos acidentais)

 




Vídeo: ABISMOS ACIDENTAIS

Série fotográfica, roteiro e direção | FLORIANO MARTINS

Música | FRANK ZAPPA


2014 A colheita dos sonhos - Perséfone I


2014 A evidência descarnada - Circe I


2014 A ordem lírica do caos - Fedra I


2014 A roda dentada do mistério - Medusa I


2014 A visita dos presságios - Ceres I


2014 Cicatrizes da alegoria - Cibele I


2014 Sete luas esvaziadas - Kali I


2014 A colheita dos sonhos - Perséfone II


2014 A evidência descarnada - Circe II


2014 A ordem lírica do caos - Fedra II


2014 A roda dentada do mistério - Medusa II


2014 A visita dos presságios - Ceres II


2014 Cicatrizes da alegoria - Cibele II


2014 Sete luas esvaziadas - Kali II


2014 A colheita dos sonhos - Perséfone III


2014 A evidência descarnada - Circe III


2014 A ordem lírica do caos - Fedra III


2014 A roda dentada do mistério - Medusa III


2014 A visita dos presságios - Ceres III


2014 Cicatrizes da alegoria - Cibele III


2014 Sete luas esvaziadas - Kali III


2014 A colheita dos sonhos - Perséfone IV


2014 A evidência descarnada - Circe IV


2014 A ordem lírica do caos - Fedra IV


2014 A roda dentada do mistério - Medusa IV


2014 A visita dos presságios - Ceres IV


2014 Cicatrizes da alegoria - Cibele IV


2014 Sete luas esvaziadas - Kali IV


2014 A colheita dos sonhos - Perséfone V


2014 A evidência descarnada - Circe V


2014 A ordem lírica do caos - Fedra V


2014 A roda dentada do mistério - Medusa V


2014 A visita dos presságios - Ceres V


2014 Cicatrizes da alegoria - Cibele V


2014 Sete luas esvaziadas - Kali V


2014 A colheita dos sonhos - Perséfone VI


2014 A evidência descarnada - Circe VI


2014 A ordem lírica do caos - Fedra VI


2014 A roda dentada do mistério - Medusa VI


2014 A visita dos presságios - Ceres VI


2014 Cicatrizes da alegoria - Cibele VI


2014 Sete luas esvaziadas - Kali VI


2014 A colheita dos sonhos - Perséfone VII


2014 A evidência descarnada - Circe VII


2014 A ordem lírica do caos - Fedra VII


2014 A roda dentada do mistério - Medusa VII


2014 A visita dos presságios - Ceres VII


2014 Cicatrizes da alegoria - Cibele VII


2014 Sete luas esvaziadas - Kali VII




Manhã em Sidney. Fui visitar a livraria de um museu e ali me encontrou um livro com reproduções de máscaras tribais daquela região do planeta, em especial Austrália e Nova Zelândia. A ideia de que algo se modifique ao ponto de que o mistério de sua existência não se deixe deformar em essência me pareceu o começo de um bom diálogo com aquelas máscaras que eram a visível ocultação de uma vida, porém ao mesmo tempo me sugeriam a entrada em um bastidor que me mostraria de quem se tratava cada figura, desde que eu identificasse seu esconderijo. De volta à casa de minha filha, no extenso trajeto do ônibus eu refletia sobre o que seria um símbolo de derivação. Recordei então um livro precioso de minha adolescência, O ramo de ouro. As máscaras sugerem transformações, porém apontam na direção de uma ambiguidade. Não são o que são, mas antes o que esperamos delas. Não exprimem conversão, mas sim a identificação com outro modo de ser. As máscaras são uma pedra de libertação. Guardei comigo por décadas a ideia que James Frazer havia anotado acerca das máscaras na Oceania. Elas nos limpam a alma. No dia seguinte fiz fotos de rosto de minha mulher, minha filha e minha neta. Uma abundância de esgares que deveriam contrastar com a imobilidade de máscaras ritualísticas que a partir daquele momento comecei a fotografar em vários lugares. Um encontro entre dois tempos: o da concepção de uma máscara como a transfiguração de um rosto à qual ela se aplica e a teatralização de um significado que expressa a mística de sua recepção. Tinha comigo um primeiro estoque de máscaras e rostos e fui recordando leituras, viagens e outras formas de visitação. No voo de volta ao Brasil eu matutava acerca da mitologia e suas máscaras. Personagens como Circe e Medusa são o disparador de uma expansão insaciável de imagens. Uma tem por tática a transfiguração. A outra, a imobilidade. O mundo foi ficando seco em seus atributos mitológicos. Uma parte se identifica com eles como um código inquestionável que necessita uma guarda permanente. A outra parte não é menos vítima, recolhe as sobras, intui o desgaste, vai vivendo. Haverá então uma máscara por detrás da máscara? Uma essência dentro de outra? Isto resulta indagar acerca da morada do homem. Quando regressei ao Brasil eu fui buscar outros rostos que falassem comigo. E os diversos olhares sobre uma máscara que até então eu vinha anotando em meu espírito me levaram a buscar mais fontes mitológicas.

Foram quase duas mil máscaras fotografadas. Museus, aldeias, coleções particulares. Viagens por uns 20 países. O exagero na formação de um acervo delas contrapunha-se à economia (ou precisão) na escolha do rosto certo das sete modelos encontradas. A essas mulheres eu dedicaria a mágica de sondar outros perfis do mistério. E foram elas que definiram o tempo de trabalho, desde o primeiro olhar, fotografado em Sidney, até o encontro final com um rosto na Lagoa do Bonfim, nordeste brasileiro. Em todos eles eu busquei um metal e fui surpreendido com outra joia. O metal definia-se por uma mescla de coloração e formato do rosto. A joia se apresentou na forma de um teatro, a variação estonteante de feições que a câmara capturou. O risco convertido em dádiva. A vida é de uma imperfeição feliz.

Ao aventurar-me por diversos lugares eu tinha em mente que o regresso à mesa de edição exigia que todas as pistas fossem apagadas: máscaras mortuárias, máscaras emblemáticas ligadas às religiões e à cultura de massas, eu deveria inseri-las em meus rostos de modo a sugerir uma distinta forma de impacto. O símbolo não é mais uma sinalização do mistério ou de identificação ritualística. Ele se projeta por imposição de meios. Não é mais associado ao acaso ou à corrente afetiva entre os seres. Seu grau de influência – melhor diria interferência – é definido pelo mercado. A minha ideia então se ocupava de uma restauração do mito em seu estado natural. Ao mudar uma pedra de lugar descobrimos que as formas não existem em estado puro. Uma mudança de ângulo será suficiente para deslocar a compreensão do mundo. As repetições de estratégias que garantem manutenção de poder são orientadas por essa mesma perspectiva. Temos uma compreensão elíptica da história. Máscaras formam ou deformam o mito?

O homem não é consciente da extensão de sua queda pela simples razão de que não se distancia de seu pendão cotidiano, jamais compreende a si mesmo como parte de algo. Diante do espelho fantasia uma existência devotada a driblar analogias. Uma operação secreta de deslocamento de conjugações verbais. O que foi, o que é, o que será. A configuração de um mundo pronominalmente desacreditado. Eu nunca nada. Tu nem pensar. Nós jamais existimos. Eles constituem o martelo da paranoia. Até mesmo os diabos menores se divertem com as imagens arrematadas em leilão. O verbo se cansa. Até mesmo as sombras se desgastam. O mito não depende de si.

Os sete rostos que fotografei me ensinaram a descascar o visível até que outro mundo deixasse entrever seus anagramas. Não importa o que sentimos em relação ao outro. Trazemos dentro de nós veneno e antídoto. Sete mulheres me olharam diante de uma Canon e me surpreenderam pelo desprendimento de seu espírito. Quando fotografei as máscaras elas mesmas me diziam com quais rostos queriam dialogar. Eu me entreguei a um mundo de cada vez, buscando uma configuração distinta para cada mito, uma atualização de cenário e bastidor, a recuperação de uma sinceridade cênica. Um dia precisaremos saber até onde estamos dispostos a ir.

O olhar define a arte de um modo enganoso. Quando passamos de uma escala do mistério para outra, da pintura para a música, compreendemos algo distinto. O mundo deixa de ser o que vemos e passa a ser o que ouvimos. O sentido não define a arte. Tampouco é definido por ela. O caráter inquieto e criativo de cada um de nós é o que ordena a rota alusiva de nossa existência. Um estado permanente de correspondência entre o que imagino ser e o que me falta. A forma não existe senão como uma impureza do ser. É o que expurgo de mim, o gráfico de uma libertação. O cenário cósmico dos símbolos integra ansiedades, afinidades, com uma força anímica que muitos não dão por sua atuação. A máscara é um gráfico. Não convidamos o mito a fazer parte de nossa vida. Não expressa uma realidade em si, mas antes uma rede de conexões que nos permite definir ou corrigir o modelo apresentado. A máscara é um desafio para que o símbolo configure nova essência. Uma manifestação da inquietude do ser. 


FLORIANO MARTINS | Máscara imaginária 





 


Quando se trata com máscaras, procura-se ir para além do lugar comum: máscara como disfarce, como alegoria, como simulação teatral? Bem te conheço, ó máscara! é aliás locução conhecida, inscrita num cenário ou de festa ou de período carnavalesco mas que contudo não esgota o significado que a máscara pode ser ou inevitavelmente é em circunstâncias específicas. E muitas vezes tal asserção transtorna os imaginários por esta razão muito simples: a máscara é uma projeção de nós nos outros, havendo todo um backgroundhistórico que nos impele numa determinada direção, pois de acordo com especialistas a máscara começou por ser encenação ritual no encalço da imitação do rosto dos deuses ou do que como tal se tomava. E depois, com o correr do tempo, esvaziado que fôra esse sentido primevo, passou a ser uma simulação de cariz sacerdotal, dentro dum sagrado já perdido enquanto visão imanente ou dependente dum real que se contemplara.

Ultimamente, neste nosso tempo dessacralizado e filho dum inconsciente coletivo ou dum subconsciente forjado pelas publi-imagens, ou imagens de substituição, multiplicaram-se as fantasias como por exemplo as provenientes da cultura de massas ou cultura popular assim chamada. Por exemplo as fantasias à Batman que, nesse caso, são a face normalizada e em versão cinéfila dum dos mais antigos mitos do Homem revisitado pelo marketing hollywoodesco: o vingador que sai das sombras mas é portador da luz, o anti-minotauro que, por razões diversas e muito próprias (megalomania positiva, adesão a monomanias justiceiras animais, fervor pelo insólito) resolve colocar os seus poderes de máscara poderosa ao serviço da comunidade ferida pelas prepotências diversas. Que é como quem diz: uma espécie de ativista imerso em penumbra planejada que, em vez de transportar consigo soluções sociais permitidas, políticas, de cidadania legitimada, traz para o mundo da razão a força dos seus músculos e o engenho da sua perspicácia num universo societário e conceitual paralelo mas que se torna benéfico e reconfortado (reconfortante?). E a quem a comunidade cotidiana, sem máscara ou com a máscara transparente dos direitos frente aos díscolos, aplaude com ardor, enlevada pelas façanhas desse transformado cuja missão é transformar/modificar sem se dar a conhecer no seu contexto de personalidade civil.

Nesta perspectiva particular a máscara propõe pois o indizível, o impossível aos que não dispõem desse artefato que pressupõe poderes mais vastos e eficientes. Sem a sua máscara, no caso vertente, o homem-morcego não passa dum argentário vulgar, algo excêntrico e snob mas apenas dono de um lirismo um pouco ingênuo que o aproxima do diletantismo de filho-família. Mas assim que assume a máscara o personagem muda literalmente de figura…

Sendo uma clara face de substituição, mesmo de transfiguração como ficou sugerido, a máscara é igualmente uma projecção dos nossos continentes submersos, das partes demasiado sugestivas e reveladoras do duplo que se acoita nos nossos compartimentos mais recônditos e que através dela é acordado para as actuações que doutra forma não teriam ensejo de se manifestar. Através da máscara que nos vela e nos esconde, paradoxalmente mostramos então a parte oculta da nossa Lua pessoal. Ao mesmo tempo que nos disfarça, a máscara revela/desvela: o que somos intimamente ou, dizendo doutro modo, o que sem máscara nunca patentearíamos à realidade circundante e coletiva.

E sendo o teatro (ou o theatrum mundi), como é, a assunção plena da máscara, natural se torna que todos sejamos um pouco actores, ora num plano de recusa ora no da aceitação de uma certa estratégia de saber viver numa sociedade em que as mais graves encenações se apresentam contemporaneamente de forma aberta mas num universo em que o grosso da população praticamente perdeu a privacidade na polis em que os donos da realidade fingem que tudo continua a existir normalmente. (Quem não sabe que, hoje por hoje, o reino dos que mandam no cotidiano é uma completa mascarada?).

Nesta conformidade, o grande e real perigo que nos espreita é que a máscara se nos cole à cara, fazendo com que o imaginário encenado, para uma hipótese mínima de defesa, passe para o lado de lá do palco.

Que é como quem diz: para o lado de cá da existência em sociedade… 

NICOLAU SAIÃO | Alentejo, Portugal, 2010




PROPRIEDADE IMAGINÁRIA

Galeria Virtual | FLORIANO MARTINS

SALAS DE VISITA

 

1990-2012 A IMAGEM E A SEMELHANÇA Entrevista com Floriano Martins

1998-2023 TRAJETÓRIA DE UM CAPISTA (seleção)

2010-2014 SÁTIRA DE ESPELHOS 

2011 NA MÃO DE ADÃO CABEM TODOS OS SONHOS Texto de Jacob Klintowitz

2012 PERMANÊNCIA DA REALIDADE

2013 SOMBRAS RAPTADAS Texto de Berta Lucía Estrada

2014 BRONZE NO FUNDO DO RIO Texto de Mía Gallegos

2014 CINEMA IMAGINÁRIO Texto de Floriano Martins

2014 MÁSCARA IMAGINÁRIA Textos de Floriano Martins e Nicolau Saião

2014 MÚSICA IMAGINÁRIA Texto de Floriano Martins

2015 A MOBÍLIA VIOLENTA DO FOGO Texto de Leila Ferraz

2015 A EXPRESSÃO DO LAMENTO 

2016 CIRCO CYCLAME

2016 LÁBIOS PINTADOS DE AZUL Texto de Aglae Margalli

2017 OSSOS DO ESPÍRITO 

2018 SELVA DE PELES Texto de Elys Regina Zils

2023 O CEGO IDEALISTA Texto de Wasily Kaplowitz

2023 A ÚLTIMA LINHA CAPAZ DE DEVOÇÃO Texto de Maria Lúcia Dal Farra


 

Agulha Revista de Cultura

Criada por Floriano Martins

Dirigida por Elys Regina Zils

https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/

1999-2023


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